Configuração subjetiva da aprendizagem de uma licencianda durante o estágio supervisionado de biologia

Subjective configuration of a licentiate student's learning during the supervised biology internship

Configuración subjetiva del aprendizaje de un estudiante de licenciatura durante las prácticas supervisadas de biología

 

Marilda Vinhote Bentes

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima, Boa Vista, RR, Brasil

marilda.bentes@ifrr.edu.br

José Moyses Alves

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil

jmalves@ufpa.br

 

Recebido em 14 de outubro de 2024

Aprovado em 29 de outubro de 2024

Publicado em 25 de abril de 2025

 

RESUMO

As aprendizagens que constituem a preparação para a futura atuação profissional são motivadas por sentidos subjetivos relacionados à história de vida, à subjetividade social, além daqueles produzidos durante a própria ação de aprender. Este artigo apresenta um estudo de caso que objetivou compreender a configuração subjetiva da ação de aprender de Nilce, uma licencianda em biologia, ao longo de dois semestres letivos. A pesquisa fundamentou-se na Teoria da Subjetividade, na Epistemologia Qualitativa e na Metodologia Construtivo-Interpretativa. Por meio de vários instrumentos, tais como memorial, conversas informais, dinâmicas conversacionais, foi estabelecido um diálogo aprofundado com a participante. Com base em suas expressões, foram construídos indicadores de sentidos subjetivos e hipóteses a respeito de sua configuração subjetiva da ação de aprender. Durante o estágio, Nilce produziu novos sentidos subjetivos e desenvolveu recursos subjetivos, relacionais e operacionais importantes para a futura atuação profissional. O referencial teórico, epistemológico e metodológico adotado possibilitou gerar inteligibilidade sobre processos que são pouco investigados na área da formação inicial de professores de biologia.

Palavras-chave: Subjetividade; Estágio Supervisionado; Licenciatura em Biologia.

 

ABSTRACT

The learning that constitutes the preparation for future professional practice is motivated by subjective meanings related to life history, social subjectivity, and those produced during the learning process itself. This article presents a case study aimed at understanding the subjective configuration of Nilce’s learning process, a Biology undergraduate student, over two academic semesters. The research was grounded in the Theory of Subjectivity, Qualitative Epistemology, and the Constructive-Interpretative Methodology. Through various instruments, such as memoirs, informal conversations, and conversational dynamics, an in-depth dialogue with the participant was established. Based on her expressions, indicators of subjective meanings and hypotheses regarding her subjective configuration of the learning process were constructed. During her internship, Nilce produced new subjective meanings and developed important subjective, relational, and operational resources for her future professional practice. The adopted theoretical, epistemological, and methodological framework enabled intelligibility of processes that are seldom investigated in the area of initial teacher education in biology.

Keywords: Subjectivity; Supervised Internship; Bachelor's Degree in Biology.

 

RESUMEN

Las aprendizajes que constituyen la preparación para la futura actuación profesional están motivados por sentidos subjetivos relacionados con la historia de vida, la subjetividad social, además de aquellos producidos durante la propia acción de aprender. Este artículo presenta un estudio de caso cuyo objetivo fue comprender la configuración subjetiva de la acción de aprender de Nilce, una estudiante de Licenciatura en Biología, a lo largo de dos semestres lectivos. La investigación se fundamentó en la Teoría de la Subjetividad, en la Epistemología Cualitativa y en la Metodología Constructivo-Interpretativa. A través de varios instrumentos, como memorias, conversaciones informales, dinámicas conversacionales, se estableció un diálogo profundo con la participante. Con base en sus expresiones, se construyeron indicadores de sentidos subjetivos e hipótesis sobre su configuración subjetiva de la acción de aprender. Durante el período de prácticas, Nilce produjo nuevos sentidos subjetivos y desarrolló recursos subjetivos, relacionales y operacionales importantes para su futura actuación profesional. El marco teórico, epistemológico y metodológico adoptado permitió generar inteligibilidad sobre procesos que son poco investigados en el área de la formación inicial de profesores de biología.

Palabras clave: Subjetividad; Práctica Supervisada; Licenciatura en Biología.

 

Introdução

Este artigo é um recorte de uma pesquisa de tese de doutorado em andamento, que tem por objetivo geral compreender o processo de preparação para a futura atuação profissional de licenciandos de biologia, durante o estágio supervisionado. Apresentamos o estudo de caso de uma licencianda, como ilustração do modelo teórico que estamos construindo para gerar inteligibilidade sobre o processo de preparação para a futura atuação profissional.

De acordo com Barreiro e Gebran (2006), muitos são os temas discutidos nas produções científicas que tratam da formação inicial de professores, principalmente quando o estágio supervisionado está em foco. Entre esses temas, destacam-se as práticas docentes que contribuem para tornar o estágio um componente fundamental na construção da identidade do professor; o estágio como campo de reflexão e como busca pela articulação entre teoria e prática.

