A violência de gênero no contexto do Ensino Médio Integrado: contribuições da Pedagogia do Oprimido e da Pedagogia Histórico-Crítica para a construção da formação humana integral
Gender-based violence in the context of the Integrated High School: contributions of the Oppressed Pedagogy and Historic-Critical Pedagogy for the construction of integral human education
La violencia de género em el contexto de la Educación Media Integrada: aportes de la Pedagogia del Oprimido y la Pedagogia Histórico-Crítica para la construcción de la formación humana integral
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil.
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil.
Karina de Oliveira de Oliveira Azevedo
Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Nino, Damião, PB, Brasil.
karina_deoliveira@yahoo.com.br
Madele Maria Barros de Oliveira Freire
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil.
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil.
Recebido em 05 de maio de 2025
Aprovado em 28 de maio de 2025
Publicado em 24 de novembro de 2025
RESUMO
Este artigo tem como objetivo refletir sobre o enfrentamento da violência de gênero no contexto do Ensino Médio Integrado, a partir das contribuições da Pedagogia do Oprimido e da Pedagogia Histórico-Crítica, propostas, respectivamente, por Paulo Freire (1987, 1979, 2023) e Dermeval Saviani (1996, 2011), tendo em vista a formação humana integral como princípio orientador da Educação Profissional e Tecnológica (EPT). Amparado nos moldes da pesquisa qualitativa, consistindo em uma revisão bibliográfica,o estudo destaca a importância da participação ativa dos estudantes, da reflexão crítica e do compromisso com a transformação social no processo educativo, tendo como exemplos o desenvolvimento de produtos educacionais elaborados no contexto do Programa de Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT), cuja fundamentação recai na concepção do trabalho como princípio educativo e da pesquisa como princípio pedagógico. Neste sentido, parte-se do pressuposto de que a abordagem de temas sociais – como a violência de gênero –, ao possibilitar a ampliação, a construção e a (res)significação de conhecimentos inerentes ao processo formativo, contribui para promover a formação humana integral no Ensino Médio Integrado. À vista da exploração de tal pressuposto, conclui-se que as pedagogias em foco oferecem subsídios teóricos para a conscientização sobre a violência de gênero dessa modalidade de ensino, haja vista o seu reconhecimento como fenômeno social que integra os saberes pertinentes ao mundo do trabalho. Assim, a conclusão preconiza que a busca por uma formação humana integral, intrínseca à EPT, compreende a relação dialética entre o processo educativo e a realidade social marcada por relações de opressão.
Palavras-chave: Violência de gênero; Ensino Médio Integrado; Pedagogia do Oprimido e Pedagogia histórico-crítica.
ABSTRACT
This article aims to reflect on the confrontation of the gender-based violence in the context of Integrated High School, we use the theoretical contributions of the Oppressed Pedagogy and Historic-Critical Pedagogy, proposed by Paulo Freire (1987) and Dermeval Saviani (2011), taking into account the construction of the holistic human development as a guiding principle of the Professional and Technological Education (PTE). Supported by the theoretical framework of qualitative research and consisting of a bibliographic review, this study highlights the importance of active student participation, critical reflection, and commitment to social transformation within the education process. As examples, it presents the development of two educational products created within the context of the Professional and Technological Education Program, based on work as an educational principle and research as a pedagogical principle. In this sense, we have assumed that the perspective of social issues , such as gender-based violence, by enabling the expansion, construction, and (re)signification of inherent knowledge to the educational process, contributes to advance the holistic human development in the Integrated High School. We can conclude that the pedagogies in focus provide the theoretical support for raising awareness about gender-based violence in Professional and Technological Education (PTE), recognizing it as a social phenomenon that is part of the relevant knowledge to the world of the work. Thus, the conclusion emphasizes that the search of holistic human development, intrinsic to PTE, embraces the dialectical relationship between the educational process and the social reality, which is marked by the relations of oppression.
Keywords: Gender-based violence; Integrated High School; Oppressed Pedagogy and historical-critical Pedagogy.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el enfrentamiento de la violencia de género en el contexto de la Educación Media Integrada, a partir de las contribuciones de la Pedagogía del Oprimido y de la Pedagogía Histórico-Crítica, propuestas respectivamente por Paulo Freire (1987, 1979, 2023) y Dermeval Saviani (1996, 2011), considerando la formación humana integral como principio orientador de la Educação Profissional e Tecnológica (EPT, Educación Profesional y Tecnológica). Basado en un enfoque de investigación cualitativa, consistiendo en una revisión bibliográfica, el estudio destaca la importancia de la participación activa de los estudiantes, de la reflexión crítica y del compromiso con la transformación social en el proceso educativo, tomando como ejemplos el desarrollo de productos educacionales elaborados en el contexto del Programa de Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT, Programa de Educación Profesional y Tecnológica), cuya fundamentación se basa en el trabajo como principio educativo y en la investigación como principio pedagógico. En este sentido, se parte del supuesto de que el abordaje de temas sociales —como la violencia de género—, al posibilitar la ampliación, construcción y (re)significación de los conocimientos inherentes al proceso formativo, contribuye a promover la formación humana integral en la Educación Media Integrada. Considerando esta premisa, se concluye que las pedagogías en foco ofrecen aportes teóricos para la concienciación sobre la violencia de género en esta modalidad educativa, reconociéndola como un fenómeno social que integra los saberes pertinentes al mundo del trabajo. Así, la conclusión sostiene que la búsqueda de una formación humana integral, intrínseca a la EPT, comprende la relación dialéctica entre el proceso educativo y la realidad social marcada por relaciones de opresión.
