Adoecimento Docente: construção do estado do conhecimento
Teacher Illness: building the state of knowledge
Enfermedad Docente: construcción del estado del conocimiento
Instituto Federal Sul-rio-grandense, Pelotas, RS, Brasil.
nesleinogueira@yahoo.com.br
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.
silveiradenise13@gmail.com
Recebido em 09 de maio de 2025
Aprovado em 20 de maio de 2025
Publicado em 06 de novembro de 2025
RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar o método do Estado do Conhecimento, cujo o referencial teórico são Morosini e Fernandes (2014) e Morosini, Kohls-Santos e Bittencourt (2021), elaborado para o empreendimento de uma investigação realizada em um Curso de Doutorado de um Pós-Graduação em Educação sobre o Adoecimento Docente. Inicialmente, detalhamos o que é a metodologia do Estado do Conhecimento e as etapas da sua construção, na sequência, mostramos como nós a utilizamos e as teses e dissertações selecionadas. A partir das reflexões suscitadas pela análise dos trabalhos, expomos a tessitura que subsidia a tese por nós defendida que interrelaciona os seguintes assuntos: Neoliberalismo/Capitalismo, Precarização/Intensificação do Trabalho dos Professores e Adoecimento/Mal-estar Docente. E dessa forma concluímos que é possível confirmar a nossa ideia de que as concepções contidas nas políticas públicas educacionais, propostas por órgãos regidos pelo neoliberalismo, os quais por meio de suas orientações precarizam e intensificam o trabalho docente, potencializam o adoecimento docente.
Palavras-chave: Estado do Conhecimento; Adoecimento Docente; Precarização do Trabalho; Neoliberalismo.
ABSTRACT
This article have the intention of present the State of Knowledge method, whose theoretical framework is Morosini and Fernandes (2014) and Morosini, Kohls-Santos and Bittencourt (2021), developed for carrying out a research carried out in a Doctoral Course of a Postgraduate Program in Education on Teacher Illness. Initially, we detail what the State of Knowledge methodology is and the stages of its construction, then we show how we use it and the selected theses and dissertations. Based on the reflections raised by the analysis of the works, we expose the framework that supports the thesis we defend, which interrelates the following themes: Neoliberalism/Capitalism, Precariousness/Intensification of Teaching Work and Teacher Illness/Discomfort. And so we conclude that it is possible to confirm our idea that the concepts contained in public educational policies, proposed by bodies governed by neoliberalism, which through their guidelines make teaching work precarious and intensify and increase teacher illness.
Keywords: State of Knowledge; Teacher Illness; Precariousness of Work; Neoliberalism.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo presentar el método del Estado del Conocimiento, cuyo marco teórico es Morosini y Fernandes (2014) y Morosini, Kohls-Santos y Bittencourt (2021), desarrollado para la realización de una investigación realizada en el Curso de Doctorado de Posgrado en Educación sobre la Enfermedad Docente. Inicialmente detallamos qué es la metodología del Estado del Conocimiento y las etapas de su construcción, luego mostramos cómo la utilizamos y las tesis y disertaciones seleccionadas. A partir de las reflexiones suscitadas por el análisis de los trabajos, presentamos el marco que sustenta la tesis que defendemos, que interrelaciona los siguientes temas: Neoliberalismo/Capitalismo, Precariedad/Intensificación del Trabajo Docente y Enfermedad/Malestar Docente. Y así concluimos que es posible confirmar nuestra idea de que los conceptos contenidos en las políticas públicas educativas, propuestas por organismos regidos por el neoliberalismo, que a través de sus directrices precarizan el trabajo docente e intensifican, incrementan la enfermedad docente.
Palabras clave: Estado del Conocimiento; Enfermedad Docente; Precariedad Laboral; Neoliberalismo.
Primeiros passos
Quando os pesquisadores se propõem a realizar uma investigação sobre um determinado tema, eles são confrontados a uma série de questões acerca do caminho a ser percorrido para executar tal empreendimento, dentre elas podem estar: Qual a justificativa para pesquisar o assunto? Qual(is) o(s) objetivo(s) se pretende atingir? Qual será a metodologia usada? Qual(is) será(ão) referências teóricos utilizados? etc. Destas perguntas surgem outras tantas.
O nosso interesse para realizar uma pesquisa a respeito do adoecimento docente deve-se ao fato de pertencermos a essa categoria profissional, e a partir das experiências e vivências oriundas do grande volume de trabalho dos professores, começamos a refletir sobre como as concepções presentes nas políticas públicas para a educação, prescritas pelas instituições com viés econômico neoliberal, atreladas às consequências sociopolíticas, econômicas e psicológicas, desestabilizam a saúde física e psíquica dos professores. Ademais, destacamos que a convivência com colegas de profissão, os quais vivenciam situações semelhantes à nossa, e as conversas acerca de como a sobrecarga de trabalho interfere, negativamente, na qualidade das tarefas que realizamos, e na nossa saúde física, mental e psicológica, nos instigaram a desenvolver tal pesquisa.
A finalidade da investigação é compreender de que maneira a sobrecarga laboral dos professores, juntamente com as políticas públicas educacionais impostas pelo modelo político-econômico neoliberal, as quais precarizam e intensificam o trabalho docente podem causar o adoecimento docente. Com vistas a responder os outros questionamentos, citados no primeiro parágrafo, decidimos implementar a metodologia do Estado do Conhecimento. Mas, no que consiste esse método?
O que é o Estado do Conhecimento?
Para construir o Estado do Conhecimento, decidimos realizar uma busca junto ao Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com a intenção de encontrar teses e dissertações com temas semelhantes ao da nossa pesquisa, a saber adoecimento docente, para compor o Estado do Conhecimento, o qual tem como objetivo a “identificação, registro, categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção cientifica de uma determinada área, em um determinado espaço de tempo, congregando periódicos, teses, dissertações e livros sobre uma temática específica” (Morosini; Fernandes, 2014, p. 155).
