Das experiências sensíveis no Emílio de Rousseau - análise de dois episódios

Of the sensitive experiences in Rousseau's Emile: analysis of two episodes

De las experiencias sensibles en el Emilio de Rousseau: análisis de dos episodios

 

Sarah da Silva Araújo

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil

sarah.pacto.go@gmail.com

Wilson Alves de Paiva

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil

scriswap@ufg.br

 

Recebido em 14 de novembro de 2024

Aprovado em 17 de dezembro de 2024

Publicado em 07 de julho de 2025

 

RESUMO

No pensamento do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau, a sensibilidade pode ser compreendia de duas formas: uma passiva, a qual advém do desenvolvimento dos sentidos; e outra ativa, que se relaciona às questões morais. Para tratar da sensibilidade passiva, este artigo analisa um trecho do tratado pedagógico rousseauniano Emílio ou da Educação, denominado de episódio do horto. Para analisar a sensibilidade ativa o trecho selecionado é o episódio da feira, contido na mesma obra. Há no Emílio, por um lado, a ênfase no desenvolvimento da sensibilidade, o qual acontece nas experiências práticas e nas vivências concretas, no entanto com o resultado do triunfo da razão. Por outro lado, o desenvolvimento da razão só acontece pela via do sensível. De modo que a superação dessa aparência contradição é o desenvolvimento da ‘razão sensitiva’, a qual resulta do processo pedagógico que valoriza os dois aspectos, iniciando com a sensibilidade passiva para, ao fim, resultar na sensibilidade ativa.  

Palavras-chave: Rousseau; Educação; Experiência.


 

ABSTRACT

In the thought of the Genevan philosopher Jean-Jacques Rousseau, sensitivity can be understood in two different ways: a passive one, which comes from the development of the senses; and the active one, which is related to moral issues. In order to deal with passive sensitivity, this article analyzes an excerpt from Rousseau's pedagogical treatise Emile or on Education, called the episode of the garden. To analyze the active sensibility, the selected passage is the episode of the fair, in the same book. There is in this educational production, i.e. the Emile, on the one hand, the emphasis on the development of sensitivity, which happens in practical experiences and concrete experiences, however heading to the triumph of reason. On the other hand, the development of reason only happens through sensibility. So, overcoming this apparent contradiction is the development of 'sensitive reason', which results from the pedagogical process that values both aspects, starting with passive sensitivity to, in the end, result in active sensitivity.

Keywords: Rousseau; Education; Experience.

 

RESUMEN

En el pensamiento del filósofo ginebrino Jean-Jacques Rousseau, la sensibilidad puede entenderse de dos formas: una pasiva, que proviene del desarrollo de los sentidos; y el otro activo, que se relaciona con cuestiones morales. Para tratar la sensibilidad pasiva, este artículo analiza un fragmento del tratado pedagógico de Rousseau Emilio o de la Educación, llamado el episodio del jardín. Para analizar la sensibilidad activa, el pasaje seleccionado es el episodio de la feria, contenido en la misma obra. Hay en Emilio, por un lado, el énfasis en el desarrollo de la sensibilidad, que se da en las experiencias prácticas y en las experiencias concretas, pero con el resultado del triunfo de la razón. Por otro lado, el desarrollo de la razón sólo ocurre a través de lo sensible. Entonces, la superación de esta aparente contradicción es el desarrollo de la ‘razón sensible’, que resulta del proceso pedagógico que valora ambos aspectos, comenzando con la sensibilidad pasiva para, al final, dar como resultado la sensibilidad activa.

Palabras clave: Rousseau; Educación; Experiencia.

 

Introdução

Ao tratarmos de Iluminismo, neste artigo, temos em mente o movimento intelectual europeu que vai do final do século XVII ao final do século XVIII, constituindo-se no período também chamado de Século das Luzes. Trata-se, portanto, da corrente filosófica, com epicentro na França, que passou a defender a razão como fonte da autoridade científica, da produção intelectual, das manifestações artísticas e até mesmo da fé. Considerando o legado medieval como “trevas”, a produção das ideias iluministas tinha o objetivo, como o próprio nome indica, “trazer a luz” de um conhecimento novo e espaventar a obscuridade das superstições clericais, alimentadas, como acusou Voltaire (2002, p. 232), pelos religiosos: “Todos os que se disseram filhos de deuses foram os pais da impostura. Serviram-se da mentira para ensinar verdades, eram indignos de a ensinar, não eram filósofos, eram, quando muito, mentirosos cheios de prudência”. Por isso que, mesmo delimitando conscientemente e metodologicamente nossa abordagem a esse período, sabemos que esse movimento faz parte de um fenômeno mais abrangente, o qual dota o ser humano da capacidade de pensar por si mesmo, numa perspectiva crítica e racional para guiar as experiências humanas em todos os seus sentidos, saindo, como asseverou Kant (1985) de um estágio de minoridade para a maioridade.

