Palavras que anunciam as vidas outras: quando diferentes territórios se encontram na educação infantil[1]

Words that announce the lives of others: when different backgrounds rendezvous with childhood education

Palabras que anuncian otras vidas: cuando diferentes territorios se encuentran en la educación infantil

Flávio Santiago

Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil

santiagoflavio2206@gmail.com

Agnese Infantino

Universidade de Milão-Bicocca, Milão, Lombardia, Itália

agnese.infantino@unimib.it

Jader Janer Moreira Lopes

Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil

jjanergeo@gmail.com

 

Recebido em 08 de janeiro de 2025

Aprovado em 08 de janeiro de 2025

Publicado em 25 de abril de 2025

 

RESUMO

O artigo aborda a temática dos encontros em contextos educativos voltados a bebês e crianças pequenas, com idades entre 0 e 3 anos, enfatizando os desafios e as possibilidades que emergem com a chegada de crianças migrantes. A pesquisa tem como cenário a cidade de Sesto San Giovanni, na Itália, onde instituições de educação infantil se deparam cotidianamente com a diversidade cultural trazida pelos processos migratórios. O estudo se ancora na escuta sensível às experiências e enunciações de professoras que atuam nesses espaços, buscando compreender como se configuram os sentidos do acolhimento, da docência e das atitudes pedagógicas nesses encontros. As narrativas docentes revelam tensões, deslocamentos e aprendizagens que se materializam na rotina institucional, indicando que a presença das crianças migrantes convoca reposicionamentos éticos e políticos na prática pedagógica. Assim, o artigo propõe refletir sobre como o ato de educar se reinventa diante da alteridade, rompendo com concepções homogêneas de infância e desafiando os modos tradicionais de organização do trabalho educativo. A análise sugere que o acolhimento não se limita a uma recepção física ou afetiva, mas implica em reconhecer o outro em sua singularidade, gerando novos sentidos para o convívio e para o ensinar. Por fim, os encontros descritos pelas professoras indicam que, mesmo em meio a dificuldades e contradições, é possível construir práticas educativas comprometidas com a escuta, o respeito e a construção coletiva de pertencimento.  

Palavras-chave: Educação Infantil; Migrações; Espacialização da vida; Prática pedagógica; Itália.

 

ABSTRACT

The article addresses the theme of encounters in educational contexts focused on babies and young children, aged between 0 and 3 years, emphasizing the challenges and possibilities that emerge with the arrival of migrant children. The research is set in the city of Sesto San Giovanni, in Italy, where early childhood education institutions face cultural diversity brought about by migration processes on a daily basis. The study is grounded in a sensitive listening to the experiences and statements of teachers working in these settings, aiming to understand how the meanings of welcoming, teaching, and pedagogical attitudes are shaped in these encounters. The teachers’ narratives reveal tensions, shifts, and learning processes that materialize in the institutional routine, indicating that the presence of migrant children calls for ethical and political repositioning in pedagogical practice. Thus, the article proposes a reflection on how the act of educating is reinvented in the face of otherness, breaking away from homogeneous conceptions of childhood and challenging traditional ways of organizing educational work. The analysis suggests that welcoming is not limited to a physical or emotional reception, but involves recognizing the other in their uniqueness, generating new meanings for coexistence and for the act of teaching. Finally, the encounters described by the teachers indicate that, even amid difficulties and contradictions, it is possible to build educational practices committed to listening, respect, and the collective construction of belonging.

Keywords: Childhood Education; Migration; Spatialization of Life; Teaching practice;Italy.

 

RESUMEN

El artículo aborda la temática de los encuentros en contextos educativos dirigidos a bebés y niños pequeños, de entre 0 y 3 años, enfatizando los desafíos y las posibilidades que surgen con la llegada de niños migrantes. La investigación tiene como escenario la ciudad de Sesto San Giovanni, en Italia, donde las instituciones de educación infantil se enfrentan cotidianamente a la diversidad cultural traída por los procesos migratorios. El estudio se basa en una escucha sensible a las experiencias y enunciaciones de las maestras que actúan en estos espacios, buscando comprender cómo se configuran los sentidos de la acogida, la docencia y las actitudes pedagógicas en estos encuentros. Las narrativas docentes revelan tensiones, desplazamientos y aprendizajes que se materializan en la rutina institucional, indicando que la presencia de niños migrantes convoca a un reposicionamiento ético y político en la práctica pedagógica. Así, el artículo propone reflexionar sobre cómo el acto de educar se reinventa frente a la alteridad, rompiendo con concepciones homogéneas de la infancia y desafiando las formas tradicionales de organización del trabajo educativo.

El análisis sugiere que la acogida no se limita a una recepción física o afectiva, sino que implica reconocer al otro en su singularidad, generando nuevos sentidos para la convivencia y para el acto de enseñar. Por último, los encuentros descritos por las maestras indican que, incluso en medio de dificultades y contradicciones, es posible construir prácticas educativas comprometidas con la escucha, el respeto y la construcción colectiva de pertenencia.

Palabras clave: Educación infantil; Migración; Espacialización de la vida; Práctica pedagógica;Italia.

 

Introdução

Animado, aquele fim de ano. O Diretor Geral da Instrução Pública, de São Paulo, estaria presente à solenidade de encerramento do ano letivo do “Grupo Escolar da Consolação”. A festa prometia ser uma beleza; não se organizara antes outra que se lhe comparasse. E ela tinha para mim uma significação toda especial: eu me despedia da escola. […]

Em meio àquele movimento festivo, de ensaios e reuniões diárias, eu ocultava sob o rosto alegre uma enorme tristeza. Terminaria aí o quinhão de escola a que tivera direito. Daí por diante seria mais uma aluna da “escola que não tem férias”, da escola da vida. Eu não era a única, entre as colegas que comigo terminavam a quarta série, a não continuar os estudos. A maioria, gente pobre e modesta, não estudaria mais. Muitas iriam trabalhar em seguida, outras aprenderiam um ofício. Os pais já se haviam sacrificado bastante, permitindo que terminassem o curso primário sem trabalhar para ajudá-los durante aqueles anos. Algumas iriam tentar obter uma das poucas vagas existentes na “Escola Normal” da Praça da República, escola do governo, gratuita, para o ensino ginasial e pedagógico, concorrendo, numa competição muito difícil, com centenas de candidatas (Gattai, 2009, p. 185-6).