Cremos que a elaboração do Estado do Conhecimento auxilia o pesquisador a conhecer outras investigações, já realizadas, acerca de temáticas parecidas com a sua, e dessa forma, garantir a originalidade do trabalho, o que é imprescindível em uma pesquisa acadêmica em um curso de doutorado. A elaboração do Estado do Conhecimento possui algumas etapas, porém antes é preciso definir o objetivo para a sua construção, porque a investigação terá tal fim como fio condutor da busca, da exploração, da seleção, da sistematização, da categorização, da análise e da escrita do texto acerca do Estado do Conhecimento. A finalidade deste manuscrito é expor o Estado do Conhecimento feito para conhecer a metodologia, o objetivo, o referencial teórico, os resultados, as conclusões e as proposições das investigações cuja temática é o adoecimento docente. Os procedimentos para a sua execução, segundo Morosini, Kohls-Santos e Bittencourt (2021), são expostos na Figura 1.
Figura 1 – Etapas do Estado do Conhecimento
Fonte: Elaborada pelos autores.
Morosini, Kohls-Santos e Bittencourt (2021) explicam que as proposições podem variar, a saber: a partir dos resultados encontrados no corpus de análise. As autoras salientam que as propostas são apenas ideias que foram ou poderiam ser suscitadas a partir das pesquisas elaboradas por programas de pós-graduação, que foram analisadas no Estado do Conhecimento. Além disso, elas enfatizam que a etapa da Bibliografia Propositiva é opcional.
Selecionamos as teses e as dissertações catalogadas no repositório do Banco de Teses e Dissertações da CAPES, usando os descritores: adoecimento docente e mal-estar docente. Os critérios de seleção dos trabalhos foram:
• Títulos relacionados à pesquisa em desenvolvimento;
• Palavras-chave dos trabalhos coincidentes com os termos pesquisados;
• Leitura dos resumos, para avaliar a convergência dos trabalhos com o tema da investigação.
Por meio do descritor ― adoecimento docente — foram encontrados 48 trabalhos (32 dissertações, 16 teses ), refinando a busca por período de tempo de 2011 (ano a partir do qual as pesquisas estão disponíveis na Plataforma Sucupira) até 2023, foram encontradas 30 publicações (15 dissertações e15 teses), destas foram selecionadas 6 dissertações e 3 teses através dos quesitos elencados anteriormente. Para o termo pesquisado ― mal-estar docente ― a busca resultou em 165 trabalhos (135 dissertações e 30 teses). Foram definidos dois critérios de refinamento, a saber:
• Período de tempo: 2011 (ano em que o repositório Sucupira disponibiliza os trabalhos) até 2023, foram encontradas 75 publicações (59 dissertações e 16 teses);
• Critério de refinamento área de programa de pós-graduação: a área definida para a busca é a Educação, pois o nosso programa de pós-Graduação está vinculado a ela. Sendo assim, foram encontradas 53 publicações (40 dissertações e 13 teses), destas foram selecionadas 6 dissertações e 1 tese, tendo em vista os critérios de seleção descritos anteriormente.
As pesquisas encontradas totalizam 16 publicações (12 dissertações e 4 teses) foram organizadas por meio de quatro tabelas, uma para cada etapa da metodologia do Estado do Conhecimento, baseadas no modo como Morosini, Kohls-Santos e Bittencourt (2021) indicam a construção. Não apresentamos as quatro tabelas neste artigo, devido as limitações quanto ao número de palavras deste tipo de produção acadêmica.
Examinando os objetivos das pesquisas notamos que os verbos mais frequentes são: compreender, analisar, identificar e desvelar as questões referentes ao adoecimento/mal-estar docente. Desse modo, os objetivos convergem para o mesmo ponto, apesar dos diferentes contextos das investigações, que é o entendimento acerca das doenças que acometem os professores, e que também se articulam a finalidade da nossa investigação que exposta na introdução. No que tange os métodos de pesquisas usados, enfatizamos que a maioria dos trabalhos acadêmicos analisam seus dados por meio da Análise de Conteúdo, e também inferimos que o método denominado de materialismo histórico-dialético foi o mais usado nas pesquisas, das 16 teses e dissertações catalogadas 6 fazem uso dessa metodologia. Segundo Harvey (2013), o materialismo histórico-dialético é um método de análise do desenvolvimento humano, levando em consideração que o homem se desenvolve à medida que age e transforma a natureza e neste processo também se modifica.
Construímos as categorias do Estado do Conhecimento da nossa pesquisa de acordo com os pares de palavras-chave que elegemos acerca do tema adoecimento docente, porque tais termos compõem a tese defendida por nós, que é as concepções contidas nas políticas públicas educacionais, que são propostas por órgãos que estão sob a égide econômica do neoliberalismo, o qual por meio de suas orientações precarizam e intensificam o trabalho docente, podem causar o adoecimento docente. Por essa razão, elaboramos quatro categorias, a saber: categoria I: Mal-estar Docente e Precarização/Intensificação do Trabalho Docente; categoria II: Adoecimento Docente e Precarização/Intensificação do Trabalho Docente; categoria III: Mal-estar Docente ou Adoecimento Docente; categoria IV: Adoecimento Docente e Neoliberalismo/Capitalismo.