Tal é o motivo que muitos preferem chamar o movimento oitocentista de Ilustração, a fim de o diferenciar do Esclarecimento [Aufklärung]. Entende este como algo mais amplo, muitos, como Nietzsche (2017), defenderam que às Luzes deveriam ser incluídos nomes como o de Erasmo e o de Petrarca, se não até mesmo o de Homero. É bastante conhecido o fato de que o poeta italiano é considerado como o criador do termo “trevas” para qualificar a Idade Média, porém, como diz Huizinga (2021, p. 547), o medieval Petrarca estava ainda, “incorporado ao espírito medieval”. Por isso, e mesmo sabendo que o Iluminismo não se restringe, como diz Rouanet (1987) a um episódio na história ou a uma questão filosófica do século XVIII, queremos discutir somente a produção dos oitocentistas. Delimitando mais ainda, nosso foco está na filosofia de um iluminista sui generis: Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujas ideias, em muitos aspectos, perturbaram Voltaire e os demais philosophes. Ainda que, como diz Mostefai (2013), as polêmicas fossem uma parte essencial da atividade intelectual dos homens letrados, membros da Repúblicas das Letras, há de se considerar que as querelas criadas por Rousseau abalaram a amizade entre eles, principalmente pelo fato de que tinham como base algumas ideias radicais, contrárias aos pressupostos de todos e que, em seu conjunto, pareciam ameaçar a fonte de autoridade de seus contemporâneos, isto é, a razão.

Entretanto, há de se considerar que, por um lado, embora o pensamento iluminista colocasse, no geral, a razão em evidência, já circulavam em seu meio alguns escritos sobre os sentimentos como os verdadeiros motores da conduta humana. Autores como Adam Smith (Teoria dos sentimentos morais), David Hume (Tratado da natureza humana) e Denis Diderot (O filho natural) são exemplos de reflexões que procuraram discutir os nexos entre a razão e a sensibilidade. Alguns intentaram, inclusive, entender a origem e a natureza de duas coisas que se opõem à razão: o conhecimento sensível e os sentimentos. Porém, nenhum deles foi tão audacioso quanto o genebrino, principalmente em sua obra Emílio ou da educação, onde se desenvolve aquilo que Claparède (1968) chamou de educação funcional, isto é, aquela que leva em conta as necessidades e os interesses do educando, assim como valoriza os aspectos lúdicos e as experiências empíricas.

Por outro lado, embora a obra rousseauniana brinde o século XVIII com essa nova forma de ver a infância e a educação, colocando a sensibilidade em evidência, no fim de seu tratado educacional o que aparece é o triunfo da razão. Desse modo, o paradoxo rousseauniano, nesse aspecto, é explicado pela fórmula da “razão sensitiva”, ou seja, pelo desenvolvimento da razão, mas pela via do sensível e não pelas deduções lógico-matemáticas. Tal foi um dos aspectos principais que o fizeram romper sistematicamente com os colegas philosophes e refutar a supremacia do cartesianismo, defendendo uma filosofia amparada pelos sentimentos e uma pedagogia baseada nas experiências sensitivas. De modo que transparece em Rousseau uma espécie de “iluminismo paradoxal”, cuja fonte, a razão, deva procurar outra fonte anterior, isto é, a consciência e o sentimento interior.

A importância ontológica dos sentimentos está bem expressa em várias obras de Rousseau, mas é no Emile que vamos encontrar um conjunto de cenas pedagógicas, aqui chamadas de “episódios”, cujos princípios – por mais teóricos ou abstratos que possam ser, uma vez que a obra se trata de uma ficção[1] novelística – oferecem a possibilidade de educar os sentimentos pelas experiências práticas. E, como diz Francisco (2011, p. 14), “O primeiro importante papel das cenas pedagógicas é precisamente o de mostrar ao leitor como certa máxima pode ser aplicada na prática, evidenciando-se assim que, de fato, ela é “realizável” e totalmente útil na conduta do educador frente a seu aluno”. Para tanto, comentaremos duas destas cenas, que aqui chamamos de “emilianas”: o episódio do horto e o episódio da feira, para desenvolver a ideia de que tais experiências facilitam o processo educativo e permitem que a razão seja retardada o máximo possível, a fim de que a sensibilidade se desenvolva e possa, assim, ser sua guia.