 

A epígrafe que escolhemos para iniciar este artigo faz referência à clássica obra Anarquistas Graças a Deus, de Zélia Gattai, romance de estreia da autora, publicado em 1979, no Brasil do então século XX. O livro traz os relatos da vida cotidiana de uma família de migrantes italianos e os acontecimentos na primeira metade do referido século. Filha de Ernesto Gattai, um anarquista declarado, a obra é um retrato dos movimentos operários vividos na cidade de São Paulo, das condições que se abatiam sobre as famílias dos trabalhadores e todas as redes sociais e espaciais que constituíam essas rotinas.

A escolha das palavras dessa escritora nos toca e, por isso, foi propositalmente pensada para este texto por se tratar de um artigo que busca abordar o movimento inverso: a chegada de migrantes em territórios italianos. Assim, este artigo tem como objetivo refletir a respeito das percepções de professoras que atuam com bebês e crianças de 0 a 3 anos, na cidade de Sesto San Giovanni, na Itália, em espaços de docência com bebês e crianças migrantes oriundas de diversos lugares.

A escuta do que professores da educação infantil têm a dizer é uma das condições importantes para quem pretende compreender o fazer docente a partir do cotidiano da prática pedagógica. Aqueles que vivem e fazem a educação infantil são possuidores de informações e saberes preciosos (Santos, 2024), e nos leva a entender como o encontro promovido nos espaços institucionais de educação são vivenciados, quando se trata de colocar em fronteiras as vidas marcadas por diferentes nacionalidades.

A existência de qualquer pessoa não se dá fora das redes sociais que ela habita e que a coabita, temos os adultos, temos os territórios, temos as rotinas, os documentos, as legislações e os artefatos diversos que estão nas fronteiras desse existir (Motta; Lopes, 2021). Como destaca Lopes (2021):

 

Não é possível narrar a vida fora das paisagens, dos territórios, dos lugares e de muitas outras expressões que a Geografia, enquanto campo de saber, nos ensinou, não podemos esquecer que os artefatos fazem e se fazem também nesse processo e nele se encontram as muitas coisas criadas no mundo, entre elas, as palavras escritas e grafadas, materializadas em formas de escrituras (Lopes, 2021, p.52).

 

Assim sendo, para compreender o objetivo da investigação da pesquisa que resultou neste artigo, é fundamental conhecermos a cidade onde trabalham as professoras entrevistadas. Essas profissionais de educação infantil desenvolvem seu fazer pedagógico na cidade de Sesto San Giovanni, município vizinho da cidade de Milão, na região da Lombardia, com uma população estimada de 78.604 habitantes.


 

Mapa 1 Cidade de Sesto San Giovanni

Fonte: Global Administrative Areas e Istituto Nazionale di Statisca (2024).

 

Durante o século XX, a cidade se destacou como um dos principais polos industriais da Itália, abrigando extensas concentrações de fábricas metalúrgicas, eletrônicas e eletrotécnicas. Nesse mesmo período, a indústria têxtil, a produção de livros e de papel também prosperaram.

Na década de 1970, Sesto San Giovanni e as suas indústrias atraíram um número crescente de trabalhadores das cidades de Brianza e Bérgamo e, depois, de forma cada vez mais massiva, operários vindos do Sul (Vecchi, 2023). O apogeu econômico da cidade persistiu até a crise dos anos 1990, quando todas as fábricas históricas encerraram suas atividades, sendo a última delas a Falck em 1996. Diante desse cenário, Sesto passou por uma transformação significativa, evoluindo de um centro industrial para um avançado centro terciário. Essa transição ainda está em curso, com a reconversão das áreas anteriormente ocupadas por fábricas.

Segundo os dados do Ministero dell’Istruzione e Del Merito, no grupo de cidades com mais de 50 mil habitantes, Sesto San Giovanni se destaca por ter o maior percentual de estudantes com cidadania não italiana, atingindo 28,27%. Em sequência, encontram-se os municípios de Prato (26,96%), Cinisello Balsamo (25,88%) e Milão (22,81%).

É importante destacar que Sesto San Giovanni está situada na Região da Lombardia, localizada ao norte da Itália, estando localizada entre as principais rotas de conexão entre a área mediterrânea e a Europa Central. Um dos elementos que atraem muitos migrantes para a região é sua economia, caracterizada pela grande variedade de setores, que vão desde a agropecuária até a indústria pesada e leve, marcada também pelo setor. É importante destacar que existe uma considerável diversidade sub-regional nas atividades econômicas das empresas na Lombardia. A província de Milão — que sozinha concentra mais de 40% das empresas da indústria lombarda — abriga várias empresas multinacionais e financeiras, instituições de saúde e universitárias e centros de pesquisa.

Para a realização da pesquisa que deu base à escrita deste artigo, foram convidadas quatro professoras de educação infantil que trabalham com bebês e crianças de 0 a 3 anos e exercem a docência na cidade de Sesto San Giovanni. A pesquisa foi desenvolvida partindo de entrevistas semiestruturadas, dando espaço para os desdobramentos das falas das professoras em relação à temática pesquisada. Os nomes das docentes foram substituídos por pseudônimos, a fim de preservar o anonimato e a integralidade dos sujeitos conforme a ética em pesquisas, o projeto que fundamentou a escrita deste artigo também foi aprovado pelo comitê de ética da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)[2].