Alguns trabalhos sobre o estágio supervisionado em ciências biológicas, preocupam-se, principalmente, com a experiência e os processos formativos durante o estágio supervisionado (Pires, 2018; Andrade, 2019). Outros trabalhos, concentram-se, especialmente, na compreensão da construção da identidade docente dos licenciandos (Mello, 2019; Mello; Higa, 2021). Outros ainda enfatizam as dinâmicas comunicativas e os processos de orientação presentes nesse contexto (Barrichello, 2018; Moraes; Guzzi; Sá, 2019). Em nossa revisão da literatura, não encontramos pesquisas fundamentadas no referencial da Teoria da Subjetividade, que adotamos no presente estudo, e, consequentemente, da relação entre as aprendizagens do estagiário e o desenvolvimento subjetivo, relacionado à preparação para a atuação profissional de futuros professores de biologia.

A Teoria da Subjetividade, a partir de uma perspectiva histórico-cultural, pode dar visibilidade e gerar intelegibilidade sobre processos ainda pouco explorados nos estudos sobre a formação inicial de professores. Concebida como processo subjetivo, a preparação para a atuação profissional deixa de ser um processo exclusivamente individual e intelectual. Tal preparação é favorecida pela produção subjetiva que acontece ao longo da vida e em diversos contextos sociais, sendo motivada por configurações de sentidos subjetivos, de natureza simbólico-emocional.

Mitjáns Martínez e González Rey (2019) apontam uma diferença entre a preparação para a atuação profissional e a formação de professores, pois entendem que a preparação acontece nos mais variados contextos, independentemente de existir uma intencionalidade nessa direção. Acontece, inclusive, em momentos anteriores ao da formação inicial, que é intencionalmente planejada para esse fim.

A partir da Teoria da Subjetividade, entendemos que as aprendizagens e o desenvolvimento de recursos, constitutivos da preparação para a futura atuação profissional, são motivados pela configuração subjetiva da ação de aprender, que inclui sentidos subjetivos relacionados à história de vida, à subjetividade social, além daqueles produzidos durante a própria ação de aprender (Mitjáns Martínez; González Rey, 2019).

Os sentidos subjetivos são as unidades simbólico-emocionais da subjetividade, tanto da subjetividade individual quanto da subjetividade social. Eles são fluidos, mas se organizam em configurações de sentidos subjetivos e se tornam mais estáveis. As configurações subjetivas são formadas por sentidos subjetivos convergentes e tem caráter autorregulador e autogerador. Ao se formarem, tais configurações tem a capacidade de gerar novos sentidos subjetivos. Na subjetividade individual, as configurações subjetivas da personalidade são as mais estáveis. As configurações subjetivas da ação (inclusive, da ação de aprender) dependem das condições e relações da situação em que a ação acontece, também de sentidos subjetivos associados à história de vida e à subjetividade social (González Rey; Mitjáns Martínez, 2017).

Enquanto a subjetividade individual é a configuração das configurações subjetivas que se formaram e estão em transformação permanente, na história de vida do indivíduo, a subjetividade social é a configuração das configurações de sentidos subjetivos que foram e continuam a ser produzidos em determinado espaço social. A subjetividade social depende dos sentidos subjetivos produzidos pelos indivíduos naquele contexto e da repercussão que esses sentidos tem na produção subjetiva de outros indivíduos do grupo. A subjetividade social de um contexto é atravessada pela subjetividade social de outros contextos. A relação entre a subjetividade individual e a subjetividade social é recursiva, sendo uma constituinte e, ao mesmo tempo, constituída pela outra. Tal relação é por vezes complementar e outras vezes contraditória. O tensionamento entre ambas favorece a produção de novos sentidos subjetivos (González Rey; Mitjáns Martínez, 2017).

O estágio supervisionado é um momento propício para novas aprendizagens e para o desenvolvimento de novos recursos subjetivos relacionais e operacionais. É uma ocasião favorável à produção de novos sentidos subjetivos, porque, além das interações com colegas e professores na universidade, ocorrem interações com a turma de estudantes e seus professores na escola. É preciso estar motivado para novas aprendizagens, como aprender a se relacionar com outras pessoas, ou aprender conteúdos e como ensiná-los . Além da discussão de ideias teóricas, torna-se necessário refletir sobre a prática pedagógica.

Segundo a Lei nº 11.788 (Brasil, 2008), o estágio é um ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente profissional, que visa à preparação para o trabalho produtivo do educando. Considerando a escola como campo de estágio, Pimenta e Lima (2010, p. 127) afirmam que o estágio é "[...] um retrato vivo da prática docente," sendo fundamental compreender a unidade de ensino em seu cotidiano, pois o ato de ensinar exige um trabalho específico e uma reflexão mais ampla sobre a ação pedagógica que ali ocorre.