 

Os Episódios

Sinteticamente, o livro Emile ou de la éducation é um mosaico de ideias cujo sentido é dado pelas “peças” que o compõem, grandes ou pequenas (Paiva, 2016). As maiores são as próprias sessões nas quais se dividem a obra: cinco livros nos quais se desenvolve a educação do nascimento à idade adulta. O Livro Primeiro trata da primeira etapa da infância, de 0 a 2 anos; o Livro Segundo traz a segunda etapa da infância, de 2 a 12 anos; no Livro Terceiro a criança deixa a infância para entrar na “idade da força”, dos 12 aos 15 anos. Já o Livro Quarto, que é a “idade da razão e das paixões”, que vai dos 15 aos 20 anos, os sentimentos devem aflorar no coração para guiar o desenvolvimento da consciência e, assim, controlar as paixões. E, por fim, a “idade da sabedoria e do matrimônio”, dos 20 aos 25 anos, como aparece no Livro Quinto, é o momento de assumir as responsabilidades sociais, como um ser livre e autônomo, depois do bom desenvolvimento sensitivo, cognitivo e moral.

Ao seguir as explicações do personagem Jean-Jacques, o preceptor, sobre o desenvolvimento da criança e as melhoras etapas para a introdução de cada assunto e o exercício de cada experiência, compreende-se facilmente que, na pedagogia rousseauniana, a idade mais apropriada para introduzir os preceitos morais e os conhecimentos intelectuais é na adolescência, depois dos 12 anos. Porém, eis que no Livro Segundo deparamos com um episódio no qual o preceptor adianta esse processo, ao levar o menino a um horto para que, além das atividades práticas de agricultura, possa ser introduzida aos temas morais. Como diz o próprio autor, “considero impossível que se possa trazer ao seio da sociedade uma criança de doze anos sem lhe dar alguma ideia das relações entre homem e homem e da moralidade das ações humanas” (Rousseau, 1973, p. 84). Nesse caso, a lição é em torno das convenções e da origem da propriedade; e, resumindo a cena, Emílio manifesta desejo de trabalhar no campo e é levado por seu tutor a um horto para ali semear algumas favas. Para tanto, transformam-se em jardineiros e trabalham juntos, arando a terra, plantando as ditas favas e por vários dias cuidando prazerosamente do empreendimento agrícola. Ao colocar seu esforço na terra, aplicando seu tempo e seu suor, Emílio sente que a terra lhe pertence e que talvez possa reivindicar sua posse. Inesperadamente, em determinado dia, ao chegarem ao horto, veem sua plantação devastada por outrem e a tristeza é imediata: “Ó espetáculo, ó dor! Todas as favas estão arrancadas, todo o terreno remexido, nem o lugar se reconhece mais” (Idem, p. 86). O que gera revolta e sentimento de injustiça. Porém, ao procurarem o autor daquela devastação, descobrem ter sido o dono do terreno, que ali plantara bem antes sementes de melões de Malta. Ou seja, chegam à conclusão de que foram eles os verdadeiros causadores da injustiça. Assim, após pedirem desculpas a Roberto, o hortelão, conseguem bem encaminhar as discussões e chegam a um acordo: Emílio vira um arrendatário por bondade do proprietário, o qual assevera: “Ninguém toca no jardim do vizinho; cada qual respeita o trabalho do outro a fim de que o seu esteja em segurança” (Idem, p. 87). Portanto, não se figura aqui nem um ataque condenatório à propriedade privada e nem sua defesa irrestrita, mas uma lição prática sobre a origem da propriedade pelo trabalho, como defendeu Locke, e  uma verdadeira introdução às relações “entre homem e homem”,[2] isto é, uma lição moral de convivência, de respeito ao outro como pessoa e aos direitos a ele concernentes, bem como de diálogo e negociação. Como diz Rousseau, é importante que a criança “não se julgue senhora de tudo e não faça mal aos outros, sem escrúpulos e sem o saber” (Rousseau, 1973, p. 97).