Palabras clave: Violencia de género; Educación Media Integrada; Pedagogía del Oprimido y Pedagogía Histórico-Crítica.
Violência de Gênero: vinculação dialética entre processo formativo e realidade social
No Brasil e no mundo, a violência de gênero permanece enraizada na sociedade e, mesmo com a existência de movimentos visando romper com esta prática cotidiana nas relações as mais diversas, ainda há uma forte legitimação social que é culturalmente disseminada (Brabo, 2015). Essa legitimação, marcada pelo pensamento hegemônico machista imposto na sociedade, deve ser problematizada à luz dos processos históricos, sociais, econômicos, políticos e patriarcais que forjam a materialização de situações violadoras, a fim de se compreenderem sentimentos, emoções, valores, enfim vários aspectos socioemocionais contraditórios que perpassam e condicionam o fenômeno como tal se configura nos dias de hoje. Uma discussão reflexiva sob essa perspectiva é necessária, para se articular a educação integrada – que “supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos” (Ciavatta, 2005, p. 3) – a uma visão crítica sobre a conjuntura de dominação e violação vivenciadas na realidade.
O fenômeno da violência de gênero é um problema social grave que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, haja vista tratar-se de uma manifestação das desigualdades de poder entre os gêneros, contribuindo para a perpetuação de estereótipos, discriminação e violações dos direitos humanos.
Embora as agressões e feminicídios tenham vitimado muitas mulheres ao longo dos séculos, somente a partir da segunda metade do século XX, impulsionada pelo movimento feminista, a temática sobre a violência de gênero ganhou força no sentido de provocar ações e se criarem leis em favor da desconstrução da inferioridade feminina perante a dominação masculina, propondo-se novas bases conceituais, mudanças de atitudes e de práticas nas relações interpessoais (Minayo, 2006). Esse movimento lutava para que as mulheres pudessem ter mais direitos sociais e políticos.
Mesmo após as mulheres conquistarem vários espaços na sociedade moderna e na contemporânea, todos os tipos de violência contra elas têm aumentado nos últimos anos, no Brasil. De acordo com a edição 2023 do Relatório Atlas da Violência, enquanto a taxa de homicídios da população em geral apresentou queda, a de homicídios femininos cresceu 0,3%, de 2020 para 2021.
Conforme o DataSenado (2024), 68% das brasileiras conhecem alguma mulher vítima de violência doméstica, e 30% relatam ter sofrido essa violência, geralmente cometida por homens (Agência Senado, 2024). O Brasil registrou mais de 10 mil feminicídios em nove anos, com um aumento de 1,6% em 2023 (Azevedo, 2024), evidenciando a urgência do debate sobre o tema e de ações mais efetivas para proteção à mulher.
Segundo Minayo (2006), esse tipo de violência diz respeito a:
[...] qualquer ato de violência baseada no gênero que resulta, ou que provavelmente resultará em dano físico, sexual, emocional ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças, coerções ou privação arbitrária da liberdade, seja na vida pública ou privada (Minayo, 2006, p. 95).
O fenômeno do patriarcado tem estreita relação com os casos abusivos contra a mulher e seu conceito tem sido bastante evocado na literatura feminista internacional e nacional, para significar as relações de poder entre homens e mulheres. Essa evocação é de grande valia, pois “traçar as origens do patriarcado equivaleria a desvendar os fatos históricos que levaram as mulheres a esse quadro de submissão e opressão que perdura por milênios” (Lerner, 2019, p.17). E que, infelizmente, ainda está internalizada em muitas mulheres, a despeito da ascensão da consciência feminista, conquistada a partir da visão crítica das mulheres sob sua condição e papel perante a sociedade machista e patriarcal.
É importante destacar que a eficácia na abordagem da violência de gênero requer não apenas a existência de leis e políticas, mas também a implementação efetiva de medidas com vistas à conscientização da sociedade e a uma mudança cultural que promova a igualdade de gênero. A educação desempenha, nessa condição, um papel crucial no combate à violência de gênero, pois pode contribuir na construção de uma sociedade mais igualitária e consciente.
Tendo em vista o panorama delineado, surge a relevância de a educação escolar ser crítica e transformadora da realidade, atuando diretamente sobre qualquer tipo de violação de direito humano, como é o caso da violência contra a mulher. Em se tratando do contexto da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), a perspectiva das pedagogias em foco constitui paradigmas educacionais – para este estudo, aqueles aplicados ao Ensino Médio Integrado – capazes de contribuir para a conscientização em torno da violência que circunda a nossa realidade.
Nesse panorama, adotamos as concepções teóricas – a Pedagogia do Oprimido e a Pedagogia Histórico-Crítica, formuladas, respectivamente, por Paulo Freire e Dermeval Saviani – que colaboram para reflexões sobre as questões sociais que incidem sobre nosso objeto de estudo.
Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido
Um dos principais objetivos da pedagogia de Paulo Freire é tornar a educação libertadora e, dessa forma, despertar a consciência dos estudantes para identificarem as relações de opressão, nos variados ambientes e contextos, bem como para as injustiças sociais existentes na sociedade e as enfrentar. Para Freire (1987), a consciência emerge do mundo vivido, objetivando-o, problematizando-o, compreendendo-o como projeto humano. Essa tomada de consciência abre espaço para o caminho das insatisfações sociais, as quais são componentes reais dos sistemas opressores.
Em uma sociedade machista, com características patriarcais, as mulheres estão em situação de injustificada subordinação a todo momento em contextos diversos, o que as faz acreditarem que é algo “normal”. Na tessitura irracional desse “descaminho”, elas perdem a percepção de si, de seus direitos. Freire percebe esse processo quando diz que “não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os conforma como violentados, numa situação objetiva de opressão” (Freire,1987, p. 27).