Para Mitjáns Martínez e González Rey (2019), é importante que, no curso de formação docente, especialmente nos estágios, seja valorizada a articulação entre teoria e prática, permitindo que os futuros professores fundamentem suas ações pedagógicas de forma reflexiva, o que favorece uma prática mais eficaz. Nessa direção, um aspecto importante é a concepção de ensino e de aprendizagem dos estagiários. Os professores tendem a reproduzir em seu ensino as maneiras de ensinar características dos professores que tiveram ao longo da escolarização. Também tendem a entender a aprendizagem como um processo reprodutivo.

 Conceber a aprendizagem como produção subjetiva pode fazer diferença para os professores em formação. Nesta perspectiva, além da aprendizagem memorístico-reprodutiva, destacam-se como mais desejáveis, as aprendizagens de tipo compreensiva e criativa, por serem formas de aprendizagem que envolvem reflexão e imaginação. Neles, os estudantes produzem sentidos subjetivos que relacionam os conteúdos com suas experiências, o que permite transferir tais aprendizagens para novos contextos. No caso da aprendizagem criativa, além disso, possibilitam confrontação com as informações recebidas e a produção de ideias novas (González Rey; Mitjáns Martínez, 2017).

Como consequência dessa concepção de aprendizagem, o licenciando estagiário pode assumir o objetivo de favorecer o desenvolvimento subjetivo de seus alunos, valorizando o diálogo em sua prática pedagógica e processos de aprendizagem reflexivos e imaginativos. Dessa forma, ele pode transcender a concepção de ensino como mera transmissão de conhecimento.

Diante do exposto, apresentamos neste artigo um estudo de caso que teve como objetivo compreender a configuração subjetiva da ação de aprender de uma estagiária, ao longo de um ano letivo, no contexto de dois estágios supervisionados e duas práticas de ensino articuladas.

 

Procedimentos Metodológicos

O presente estudo de caso é sobre a configuração subjetiva da ação de aprender da licencianda Nilce (nome fictício), do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima, Campus de Boa Vista, durante seu Estágio Supervisionado, concomitantemente às discussões durante as aulas do componente curricular de Prática Pedagógica, ao longo de dois semestres letivos. O estudo de caso é entendido por Mitjáns Martínez e González Rey (2012, p. 66) como um “[...] estudo intensivo do fenômeno a partir de um conjunto de instrumentos de natureza diferente, visando à compreensão em sua integridade e complexidade”. Juntar os parágrafos De acordo com a Epistemologia Qualitativa, a singularidade de um caso individual ou coletivo é um espaço legítimo para a produção de conhecimento. Nesse sentido, o estudo de caso é uma estratégia adequada para realizar tal investigação (González Rey; Mitjáns Martinez, 2017).

Também segundo a Epistemologia Qualitativa, a pesquisa deve ser um processo comunicativo dialógico, permanente, que favoreça a produção de sentidos subjetivos pelo participante e a construção-interpretativa de suas configurações subjetivas de interesse para o estudo (González Rey, 2011). Em nossa pesquisa, isso significa compreender os processos subjetivos envolvidos na preparação para a futura atuação profissional.

Além da singularidade como espaço legítimo para a produção de conhecimento e do diálogo como a forma de comunicação privilegiada com os participantes da pesquisa, a Epistemologia Qualitativa estabelece que o conhecimento sobre a subjetividade deve ser produzido de maneira interpretativa e construtiva. As interpretações do pesquisador alimentam o diálogo com o participante e vice-versa. Nesse processo, ele vai construindo o modelo teórico que responde ao seu problema de pesquisa (González Rey; Mitjáns Martínez, 2017).

Dessa forma, a construção interpretativa da configuração subjetiva da ação de aprender de Nilce, realizada em 2023, partiu de nossos diálogos, de forma contínua, durante as aulas dos componentes de Estágio Supervisionado em Biologia e Prática Pedagógica em Biologia. Professora de ambos componentes curriculares, a pesquisadora (primeira autora deste artigo) orientava os(as) licenciandos(as) no planejamento e avaliação das aulas que ministravam através do Estágio. Ademais, discutia textos e os registros do estágio com os licenciandos a partir da Prática de Ensino.

Nas disciplinas mencionadas, utilizamos diversos instrumentos para promover o diálogo com os licenciandos. Especificamente em relação à Nilce, realizamos conversas informais, nas quais a participante se expressou espontaneamente, revivendo acontecimentos passados marcantes, tanto dolorosos quanto felizes. Além disso, Nilce produziu um Memorial, revelando suas perspectivas e posturas diante dos diferentes contextos sociais vivenciados, bem como as transformações observadas ao longo do tempo. Em grupo, realizamos aulas com discussões sobre autores da Teoria da Subjetividade, associadas às experiências vividas no estágio em escolas estaduais. Também promovemos dinâmicas conversacionais, como a análise do filme “Efeito Pigmaleão”. Ao final do estágio, a participante registrou suas experiências em um diário de estágio. Todos esses instrumentos foram utilizados para confrontar ideias e estimular a reflexão.