Portanto, a “lição do horto” ou “lição das favas”, como também é chamado o episódio, não impõe as discussões morais e nem faz da criança um sujeito passivo, um receptáculo humano da aprendizagem oral dos costumes, como era geralmente feito pela educação de seu tempo, principalmente a dos jesuítas. Como uma proposta nova, essa “emiliana” inverte a lógica da aprendizagem ao privilegiar a centralidade da criança, pela qual, em um movimento contrário à epistemologia racionalista, a aprendizagem acontece pela via do empírico, pelas situações vivenciais do cotididano.[3] À luz do episódio, podemos dizer que, ao estar no campo, entre os camponeses, a criança pode ter (antes do desenvolvimento das paixões) uma telúrica introdução às questões morais, figurada na origem da propriedade, sua condição e a injustiça que, às vezes, lhe é pertinente. Se é pelo sensível que chegamos ao inteligível,[4] a experiência aqui citada segue bem a rota, pois proporciona um exercício da sensibilidade física – inclusive prazerosa e bastante pedagógica – para preparar o caminho de se chegar à sensibilidade moral, uma vez que a capacidade sensível precede a capacidade intelectual: “Nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior a nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes de idéias” (Rousseau, 1973, p. 330).

A sensibilidade física é a capacidade orgânica e natural de apreensão das coisas por meio dos sentidos neurocorporais (Paiva, 2011). Portanto, uma qualidade inata, passiva e instintiva que pode melhor conduzir o processo de aperfeiçoamento (perfectiblité),[5] e melhor encaminhar sua sociabilidade. O que requer, obviamente, o desenvolvimento da sensibilidade moral, que é ativa e conecta nossas afeições, nossos sentimentos relativos e desenvolve a consciência, tornando-se uma verdadeira guia do homem, uma vez que o propósito dessa lição é dar à criança, como já foi dito, “alguma ideia das relações de homem para homem e da moralidade das ações humanas” (Rousseau, 1973, p. 97). Pois, como diz Francisco (2012, p. 132), “nos exemplos encenados por Emílio, a intenção de Rousseau é permitir ao leitor a compreensão de como suas máximas de educação – enunciadas no plano teórico, abstrato e geral –, podem ser transpostas para o plano prático, concreto e particular de uma situação educacional”. Desse modo, temos no Emílio não apenas uma concepção geral e uma essência do fenômeno educativo, como diz Vargas (1995), mas também uma sinalização às possíveis experiências que podem ser remetidas à prática pedagógica em sua realidade concreta, como defende Francisco (Id. Ibid.) – com a qual concordamos.

O que dá um outro tom à obra de Rousseau, pois para além de um romance, no qual se vislumbra um tratado geral de educação e, para Vargas (idem) um tratado de política, essa obra apresenta uma nova “categoria operatória” (Boto, 2010, p. 210) pela qual, por mais ficcional ou imaginária que possa ser, podemos entender as fases de maturação do conhecimento humano, suas especificidades e ainda as possibilidades práticas de sua proposta quando observamos a condução da aprendizagem do Emílio, feita por seu mestre. Ainda que o objetivo final seja a de uma formação ética, preparando-o para viver em plena vida social, o percurso é feito menos por palavras que por exemplos ou, ainda, por experiências vivenciadas, como foi o caso do plantio das pequenas favas. Além disso, por mais que a ação do preceptor e a relação que estabelece com seu discípulo não sejam naturais, seu artificio e sua arte têm como meta a própria natureza (Rousseau, 1973, p. 11), cuja dimensão lhe é passada por “gotas pedagógicas” em forma de lições, cenas e episódios, a fim de resgatar sua natureza e evitar ou atenuar os vícios sociais, como o narcisismo, os excessos do luxo[6] e do refinamento, além de servirem como “vacinas” contra as paixões desregradas. Como diz Paiva (2019, p. 6-7): “Essas doses não são curativas, mas servem apenas como vacina para prevenir o mal, bem na perspectiva da educação negativa,[7] proposta pelo preceptor no início da obra”.