As produções foram distribuídas nas categorias a partir da análise das suas palavras-chave. Então, se o trabalho tem entre as suas palavras-chave Mal-estar Docente e Precarização/Intensificação do Trabalho Docente ou alguma expressão que faça referência a precarização ou a intensificação do trabalho, ele pertence a categoria I, caso dentre as palavras-chave houver Adoecimento Docente e Precarização/Intensificação do Trabalho Docente ou outra palavra que remeta a precarização ou a intensificação do trabalho, a publicação faz parte da categoria II. Há trabalhos que dentre suas palavras-chave não há palavras-chave que estejam atreladas a Precarização/Intensificação do Trabalho Docente ou ao Neoliberalismo/Capitalismo e possuam a expressão Adoecimento Docente ou Mal-estar Docente, eles compõem a categoria III. Na categoria IV estão inclusos teses ou dissertações que tem como palavras-chave Adoecimento Docente e Neoliberalismo/Capitalismo. No fim desta seção expomos a Tabela 1 com a distribuição dos trabalhos pelas categorias, aonde as palavras-chave que foram o motivo da escolha do trabalho para a categoria estão grifadas em negrito.
Para Bardin (2016), a Análise de Conteúdo é
um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (Bardin, 2016, p. 42).
Ela é composta por quatro procedimentos, apresentados na Figura 2:
Figura 2 - Etapas da Análise de Conteúdo inspirada em Bardin (2016)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Tabela 1 - Distribuição das teses e dissertações pelas categorias
Fonte: Elaborada pelos autores
Na sequência iniciaremos uma nova seção para mostrar as ideias construídas a partir da análise das produções encontradas, acerca dos assuntos que são os pilares da nossa investigação.
A trama que subsidia a tese
Deste ponto em diante articularemos os temas associados a tese que defendemos. Iniciamos a tessitura dos temas pelo que julgamos ser o princípio de toda a organização político-econômica da sociedade atual, o modo de produção capitalista. Para Marx (2013), o capital não é uma coisa, mas um processo de circulação de valores, os valores são atribuídos as coisas na forma dinheiro, e em seguida na forma mercadoria, para retornar a forma dinheiro. Ele define formalmente o que é o capital.
Se na circulação simples o valor das mercadorias atinge no máximo uma forma independente em relação a seus valores de uso, aqui ele se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais do que meras formas. E mais ainda. Em vez de representar relações de mercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação privada consigo mesmo. Como valor original, ele se diferencia de si mesmo como mais-valor (...) O valor se torna, assim, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital (Marx, 2013, p. 298).
A partir do exposto pode-se dizer que o capital é um processo, e parafraseando Harvey (2013), destacamos que é possível que qualquer pessoa faça capital, simplesmente, tirando dinheiro no seu bolso e colocando em circulação para fazer mais dinheiro, também pode-se realizar o caminho inverso tirar capital de circulação e recolocar o dinheiro no bolso. Daí depreende-se que nem todo dinheiro é capital, pois o capital é dinheiro utilizado de certa maneira. Por essa razão, concordamos com esse autor de que o capital é valor em movimento.
Harvey (2018) explica a ideia do capital como valor em movimento. O capital assume a forma dinheiro para ingressar nos sistemas de produção e sai deste transformado em mercadorias, as quais serão vendidas no mercado, o valor pago por elas é distribuído sob diversas formas e a vários grupos. Para funcionar essa engrenagem precisa de fontes de energia que são variadas, mas o interessante é que elas fazem com que o volume de capital em circulação se expanda continuamente. Uma das forças motrizes que alimentam o sistema de circulação do capital é o lucro, e a sua obtenção, é oriunda do mais-valor, que resulta na expansão contínua da produção, transformando o ciclo de reprodução do valor em movimento em uma espiral majorante, que temos a impressão de que seja infindável.
Ressaltamos que também existem várias ameaças e obstáculos para a manutenção da engrenagem do sistema capitalista. Uma das ameaças é a desvalorização, como o capital é valor em movimento, qualquer desaceleração na velocidade desse movimento causa sua perda de valor, a qual pode ser superada a partir do instante em que o movimento recupera a velocidade anterior. Para Marx (2011), a desvalorização é uma ameaça que gera dificuldades no interior do sistema de circulação do capital. No entanto, ele argumenta que “desvalorização constitui um momento do processo de valorização; o que já [está] simplesmente implícito no fato de que o produto do processo, em sua forma imediata, não é valor, mas primeiro tem de entrar outra vez na circulação para ser realizado enquanto tal.” (Marx, 2011, p. 533).
Cabe enfatizarmos o pensamento de Harvey (2018) que defende a ideia de que nem sempre a relação de entre o valor e antivalor é de oposição, pois a luta entre eles faz surgir uma força que impulsiona a produção de valor e, sendo assim, a desvalorização é necessária ao processo de valorização, e isso nos permite imaginar que caso haja desvalorização geral do capital, uma crise irromperá.
Mészáros (2011) ressalta essa ideia de que o capitalismo em momentos de crise se metamorfoseia, por meio de reajustes estruturais, os quais afetam profundamente, os direitos trabalhistas, os programas sociais e, principalmente, as bases da democracia. O autor distingue capital de capitalismo, para ele, capital “é uma categoria histórica dinâmica e a força social a ela correspondente aparece – na forma de capital ‘monetário’, ‘mercantil’ etc. – vários séculos antes de a formação social do Capitalismo enquanto tal emergir e se consolidar” (Mészáros, 2011, p. 1064). Já o capitalismo é uma fase de produção de capital que se tem como característica:
1. a produção para a troca (e assim a mediação e dominação do valor de uso pelo valor de troca) é dominante;
2. a força de trabalho em si, tanto quanto qualquer outra coisa, é tratada como mercadoria;
3. a motivação do lucro é a força reguladora fundamental da produção;
4. o mecanismo vital de extração da mais-valia, a separação radical entre meios de produção e produtores assume uma forma inerentemente econômica;
5. a mais-valia economicamente extraída é apropriada privadamente pelos membros da classe capitalista; e
6. de acordo com seus imperativos econômicos de crescimento e expansão, a produção do capital tende à integração global, por intermédio do mercado internacional, como um sistema totalmente interdependente de dominação e subordinação econômica (Mészáros, 2011, p. 1029).