A partir das expressões da participante nos vários instrumentos, construimos indicadores de sentidos subjetivos. Posteriormente, articulamos esses indicadores em hipóteses, visando a elaboração do modelo teórico.

 

Estudo do Caso da Licencianda Nilce

Iniciamos este tópico com uma breve caracterização da participante do estudo. Em seguida, indicamos os sentidos subjetivos gerados ao longo de sua história de vida, bem como aqueles associados à sua subjetividade social. Posteriormente, interpretamos com maior detalhamento os sentidos subjetivos produzidos durante sua ação de aprender.

 

Caracterização de Nilce

Nilce tinha 41 anos de idade no início da pesquisa e trabalhava como Agente Comunitário de Saúde, em uma Unidade Básica de Saúde, no Município de Boa Vista-Roraima. Filha única, solteira, morava com seus dois filhos e a mãe. Nasceu em Manaus, no estado do Amazonas, em 1982, onde viveu até vir para Boa Vista- Roraima, em 2001.

Filha de pais separados, de família de baixa renda, não teve acesso à educação formal até seus 10 anos de idade. A partir de então, morou em casa de família como empregada doméstica. Mesmo com uma vida cheia de obstáculos, aos 21 anos, concluiu o ensino fundamental, na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), e aos 24 anos, o ensino médio. Nessa época, trabalhava em um salão de beleza.

Em 2010, concluiu o curso Técnico de Enfermagem. Entre 2011 e 2018, devido à sua rotina de trabalho, não conseguiu estudar. Iniciou um curso de Pedagogia, depois outro de Educação Física, mas não se identificou e desisistiu de ambos. Em 2019, candidatou-se às vagas disponíveis pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) no Edital do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia de Roraima (IFRR), sendo selecionada para o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas.

Durante a condução desta pesquisa, Nilce participava nas atividades acadêmicas, e, em contextos práticos, como as escolas em que realizou seu estágio, trabalhava em Unidade Básica de Saúde (UBS) e em um salão de beleza. Além do trabalho doméstico, participava, voluntariamente, em uma associação voltada para mulheres trans e travestis, tendo uma jornada que se desenrolava de domingo a domingo.

 

Sentidos subjetivos associados à história de vida de Nilce

Nilce enfrentou dificuldades na infância, relacionadas à pobreza e outras limitações, que a impediram de frequentar a escola de acordo com sua faixa etária. Isso resultou em dificuldades em seu desenvolvimento educacional e emocional. A sensação de inferioridade, fragilidade e baixa autoestima, a tristeza e a vergonha associada ao baixo desempenho acadêmico, comprometiam sua motivação para aprender, sendo sentidos recorrentes ao longo de sua vida.

Além disso, Nilce teve uma relação conflituosa com sua mãe, a quem culpava pelas vivências traumáticas em lares substitutos, pois enfrentou um ambiente hostil, marcado por violência doméstica e negligência afetiva familiar. Posteriormente, os desafios enfrentados como mãe adolescente e solteira também prejudicaram sua motivação para aprender e se relacionar socialmente. Os sentidos subjetivos que produziu nessas experiências afetaram sua confiança nas pessoas e sua motivação para os estudos.

Apesar das muitas adversidades, após o nascimento de seu segundo filho, Nilce empenhou-se em buscar uma qualidade de vida melhor, tanto para si mesma quanto para sua família, por meio dos estudos. Era notória a sua motivação para superar os desafios enfrentados (incluindo consumo excessivo de álcool e relacionamentos prejudiciais) e reconstruir sua vida por meio da educação. Mesmo diante de comentários desencorajadores de colegas de trabalho e da necessidade de conciliar trabalho e estudos, Nilce persistiu em sua busca por conhecimento e oportunidades de desenvolvimento pessoal.

A motivação de Nilce caracteriza seu posicionamento, algumas vezes, como agente e outras, como sujeito. De acordo com González Rey e Mitjáns Martínez (2017, p. 73),

 

O agente “seria o indivíduo – ou grupo social – situado no devir dos acontecimentos no campo atual de suas experiências; uma pessoa ou grupo que toma decisões cotidianas, pensa, gosta ou não do que lhe acontece, o que de fato lhe dá uma participação nesse transcurso”. Enquanto o sujeito seria “aquele que abre uma via própria de subjetivação, que transcende o espaço social normativo dentro do qual suas experiências acontecem, exercendo opções criativas no decorrer delas, que podem ou não se expressar na ação” (González Rey; Mitjáns Martínez; 2017, p. 73).

 

Em resumo, os sentidos subjetivos produzidos ao longo da história de vida de Nilce evidenciam sua capacidade de transcender contextos adversos, romper com padrões e expectativas limitantes e se posicionar como agente e, muitas vezes, como sujeito do seu percurso de vida e de seu próprio processo de aprendizagem.