 

Docência com bebês migrantes e a os desafios da interculturalidade

 

Nova imigração italiana chegava a São Paulo. Essa, no entanto, bastante diferente daquela outra, do fim do século. Agora homens e mulheres fugiam do regime fascista de Mussolini, em busca de liberdade, dispostos a trabalhar e a lutar por uma vida mais digna. Entre os novos imigrantes que apareceram em nossa casa, recomendados por outros amigos antifascistas, estava a família Covani, de Luca: pai, mãe e uma filha mocinha. Perseguido pelo fascismo, Cirio Covani largara tudo, antes que o prendessem. Não era homem de atividades políticas, nunca pertencera a nenhum partido. Apenas externara, certa vez, em público, sua repulsa à violência, aos métodos fascistas: óleo de rícino, prisões arbitrárias etc. Agora em São Paulo, procurava trabalho. Era pintor de automóveis. Papai lhe cedeu a seção de pintura de sua oficina, onde não lhe faltaria serviço (Gattai, 2009, p. 185).

 

A abordagem pedagógica intercultural das questões relacionadas com a prática docente com bebês representa um paradigma particularmente desafiante, principalmente no que tange a pensar o papel pedagógico das ações desenvolvidas dentro das creches. Essa questão mobiliza diferentes discursos, entre eles: o rompimento da ideia de uma infância universal, sendo esta uma construção geográfica sociológica, psicológica, operacionada pelo contexto histórico em que pertence. A infância não é uma experiência universal, mas sim uma construção; exprimindo, portanto, as diferenças individuais (Santiago, 2020).

 

[…] infância é uma construção social, uma concepção sistematizada em diferentes sociedades, ela apresenta uma dimensão que é plural, pois não me é possível falar em uma única infância, mas na pluralidade de sociedades que cobrem a superfície terrestre; existe uma pluralidade de infâncias que se configuram (Lopes, 2013, p. 290).

 

Essas diferenças se ampliam e se reforçam quando as diferenças culturais se fazem presentes, como nos casos das migrações, quando nossos próprios acabamentos (Bakhtin, 2003) são tensionados pelas relações de alteridade que se estabelecem. A vida humana ao se espacializar em determinados territórios carrega consigo uma infinidade de linguagens que fazem parte do processo de humanização de cada um de nós e coloca-se em fronteira com todas as outras. Nas geografias humanizantes estão as histórias humanas e nelas, as muitas possibilidades de conviver e de coexistir com os outros.

Atrelado ao tensionamento do ideal universalizante da infância, temos que ter a percepção de que a intercultura não é uma realidade dada nem um processo automático, isto é, a sua construção, no espaço da educação infantil, está associada à promoção de práticas pedagógicas que garantam que as pessoas ou grupos que habitam um determinado território possam interagir entre si, superando a desconfiança mútua, e podendo, assim, identificar formas de coexistência na diversidade e fazer do estar próximo uma oportunidade de enriquecimento mútuo (Silva; Lapov; Prisco, 2023). A construção de práticas que visem a positivação de relações interculturais envolve, antes de tudo, o abandono de uma abordagem mental fechada e unívoca, mas pressupõe o estabelecimento de relações entre culturas e a adoção de um modelo de conviver com a alteridade capaz de potencializar a positividade de encontro e troca mútua. Para Vigotski (2006), é nesse encontro que se potencializa a possibilidade de transformação, do surgimento de neoformações que geram o desenvolvimento, não em seu sentido linear, mas em sua condição revolucionária, algo também defendido por Paulo Freire em todas as suas obras.

A creche nesse contexto não se estabelece como um espaço como palco para os seres humanos, mas falamos em enraizamentos, em que são criadas relações de reciprocidade e alteridade, pois o espaço da vida não é apenas uma superfície onde se alocam corpos e suas localizações, mas é uma das dimensões que forja as peculiaridades humanas em suas geografias coletivas, eis uma dimensão muitas vezes esquecida nos estudos do campo da educação ou somente lembradas como arranjos e organizações físicas. Eis um dos princípios que o campo da Geografia da Infância traz em seus debates: o espaço como uma faceta importante da condição humano e, no caso desse campo de conhecimento, da condição de ser bebê e de ser criança, pois como aponta Lopes (2024), os bebês e as crianças não estão no espaço, elas são o espaço.

O fenômeno das migrações transnacionais ampliou a dimensão multicultural no contexto italiano, reforçando o seu pluralismo intrínseco e gerando novos desafios para o contexto pedagógico. A questão da diversidade e da singularidade de cada bebê e criança passou a ser uma questão latente também nas instituições educativas que acolhem bebês, sendo necessário criar estratégias que possibilitavam construir processos educativos mais coerentes com a realidade apresentada.

Entretanto a construção de práticas que valorizem a interculturalidade é um desafio, principalmente no que tange aos bebês, ou seja, mesmo que se tenham discursos correlacionados à percepção das diferenças e das diversidades culturais dos contextos em que estão inseridos, ainda há um apagamento dessa diversidade em muitas creches, existindo dois mundo culturais distintos: o casa, que represente uma ligação direta com o país de origem familiar; e o instituição educativa, que é o símbolo da cultura do país que a recebe.

A exemplo desse processo, pudemos observar uma entrevista com as docentes de Sesto San Giovanni, que narra os primeiros encontros com os responsáveis legais migrantes dos bebês após realizarem a matrícula na creche:

 

Após realizarem a matrícula os pais da criança se reúnem conosco para que possamos conhecê-los […] isso ajuda no momento da inserção, da adaptação, porque na entrevista com os familiares é possível conhecer um pouco do contexto, mas é um momento na maioria das vezes cansativo, pois é difícil nos compreendermos, principalmente porque falamos línguas diferentes. Isso acontece porque não temos mediadores culturais, então se a família fala muito bem italiano nos entendemos, caso contrário usamos tradutores dos celulares e não nós entendemos bem. O que acontece depois disso? Nada de especial, porque não há grande diferença entre uma criança estrangeira e uma criança italiana. É claro que a relação que o parente pode ter com o adulto de referência certamente muda, pois vindo de outra cultura terá um tipo de relação diferente com a sua mãe, por exemplo. Entretanto, isso não é levado em conta na prática pedagógica da creche (Maria, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