Do mesmo modo, outros episódios no Emílio ajudam a fortalecer essa perspectiva, como a significativa cena do mágico da feira, ou prestidigitador, a qual aqui denominamos de “episódio da feira”, que acontece quando Emílio tem por volta de 13 anos de idade, como relatado no Livro Terceiro, quando algumas lições morais precisam ser didaticamente inseridas nas lições práticas. Nesse percurso, depois de passar por experiências empíricas de física, química, cosmografia e outros conhecimentos científicos pela via da descoberta e do prazer,[8] o tutor conduz seu discípulo a uma feira. Evitando os discursos e as lições verbais,[9] Jean-Jacques lhe mostra um prestidigitador (jouer de gôbelets), cujo ato mais brilhante é o de fazer com que um pato de cera nade sozinho rumo a um pedaço de pão em sua mão. Intrigado com o ilusionista, Emílio fica impressionado com o que vê e, ao chegar em casa, sente-se instigado a resolver o mistério, com a ajuda de seu tutor. E, tendo descoberto o truque, retorna de imediato à feira e desafia o mágico, propondo fazer o mesmo. Seu desafio é aceito e o menino realiza a suposta mágica, sob os aplausos de todos, inclusive do prestidigitador o qual o convida a realizar o feito novamente no dia seguinte. Envaidecida, a criança tenta apresentar seu espetáculo como no dia anterior, atraindo o patinho para sua mão, a fim de impressionar a grande multidão convidada por ele. Porém a tentativa falha, repetidamente, pois ao colocar a mão com o pão a fim de atrair o pato, o mesmo se vira e foge em direção contrária. O que, certamente, provoca risadas e vaias do grande público. Emílio, tão decepcionado quanto à ocasião do horto, retira-se da feira sentindo-se envergonhado, humilhado e confuso por não saber o que havia acontecido. No outro dia, o ilusionista aparece inesperadamente na casa onde os dois estavam hospedados e lhes ensina o truque, mas não sem dar ao menino uma lição que deve ter marcado a formação moral de Emílio, uma vez que resultava de uma experiência concreta: É preciso respeitar os segredos dos outros para não prejudicar suas carreiras. A cena foi, obviamente, combinada com o preceptor, o qual permaneceu calado e sujeito à reprimenda do mágico que o censurou por não ter alertado o menino. Entretanto esse é o seu método, cuja aprendizagem deve-se realizar pela experiência, ainda que dolorosa. No outro dia, ao voltar à feira e observar respeitosamente os truques, comenta: “Abordamos com profundo respeito nosso prestidigitador Sócrates; (...) Sabemos tudo e não dizemos nada. Se meu aluno ousasse abrir a boca sequer, seria um menino digno de surra” (Rousseau, 1973, p. 185).

Muitas outras cenas desse tipo, ao longo do Emílio, oferecem semiologicamente uma riqueza de significados quanto ao desenvolvimento cognitivo, mas também quanto ao desenvolvimento da sensibilidade. Abre-se, portanto, em Rousseau, a possibilidade do desenvolvimento de uma razão sensitiva, como uma nova forma de racionalidade. Logo, a chave de compreensão não pode ser outra que o sentimento da vida. Ou seja, “Quem mais vive não é aquele que conta maior número de anos e sim o que mais sente a vida” (Idem, p. 16).  Por extensão, como que abrindo a porta dessa compreensão, vêm as experiências, “porque, nossos verdadeiros mestres são a experiência e o sentimento e nunca o homem sente bem o que convém ao homem senão nas situações em que se encontra” (Idem, p. 189). Logo, é pelas atividades do corpo que os sentidos se aguçam, que as faculdades se ampliam à medida que essas sensações são transformadas em ideias: “Transformemos nossas sensações em ideias, mas não pulemos de repente dos objetos sensíveis aos objetos intelectuais. É pelos primeiros que devemos chegar aos outros” (Idem p. 175). Por isso que nesses episódios, percebe-se a importância dada ao que foi vivenciado, ainda que ocasionalmente: “depois de ter entrevisto a experiência como por acaso, inventemos pouco a pouco o instrumento que a deve verificar” (Idem, p. 186 -grifo nosso).  Isto é, todas essas experiências não servem apenas para instigar a curiosidade da criança, aumentar sua imaginação e, por conseguinte, sua inteligência, mas devem ser acompanhadas de procedimentos instrumentais (mesmo que velados) administrados pelo preceptor. Na abertura do Emílio, Rousseau deixa claro que a educação vem dos “três mestres”:[10] natureza, homens e coisas, na qual o desenvolvimento do aparato sensório-motor é importante e fundamental, assim como a escolha dos objetos, mas incompleto se não for acompanhado das lições do terceiro mestre: os homens.

Ainda que um “homem extraordinário” e até utópico, Jean-Jacques, assume o papel de gouverneur desse processo, encarnando o terceiro mestre, com um conjunto de procedimentos que sedimenta a rota que vai das sensações corpóreas (sensibilidade passiva) aos sentimentos morais (sensibilidade ativa). Portanto, a trajetória que vai do horto à feira, é um bom exemplo dessa rota, pois o que foi vivenciado por Emílio, em ambas, auxilia o desenvolvimento de sua perfectibilidade, bem conduzida pela sabedoria desse mestre, cujo objetivo maior é preservar os elementos naturais e, ao mesmo tempo, infundir a virtude. Burgelin (1965, p. 348), ao dizer que: “Nossa perfectibilidade nos propõe uma dura tarefa: a nossa integração segundo a ordem indicada pela natureza, até a razão que desvela essa ordem e permite buscá-la dentro de seu plano de iluminação”, está correto, mesmo que parcialmente. Pois, essa tarefa não é da responsabilidade da perfectibilidade per si, mas de quem tem a capacidade de bem conduzi-la nessa dupla tarefa: o governante (cujo sentido é mais amplo que o de tutor ou preceptor).