 

Sentidos subjetivos relacionados à subjetividade social

Ao refletir sobre sua experiência de mãe solo, Nilce conseguiu entender as dificuldades pelas quais sua mãe passou, vindo a perdoá-la, mas pretendeu um destino diferente para toda a família. Priorizou a educação como um caminho para romper com os padrões do passado e criar um futuro diferente.

Essa necessidade de fazer diferente do que tinha feito sua mãe, sugere um amadurecimento emocional de Nilce e uma nova perspectiva em relação à sua família. Ela passou a se sentir mais segura e realizada em relação à criação dos filhos, devido à transformação de sua relação com a mãe. Reconheceu a importância de estabelecer uma nova base para seu bem-estar e crescimento pessoal, buscando evitar repetir os mesmos erros do passado.

No âmbito da educação dos filhos, Nilce destacou seu papel ativo e responsável ao conseguir impulsionar o interesse e a autonomia deles no aprendizado. No momento da pesquisa, sentia-se orgulhosa por suas conquistas pessoais e pelas realizações dos filhos, uma vez que ofereceu a eles oportunidades que ela própria não teve. Assim, sua atitude determinada de lutar pelos interesses de seus filhos, algumas vezes confrontando-se com sua mãe, refletia sua autonomia e desejo de proporcionar uma vida melhor para sua família.

Com relação aos desafios enfrentados no ambiente profissional, algumas vezes sentia-se discriminada e desvalorizada por colegas de trabalho na área da saúde. Resistia e lutava por igualdade e respeito. Sua atuação política e humanitária e sua busca por empoderamento através da educação, especialmente participando de uma associação LGBT+ e cursando uma faculdade, indicavam seu compromisso em promover mudanças significativas na realidade social e em sua vida particular, inclusive tornando-se uma profissional concursada. Dessa forma, Nilce se envolvia ativamente em causas sociais, especialmente na luta contra o preconceito e a discriminação, demonstrando uma profunda indignação com as injustiças que observava ao seu redor. Sua participação ativa em atividades solidárias e seu engajamento político refletiam seu compromisso em promover mudanças positivas na sociedade.

Nilce demonstrou um processo contínuo de crescimento pessoal e social, com atitudes altruísta e empática, confrontando preconceitos e buscando, a princípio, aceitação em diferentes contextos, especialmente em relação à sua religião (Umbanda) e às suas interações com figuras de autoridade, seja no trabalho, na associação ou na faculdade. A participante apresentava boa capacidade de autorreflexão e se preocupava em preservar suas convicções sem gerar conflitos desnecessários. Sua decisão de se afastar de ambientes onde se sentia desconfortável, mesmo que isso significasse abandonar causas importantes, refletia sua autonomia e autoconhecimento.

Em resumo, Nilce enfrentava desafios significativos em diversos aspectos de sua vida, incluindo suas relações familiares, acadêmicas e profissionais, bem como seu engajamento em causas sociais. Esses desafios destacam o tensionamento entre sua subjetividade individual – seus valores, desejos e motivações pessoais – e a subjetividade social – expectativas, normas e limitações impostas pelos diferentes contextos em que ela vivia e atuava.

Na concepção da Teoria da Subjetividade de González Rey, o desenvolvimento subjetivo resulta justamente dessa tensão entre a subjetividade individual e a subjetividade social, que interagem de forma recursiva e contraditória.

 

A subjetividade representa um sistema em que a subjetividade social e individual configuram-se reciprocamente, superando assim a tendência reducionista de pensar a subjetividade só como um fenômeno individual, o que tem caracterizado tanto a ciência quanto o senso comum (Martínez; Rey, 2019, p.15).

 

No caso de Nilce, sua determinação em transcender as adversidades e buscar autenticidade, realização pessoal e respeito à diversidade reflete o papel ativo que desempenhou na reconfiguração de sua subjetividade. Apoiando-se na família e na religião, ela enfrentou as pressões externas. Os desafios nos relacionamentos profissionais e acadêmicos reforçaram sua motivação para cursar a graduação. A licenciatura, para ela, não representava apenas uma forma de melhorar sua condição socioeconômica e obter estabilidade profissional por meio de um concurso público, mas também uma maneira de lutar pelos direitos e pelo respeito à diversidade, alinhando sua trajetória pessoal com um compromisso social mais amplo.

 

Sentidos subjetivos produzidos durante a ação de aprender de Nilce

Nilce era uma mulher que buscava superar as adversidades socioeconômicas por meio da educação. Inicialmente, sua escolha de cursar Licenciatura em Ciências Biológicas não foi motivada por uma decisão específica pelo curso, mas sim pelo desejo de obter um diploma de nível superior, melhorar sua condição de vida e servir de exemplo para seus filhos, conforme expressou no memorial:

 

Não sabia o que ia enfrentar no curso, queria o nível superior e não me importava qual curso seria, apenas queria ter nível superior. Sabia que iria ter dificuldades, mas minha vontade sempre foi maior.