Podemos perceber na fala da docente que ela reconhece que pode existir uma diferença de tratamento do bebê migrante com seus familiares, entretanto, aponta que no contexto profissional que vivencia, não há uma abertura para pensar práticas que possam alargar as percepções de acolhimento e relação a fim de incorporar essas novas formas de contato estabelecidas entre os adultos e os bebês ou  as crianças. Maria, ao longo da entrevista, também conta que as experiências com crianças migrantes não chamaram a sua atenção:

 

Em particular não me recordo de nada especial em relação às crianças migrantes, provavelmente porque nos últimos anos, ninguém que tenha me impressionado de uma forma particular, talvez uma mãe com um filho pequeno há muitos anos atrás que veio das Filipinas se importava muito e cantava uma canção de ninar para seu filho na língua e como era uma coisa que ela se preocupava muito e que fazia a criança relaxar bastante, eu aprendi a cantar essa canção de ninar para a criança então quando ela ia dormir eu cantei para ela (Maria, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

A docente não reconhece a experiência intercultural vivenciada, mas destaca que procurou conhecer a canção que a mãe cantava para a criança dormir, o aspecto em destaque era construir uma prática que contribui com o momento de sono e não se pensava o porquê daquela ação possibilitar um conforto e um acolhimento para a criança. Entretanto, esse tipo de postura não é algo uniforme, outra docente entrevistada nos recorda que a escuta da família para compreensão da realidade dos bebês é uma prática recorrente na creche, e que nos casos dos migrantes são inseridas algumas perguntas nesses momentos de acolhimento:

 

Então quando chega uma bebê de outras culturas, é uma criança, o que a gente trabalha com a criança e com a família. No entanto, não posso afirmar que nós temos uma atenção especial a bebê migrante porque seria errado, mas a gente tenta entender a dinâmica família; o quão bem eles falam italiano, que tipo de relacionamento eles estabelecem com a criança, quais as condições de vida que tem, também procuramos compreender um pouco da história deles. Fazemos isto porque nos permite, quanto mais conhecemos a história da criança e da família, construir uma relação de confiança que faz com que tanto a criança como a família se sintam acolhidas por nós. Isso, porém, é uma coisa que geralmente fazemos com todas as famílias, não há uma prioridade sobre a outra, talvez no caso da família estrangeira nos façamos um pouco mais de perguntas, até porque quando falamos de bebê estrangeiras, até por que eu me pergunto sempre: o que significa uma bebê estrangeira? Ou seja, o que compreendemos com uma bebê estrangeira? Uma bebê que pertence a outra cultura, tem outra cor diferente da minha, o que isso significa? Quanto tempo os familiares do bebê estão na Itália? (Barbara, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

Na fala da professora podemos perceber que existe uma perceptibilidade da importância de se conhecer a historicidade do grupo familiar do bebê e suas relações para com eles, no entanto, a mesma clareza não se vê em relação à importância de conhecer as diferenças das vivências de uma família migrante. O migrante é verdadeiramente um ser híbrido, enredado em relações contraditórias. Conforme destaca Sayad (2010, p. 96):

 

Emigrado é o homem de dois lugares, de dois países, tem que pôr um pouco aqui e um pouco ali […] seu corpo está aqui, sua cabeça está aqui – e não pode ser de outra maneira já que seu suor está aqui – mas todo o resto, seu espírito, seu coração, seu olhar está ali. A vivência espacial é sempre uma vivência interespacial [em que muitas condições da vida em sociedade se presentificam] (Sayad, 2010, p. 96, acréscimo nosso).

 

Assim, a origem espacial dos sujeitos anuncia muitas possibilidades de encontros em sua vivência, os bebês filhos de migrantes, quando chegam nas creches, trazem demandas que se diferenciam dos italianos.

 

Assim, imigrar é imigrar com sua história (sendo a imigração mesma parte integrante dessa história), com suas tradições, suas maneiras de viver, de sentir, de atuar, de pensar, com sua língua, sua religião, assim como todas as demais estruturas sociais, políticas e mentais de sua sociedade, não sendo as primeiras mais que a incorporação das segundas, em suma, com sua cultura (Sayad, 2010, p. 22).

 

Os bebês migrantes chegam nas creches com esse background migratório, carregam com eles uma rede semiótica que se estende para muito além de seu corpo que ali se localiza, a possibilidade de escuta e construção de uma prática que respeite essa historicidade e geograficidade é fundamental. Como nos recorda Lopes (2022):

 

A experiência espacial nunca é, por si só, uma experiência meramente física, de recursos puramente sensórios, em busca de escalas a serem percorridas. Nenhuma criança desloca-se em planos supostamente métricos. Sempre são feitas caminhadas na cultura e em todos os constrangimentos que essa forja em nós e que nós impetramos no meio social também (Lopes, 2022, p. 8).

 

Visando valorizar a vivência das crianças migrante, Pietra, durante sua entrevista, nos contou que procura exercitar a escuta a fim de construir uma prática pedagógica intercultural que respeite as singularidades dos bebês que estão em seu entorno, e o momento da conversa inicial com os responsáveis legais, tornam-se um encontro profícuo para ações a serem desenvolvidas ao longo da jornada educativa:

 