Acreditamos que por meio da relação capital-trabalho, o trabalho é submetido as imposições do capital que estabelece o modo de produção, e com isso trata o trabalho como uma mercadoria, o desequilíbrio dessa relação é uma das causas das crises que ocorrem no sistema capitalista. Para Mészáros (2011), desde a década de 1970 o capital enfrenta uma crise, intitulada de Crise Estrutural do Capital, ela possui as seguintes características: a) é universal, porque atinge todos os ramos da produção; b) é global, pois não há país que esteja imune a ela; c) é permanente, devido a não ser limitada no tempo; e d) seu modo de operação é rastejante, já que sua manifestação ocorre de forma lenta, sem grandes revoluções, mas é implacável.
O filósofo húngaro afirma que o capital opera através de suas incoerências, sendo assim, a crise atual não pode ser superada, mas apenas administrada por intermédio das seguintes contradições:
(1) As contradições socioeconômicas internas do capital “avançado” que se manifestam no desenvolvimento cada vez mais desequilibrado sob o controle direto ou indireto do “complexo industrial-militar” e do sistema de corporações transnacionais;
(2) As contradições sociais, econômicas e políticas das sociedades pós-capitalistas, tanto isoladamente como em sua relação com as demais, que conduzem à sua desintegração e, desse modo, à intensificação da crise estrutural do sistema global do capital;
(3) As rivalidades, tensões e contradições crescentes entre os países capitalistas mais importantes, tanto no interior dos vários sistemas regionais como entre eles, colocando enorme tensão na estrutura institucional estabelecida (da Comunidade Europeia ao Sistema Monetário Internacional) e fazendo prever o espectro de uma devastadora guerra comercial;
(4) As dificuldades crescentes para manter o sistema neocolonial de dominação (do Irã à África, do Sudeste Asiático à Ásia Oriental, da América Central à do Sul), ao lado das contradições geradas dentro dos países “metropolitanos” pelas unidades de produção estabelecidas e administradas por capitais “expatriados” (Mészáros, 2011, p. 808).
Harvey (2008) argumenta que o capital está constantemente tentando gerenciar as suas crises, e que no âmbito político-social a alternativa de solução foi o neoliberalismo. Harvey (2008) e Mészáros (2011) concordam que no contexto da crise estrutural do capital, a partir do uso do modelo neoliberal, o capital visa recuperar as taxas de crescimento por meio da precarização e da intensificação do trabalho, e com isso, reduzir a função social do Estado e privatizar direitos sociais, dentre eles a educação.
Após o término da Segunda Guerra Mundial houve a necessidade de reestabelecer as relações entre os países, e simultaneamente, travar a ascensão de conflitos geopolíticos que poderiam causar uma nova luta armada com contornos globais. Para tal, foi preciso construir um cenário mundial onde deveria existir “uma combinação de Estado, mercado e instituições democráticas para garantir a paz, a inclusão, o bem-estar e a estabilidade” (Harvey, 2008, p. 20), o que foi realizado por meio da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do Banco Internacional de Compensações, bem como a assinatura do acordo de Bretton Woods.
Outras medidas foram tomadas, a saber: o incentivo ao livre comércio de bens através da conversão do dólar americano em ouro; a permissão do livre fluxo da moeda estadunidense pelo mercado mundial, tornando-se a moeda de reserva global; e a intervenção dos Estados na política industrial de seus países, via a implementação de padrões para os salários, e a elaboração de sistemas para a manutenção do bem-estar social das populações. Conforme Harvey (2008), essa forma de organização político-econômica foi designada por Liberalismo Embutido.
Numa tentativa de solucionar os problemas decorrentes do liberalismo embutido, os partidos de esquerda europeus da península ibérica, apelaram para o aumento do controle por parte dos Estados, e o uso de táticas tais como a repressão dos movimentos populares, através da austeridade fiscal, das políticas de renda e do controle de salários e preços, para regular a economia. Por essa razão, o capital submeteu-se ao neoliberalismo, essa subordinação começou a ocorrer aos poucos, no decênio de 1970, quando houveram algumas experiências de implantação das políticas neoliberais em países como, por exemplo, o Chile. Mas, afinal no que consiste o neoliberalismo?
O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que o propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comercio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas (...). Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício (Harvey, 2008, p. 12).
Através da citação anterior, nota-se que o neoliberalismo se mostra como um conjunto de prescrições políticas, econômicas e sociais, as quais objetivam-se a tirar o capitalismo da crise e criar as condições necessárias para recuperar a lucratividade do capital. Sendo assim, a educação sofre constantes interferências dessa prática político-econômica. O modelo econômico neoliberal por meio dos organismos multilaterais, tais como: o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), FMI e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estabelecem as políticas públicas educacionais. Harvey (2008) explica que para o neoliberalismo, as pessoas são responsáveis por seu próprio capital humano que é o “estoque de conhecimento economicamente valorizáveis e incorporados nos indivíduos” (Laval, 2019, p. 51), acrescentamos a esse conceito os cuidados que os indivíduos devem ter com a aparência física, a saúde e os modos de pensamento e de comportamento, ademais Laval (2019), destaca que a OCDE define o capital humano como sendo “os conhecimentos, as qualificações, as competências e as características individuais que facilitam a criação do bem-estar pessoal, social e econômico” (Laval, 2019, p. 51).