O educador e filósofo brasileiro ainda acrescenta:
Em verdade, instaurada uma situação de violência, de opressão, ela gera toda uma forma de ser e comportar-se nos que estão envolvidos nela. Nos opressores e nos oprimidos. Uns e outros, porque concretamente banhados nesta situação, refletem a opressão que os marca (Freire, 1987, p. 29).
A história mostra que a violência sofrida pelas mulheres em variados contextos deixa marcas que refletem essa opressão, um sentimento de inferioridade nos oprimidos, no caso das mulheres, e um sentimento de superioridade, nos homens, os opressores, na maioria dos casos de violência. Esta violência, como um processo, passa de geração a geração, potencializando o legado do opressor. Como instrumento de enfrentamento a essa e outras injustiças sociais, Freire (1968) defende que é necessário desenvolver a consciência crítica dos oprimidos. É ter uma compreensão da realidade, de forma reflexiva e crítica, com capacidade de transformá-la.
A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica(Freire,1968, p. 4).
Partindo da concepção de que “quanto mais conscientização mais se ‘desvela’ a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo” (Freire, 1968, p. 4), torna-se claro compreender que a conscientização, conforme defesa do educador, é um compromisso histórico, sendo uma inserção crítica na história, o que implica os homens assumirem o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Ele ainda assevera que “é próprio da consciência crítica a sua integração com a realidade” (Freire, 2023, p. 139).
Daí se vê a importância da educação formal em tal processo de integração social – a escola precisa estar conectada com a realidade dos educandos, da sociedade, a fim de se posicionar para fortalecer a luta que vem sendo travada no decorrer do processo histórico em defesa de mulheres e meninas vítimas de violação de seus direitos.
Neste sentido, Freire afirma que:
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo (Freire, 1987, p. 43).
Por esse ângulo, Freire (1987) é expoente de uma pedagogia que valoriza a produção do conhecimento significativo com o propósito de uma educação transformadora, baseada na problematização e no diálogo. No contexto daEducação Profissional e Tecnológica, especialmente, no Ensino Médio Integrado, reforça-se a ideia de que as propostas pedagógicas não devem apenas transmitir conteúdos de forma mecânica, mas incentivar a reflexão crítica sobre desigualdades e opressões, incluindo as violências de gênero. Uma educação que problematiza a realidade permite que estudantes compreendam como as violências se estruturam socialmente e desenvolvam estratégias para enfrentá-las, tornando-se agentes de transformação.
Há de se considerar, porém, que toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, a uma ação, e a natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. Nessa medida, se a compreensão é crítica ou preponderantemente crítica, a ação também o será (Freire, 2023). Por essa razão, a educação precisa ser crítica para possibilitar aos sujeitos sair da consciência ingênua (acrítica) para a consciência crítica, observando a realidade a partir de outros e novos parâmetros, duvidando, ponderando, mensurando, comparando; compreender a realidade, a fim de ter condições de transformá-la, rejeitando o que lhe se afigura desigual, desumano, tornando-se sujeitos ativos da sua história. Nessa perspectiva, Freire (1987) reflete sobre a pedagogia do oprimido. Essa pedagogia que não pode ser elaborada pelos opressores é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestações da desumanização.
A partir desse entendimento, convém destacar que a sociedade precisa ter a compreensão e consciência crítica sobre a história de opressão, de violência das quais as mulheres foram e ainda são vítimas. Essa compreensão deve ser promovida e iniciada no processo formativo desenvolvido no universo escolar. Em se tratando da educação formal, de acordo com Paulo Freire, é seu dever ser crítica, para assim libertar os sujeitos da condição de oprimidos e violentados. Assim, Freire vai defender não apenas a compreensão crítica da realidade mas, sobretudo, a sua transformação:
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens (Freire, 1987, p. 24).
Dito isto, a educação crítica, na pedagogia de Paulo Freire, busca ir além da mera transmissão de informações, pois promove a conscientização, a participação ativa, o diálogo e o engajamento dos estudantes. Essa abordagem visa não apenas transformar a forma como as pessoas aprendem mas também despertar o sentimento de poder, a fim de se tornarem agentes transformadores das suas próprias vidas e das suas comunidades.
A pedagogia freireana visa, dessa forma, capacitar os estudantes, especialmente aqueles marginalizados e oprimidos, a se tornarem sujeitos potencialmente ativos e influenciadores, construtores de uma nova realidade. Ao desenvolver uma compreensão crítica do mundo, os alunos são encorajados a desafiar as estruturas de poder de injustiças e a se engajar ativamente na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária.
No contexto da violência de gênero, pode-se sorver da essência da pedagogia do oprimido, criando-se espaços de diálogo crítico, nos quais os estudantes possam refletir sobre as estruturas de poder e as formas de opressão presentes na sociedade e promover a conscientização sobre a temática.
É importante destacar que Paulo Freire não explorou especificamente a violência de gênero, em sua obra. Apesar disso, muitos educadores e pesquisadores contemporâneos têm aplicado e adaptado os princípios freireanos para abordar questões de gênero e em busca de promover a igualdade. Entende-se, então, que os princípios da pedagogia do oprimido podem ser adaptados para promover uma educação que contribua para a conscientização, empoderamento e transformação social em relação a essa problemática, contribuindo para a formação humana integral dos sujeitos.