[…] na entrevista inicial temos a possibilidade de perceber coisas simples, por exemplo se a família tem domínio ou não da língua italiana, se existe a compreensão, ok, já se não há compreensão é necessário pensar métodos de explicação, que podem incluindo narração acompanhada de gestos, ou mesmo com uma linguagem simplificada, e isso ajuda a compreender como será a minha linguagem com a bebê, pois sei se ele possui um contato familiar forte ou não com a língua italiana. Depois pedimos que nos falem como foi a primeira parte da vida da criança, e depois de ouvirmos tudo, partimos daí para iniciarmos pensar as nossas futuras práticas de acolhimento. Para demonstrar a importância desse primeiro momento de conhecer a realidade do bebê, vou contar uma experiência que tive. Este ano, por exemplo, incluímos uma criança do Senegal. Essa criança passou a primeira parte de sua vida com a avó e a tia na África. Claramente num contexto diferente daquele de uma creche italiana. Ele então veio para a Itália com seus pais que foram buscá-lo quando sua avó não estava bem de saúde e então ele passou a conviver com seu pai e sua mãe novamente depois de meses sem vê-los. Digamos que tem uma história em que a sua primeira parte de vida foi confiada a pessoas que não eram seus pais e que depois tiveram que se reajustar e reequilibrar com a nova realidade e isso tudo aconteceu alguns meses antes da criança começar a frequentar a creche. Isso foi muito interessante para nós e fizemos um trabalho colaborativo com a família o que nos permitiu compreender muitos aspectos culturais, inclusive na forma de contato humano. Essa coisa começou este ano, há alguns meses, e está tomando forma ao longo dos meses, mas tudo iniciou com a conversa realizada após a matrícula da criança na creche. Vou dar alguns exemplos só para nos ajudar a entender que essa criança na primeira fase de vida era cuidada pela tia e pela avó que cuidavam dele principalmente no quesito cuidados físicos e certamente na alimentação. Uma alimentação diferente da que oferecemos na creche, porque ele tem quase dois anos e em casa ainda usava mamadeira com alimentos misturados no leite. Portanto, sabendo dessas informações nos permite não propor alimentos sólidos logo após ele entrar na creche, mas fazer as coisas aos poucos, para que possam ser aceitos pela criança e pelos pais da criança. Essa jornada está tomando um formato muito interessante, como já falei antes, porque a cada dia você vê um pouco mais. A criança hoje está inserida e posso dizer que me senti bem, apesar da creche ser um espaço muito diferente do que ela vivenciou até então (Pietra, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

O ato da escuta em relação ao tipo de alimentação do bebê, que se diferencia do modo com que os adultos italianos costumam organizar a alimentação dos neonatos, é um passo importante, pois possibilita colocar em relação práticas culturais distintas e procurar ajustar uma via de meio que possibilite o respeito entre ambos os sistemas simbólicos de alimentação. Esse processo de acolhimento tem repercussões na qualidade da prática educativa, o reconhecimento do “direito à diferença” possibilita a garantia da expressão da singularidade da cultura que cada bebê pertence, deixando o contexto educativo mais rico e plural. É importante destacarmos, como destaca Santos (2024, p. 19), “docência é uma ação educativa intencional, marcada por princípios políticos, éticos e estéticos, que se concretizam na relação entre sujeitos, que buscam construir, de forma articulada e contextualizada, conhecimentos de diferentes campos”.

Na fala da professora Pietra, anteriormente citada, podemos perceber que ações educativas relacionadas aos aspectos da alimentação não foram deixadas de lado, mas sim ampliou a perspectiva em relação ao que poderia ser pensado, construindo a possibilidade de uma prática intercultural com base na reflexão; na flexibilidade; na escolha por um caminhar em direção ao novo e na capacidade de acolher, dialogar, pensar juntos e ser desafiado a refletir constantemente a respeito de hábitos pré-estabelecidos.

A prática pedagógica intercultural procura construir um processo que valorize a pertinência cultural, que representa uma dimensão entre os diversos pertencimentos, nos levando à descoberta do sujeito e ao reconhecimento mútuo da sua e da nossa humanidade (Bolognesi, 2017). Portanto, todas as mudanças que modificam o estilo educativo dos professores no acolhimento das famílias imigrantes, ou a estrutura organizacional da creche, são positivas e respeitosas, podendo ser pensadas como processo de integração que compreendem a escola e as famílias como fatores envolvidos numa mudança mútua.

As fronteiras planetárias, fruto de uma história que fatiou o espaço em muitos territórios considerados oficiais (veja o próprio caso italiano e a criação da Itália enquanto Estado Nação) se esgarça pelas forças sociais (e naturais) que vivemos hoje, colocando em movimento muitas pessoas, por isso as fronteiras escolares também precisam de um maior alargamento. À medida que a humanidade se move, os territórios também se movem, pois as condições dos fluxos constituem movimentos instituintes nas localidades, mesmo que esses estejam envoltos em tensões. Pois o encontro entre as várias facetas de humanização sempre coloca em questão a nossa própria faceta humana. Um bebê de outro espaço geográfico, de outro território que chega em uma unidade de educação infantil, não é “apenas um bebê de outra cultura”, é um bebê que tensiona a minha própria cultura. A universalidade e a singularidade presentes na dimensão ético-pedagógica, que caracteriza o horizonte intercultural, valoriza toda a diversidade que cada indivíduo carrega.

 

Quando recebemos crianças e bebês que são de outra cultura, ouvir os seus hábitos, os seus interesses, mesmo que apenas de quem cuidou do primeiro ano de vida da criança, é fundamental! porque permite organizar as peças do quebra-cabeça, essa combinação podemos apoiar a criança e as famílias (Luísa, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

Os bebês e as crianças pequenas têm direito ao respeito, e precisam não só ser compreendidos como pessoas, como também ser valorizados em sua singularidade, para além de qualquer ideia uniforme e estereotipada. A sua presentificação no espaço que o acolhe deve considerar as muitas espacialidades que com eles chegam, as muitas paisagens (suas formas, cheiros, aromas, sons, sabores), os muitos saberes herdados, os legados que forjam a humanidade. Esse direito acolhe e valoriza todas as características individuais, incluindo aquelas ligadas à origem geográfica, ao contexto econômico, pertencimento social, racial, cultural ou condições de saúde.