O ponto de vista de Harvey (2008) acerca do neoliberalismo nos revela o desmantelamento da escola como instituição social, e tem por finalidade a privatização da educação. Assim, no concerne à educação, esse modelo defende a tese de que a crise e o fracasso da escola pública são consequência da incapacidade administrativa do Estado, e que é necessário privatizar o ensino público, para que este seja regido pelas leis do mercado, as quais propiciam o progresso individual e social do cidadão.
Nosso entendimento a respeito da interferência da prática político-econômica neoliberal se coaduna com a de Laval (2019), a qual alerta que o neoliberalismo enfatiza que hoje o importante para a educação é “o ‘aprender a aprender’ no sentido de ter ‘criatividade, desembaraço, flexibilidade e autonomia’ no curso do trabalho, devendo a escola abandonar tudo o que se pareça com uma ‘acumulação de saberes supérfluos’, pois, o essencial repousa na capacidade do trabalhador de continuar a aprender o que lhe será útil profissionalmente”(Laval, 2019, p. 49). Este autor lamenta a postura assumida pelo neoliberalismo, no que tange a ideia de que a escola deve se comportar como uma empresa, a qual está associada há três tendências: desinstitucionalização, desvalorização e desintegração, que em conjunto visam produzir sujeitos capazes de atender ao mercado, o que implica na desvalorização do currículo voltado a cultura e a intelectualidade.
Associamos as posturas de Gentili (2013) e de Laval (2019), pois eles concordam acerca do ataque do neoliberalismo a escola pública. Para Gentili (2013), o neoliberalismo ataca a escola pública a partir de uma série de estratégias privatizantes, mediante a aplicação de uma política de descentralização autoritária e, ao mesmo tempo, mediante uma política de reforma cultural que pretende apagar do horizonte ideológico das nossas sociedades a possibilidade mesma de uma educação democrática, pública e de qualidade para as maiorias. Além disso, este autor alega que a sociedade neoliberal posiciona as empresas no centro das políticas sociais e do Estado.
A partir do que foi exposto nos parágrafos precedentes, defendemos que as interferências das políticas neoliberais no campo da educação, juntamente, com o crescimento do ensino público nas últimas décadas, proporcionou a diminuição dos salários, o aumento carga horária dos professores e da quantidade de alunos por turma, o que caracteriza a precarização e a intensificação do trabalho dos professores. Para começarmos a tratar da precarização do trabalho retomamos o entendimento de que o neoliberalismo foi a resposta à crise estrutural do capital, conceituada por Mészáros (2011). Acreditamos ser relevante, de maneira sintética, pensar sobre essa crise com a finalidade de perceber como o modelo neoliberal a partir dos seus preceitos acarreta a precarização do trabalho, ancoramo-nos para isso em Antunes (2001). Ele adverte que:
O neoliberalismo e a reestruturação produtiva da era da acumulação flexível, dotadas de forte caráter destrutivo, têm acarretado, entre tantos aspectos nefastos, um monumental desemprego, uma enorme precarização do trabalho e uma degradação crescente, na relação metabólica entre homem e natureza, conduzida pela lógica societal voltada prioritariamente para a produção de mercadorias, que destrói o meio ambiente em escala globalizada (Antunes, 2001, p. 35).
Na citação acima Antunes (2001) reforça a nossa ideia de que o neoliberalismo, juntamente com a acumulação flexível, são responsáveis pela precarização do trabalho. O autor afirma que a precarização do trabalho é uma consequência negativa da implementação do modelo de produção capitalista, guiado atualmente pela agenda neoliberal. Ele crê que para suplantar a crise estrutural do capital o caminho percorrido foi expresso a partir das seguintes tendências:
1) o padrão produtivo taylorista e fordista vem sendo crescentemente substituído ou alterado pelas formas produtivas flexibilizadas e desregulamentadas, das quais a chamada acumulação flexível e o modelo japonês ou toyotismo são exemplos;
2) o modelo de regulação social-democrático, que deu sustentação ao chamado estado de bem-estar social, em vários países centrais, vêm também sendo solapado pela (des)regulação neoliberal, privatizante e anti-social (Antunes, 2001, p. 37).
Compreendemos que devido ao êxito da implantação das técnicas toyotistas no Japão, no que concerne ao expressivo aumento da acumulação de capital, esse modelo foi adotado no Ocidente, tendo em vista a administração da crise do sistema capitalista. As indústrias do restante do mundo adotaram princípios do modelo japonês. De acordo com Antunes (2006), a ocidentalização do toyotismo implica “o encolhimento ainda maior dos fundos públicos, acarretando maior redução das conquistas sociais válidas para o conjunto da população, tanto aquela que trabalha quanto a que não encontra emprego” (Antunes, 2006, p. 40), propiciando a valorização do capital em detrimento do trabalho.
Para Antunes (2001) a crise teorizada pelo teórico húngaro dentre tantas consequências, acarreta um processo de reestruturação do capital por meio da precarização e da intensificação do trabalho. Este autor conceitua a precarização do trabalho como um “processo contínuo cujos mecanismos de imposição se entrelaçam com as necessidades permanentes de valorização de capital e autorreprodução do sistema” (Antunes, 2018, p. 160), e explica que a precarização é “uma forma particular assumida pelo processo de exploração do trabalho sob o capitalismo em sua etapa de crise estrutural, podendo, portanto, ser mais ou menos intensa, uma vez que não é uma forma estática” (Antunes, 2018, p. 160).
O autor argumenta que os donos dos meios de produção visam, cada vez mais, aumentar o mais-valor por meio do desequilíbrio entre valor produzido pelo trabalhador e o valor pago pelo uso da força de trabalho, e isso ocorre através de vários mecanismos, tais como: a intensificação do trabalho, o prolongamento da jornada de trabalho, a restrição e a limitação dos direitos trabalhistas. Ao associar a intensificação à precarização do trabalho, é possível pensar, o que é a intensificação do trabalho?