 

Embora sua motivação inicial fosse impulsionada por aspirações pessoais e familiares, ao longo do curso, Nilce passou a compreender mais profundamente o valor da educação, a expor suas fragilidades e interesses em aprimorar suas habilidades como futura docente.

Suas inseguranças e dificuldades em áreas como interpretação de texto, expressão verbal, resolução de questões reflexivas e autoconfiança eram evidentes, levando-a a adotar estratégias de defesa, como o humor, diante de suas limitações de comunicação, por exemplo. Contudo, reconheceu a necessidade de melhorar sua capacidade de expressão e interação com os outros e expressou, em conversa informal, que precisava se envolver mais com seus estudos.

 

[...] é complicado meu tempo corrido, mal leio os textos do IFRR, imagine, que horas teria para ler se trabalho de domingo a domingo, manhã, tarde e noite. Porém, estou tentando, qualquer tempinho vago, leio, mas me limito aos textos dos professores do IF. Isso tem me ajudado a ser mais argumentativa e responder sem ofender e não fico mais tão calada como antes.

 

A participante persistiu em seus esforços, apesar das limitações e da sobrecarga de trabalho, buscando constantemente melhorar suas habilidades e participação no curso. Sua confiança no futuro e determinação em alcançar seus objetivos destacam sua postura otimista e seu protagonismo em sua jornada de crescimento pessoal e profissional.

Mesmo continuando na faculdade, ela tinha uma postura passiva em relação à aprendizagem, em vez de buscar, ativamente, esclarecer suas dúvidas. Em uma das conversas informais, Nilce nos contou que não se sentia à vontade para se manifestar em sala de aula:

 

Professora, por motivos que já lhe falei, não fazia perguntas. Tenho medo da resposta dos professores, minhas perguntas parecem tão bestas. Parece que apenas eu não havia aprendido. Quando tinha dúvidas perguntava de minhas duas colegas, e se não entendesse, deixava de lado. As vezes faço pesquisas na internet, mas meu tempo é tão curto que mal tenho para estudar.

 

Outro ponto a ser considerado corresponde à discriminação e desafios pessoais que Nilce enfrentou durante sua jornada acadêmica. Ela se via confrontada com estereótipos relacionados à idade e se sentia desencorajada e envergonhada diante das exigências da sala de aula. Enfrentou componentes curriculares que solicitavam muitas leituras e reflexões constantes. Chegou a considerar a possibilidade de desistir do curso. Porém, conforme redigiu no memorial, não levou adiante essa ideia e pontuou que:

 

O IF, hum, o ambiente é bom, mas assim como todo lugar não é perfeito. Lá eu também senti preconceito. Tentei outras faculdades e o tempo foi passando. Aí, já viu, novamente não estava na idade adequada de cursar um nível superior de acordo com alguns colegas de sala de aula, principalmente pelas minhas dificuldades. Ninguém conhece minha história.

 

No diário de estágio, bem como em conversas informais, Nilce relatou a complexidade de um estudo reflexivo:

 

Acredita que a senhora nos balançou, as suas aulas são as piores (rsrsrs). Ter que ler e falar, expor opinião, não é fácil não. [...] pensei em desistir, [...].

Tive que estudar, professora, não foi nada fácil, porque no estágio é diferente, nele, fui a professora. Tinha que aprender para poder fazer o que a senhora dizia, com relação a envolver o contexto real, confesso, me sentia perdida, mas aprendi muito, sei que não fui 100%, mas alcancei vários objetivos com os estudantes.

 

Entretanto, durante o estágio de observação e nas aulas de Prática Pedagógica, ao perceber a importância de seu papel como futura professora, Nilce produziu novos sentidos subjetivos, abandonando uma postura passiva e observadora. Tornou-se participativa, empática e comprometida com seu processo de aprendizado.

 

Ah, professora, já disse antes, com suas aulas, passei a tirar meu foco que era apenas na senhora e passei a focar mais no que meus colegas diziam, [...] mas o que diziam sobre as situações das escolas. Então, percebi essa diferença no dia que a Fulana falou sobre sua experiência e a senhora começou a perguntar e por fim, ela mesma achou uma solução. Vi pessoas mudando até seu jeito de falar, a felicidade de alguns quando chegavam e haviam tido sucesso, isso para mim fez diferença, pois eu percebi que conseguiria, já que quem nem estava ali por querer de verdade estava conseguindo. Então, eu conseguiria. Por isso, prestei mais atenção em quem eu nem ligava antes, meus colegas.

 

Ao manifestar admiração pelos colegas, em uma das conversas informais, a participante passou a demonstrar o reconhecimento da importância da interação e troca de experiências em sala de aula, percebendo que as experiências e perspectivas de seus colegas eram tão valiosas quanto sua relação com os estudantes. Buscou envolver-se mais nas discussões, refletindo sobre a articulação entre os conhecimentos teóricos e a prática pedagógica, procurando compreender os conteúdos de maneira profunda e significativa, pois compreendeu a necessidade de aprender não apenas para si mesma, mas também para poder ensinar de forma eficaz.