Barbara, docente entrevistada, relata durante a sua entrevista o quanto a construção de respeito pelos hábitos culturais pode proporcionar a construção de confiança entre a família e a instituição:

 

A religião é importante, então se as crianças são muçulmanas é claro que respeito as regras delas e das crianças: elas não devem comer carne de porco, presunto, todas essas coisas. Tenho que tranquilizar a família que essas coisas não são dadas à criança, então a entrevista preliminar antes de se instalar é fundamental para conhecer alguns aspectos que acontecem na família. […] quando a criança chega na creche, a gente sabe que pode haver diferenças que são de nossa responsabilidade, eu sempre digo, quem tem que se adaptar a situação somos nós (Barbara, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

A creche é a instituição que na maioria das vezes insere os filhos de migrantes em contato com uma cultura diferente do espaço social familiar, por isso é muito importante, mas também é importante para a própria instituição que ela esteja atenta às necessidades sociais e à diversidade, já que ali é um local de inclusão dos bebês na sociedade e, portanto, deve garantir uma cidadania multicultural.

As instituições educativas para bebês e crianças pequenas são responsáveis pela transição da intimidade das relações familiares para uma sociabilidade mais ampla, feita de experiências e relacionamentos novos com colegas e adultos, portanto devem ser locais de troca, participação entre professores e pais, que, apesar de terem papéis e experiências diferentes, encontram-se no espaço comum do bem-estar e da qualidade de vida das crianças (Bondioli, 2010). Como destacam Crivellari e Pentucci (2023), somente por meio de uma aliança educacional sólida entre os diferentes agentes que compõem a educação infantil que se é possível estabelecer uma base para a criação de uma rede eficaz de relacionamentos, principalmente para quem vivencia situações particulares de dificuldade.

A intercultura é uma perspectiva pedagógica que implica uma ação política, é um compromisso da nossa sociedade para garantir que todos os cidadãos se tornem parte e construam elos de pertencimento ao espaço. Nesse sentido, é importante que sejam criadas condições desde a creche para que os bebês e as crianças possam integrar-se positivamente na sociedade de acolhimento sem renunciar às próprias raízes culturais. A creche pode, portanto, ser um lugar de encontro entre modelos familiares e diferentes práticas educativas, oportunizando a construção do diálogo, da confiança mútua, da orientação partilhada e da coerência. Vale destacar que compreendemos lugar como: relações afetivas que as pessoas estabelecem com o espaço, passando a ter um valor central nas pesquisas, e na noção de Topofilia (Lopes, 2013, p. 286). Assim, torna-se necessário, acolher os bebês, conhecendo-os, entendendo sua identidade, sua história, suas raízes culturais, ou seja, envolve a criação de espaços de partilha, baseados na participação dos familiares.

E aqui é importante destacar o que compreendemos como acolhimento: partimos da ideia de que significa compreender e ser compreendido, isto é, adquirir informações e conhecimentos sobre o contexto cultural do bebê e da criança, bem como significa fornecer informações sobre o sistema educacional italiano.

O acolhimento é composto por vários aspectos: burocrático, organizacional, afetivo-relacional, educativo-didático e cognitivo. Outro ponto que temos que ter em mente é que a educação intercultural não se destina somente aos bebes e as crianças migrantes, mas sim a todas, assumir uma perspectiva com conotação intercultural significa comprometer o respeito com o objetivo de promover hábitos acolhedores nos italianos, promovendo práticas educativas que valorizem o respeito e a diversidade. Esse processo também impacta na forma com que os docentes percebem os bebes e as crianças, como exemplo podemos ver o relato das professoras entrevistadas:

 

[…] ter outras famílias de outras culturas na creche é sempre muito interessante, porque as culturas se misturam, então tiramos delas muitos aspectos, muitas nuances que talvez nem percebemos, por não conhecermos detalhes de alguns culturas, porém, é interessante quando acolhemos um bebê migrante. Pois nos motiva a realizar algumas pesquisas, ler algumas informações a respeito da parte do mundo de os familiares vieram, quais são os métodos, os hábitos, mesmo que ligados a coisas simples como a alimentação (Pietra, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

O encontro com criança estrangeira inquieta e o movimento de pesquisa em relação a outras culturas possibilitam uma inquietação na própria percepção, que apresenta relação com a origem da família migrante. Já Maria, docente, destaca que o seu olhar para com as diferenças se tornou mais aguçado depois do contato com a realidade intercultural:

 

Quando chegam bebês de outras culturas na creche, cada um traz as suas próprias tradições, os seus próprios pensamentos, os seus próprios modos de vida. Torna-se enriquecedor para mim, principalmente porque quero documentá-los. Então, antes eu não sabia algumas coisas, mas às vezes nem é por ignorância, porque às vezes você lê, mas quando você realmente tem que lidar diretamente com as pessoas migrante, a gente faz um trabalho que é entrar muitas vezes, eu quase diria que não é bem assim, mas muitas vezes a gente entra um pouco nas famílias, nas casas das pessoas. Não é exatamente isso, mas são muitos que adquirem relações muito íntimas conosco, principalmente com a mãe em algumas situações, então a gente conta algumas coisas um para o outro que não se conta facilmente a qualquer um, porque o nosso papel é cuidar dos seus filhos, e isso é muito forte. O contato com crianças que vem de outra cultura me fez mudar o meu olhar para todas as crianças, em especial para aquelas que estão em situações particulares. As crianças migrantes me ajudaram a entender a relação com as diferenças, tentar entender como fazer de modo positivo fluir essa relação. Isso é um ponto importante, digamos, eu acho que é um ponto importantíssimo de crescimento profissional, porque não é só com algumas crianças, são com todas (Barbara, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

A sensibilidade, a abertura e o encontro de novas dimensões culturais e relacionais traduzem-se no trabalho diário, como podemos observar na fala das docentes, assim trabalhar em uma perspectiva que pense uma prática intercultural não beneficia somente os bebês e as  crianças migrantes, mas todas, redefinindo o olhar e tensionando saberes antes pensados a partir de um único referencial de sociedade. Luísa, uma das docentes entrevistadas, destaca na sua fala que a experiência em trabalhar com crianças migrantes contribuiu para problematizar a própria prática enquanto professora:

 