Isto posto, vejamos como a Pedagogia Histórico-Crítica, de Dermeval Saviani, contribui para a construção da conscientização e formação humana sobre a violência de gênero.
Dermeval Saviani e a Pedagogia Histórico-Crítica
A Pedagogia Histórico-Crítica, cujos fundamentos teórico-metodológicos são formulados pelas reflexões e pela práxis pedagógica de Saviani, busca elevar a consciência do ser humano, recomendando que se parta do senso comum para se alcançar a consciência filosófica. De acordo com este também filósofo e pedagogo brasileiro, a consciência se manifesta de duas maneiras: pela consciência irrefletida, ou concomitante e pela consciência refletida, ou tematizada. A primeira percebe os fenômenos, mas não os toma como objeto de análise; a segunda é aquela em que o sujeito, diante de determinado fenômeno, de determinado assunto, ao contrário da anterior, o toma como objeto de análise, de reflexão. A esta última, na qual se observa um nível mais avançado e mais elaborado da consciência reflexiva, também se dá o nome de consciência filosófica, conforme reiteram os estudiosos:
A consciência filosófica é reflexão, mas não é qualquer reflexão. É uma reflexão radical, que busca examinar os fenômenos em profundidade. É reflexão metódica, sistemática, que procede, portanto, por métodos determinados. E é de conjunto, ou seja, busca examinar os fenômenos em seu contexto, em sua totalidade (Martins; Rezende, 2020, p. 6).
Com efeito, a consciência filosófica é a consciência em seu grau mais alto de elaboração, e, para se chegar a esse parâmetro, conforme Saviani (2020), é necessário ultrapassar o senso comum, correspondente às ideias e opiniões, geralmente imposto e aceito pela maioria das pessoas, desprovido de valor crítico. Ainda de acordo com o autor, passar do senso comum à consciência filosófica significaria “passar de uma concepção fragmentária, incoerente, desarticulada, implícita, degradada, mecânica, passiva e simplista a uma concepção unitária, coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada” (Saviani, 1996, p. 01).
Neste sentido, o senso comum diz respeito à mentalidade popular, entendido o povo como "o conjunto das classes subalternas e instrumentais de toda forma de sociedade até agora existente" (Saviani, 1996, p. 5). Para o estudioso, é através do senso comum que a concepção dominante (hegemônica) atua sobre a mentalidade popular, articulando-a em torno dos interesses dominantes e impedindo, ao mesmo tempo, a exposição dos interesses populares, inviabilizando, dessa forma, a organização das camadas subalternas enquanto classe.
Relacionando tal posicionamento ao contexto das relações de gênero, os homens estariam em uma posição hegemônica em relação às mulheres, uma vez que sempre ocuparam uma posição de poder perante a sociedade. Em uma formação social como a nossa, marcada pelo antagonismo de classes e também de gênero, as relações entre senso comum e filosofia se travam na forma de luta hegemônica. O senso comum estaria relacionado à legitimação da violência sofrida pelas mulheres, em uma certa visão popular de que “em briga de marido e mulher, ninguém põe a colher”, confirmando a concepção hegemônica masculina de poder sobre as mulheres.
Seguindo o entendimento que o paradigma educacional proposto por Saviani pode contribuir para a conscientização em torno da violência de gênero, apresentamos o Produto Educacional denominado Em Violência contra a mulher, a literatura é (a)colher (Oliveira; Formiga; Medeiros, 2024) como exemplo capaz de corroborar a vinculação dialética entre o processo formativo da EPT e a realidade social. Esse Produto Educacional é uma proposição de oficina de leitura literária – voltada para professores da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) – que articula a leitura de textos de autoria feminina como forma de prevenção à violência contra a mulher. Tal prática educativa reflete a concepção de uma formação integrada, tendo em vista a superação do "ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar" (Ciavatta, 2012, p. 85). Em outras palavras, um processo formativo que envolve reflexão certamente favorece questionamentos e críticas sobre a forma como o machismo, por exemplo, se apresenta na sociedade e como as mulheres podem ser agentes de transformação de suas próprias realidades, sobressaindo-se em sua autonomia na condição de humano.
Retomando a concepção sobre a pedagogia crítico-social, Saviani compreende que a construção do pensamento se daria, do empírico, passando pelo abstrato, para chegar ao concreto. O concreto é o ponto de partida e de chegada, ou seja, ponto de partida é o concreto real, e o concreto ponto de chegada é o concreto pensado, isto é, a apropriação pelo pensamento. Assim, o verdadeiro ponto de partida, bem como o verdadeiro ponto de chegada, é o concreto real. Nesse caso, o conceito de "real-concreto" na pedagogia de Saviani está relacionado à compreensão da realidade concreta no processo educativo, em especial na perspectiva do materialismo histórico-dialético. O "real-concreto" destaca a necessidade de um ensino que considere as especificidades da realidade vivida pelos alunos, relacionando o conhecimento à sua experiência cotidiana. No caso específico desta pesquisa, o “real-concreto” é a violência de gênero, fenômeno que deve ser estudado no contexto do Ensino MédioIntegrado.
O ponto de partida da filosofia, de acordo com Saviani, corresponde aos problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua existência. Pode-se considerar, pois, que o conceito de problema implica tanto a conscientização de uma situação de necessidade (aspecto subjetivo) como uma situação conscientizadora da necessidade (aspecto objetivo) (Saviani, 1996). Ao desafio da realidade, representado pelo problema, o homem responde com a reflexão e o aprofundamento na compreensão dos fenômenos que se ligam a uma concepção geral da realidade, exigindo uma reinterpretação global do modo de pensar essa realidade.