Os apontamentos do primeiro sobre as questões laborais harmonizam-se com as ideias de Antunes (2001), ele conceitua a intensificação do trabalho, baseando-se em uma análise crítica das questões laborais impactadas pela reestruturação do capital, definindo-a como “os processos de quaisquer natureza que resultam em maior dispêndio das capacidades físicas, cognitivas e emotivas do trabalhador com o objetivo de elevar quantitativamente ou melhorar qualitativamente os resultados” (Dal Rosso, 2008, p. 23). A definição de Dal Rosso (2008) amparasse na forma como Marx (2013) conceitua a intensificação laboral, para ele, ela é “um dispêndio aumentado de trabalho, uma tensão maior da força de trabalho, um preenchimento mais denso dos poros do tempo de trabalho, isto é, impõe ao trabalhador uma condensação do trabalho num grau que só pode ser atingido com uma jornada de trabalho mais curta” (Marx, 2013, p. 592). Dal Rosso (2008) afirma que o modo de organização toyotista potencializa a intensificação do trabalho e explica como isso ocorre.
Os procedimentos pelos quais a intensidade do trabalho é aumentada são: a) redução da mão de obra empregada; b) implantação do sistema de um operário – diversas máquinas; c) implantação do sistema de um operário – diversas máquinas com operações distintas; e d) o controle da sistemática de trabalho através do sistema kanban. (Dal Rosso, 2008, p.68).
Antunes (2018) assevera que além da intensificação há outros meios para se precarizar o trabalho, dentre eles: a informalização, a terceirização e a flexibilização. A informalidade é caracterizada pela ruptura dos laços formais de contratação e regulação da força de trabalho. O autor explica que ela não tem uma relação direta com a precarização, porém quando as formas de trabalho não estão amparadas pelos direitos trabalhistas, elas podem estar atreladas a formas precarizadas de trabalho. Ademais, ele defende a ideia de que a terceirização é um dos principais instrumentos da informalidade, e ancora-se em pesquisas realizadas ao longo dos últimos vinte anos no Brasil, principalmente, nos setores petroquímico, da construção civil e da eletricidade para afirmar que há uma interligação significativa entre a terceirização e a precarização. Salientamos que esse tipo de contratação se baseia na vulnerabilidade estrutural já que a mercadoria força de trabalho é obtida por parte das empresas, por meio de vínculos que não protegem socialmente o trabalhador, pois os contratos são precários e os salários baixos.
Parafraseamos Antunes (2018) para asseverar que o crescimento da intensificação, da informalização, da flexibilização e da terceirização no processo produtivo brasileiro, nas últimas décadas, está sob a influência do regime de acumulação flexível toyotista, que é marcado pelas
condições extremamente precárias, com a intensificação do trabalho (imposição e metas inalcançáveis, extensão da jornada, polivalência etc.) sustentada na gestão pelo medo, nas formas de abuso do poder, no assédio moral e na discriminação criada pela terceirização. É entre os terceirizados que essas condições de trabalho são piores, com maiores jornadas, maior rotatividade e menor acesso a benefícios (Antunes, 2018, p. 178).
Sendo assim, percebe-se que a precarização é uma ferramenta do regime de acumulação flexível, e aí está a sua conexão com a flexibilização do trabalho. Antunes (2018) destaca que as suas principais características são: a redução das fronteiras entre a vida pessoal e profissional do trabalhador e a perda dos direitos trabalhistas, nas distintas maneiras de contratação da força de trabalho.
Enfatizamos a nossa compreensão de que todos esses fenômenos do mercado de trabalho: intensificação do trabalho, trabalho informal, trabalho flexível, trabalho terceirizado são indissociáveis uns dos outros, e que eles são o veículo que leva ao trabalho precarizado. Um exemplo disso, é a assertiva de Antunes (2018) de que a maneira como ocorre a informalidade, pela via de contratos que não levam em conta a legislação trabalhista, e muito menos asseguram a proteção social do trabalhador, faz crescer a precarização, onde as condições laborais podem ser intensificadas.
Dal Rosso (2008) e as obras de Antunes (2001), (2006) e (2018) nos auxiliam a compreender que no atual cenário sociopolítico e econômico, regido pelo neoliberalismo, onde a cada dia que passa há um retrocesso dos direitos trabalhistas e, consequentemente, das condições de trabalho, as questões concernentes a informalidade, a terceirização, a flexibilização, a intensificação e a precarização do trabalho “andam de mãos dadas”, e que elas estão atreladas ao objetivo dos donos dos meios de produção capitalistas que é a incessante acumulação de capital. Antunes (2018) destaca que o efeito da precarização do trabalho é o adoecimento por motivos laborais, e adverte:
a pressão pela capacidade imediata de resposta dos trabalhadores às demandas do mercado, cujas atividades passaram a ser ainda mais controladas e calculadas em frações de segundos, assim como a obsessão dos gestores do capital por eliminar completamente os tempos mortos dos processos de trabalho, tem convertido, paulatinamente, o ambiente de trabalho em espaço de adoecimento (Antunes, 2018, p. 160).
E acrescenta que “as mudanças ocorridas no mundo do trabalho nas últimas décadas resultaram na constituição de um exército de trabalhadores mutilados, lesionados, adoecidos física e mentalmente, muitos deles incapacitados de forma definitiva para o trabalho” (Antunes, 2018, p. 168). Dejours (1992) compartilha da ideia do autor, alegando que a submissão do trabalhador a atividades laborais precarizadas e em condições desumanas causam doenças e sofrimento, o qual ocorre quando a organização do trabalho não está sob a responsabilidade de quem o executa, perdendo assim o seu significado.
Dejours (1992) apresenta uma definição de sofrimento em virtude do labor.