Paiva (2021) vai além e diz que trabalhar o sentimento no âmbito educacional é uma tarefa dupla e tripla ao mesmo tempo. Dupla porque, como já foi explicitado aqui, compreende o desenvolvimento da sensibilidade passiva, ou seja, das disposições inatas através de um conjunto de atividades empíricas e bastante diversificadas que coloquem o educando em contato permanente com a natureza. E, por outro lado, o desenvolvimento da sensibilidade ativa, ou seja, dos instintos morais que preparam o homem para a convivência com seus semelhantes. Na transformação da sensibilidade passiva para a sensibilidade ativa é possível prospectar um movimento de expansão que depende substancialmente da atuação pedagógica dos três mestres apontados por Rousseau no inicio do Emilio, e revela a terceira parte da tarefa. A educação que vem da natureza proporciona o movimento de expansão do eu, do individuo e sua autolocalização no sistema de si mesmo (psicológico e biológico); a educação que vem das coisas proporciona a expansão do homem segundo o universo e tem a ver com sua autolocalização no sistema da natureza física; e, por ultimo, a educação dos homens proporciona o movimento de expansão do homem para com seu semelhante, porque diz respeito a sua localização no sistema social. Na tripla tarefa de coordenar a interação do homem consigo mesmo, com os outros e com as coisas; e no movimento de expansão e aperfeiçoamento da razão, é o sentimento que deve permear todo o processo e permitir atingir o que Rousseau chamou de razão sensitiva. Eis, portanto, o terceiro desafio e a terceira tarefa: promover a razão embebida da sensibilidade, ou a sensibilidade amparada pela razão. Diz ele: “Finalmente unimos o uso dos membros ao de suas faculdades; fizemos um ser atuante; só́ nos resta, para completar o homem, fazer dele um ser amante e sensível, isto é, aperfeiçoar-lhe a razão pelo sentimento.” (Rousseau, 1973, p. 222 – grifo nosso). Ou seja, se Rousseau diz que, após efetivar a dupla tarefa, resta algo a ser feito, que ainda é preciso fazer algo para “completar o homem” em sua formação, está claro que um terceiro passo deve ser dado nessa trajetória. O processo é sensitivo, psicológico e moral, permeado pelas experiências existenciais – como as relatadas nos dois episódios – para se chegar ao nível do intelectual. Mas não no nível comum da intelectualidade e da razão, e sim no nível do pensamento racional, desenvolvido em conjugação com a prática e a partir das experiências sensíveis. Só assim o educando é, teoricamente, capaz de controlar e educar seu amor-próprio[11] a fim de realizar-se virtuosamente em sua plena existência social.

 

Considerações finais

O Emílio é, como diz Carlota Boto (2010) uma conjectura, uma opção metodológica pela qual Rousseau empregou toda sua genialidade para pensar o fenômeno da educabilidade humana. Mais do que isso, sua ficção brota a partir de suas entranhas – para fazer aqui um exercício de psicologia freudiana avant la lettre – como um “filho”, um rebento que nasce e cresce de acordo com os ensinamentos filosófico-educacionais de seu “pai” (Dozol, 2006, p. 51). De modo que a própria elaboração da obra Emílio foi uma forma de viver e reviver suas próprias experiências, numa projeção quase metempsicótica, pela qual o tutor (melhor dizendo, o governante) Jean-Jacques ao se ocupar da educação do “filho” órfão, busca, em nome da humanidade, resgatar o papel da natureza[12] na educação; e, em seu próprio nome, curar a ferida deixada pelo abandono de seus cinco filhos.