A reflexão se caracteriza por um aprofundamento da consciência da situação problemática, acarretando, especialmente no caso da reflexão filosófica, em virtude das exigências que lhe são inerentes, um salto qualitativo que leva à superação do problema no seu nível originário. É da reflexão filosófica sobre os problemas reais que a conscientização coletiva pode ser enaltecida, em favor de um novo projeto de sociabilidade que unifica os interesses dos grupos sociais subalternos. O alcance dessa consciência crítica em prol dos grupos subalternos, no caso, das mulheres, representa o alcance da consciência filosófica.
Avançando com as ideias de Saviani, para quem a educação deve partir da compreensão da realidade concreta em que os estudantes estão inseridos, acatamos a perspectiva de que o ensino deve ser fundamentado na análise das condições sociais, econômicas e culturais dos alunos. Dessa forma, “para a pedagogia histórico-crítica, educação é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 2011, p. 2). Por consequência, o educador pode estabelecer uma relação dialética entre o conhecimento e a realidade, promovendo uma compreensão crítica e transformadora.
Neste sentido, o autor vai afirmar que:
Em suma, pela mediação da escola, acontece a passagem do saber espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular à cultura erudita. Cumpre assinalar, também aqui, que se trata de um movimento dialético, isto é, a ação escolar permite que se acrescentem novas determinações que enriquecem as anteriores e estas, portanto, de forma alguma são excluídas. Assim, o acesso à cultura erudita possibilita a apropriação de novas formas por meio das quais se podem expressar os próprios conteúdos do saber popular (Saviani, 2011, p. 20).
Dessa forma, de acordo com Saviani (2011), a escola atua como mediadora na transformação do conhecimento espontâneo em conhecimento sistematizado, permitindo a transição da cultura popular para a cultura erudita, formando um processo dialético, ou seja, a cultura popular não é substituída, mas enriquecida pelo contato com novos saberes, possibilitando sua expressão sob novas formas.
Posto isto, a escola tem um papel fundamental na conscientização sobre a violência de gênero contra a mulher e na transformação cultural sobre o tema, pois promove a passagem do conhecimento baseado em vivências e na cultura popular para um saber baseado em reflexões críticas e acadêmicas. Esse processo não suprime nem invalida as formas de compreender e expressar as experiências sociais, mas as enriquece, permitindo que a cultura erudita seja utilizada para dar voz e ressignificar questões já presentes na vivência popular. Dessa forma, a educação contribui para a desconstrução de estereótipos e para a construção de uma sociedade mais igualitária.
Outro ponto importante da Pedagogia Histórico-Crítica é a busca em superar a dicotomia entre teoria e prática, destacando a importância de uma prática educativa que esteja integrada às condições materiais e sociais dos estudantes. Por essa razão, Saviani destaca a necessidade de um ensino que considere as especificidades da realidade vivida pelos alunos, relacionando o conhecimento à sua experiência cotidiana. A relação entre teoria e prática é um dos aspectos centrais do Ensino Médio Integrado, uma vez que busca a articulação entre formação geral e formação técnica. Esse modelo educacional, adotado principalmente nos Institutos Federais, visa superar a dicotomia entre ensino propedêutico e ensino profissionalizante, garantindo uma educação integral e emancipatória.
Assim como a pedagogia de Paulo Freire, a pedagogia de Saviani não chega a abordar diretamente a questão sobre a violência de gênero, mas pode ser considerada relevante para compreender e enfrentar essa problemática, oferecendo contribuições importantes, como, por exemplo, fazer análise crítica das relações sociais existentes entre homens e mulheres.
No contexto da violência de gênero, essa abordagem pode promover a conscientização sobre as desigualdades de gênero e incentivar ações para a transformação dessas estruturas. Sugere também uma reflexão profunda sobre as construções sociais e históricas que perpetuam a desigualdade de gênero, buscando formas de superação e transformação. Pode capacitar os estudantes a questionar as estruturas sociais injustas e a buscar mudanças, processo fundamental para combater a violência de gênero, pois uma população informada e crítica é mais propensa a desafiar e resistir às questões de opressão, de subordinação e violência.
Ao integrar os princípios da Pedagogia Histórico-Crítica em práticas educacionais no contexto do Ensino Médio Integrado, é possível colaborar para a formação de uma sociedade mais igualitária, combatendo ativamente a violência de gênero e promovendo relações baseadas no respeito, na igualdade e na justiça.
Dessa forma, evidencia-se como o Ensino Médio Integrado se alinha à formação humana integral, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa.
O Ensino Médio Integrado e a Formação Humana Integral
O termo integrado remete-se, por um lado, à forma de oferta do ensino médio articulado com a educação profissional; mas, por outro, também a um tipo de formação que seja integrada, plena, vindo a possibilitar ao educando a compreensão das partes no seu todo ou da unidade no diverso (Ciavatta, 2014, p. 198).
O Ensino Médio Integrado é um modelo educacional que busca integrar os conteúdos do Ensino Médio com a formação técnica e profissional, visando não apenas preparar os estudantes para o ingresso no ensino superior, mas também para o mundo do trabalho, oferecendo uma formação mais completa e alinhada às demandas do mundo contemporâneo. A integração das disciplinas acadêmicas com os conteúdos técnicos proporciona aos alunos uma compreensão mais profunda e aplicada do conhecimento. Quando relacionamos o Ensino Médio Integrado à formação humana integral, estamos considerando uma abordagem educacional que além do desenvolvimento intelectual também abrange aspectos sociais, emocionais, éticos e culturais.