O sofrimento começa quando a relação homem-organização do trabalho está bloqueada; quando o trabalhador usou o máximo de suas faculdades 'intelectuais, psicoafetivas, de aprendizagem e de adaptação. Quando um trabalhador usou de tudo de que dispunha de saber e de poder na organização do trabalho e quando ele não pode mais mudar de tarefa: isto é, quando foram esgotados os meios de defesa contra a exigência física (Dejours, 1992, p. 52).
Dejours (1992) também argumenta que o sofrimento aumenta na mesma proporção em que cresce a organização do trabalho, e por conseguinte, a divisão desse trabalho, o que está de acordo com os regimes de acumulação do capital (taylorista, fordista e toyotista) já referidos. Ao meditar sobre a organização do trabalho e a sua relação com o homem, o autor enumera três componentes, que são:
• A fadiga que faz com que a mente perca a sua multifuncionalidade;
• O sistema frustação agressividade reativa, o qual libera a energia pulsional;
• A organização do trabalho que impõe ao trabalhador as vontades do modo de produção capitalista, fazendo com que este se torne um sujeito estranhado das tarefas que executa.
Segundo Dejours (1992), através dos três componentes citados acima, pode-se dizer que a organização do trabalho propicia o aparecimento do sofrimento, que está associado ao conflito entre as esperanças e aspirações do indivíduo que vive do trabalho e a organização do seu ofício que as despreza. O autor explica que esse sofrimento inicia “quando o homem, no trabalho, já não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de torná-la mais conforme as suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos – isso é, quando a relação homem-trabalho é bloqueada” (Dejours, 1992, p. 133).
Na perspectiva dos professores, cremos que eles pertencem a uma categoria que não organiza o seu labor, e dessa forma, sua atividade torna-se insignificante, potencializando o aparecimento de doenças e mal-estares, o que nos remete a pesquisa de Esteve (1999). Este autor apresenta uma ideia específica para o surgimento do mal-estar docente, atestando que este advém dos “efeitos permanentes de caráter negativo que afetam a personalidade do professor como resultado das condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência” (Esteve, 1999, p. 25).
Ele ainda afirma que, a responsabilização dos professores pelo insucesso do sistema educacional contribui para que estes profissionais adoeçam. No entendimento de Esteve (1999), o mal-estar docente relaciona-se à dois fatores, que são: fatores primários ou principais e fatores contextuais ou secundários. As causas primárias estão vinculadas há falta de recursos não só para aquisição de material didático, há violência contra professores e ao desemprego que assusta muitos docentes, e por fim ao esgotamento e há acumulação de exigências sobre o professor. No tocante as razões secundárias, estas são relativas à ação docente, ligadas às modificações no papel do professor e dos agentes tradicionais de socialização, tais como: há transferência de atividades tanto da família como da sociedade para a escola e ao aparecimento de novos agentes de socialização representados pelos meios de comunicação e consumo cultural de massa que se somam hoje às informações do professor.
O autor argumenta que dentre as consequências do mal-estar docente há artifícios usados pelos professores para escapar do adoecimento, como é o caso do absenteísmo, que se mostra como uma maneira de aliviar a tensão acumulada do trabalho, por um curto espaço de tempo, através de licenças e faltas, quando essas pequenas pausas não são suficientes pode ocorrer a situação extrema de abandono da profissão. Ele também ressalta que existem vários fatores que devem ser analisados no que concerne ao adoecimento dos professores. Então, não se deve tratar dessa questão de forma linear e simplista, o mal-estar docente e o possível adoecimento é um fenômeno complexo.
Esteve (1999) enumera três etapas para o desencadeamento do estresse, que são: reação de alarme, resistência e o esgotamento. Já a tensão consiste na permanência e na presença do estímulo estressante por um longo tempo. Além disso, o autor se embasa em dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em documento divulgado em 1981, sobre o estresse nos professores, e destaca que:
os sintomas mais frequentes entre os educadores são um sentimento de esgotamento e de frustação ou de extrema tensão. Para alguns, o estresse interviria, direta ou indiretamente, na etiologia de graves efeitos orgânicos como hipertensão, doenças coronárias, enxaquecas, úlceras gastroduodenais, asma, doenças de vesícula biliar e afecções renais. No plano mental, um estresse permanente pode desembocar em uma depressão e em uma ansiedade geral (Esteve, 1999, p. 151).
Na citação acima, Esteve (1999) afirma que o estresse pode desencadear a ansiedade. Ele a defini com a pretensão de diferenciá-la do estresse. Segundo o autor a ansiedade refere-se a uma reação emocional complexa, que possui três componentes e suas respectivas manifestações, a saber: o fisiológico (seus sintomas são pulsação cardíaca, respiração e transpiração), o subjetivo-cognitivo (manifesta-se por meio de pensamentos e imagens) e o comportamental-motor (expressa-se a partir de tremores, gagueira, tensão muscular etc.).
Outro autor que pesquisa sobre a saúde dos docentes é Codo (1999), ele concorda com Esteve (1999) ao afirmar que as condições precárias de trabalho as quais estão submetidos o professorado, de acordo com investigações recentes, acarretam o adoecimento destes profissionais. Para Codo (1999) a precarização laboral propicia a produção do estresse e do esgotamento, estando estes aliados a sobrecarga de trabalho potencializam o adoecimento dos professores, este também define a Síndrome de Burnout. Ele afirma que ela é identificada quando para o trabalhador há a perda do sentido da sua relação com o trabalho, num grau em que apesar do esforço empreendido, a execução das suas tarefas não lhe é relevante. O autor explica que não há um único conceito para a síndrome, porém há consenso entre as investigações de que ela seria uma resposta ao estresse laboral crônico, e alerta que não se deve confundi-la com o estresse.