Consequentemente, Nilce desenvolveu uma postura ativa na construção de seu próprio conhecimento, buscando compreensão e habilidades para ensinar de forma proativa. Reorganizou seu tempo, priorizando seu estágio como uma oportunidade para aprimorar suas habilidades e eficácia como docente estagiária. Inclusive, no diário relatou que:

 

Não tinha como eu ir para a sala de aula sem a ajuda necessária. Então, para não passar vergonha ao dar aula, perguntava direto, mas acima de tudo fui estudar e pesquisar. Realmente, para aprender precisamos buscar, ninguém vai colocar nada na mente, mas sim vamos atrás e construir o que queremos para, de acordo com a necessidade, ensinarmos. Interessante que aprendi algumas coisas que já havia visto no curso, pois tinha que ensinar. Então, posso dizer que aprendi.

 

Nilce reorganizou seu tempo, colocando seu estágio como prioridade, não para conquistar o tão sonhado certificado, mas para não passar vergonha ao assumir uma turma como docente de ciências biológicas e não dominar o conteúdo. Acima de tudo, para ser eficiente como docente estagiária. Ao se envolver em discussões em sala de aula, observar o trabalho dos colegas e refletir sobre suas próprias práticas, ela foi capaz de identificar áreas em que poderia melhorar e se desenvolver. A participante tornou-se mais confiante em sua capacidade de ensinar e aprender, superando seus receios iniciais de estar à frente de uma turma. Sua disposição para questionar, buscar esclarecimentos e compartilhar conhecimento com os colegas na faculdade refletiu uma abordagem de maior engajamento durante o estágio, também de maior envolvimento com seus discentes.

Durante as discussões em sala, a participante refletiu sobre a importância do conhecimento e de como ela passou a valorizar o processo de aprendizagem, neste caso de biologia, em detrimento de não passar vergonha durante o estágio:

 

Já pensou no mico, na vergonha que passaria, se os alunos perguntassem algo e eu não soubesse a respeito? Hoje, entendo que devemos construir conhecimento não para dar respostas, mas para ajudar o outro a pensar sobre e encontrar a resposta, mas sem eu conhecer o conteúdo, não saberia dar a resposta. Enfim, medo mesmo, seria vergonhoso para mim.

Não esqueço que a senhora disse que se nós soubéssemos envolver o conteúdo programático com a realidade dos estudantes ou vice versa, significava dizer que nós aprendemos o conteúdo. Hoje, é isso que busco. Por isso, a professora tem gostado dos experimentos que utilizo em sala, mas ela me ajuda muito.

 

No processo de planejamento para desenvolver a docência na escola campo de estágio, Nilce demonstrou preocupação/sensibilidade em relação às necessidades e experiências dos discentes, reconhecendo a importância de adaptar suas estratégias de ensino para envolvê-los e tornar o aprendizado mais significativo e relevante para eles. Ela valorizava se conectar com os estudantes e considerar suas perspectivas individuais ao planejar suas aulas procurando focar na habilidade de relacionar os conteúdos com a realidade da turma. Manifestou-se sobre essa habilidade, respectivamente no diário de estágio e nas conversas informais:

 

Passei a olhar para o que realmente importa, conhecer pontos chave nos estudantes para considerar em sala de aula como meio de dar uma aula em que a turma participe. [...] Tento fazer com que ele participe, mesmo que brincando, mas aprendendo.

Muito interessante quando a senhora pergunta sobre o que aconteceu no estágio e aponta o que autores falam sobre. Isso me ajudou a ler e pensar no que acontece em sala de aula!

 

Com uma abordagem empática, Nilce procurava contribuir com as vidas dos discentes para além da sala de aula, considerando a relação entre os conhecimentos prévios e os novos conceitos, criando um ambiente de aprendizagem que refletia suas realidades, promovendo o engajamento de todos. Nilce nos contou que conseguia “[...] ler e pensar no que acontece em sala de aula!”.

Sua experiência pessoal e vivências sociais enriqueceram sua prática, permitindo que ela trouxesse questões relevantes de sua vida para ilustrar o conteúdo dos textos, promovendo uma educação personalizada que, entre outros aspectos, valorizava a diversidade e o combate ao preconceito. Nilce se posicionou dizendo que as escolas não trabalhavam, por exemplo, o tema da diversidade em sala de aula. Com isso, afirmou estar,

 

[...] preparada para lidar com a questão da diversidade em sala de aula. [...] convivo com pessoas da comunidade LGBT+ e sou da área da saúde, ambos me ajudam muito, pois há tanto preconceito.