O Ensino Médio Integrado tem o objetivo de interrelacionar a formação humana com a formação profissional e propedêutica, garantindo uma formação integral para os sujeitos. A formação humana integral diz respeito ao desenvolvimento conjunto de várias dimensões de um indivíduo, buscando promover o seu desenvolvimento completo, capacitando-o não apenas no aspecto técnico mas também no aspecto pessoal e social. Sobre a formação humana integral Ciavatta afirma:
Como formação humana, o que se busca é garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política. Formação que, neste sentido, supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos (Ciavatta, 2005, p. 85).
De acordo com Saviani (2011), a relação de correspondência existente entre tal reflexão, isto é, aplicar-se uma metodologia educativa integrada às condições materiais e sociais dos estudantes, e o enaltecimento da conscientização coletiva no entorno de um novo projeto ideológico condiz com o estabelecimento de uma unidade entre teoria e prática. A junção entre teoria e prática é um dos objetivos do Ensino Médio Integrado. Ao integrar o ensino técnico com o ensino médio, os estudantes têm a oportunidade de adquirir habilidades práticas e teóricas, possibilitando desenvolver competências técnicas ao mesmo tempo em que aprimoram, por exemplo, seu pensamento crítico e a resolução de problemas. Isso contribui para uma formação mais ampla e equilibrada, preparando os alunos para enfrentar os desafios da vida pessoal e profissional.
Dito isto, convém reforçar que o Ensino Médio Integrado, quando aliado à formação humana integral, proporciona uma abordagem mais abrangente e alinhada com as necessidades dos indivíduos e da sociedade, preparando os estudantes não apenas para o mundo do trabalho, mas também para uma participação mais ativa e ética na sociedade.
A busca por uma formação integral não pode ser realizada desconsiderando as problemáticas que afetam grande parte da população, como é o caso da violência de gênero, uma vez que é de fundamental importância compreender as relações sociais desiguais históricas existentes, nesse caso, entre homens e mulheres na sociedade. A compreensão dos seres humanos como históricos e sociais é um dos pressupostos de ordem filosófica do conceito de formação humana integral (Ramos, 2014).
Alguns dos princípios fundamentais que devem sustentar a proposta do Ensino Médio Integrado aos cursos técnicos de nível médio, como categorias indissociáveis da formação humana, são o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura (Moura, 2014). O trabalho como princípio educativo, ou seja, “como uma ação que instaura relações do ser humano com a natureza e com outros seres humanos” (Fonte, 2018, p. 6), pode ser associado com a questão da violência de gênero no sentido da configuração histórica da divisão sexual do trabalho, das desigualdades salariais entre homens e mulheres, o que pode ser fator impulsionador de muitos atos de violência contra a mulher.
Ao abordar a formação humana integral no Ensino Médio Integrado, é crucial considerar como as questões de gênero estão incorporadas em todos os aspectos da vida, como: ensinar valores de igualdade, respeito e empatia, incluindo a promoção da igualdade de gênero desde a infância e adolescência, a conscientização sobre questões de gênero, sobre estereótipos de gênero; garantir que não haja discriminação de gênero em termos de salários, oportunidades de carreira e participação em diferentes setores da sociedade; capacitar os estudantes para reconhecerem sinais de comportamentos violentos e intervirem de maneira segura e eficaz quando necessário. Todos esses aspectos são fundamentais para a sistematização de ações educativas que situem a reflexão sobre a violência de gênero no contexto do Ensino Médio Integrado, aplicáveis a uma formação humana integral.
Integrar a abordagem da violência de gênero para a formação humana integral no Ensino Médio Integrado é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e respeitosa. Essa abordagem garante que todas as pessoas tenham a oportunidade de se desenvolver plenamente, independentemente de seu gênero, promovendo a cidadania, a igualdade e o respeito mútuo.
Freire e Saviani na prática educativa: um olhar crítico-pedagógico no Ensino Médio Integrado
A educação deve possibilitar aos educandos sair de uma consciência mágica ou não crítica, chegando a uma consciência crítica no processo educacional. Esse processo é chamado por Freire de conscientização. Saviani refere à possibilidade de a educação levar o homem a ascender, do senso comum, à consciência filosófica, visto que “a educação escolar pode ser um instrumento na luta contra a burguesia e as injustiças sociais” (Saviani, 2011, p. 60).
Os dois autores trabalham a relação dialética da consciência com a realidade; essa relação, por sua vez, possibilita a transformação de ambas. Neste sentido, a consciência e o processo de conscientização têm relevância para Freire e Saviani, no que diz respeito às relações de opressão e às formas de libertação dos sujeitos.
Na Pedagogia do Oprimido, concebida por Freire, é enfatizada a importância da conscientização e da libertação, logo de uma educação libertadora que promova a participação ativa dos estudantes na construção do conhecimento e na reflexão crítica sobre a realidade social. É destacada também a importância do diálogo como uma ferramenta pedagógica fundamental, estabelecendo a práxis, ação reflexiva e transformadora, como meio de superar a opressão. A relação entre educador e educando é vista como horizontal, com ambos aprendendo juntos. Sobre o diálogo, Freire (2023) afirma:
E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se de amor, de humanidade, de esperança, de fé, de confiança. Por isso, somente o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no próximo, se fazem críticos na procura de algo e se produz uma relação de “empatia” entre ambos. Só ali há comunicação “O diálogo é, portanto, o indispensável caminho”, diz Jaspers, “não somente nas questões vitais para nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtude da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença no homem e nas suas possibilidades, pela crença de que somente chego a ser eu mesmo quando também cheguem a ser eles mesmos”. (Freire, 2023, p. 141)
O diálogo, na perspectiva freireana, não é apenas um meio de transmitir conhecimento, mas um caminho para a transformação social. Ao discutir e refletir criticamente sobre a realidade, as pessoas se tornam agentes ativas na busca por mudanças sociais e na superação das injustiças. É, desse modo, uma ferramenta vital para a conscientização e transformação social, pois promove uma abordagem participativa, crítica e colaborativa, capacitando as pessoas a compreenderem e transformarem ativamente sua realidade.