De modo que o preceptor-narrador é o próprio Rousseau que dialoga com seu alterego, e ao mesmo tempo com o leitor, tentando persuadi-lo (ou nos persuadir) de que a razão – ou a filosofia – só tem sentido para a existência humana se não estiver dissociada dos sentimentos.  Como diz Rousseau: “Meu principal objetivo, ensinando-lhe a sentir e amar o belo em todos os gêneros é de nele fixar suas afeições e seus gostos, e impedir que suas tendências naturais se alterem e que ele busque um dia, em sua riqueza, os meios de ser feliz, que deve encontrar perto dele” (1973, p. 400). O que nos remete, novamente avant la lettre, à definição de filosofia dada por Ortega y Gasset (2007, p. 173): “La filosofia es, antes, filosofar, y filosofar es, indiscutiblemente, vivir – como lo es correr, enamorarse, jugar al golf, indignarse em política y ser dama de sociedade. Son modos y formas de vivir”. O que não é muito diferente da afirmação de Rousseau: “viver é o ofício que quero lhe ensinar” (Rousseau, 1973, p. 15), em relação à formação do Emílio. Essa foi uma das principais questões de desentendimento entre ele e seus colegas os iluministas, apesar de manter-se fiel ao muitos de seus ideais, como o desejo de ser útil à humanidade, a valorização das ciências naturais, os princípios do direito político, o individualismo e o anticlericalismo. Porém, é provável que Rousseau sabia da reação de seus pares à defesa da natureza, do estado de natureza e de um universo pautado pela simplicidade que, nas palavras de Norbert Elias (1990), atentava contra a “civilização” e a cultura letrada. Isso não significa dizer que o filósofo seja contra as manifestações culturais, nem contra uma formação racional, científica e filosófica. Segundo Scott (2020), a notável retórica que Rousseau utiliza no Emílio é para persuadir o leitor de que além de toda essa formação “positiva”, existe a dimensão “negativa” que além de fazer evitar o vício e a corrupção, promove o “viver”, como disse Ortega y Gasset, e a própria felicidade, pois esta estará baseada nos sentimentos humanos, em suas experiências existenciais e na forma mais profunda de sentir sua alma e deixar ser guiado pela consciência.

A educação criticada por Rousseau foi (e ainda é) aquela que abarrota a cabeça das crianças com informações e concepções quando elas não possuem plenas condições de raciocinar sobre elas, fazendo com que sejam levados aos erros e vícios, sendo incapazes de compreender o ensinado devido à idade. Logo, a educação que o genebrino aprova é aquela desenvolva o máximo possível da sensibilidade, que controle as paixões, que eduque o amor-próprio e que prepare o educando para a vida social. Algo que só foi possível por meio de um certo “pacto pedagógico” entre tutor e preceptor (Francisco, 1999), cujas cláusulas preservam a liberdade da criança e, ao mesmo tempo, ressalta o papel do professor, ou tutor, uma vez que sua presença é uma constante no tratado. Embora a ideia de pacto ou contrato formalize a relação, o preceptor não cai no diretivismo ou no convencimento pela autoridade.[13] A primeira disposição deve-se pautar no fato de que o poder do pacto deve ser consentido (eis porque o tutor deve persuadir seu aluno), ou seja, não deve haver, de nenhuma forma, abuso de autoridade. Assim, o preceptor deve conduzir seu aluno com o objetivo de torná-lo autônomo e capaz de conduzir a si próprio. E, como no início da vida ele ainda não possui o discernimento necessário para alcançar esse fim, é imprescindível a atuação sábia, bem como uma certa dose de autoridade, de quem está a cargo dessa tarefa, seja o pai, a mãe, algum outro parente, o tutor, o preceptor, o governante ou ainda qualquer guia pelo qual o aluno tem a oportunidade de desenvolver suas potencialidades naturais e, ao mesmo tempo, ser introduzido no mundo moral de forma virtuosa. Se, diante disso, a perspectiva que se tem é a de “obediência” por parte do educando, a segunda cláusula do contrato esclarece isso, ao dizer que “o mestre só pode exercer seu comando no interesse e vantagem do aluno” (Francisco, 1999, p. 107), visto que, como afirma o próprio Rousseau, “[n]inguém tem o direito, nem mesmo o pai, de mandar a criança fazer algo que não lhe seja útil” (Rousseau,1973, p. 68). Dessa forma, todo poder exercido sobre o aluno deve ser no sentido de garantir-lhe sua liberdade, ainda que limitada, e ainda proporcionar virtuosamente sua trajetória rumo à autonomia. Rousseau não via isso na educação de seu tempo, dados pelos colégios e tutores individuais, mas uma educação autoritária, diretiva, puramente livresca, verbal e desconectada com a realidade. Nessa condição, a aprendizagem da virtude era superficial, teórica e não vivenciada.

Portanto, não é difícil imaginar o alvoroço (e até asco) que a figura de Jean-Jacques, o virtuoso preceptor que está sempre presente ao longo dos cinco livros do romance Emílio ou da educação, e conduz uma educação natural, negativa e doméstica, tenha levantado. Muitos teceram críticas, condenaram e o próprio livro foi queimado em praça pública. O autor, caluniado, perseguido e menosprezado na República das Letras, deixa, no entanto, esse belo trajeto formador, que é o Emílio, e, particularmente, esses dois episódios que nos permitem pensar a condução do processo pelas experiências empíricas (o horto) às experiências morais (a feira), sem as quais a educação ficará deficiente e incompleta.