Embora não veja diferenças particulares nas crianças tão pequenas, posso dizer que existem algumas coisas que me deixam pensativas em relação a minha prática. Por exemplo, na creche oferecemos talheres para as crianças, a fim de trabalharmos a autonomia delas. No caso das crianças árabes, algumas têm o hábito de comer com a mão, isso vem da família, e eu fico me perguntando se a nossa prática de oferecer os talheres é correta. Por isso te digo, a experiência de trabalhar com crianças migrantes me fez problematizar, que necessitamos também de um olhar individualizado. Falo isso, pois alguns modos que par anos aqui na Itália pode ser algo relacionado a autonomia, em outros lugares pode não significar (Luísa, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

A creche pode, portanto, ser um local de encontro entre diferentes modelos culturais, e para isso é necessário aprender a acolher o outro, nesse caso os familiares e o bebê, conhecendo-os, compreendendo a sua identidade, a sua história, as suas raízes culturais, criando espaços de partilha (Raccagni, 2022). O acolhimento da diferença passa por pensar e possibilitar a interlocução entre diferentes culturas, e construir propostas que procurem criar diálogos entre sujeitos. Pietra, nos conta algumas estratégias construídas para promover um diálogo entre as crianças migrantes e os aportes culturais da cultura que as recebem:

 

Por exemplo, eu me lembro de uma menininha migrante que não tinha o hábito de lavar as mãos em casa, é uma coisa que acontece, então quando nós dizíamos vamos comer, temos que lavar as mãos! Ela não entendia isso, então num determinado momento eu coloquei uma imagem na pia explicando o que era lavar as mãos, aí toda vez que íamos comer mostrava a imagem para ela. Essa prática tornou-se eficaz, pois eu mostrava a imagem e ela ia lavar as mãos, eu fiz uma tradução das palavras por meio da imagem. São pequenas coisa que ajudam a construir um espaço acolhedor, outro exemplo é na hora de dormir, eu tenho que explicar o que é dormir, pois tem criança que não está acostumada a adormecer da maneira que fazemos na creche, tem criança que está acostumada a adormecer nos braços da mãe, tem outras que tem o hábito de dormir em uma cama grande com os irmãos mais velhos (Pietra, entrevista concedida em janeiro de 2024).

 

Nossos argumentos em diálogos com as docentes desse espaço territorial, marcado por uma história de migrações (quer daqueles que partiram, quer daqueles que chegaram e continuam chegando), é a defesa de que as instituições de educação, em especial as unidades de educação infantil e, aqui, as creches sejam verdadeiros ofícios de humanidades, colocando a vida, sua diversidade e diferenças em evidências que transformam o existir de todos que ali se encontram, eis as facetas centrais do cuidar, educar e transformar.

 

A educação infantil é intrinsecamente intercultural

As vozes dos educadores entrevistados trazem à tona uma questão central na educação, particularmente na educação infantil. Na verdade, lembram-nos que os serviços educativos são locais de vida comunitária onde convivem pessoas de diferentes idades, género, cultura e classe social. A pluralidade cultural reforça e intensifica nos contextos de educação infantil a existência de múltiplas diferenças expressas pelas histórias de vida de cada pessoa. A questão subjacente, portanto, diz respeito não tanto à diferença cultural como um dado em si e abstrato, mas aos processos por meio dos quais somos capazes de educar a infância na riqueza da pluralidade. Que práticas educativas abertas às diferenças e à pluralidade, das quais a vida de cada um de nós é expressão, os serviços e funcionários educativos conseguem pôr em prática nas suas relações com bebês e crianças nos primeiros anos de vida?

O respeito com as crianças implica aos adultos descentralizar seu olhar, de modo a procurar compreendê-las por meio de suas experiências, considerando suas realidades para construir dinâmicas educativas que sejam relevantes ao contexto em que se constrói a pedagogia da infância. Isso exige disposição dos(as) adultos(as) a adaptar-se, mover-se, tornando um sujeito compreensível, mas de modo a não limitar sua atividade profissional. O respeito não pode ser somente uma declaração de princípios, mas implica empenho e disposição para pensar o que está envolvido no interior das relações com as crianças; construindo significados com valores reconhecíveis e de reconhecimento, os quais também não são estabelecidos de modo automático com a presença de móveis nos tamanhos das crianças, ou com dois ou três livros de literatura infantil que versem a respeito da interculturalidade presente nas creches e pré-escolas. O projeto educativo das instituições de educação infantil deve ser pensado e construído de modo a introduzir, permanentemente, elementos que buscam pensar a condição infantil, bem como a diversidade cultural, sendo um fundamento na prática pedagógica, e não momentos eventuais que expressam a tentativa de solução de alguns problemas (Santiago, 2024, p. 10).

 

 

Pluralidade e diferenças. A infância é intrinsecamente uma expressão de pluralidade e diferenças. Se pensarmos nos primeiros meses de vida, nos primeiros contatos interpessoais entre bebés e figuras de referência, nas experiências iniciais de interação nas situações e contextos da vida quotidiana, todas os bebês e as  crianças, como recém-chegadas, são pessoas “estrangeiras” que se comunicam de maneiras e formas completamente peculiares e que expressam necessidades, interesses e habilidades completamente específicas, diferentes daquelas do mundo adulto. A educação infantil é intrinsecamente intercultural por natureza se considerarmos que o seu núcleo central diz respeito às relações e ao diálogo entre seres humanos, adultos, bêbês e crianças tão profundamente diferentes entre si. Não é exagero pensar que os bebês experimentam inicialmente uma condição de estranheza (do latim extraneus, estranho, externo) em relação à comunidade cultural que os acolhe e que inicialmente lhes é completamente desconhecida. O corpo, as linguagens e os comportamentos dos bebês expressam constantemente uma alteridade radical em relação ao mundo adulto, quaisquer que sejam as culturas específicas de referência. Se considerarmos esses aspectos, podemos então pensar que a educação infantil se desenvolve ao longo da relação intercultural entre culturas adultas e culturas infantis. Esse é um diálogo complexo, no qual não é um dado adquirido encontrar uma boa base para compreensão e adaptação mútuas. Embora, de fato, a relação entre adultos, bebês e crianças seja uma relação assimétrica, certamente não é com um movimento diretivo, unidirecional e hierárquico que uma relação educativa pode se concretizar. Apesar de uma condição de dependência da figura adulta, o bebê e a criança participa ativamente das interações que a envolvem, ajudando a definir o andamento e o desenvolvimento da relação educativa. O horizonte da educação ativa nos leva a esta consciência.