Compreendemos que se pode asseverar que a Síndrome de Burnout é a denominação escolhida para tratar da desistência do trabalho, entendemos que essa renúncia não se concretiza via um pedido formal de demissão, mas o é de forma psicológica. Codo (1999) referenda o nosso pensamento ao atestar que:
o Burnout é uma desistência de quem ainda está lá. Encalacrado em uma situação de trabalho que não pode suportar, mas que também não pode desistir. O trabalhador arma, inconscientemente uma retirada psicológica, um modo de abandonar o trabalho apesar de continuar no posto (CODO, 1999, p. 276).
Na compreensão de Codo (1999) a síndrome manifesta-se por meio de três aspectos: exaustão emocional (é a expressão do sofrimento no nível afetivo), despersonalização (é o endurecimento emocional inconsciente) e baixo envolvimento pessoal no trabalho, que estão interrelacionados. Especificamente na docência, a exaustão emocional evidencia-se quando o professor devido a esse desgaste não consegue construir com o aluno uma relação afetuosa e de entendimento das dificuldades de aprendizado que o estudante pode ter. Isso prejudica o processo de ensino-aprendizagem dos discentes, pois há o endurecimento afetivo, o qual causa a falta de empatia, que é fundamental na relação professor-aluno, a exaustão emocional pode desencadear a despersonalização, que agrava tal desgaste.
Acreditamos que a Síndrome de Burnout potencializa o afastamento do docente do seu trabalho. Essa distância caracteriza o baixo envolvimento com o seu labor, porque quando o professor não alcança as metas que lhe impuseram e/ou que ele se impôs, surge um sentimento de incapacidade, de impotência, podendo fazer com que ele se distancie do trabalho. Concordamos com Codo (1999) e acrescentamos que essa síndrome é apenas uma dentre tantas doenças que afetam os trabalhadores. Ao ingressar no mundo do trabalho, hoje regido pelo neoliberalismo que por vários mecanismos intensifica e precariza o labor, o indivíduo é submetido à condições trabalhistas precárias e com ritmo acelerado, e isso o torna vulnerável ao adoecimento.
Temos em mente que as ideias interligadas ao longo deste manuscrito, evidenciam o nosso pensamento de que no sistema capitalista de produção, o trabalho é precarizado, e que devido há crises, o modelo produtivo baseado no capital se metamorfoseia com vistas a gerenciá-las. Na crise mais recente, a tentativa de suplantá-la deu-se por meio da transição entre os regimes de acumulação taylorista e fordista para o toyotista e pelo advento do neoliberalismo, os quais intensificam, flexibilizam e terceirizam o trabalho e, por conseguinte, o precarizam. Este, por sua vez, gera sofrimento que, por sua vez, causa mal-estares que, por sua vez, potencializa o adoecimento do trabalhador. Na sequência expomos as nossas últimas considerações.
Considerações finais
Escrevemos este artigo para apresentar o Estado de Conhecimento para a nossa investigação cuja temática é o adoecimento docente ou o mal-estar docente. A partir da análise dos dezesseis trabalhos acadêmicos selecionados, decidimos expor a tessitura das nossas ideias acerca de três temas recorrentes nas investigações escolhidas e que estão articulados a tese por nós defendida, que são: Neoliberalismo/Capitalismo, Precarização/Intensificação do Trabalho Docente e Adoecimento/Mal-estar Docente. A trama que subsidia a tese defendida por nós, pode ser sintetizada a partir das considerações descritas a seguir.
O capitalismo existe há mais de quatrocentos anos e sobrevive às crises se metamorfoseando, com vistas a manter sua hegemonia, provocando reajustes estruturais que afetam bruscamente a democracia, os direitos dos trabalhadores e os programas sociais. No âmbito político-econômico a resposta à crise foi o neoliberalismo.
O modelo neoliberal apresenta-se como um conjunto de medidas políticas, econômicas e sociais que visam gerenciar a crise do o capitalismo e criar as condições necessárias para a recuperação da lucratividade da ordem global do capital. Esta prática político-econômica, privilegia a produção de mercadorias e a valorização do capital, as quais provocam a reestruturação produtiva, que visa a intensificação da exploração da força de trabalho, e agrava a precarização nas relações de trabalho.
A precarização do trabalho é um processo contínuo cujos mecanismos de imposição se entrelaçam com as necessidades permanentes de valorização de capital e autorreprodução do sistema, que tem como uma de suas causadoras a intensificação laboral. Esta é composta por processos de quaisquer naturezas que resultam em maior dispêndio das capacidades físicas, cognitivas e emotivas do trabalhador com o objetivo de elevar quantitativamente ou melhorar qualitativamente os resultados. No que tange aos professores, a precarização das estruturas físicas e organizacionais da escola, além da sobrecarga laboral, seguidas da desvalorização profissional, somados às responsabilidades em relação ao processo de ensino-aprendizagem etc, são questões que contribuem para o acometimento de sofrimento, mal-estares e doenças.
O mal-estar docente possui efeitos permanentes de caráter negativo que afetam a personalidade do professor como resultado das condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência, ele pode acarretar o adoecimento. Este é uma mudança que comprometem a saúde física e psíquica do ser humano. Tendo em vista que os processos laborais são cada vez mais intensificados e precarizados, o trabalhador docente vê sua qualidade de vida afetada, pois sua condição laboral compromete a sua saúde física e mental, levando-os ao absenteísmo e, às vezes, ao abandono da profissão.
Tendo em vista as conexões entre os assuntos abordados neste texto, entendemos que é possível, com transcorrer da investigação, confirmar a nossa tese de que as concepções contidas nas políticas públicas educacionais, propostas por órgãos regidos pelo neoliberalismo, os quais por meio de suas orientações precarizam e intensificam o trabalho docente, potencializam o adoecimento docente.
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