 

Referências

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CLAPARÈDE, Edouard. L’éducation fonctionnelle. Neuchatel: Delachaux et Niestlè, 1968.

 

DOZOL, Marlene de Souza. Rousseau: educação: a máscara e o rosto. Petrópolis: Vozes, 2006.

 

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

 

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Notas



[1] Rousseau diz: “Tomei, portanto, o partido de me dar um aluno imaginário, de supor a idade, a saúde, os conhecimentos e todos os talentos convenientes para trabalhar na sua educação [...]” (Rousseau, 1973, p. 27).

[2] Loc. Cit.

[3] Manacorda (2010) chegou a considerar isso uma inversão da perspectiva “epistemológica” para uma “antropológica. Diz ele (p. 295): “Sem dúvida, Rousseau revolucionou totalmente a abordagem da pedagogia, privilegiando a abordagem que chamarei ‘antropológica’, isto é, focalizando o sujeito, a criança ou o homem, e dando um golpe feroz na abordagem ‘epistemológica’, centrada na reclassificação do saber e na sua transmissão à criança como um todo já pronto”.

[4] “Transformemos nossas sensações em idéias, mas não pulemos de repente dos objetos sensíveis aos objetos intelectuais. É pelos primeiros que devemos chegar aos outros. Que os sentidos sejam sempre os guias em nossas primeiras operações do espírito: nenhum outro livro senão o do mundo, nenhuma outra instrução senão os fatos” (Rousseau, 1973, p. 175).

[5] A perfectibilité é, segundo Rousseau (1999, p. 65) “a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo”.

[6] “Eis como o luxo e o mau gosto são inseparáveis. Onde quer que o gosto seja dispendioso, é falso” (1973, p. 396).

[7] Contra o conceito de “educação positiva”, oferecida em sua época. Para a definição desses termos, diz Rousseau (2005, p. 57): “Denomino educação positiva aquele que pretende formar o espírito antes da idade e dar à criança um conhecimento dos deveres do homem. Chamo educação negativa aquela que procura aperfeiçoar os órgãos, instrumentos de nosso conhecimento, antes de nos dar es- ses próprios conhecimentos e nos preparar para a razão pelo exercício dos sentidos. A educação negativa não é ociosa, ao contrário. Não produz virtudes, mas evita os vícios; não ensina a verdade, mas protege do erro. Ela prepara a criança para tudo o que pode con- duzi-la à verdade, quando estiver em condições de entendê-la, e ao bem, quando estiver em condições de amá-lo”.

[8] “Não se trata de ensinar-lhe as ciências e sim de dar-lhe inclinação para as amar e métodos para as aprender, quando a inclinação se tiver desenvolvido bastante. Eis certamente um princípio fundamental de uma boa educação” (Rousseau, 1973, p. 180).

[9] Nas palavras do filósofo, “[n]ão me canso de dizer: colocai todas as lições dos jovens em ação e não em discursos; nada aprendam pelos livros daquilo que a experiência possa ensinar-lhes [...]” (Rousseau, 1973, p. 350).

[10] “Essa educação nos vem da natureza, ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e o ganho de nossa própria existência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas” (Rousseau, 1973, p. 10-11).

[11] Os conceitos de amor de si e de amor-próprio era uma discussão antiga, mas é Rousseau quem melhor os diferencia, classificando o primeiro um princípio bom e o segundo com uma tendência negativa. O amour de soi é a fonte originária das paixões. Como um sentimento inato, leva o homem (ou qualquer animal) a cuidar de si mesmo, de proteger-se, cuidando de sua preservação. Como um sentimento naturalmente bom, seu encaminhamento é para o próprio bem e, portanto, o controle dos impulsos e o bom encaminhamento da perfectibilidade. Por sua vez, o amour propre é um sentimento que se desenvolve no meio social, caracterizando-se um desejo de comparação, de superioridade e de extrema valorização de si mesmo.

[12] “Todos os verdadeiros modelos do gosto estão na natureza. Quanto mais nos afastamos do mestre, mais nossos quadros se desfiguram” (1973, p. 396).

[13] Vemos toda a habilidade de um preceptor a guiar discípulo, porém sem deixar que perceba seu controle: “que ele imagine sempre ser o mestre e que vós o sejais sempre” (Rousseau, 1973, p. 114)