Já a Pedagogia Histórico-Cultural, proposta por Saviani, enfatiza a importância da relação entre educação e sociedade, destacando a dimensão histórica da prática educativa. Defende que a educação é uma mediação cultural, e seu enfoque está na transmissão de conhecimento acumulado pela sociedade ao longo da história. É destacada, nesse paradigma educacional, a importância da escola como instituição responsável por essa transmissão cultural. Sobre a natureza da educação, no sentido do desenvolvimento da valorização e simbolização, Saviani (2011) assevera:
Em conclusão: a compreensão da natureza da educação enquanto um trabalho não material, cujo produto não se separa do ato de produção, permite-nos situar a especificidade de educação como referida aos conhecimentos, ideias, conceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos sob o aspecto de elementos necessários à formação da humanidade em cada indivíduo singular, na forma de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente, através de relações pedagógicas historicamente determinadas que se travam entre os homens (Saviani, 2011, p. 20).
Dessa forma, a formação da humanidade, para Saviani, pode envolver a promoção de atitudes críticas, responsáveis e comprometidas com o bem comum, estando intrinsecamente ligadas à educação, que deve promover uma compreensão crítica do conhecimento, desenvolver habilidades intelectuais, fomentar valores éticos e morais, incentivar atitudes construtivas e promover a aquisição de hábitos saudáveis. Esses elementos, segundo Saviani, contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
A Pedagogia do Oprimido de Freire e a Pedagogia Histórico-Crítica de Saviani se entrelaçam na valorização da educação como prática transformadora da realidade social, ancorada na crítica às estruturas opressoras. Enquanto Freire enfatiza à práxis, a união entre ação e reflexão crítica dos oprimidos sobre o mundo para transformá-lo, Saviani propõe a construção de uma consciência filosófica, fundamentada no domínio do conhecimento sistematizado e na análise crítica da realidade a partir das mediações históricas e sociais.
Na prática, a práxis freireana pode se complementar com a proposta saviana quando a ação reflexiva do educando se apoia em conteúdos científicos, filosóficos e históricos que lhe permitam compreender de forma mais profunda as contradições sociais, indo além da experiência imediata e caminhando rumo a uma transformação consciente, crítica e historicamente situada.
Ao abordar a conscientização sobre a violência de gênero no Ensino Médio Integrado, é possível integrar elementos dessas duas abordagens como: o diálogo crítico proposto por Freire para promover a conscientização sobre a violência de gênero, estimulando a reflexão crítica dos estudantes sobre o tema; a mediação cultural proposta por Saviani, contextualizando a discussão sobre violência de gênero dentro do contexto histórico e cultural, relacionando-a à transmissão de valores e normas sociais e à práxis transformadora de Freire, incentivando ações concretas dos estudantes para combater a violência de gênero, seja por meio de projetos sociais, debates ou outras ações práticas.
Para ampliar a conscientização sobre a violência de gênero no contexto do Ensino Médio Integrado, podemos citar como exemplo a cartilha digital “Violência de Gênero contra Meninas e Mulheres: a educação para a proteção” (no prelo). Esse material educativo, elaborado como Produto Educacional no contexto do Programa de Mestrado em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) do Instituto Federal da Paraíba, tem como objetivo informar e sensibilizar estudantes do Ensino Médio Integrado e toda a comunidade acadêmica do Campus Picuí/IFPB sobre a violência de gênero enfrentada por meninas e mulheres. Além de oferecer conhecimento sobre o tema, a cartilha busca incentivar o debate e a reflexão sobre essa problemática que afeta a realidade de muitas pessoas.
A cartilha digital aborda temas como feminismo, gênero, patriarcado, tipos de violência, formação humana integral e sua relevância para a Educação Profissional e Tecnológica, especialmente no Ensino Médio Integrado. Também apresenta informações sobre leis nacionais e educacionais relacionadas ao tema, canais de denúncia, órgãos de proteção, além de pontos de atendimento do CREAS e CRAS na região. Alinhada ao conceito de diálogo de Freire, sua elaboração foi baseada na escuta dos estudantes e de um profissional da assistência estudantil, por meio de questionários aplicados via Google Forms. Validada com a participação dos próprios estudantes, a cartilha reflete a realidade concreta dos sujeitos, respeitando seus saberes e promovendo uma construção coletiva do conhecimento, essencial para uma educação dialógica.
O material também evidencia a mediação cultural proposta por Saviani ao funcionar como instrumento que aproxima o conhecimento elaborado, envolvendo conceitos como gênero, feminismo, patriarcado e legislação, do saber popular e experiencial dos estudantes, possibilitando sua apropriação crítica. Ao contextualizar a violência de gênero na vivência estudantil e articular a formação técnica, básica e humana, o material integra o conhecimento científico à realidade social dos sujeitos, contribuindo para a superação das desigualdades por meio da educação. Além disso, constitui-se como expressão da práxis freireana, ao unir reflexão e ação transformadora, não se limitando a informar, mas estimulando o protagonismo estudantil e a atuação crítica frente à violência de gênero, promovendo, assim, uma formação integral e emancipadora no contexto do Ensino Médio Integrado.