 

O bebê de um dia, o bebê de doze meses, o bebê de dezesseis meses depende totalmente de nós para sobreviver. A sua dependência radical, porém, não nos isenta de estabelecer com ele uma relação educativa. Em que difere uma relação educativa de uma relação de formação ou, pior, mesmo de uma relação violenta? Destaca-se porque a relação educativa respeita e deixa o nosso interlocutor ser sujeito da sua história. Posso propor, posso ter projetos, posso oferecer condições ao meu interlocutor de dois dias, dois anos, até vinte anos, mas a certa altura ou o meu interlocutor faz a sua, elabora a proposta que lhe faço ou não há ‘é educação (Fresco; Cocever; Ongari, 2023, p. 74).

 

Deixe que os formandos sejam o sujeito da sua história. Essa é uma afirmação clara que pressupõe pensar a identidade e a cultura como criações contínuas, e não construções monolíticas, como processos abertos, continuamente fazendo e desfazendo. Na educação infantil essa visão é continuamente solicitada pelo estar no campo, nas práticas educativas nos serviços, em contato próximo com os múltiplos e plurais pontos de vista sobre o mundo que meninas e meninos expressam na interação entre si e com as figuras adultas.

A pertença cultural, nessa perspectiva, parece-nos, portanto, uma dimensão móvel entre as muitas que animam as identidades individuais e coletivas; uma construção provisória e não um dado a priori, ou uma característica fixa e estática. As culturas e as identidades culturais, conforme Marco Aime (2019), estão em contínuo movimento e transformação. A esse respeito, considero particularmente eficaz a anedota sobre uma creche de Turim, relatada por Aime no seu volume Excessos de culturas (2019):

 

[…] os professores decidiram um dia preparar cuscuz. Procuraram a receita “original” para cozinhá-la segundo a tradição. As crianças estavam felizes. Aí uma professora perguntou a um pouco marroquino: Você gostou?

Sim.

‘É assim que sua mãe faz?’

‘O da minha mãe é melhor porque coloca uma camada de cuscuz e uma de tortellini, uma de cuscuz…’ (Aimé, 2019).

 

Intercultural não é uma proposta, uma atividade, um percurso educativo, mas representa intrínseca e inevitavelmente a experiência individual e coletiva de cada pessoa em infinitas sínteses transitórias e em movimento imparável.

Nessa perspectiva, as questões e desafios interculturais que a educação infantil é chamada a enfrentar não dizem respeito à comparação entre “culturas”, entendidas como mundos dados, fechados e definidos dentro dos seus limites, mas sim apelam a processos educativos mais complexos e profundos, práticas e relações conforme ocorrem nas comunidades educativas e escolares. Dizem respeito à possibilidade que cada um encontra nas comunidades das quais faz parte ter a sua experiência de ser e estar no mundo com o seu próprio corpo, com os tempos e ritmos do próprio crescimento, com as preferências, medos, impulsos que cada um experimenta ao longo de sua história.

As palavras de alguns educadores são muito eficazes para descrever essa perspectiva que certamente não nega as especificidades culturais de quem vem de fora, mas, pelo contrário, imagina que para acomodar as diferenças individuais, familiares e culturais é prioritário investir na qualidade e individualização das relações com os pais e com meninas e meninos. Precisamos criar condições concretas e igualitárias para participar e participar juntos. Se cada bebê ou criança expressa cultura, só criando relações personalizadas e individualizadas com cada bebê ou criança será possível pôr em prática a hospitalidade para todos, adultos, bebê e crianças.

Mais uma vez, essa é uma aquisição que a educação infantil conquistou graças à educação ativa que ele trouxe à luz com força o tema de como reconhecer pessoas ativas nos pequenos, acolhendo as manifestações plurais das quais cada uma é expressão. Os envolvidos na educação infantil ainda continuam questionando e refletindo sobre essa questão. A multiplicidade de situações no meio das relações no campo com as meninas é uma contínua reproposta de questões que insistem no tema da autonomia/dependência e implicam que os educadores tomem decisões, façam escolhas concretas para participar respeitosamente nas relações com os bebês e as crianças, a fim de planear os contextos educativos e a vida quotidiana delas com o objetivo de oferecer a cada bebe ou criança oportunidades concretas e positivas de crescimento. Nessa perspectiva, percebemos que cada bebê ou criança expressa um mundo e estabelece de forma original seu modo de ser e de fazer no mundo.

O desafio – recordam-no com muita clareza as palavras recolhidas pelos educadores – é então implementar a oportunidades de relações e de educação plurais e diferenciadas, individualizadas e igualitárias, que permitam a cada bebê oucriança vivenciar experiências ativas na realidade segundo as formas e modos que melhor expressam sua perspectiva de formação no/sobre o mundo. Como respeitar e apoiar meninas ativas? Como concretizar a participação ativa nas práticas sociais e culturais de que todas os bebês e crianças são capazes.

Tudo isso são questões que atravessam e fazem o ato docente uma atitude docente, pois como bem lembrou Paulo Freire, “Não há docência sem discência” (Freire, 1996, p. 13), pois:

 

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a serenidade (1996, p. 13).

 

Busquemos encontros de mãos dadas, encontros corporais que convergem no espaço e no tempo, e que criem as possibilidades revolucionárias de nos humanizar na constante atividade e atitude pedagógica que se faz em ato pedagógico.


 

Referências

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Notas



[1] FINANCIAMENTO: CAPES – Processo 88887.799986/2022-00. Programa: 13179 - PDPG - Pós-Doutorado Estratégico

[2] CAAE: 74422523.1.0000.5147