O produto educacional "Em Violência Contra a Mulher, a Literatura é (a) Colher" (Oliveira; Formiga; Medeiros, 2024), desenvolvido também, como produto educacional, no contexto do ProfEPT/IFPB, é uma oficina de leitura literária voltada para professores de Língua Portuguesa/Literatura e mediadores de leitura na Educação Profissional e Tecnológica. Com o objetivo de oferecer estratégias metodológicas para o ensino de literatura com foco na temática da violência contra a mulher, a proposta utiliza a leitura de obras literárias, debates em grupo, atividades individuais e diários de leitura como caminhos para a reflexão crítica sobre questões políticas, culturais e sociais que envolvem a violência de gênero. Ao tratar a literatura como instrumento de formação crítica, o produto busca promover o enfrentamento desse problema social por meio da educação.
A proposta dialoga diretamente com os princípios da Pedagogia do Oprimido, de Freire, ao valorizar o diálogo como prática educativa ao promover a criação de um ambiente de escuta, troca e reflexão conjunta sobre a violência contra a mulher, mediada por obras literárias que instigam o pensamento crítico e o engajamento social. Ao mesmo tempo, se aproxima da Pedagogia Histórico-Crítica, de Saviani, ao utilizar a literatura como mediação cultural, ou seja, na medida em que a propõe como instrumento de acesso aos conhecimentos historicamente elaborados pela humanidade e, ao mesmo tempo, como ferramenta para a análise crítica da realidade social. Além disso, o trabalho com o diário de leitura constitui uma prática de valorização da experiência individual e da consciência crítica do sujeito, alinhando-se ao conceito de práxis freireana, que une ação e reflexão em um movimento contínuo de transformação da realidade.
Assim, os produtos em foco promovem uma educação crítica, comprometida com a justiça social e com a formação de sujeitos capazes de intervir no mundo. Ambos os materiais educacionais, a cartilha digital e a oficina de leitura literária, promovem uma formação crítica e emancipadora ao articular teoria e prática na abordagem da violência contra a mulher na Educação Profissional e Tecnológica. Alinhados aos pressupostos da Pedagogia do Oprimido de Freire, que fomentam o diálogo como prática educativa, ao escutarem os sujeitos envolvidos, valorizarem seus saberes e promoverem espaços de reflexão coletiva. Simultaneamente, aproximam-se da Pedagogia Histórico-Crítica de Dermeval Saviani, ao possibilitarem a mediação entre o senso comum e o conhecimento científico, contribuindo para a passagem à consciência filosófica e para a apropriação crítica da realidade. Dessa forma, constituem-se como instrumentos de práxis, pois unem ação e reflexão em prol da transformação social e da superação das desigualdades de gênero.
A aplicação prática dessas pedagogias no Ensino Médio Integrado pode envolver a criação de atividades pedagógicas contextualizadas, como discussões em sala de aula, projetos de pesquisa sobre igualdade de gênero, incorporação de materiais didáticos que abordem as desigualdades de gênero, palestras e eventos que promovam a conscientização sobre a temática. Essa abordagem, alinhada à formação humana integral, contribui para o desenvolvimento de sujeitos críticos e reflexivos, articulando conhecimentos acadêmicos e experiências socioculturais.
Dessa forma, a integração dessas práticas fortalece a conscientização sobre a violência de gênero, promovendo uma educação emancipatória, contextualizada e alinhada com a formação humana integral.
No entanto, a implementação dessas pedagogias nas escolas de Ensino Médio Integrado e no contexto da Educação Profissional e Tecnológica enfrenta diversos desafios e complexidades. Entre os principais obstáculos, destacam-se a resistência a temas considerados "polêmicos", como questões de gênero, sexualidade, raça e crítica ao modelo econômico vigente, muitas vezes vistos como ameaças por setores conservadores da sociedade e das próprias instituições escolares. Soma-se a isso a deficiência na capacitação de muitos profissionais da educação, que nem sempre possuem o domínio teórico-prático necessário para desenvolver uma prática pedagógica crítica e emancipadora.
Além disso, as pressões curriculares impostas por políticas educacionais voltadas para resultados quantitativos e desempenho em avaliações externas limitam o tempo e o espaço para abordagens dialógicas e transformadoras, dificultando a construção de uma educação comprometida com a formação integral e humana.
Conclusão
As pedagogias de Paulo Freire e Dermeval Saviani oferecem contribuições fundamentais para a formação humana integral no Ensino Médio Integrado, especialmente no enfrentamento da violência de gênero, marcada historicamente por relações de opressão. Desconstruir essas relações torna-se essencial para ressignificar cenários de violação de direitos humanos e promover uma educação emancipadora que possibilite o desenvolvimento de todas as potencialidades dos sujeitos. Com base no diálogo, na reflexão crítica e na compreensão histórica, as abordagens pelo viés dessas pedagogias permitem aos educadores formar estudantes conscientes, críticos e comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e social, econômica e culturalmente equilibrada.
A articulação entre a Pedagogia do Oprimido e a Pedagogia Histórico-Crítica fortalece uma educação crítica, participativa e contextualizada. Por meio de práticas educativas sistematizadas, os educadores podem promover a igualdade de gênero e impulsionar transformações sociais que vão além do conhecimento formal.
Assim, ao incorporar elementos dessas duas perspectivas, os profissionais da educação do Ensino Médio Integrado criam ambientes de aprendizagem que estimulam a participação ativa, desenvolvem a consciência crítica e contribuem para a formação humana integral dos estudantes, preparando-os para atuar de forma *ética e transformadora na sociedade.
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