 

Nilce destacou a importância de trabalhar a diversidade e o combate ao preconceito em sala de aula, ressaltando como o ensino personalizado pode promover valores como tolerância e inclusão. Ela reconheceu as dificuldades enfrentadas em sua própria aprendizagem e valorizou a criação de recursos pedagógicos criativos para facilitar a compreensão dos discentes.

A participante teve também algumas dificuldades no processo de planejar e ensinar, mas foi criativa na superação de suas dificuldades, pois transformou os conteúdos complexos, na época para ela, em experiências práticas e interativas, tornando os conceitos mais acessíveis e compreensíveis para seus discentes. Assim, sua abordagem envolveu a produção de seus próprios materiais e o uso de estratégias pedagógicas inovadoras para tornar suas aulas mais envolventes.

A transformação de Nilce não se limitou apenas ao aspecto acadêmico, mas também teve impacto em sua vida pessoal e profissional, pois, em vários momentos das conversas informais, expôs situações que envolviam seu trabalho:

 

[...] no trabalho em reunião de equipe, falo com mais propriedade sem medo. A senhora observa nas aulas que eu consigo até debater sobre alguns assuntos e vejo a diferença entre os colegas, que ficam calados. Não me calo mais.

 

Ela se tornou mais segura e assertiva em suas interações, tanto em sala de aula quanto em seu ambiente de trabalho. Ao longo de seus estágios, Nilce desenvolveu uma compreensão mais ampla do papel da escola, da família e da sociedade na educação, também reconheceu a importância de contribuir com a formação de valores e atitudes positivas nos estudantes. Além da busca por um certificado de nível superior, ela identificou-se com a docência de biologia e encontrou na profissão de professora uma verdadeira paixão, por poder dedicar-se ao bem-estar dos discentes.

O processo educacional de Nilce, analisado sob a perspectiva da Teoria da Subjetividade de González Rey, revela o profundo processo de transformação em sua configuração subjetiva de aprender. Inicialmente, Nilce via a educação como um meio pragmático para superar adversidades econômicas e sociais, buscando um diploma para estabilidade financeira e aceitação social. No entanto, ao longo de sua trajetória no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, ela desenvolveu novos sentidos subjetivos, que modificaram sua visão sobre o valor da educação e seu papel como futura professora.

Consideramos que a configuração subjetiva da ação de aprender de Nilce tornou-se uma configuração subjetiva do desenvolvimento. Tais configurações

 

[…] são geradas em determinadas áreas da vida de um indivíduo, mas se diferenciam por serem vinculadas ao desenvolvimento de recursos subjetivos, permitindo tanto o envolvimento pessoal e mudanças relevantes no curso da performance, relações ou experiências na área em que uma configuração subjetiva do desenvolvimento se organizou, como mudanças qualitativas importantes em outras esferas da vida da pessoa (Goulart; Martínez, 2023, p. 46).

 

Os recursos subjetivos são “[…] a dimensão funcional de uma configuração subjetiva, expressa na ampliação das possibilidades de ação, relação e posicionamento em diferentes áreas da vida”, conforme Goulart e Martínez (2023, p. 46). A princípio, Nilce produzia sentidos subjetivos alinhados à uma visão utilitária da educação, buscando uma qualificação para romper com o ciclo de preconceito e discriminação que sentia em seu ambiente de trabalho. Nesse momento, os sentidos subjetivos que orientavam sua ação estavam relacionados, principalmente, à superação pessoal e à melhoria da qualidade de vida de sua família. No entanto, como enfatizado na Teoria da Subjetividade, os sentidos subjetivos são dinâmicos e podem se reconfigurar ao longo das experiências vividas. À medida que Nilce se envolvia no estágio supervisionado e nas práticas pedagógicas, começou a resignificar sua relação com o aprender e o ensinar, adotando uma postura mais ativa e reflexiva sobre sua própria aprendizagem e sobre a aprendizagem de seus futuros alunos.

Nilce deixou de ser uma aprendiz passiva, que se via como vítima das circunstâncias, e passou a atuar como agente do seu próprio processo de desenvolvimento, reconhecendo a importância de uma educação crítica e transformadora. Seu papel como sujeito ativo na construção de sua identidade docente se manifestou quando ela começou a valorizar as trocas de experiência, refletir criticamente sobre sua prática pedagógica e buscar novas estratégias de ensino que levassem em consideração as necessidades de seus discentes. Além disso, Nilce reconheceu que os recursos que desenvolveu no contexto da licenciatura foram importantes para suas relações e posicionamentos em outros contextos, como o trabalho.

Assim, no caso de Nilce, interpretamos que aconteceu desenvolvimento subjetivo em seu processo de preparação para a futura atuação professional. Na Teoria da Subjetividade, tal processo refere-se ao

 

Desenvolvimento de novos recursos subjetivos que permita ao indivíduo câmbios qualitativos em áreas diversas da vida e que lhe geram um envolvimento pessoal cada vez mais profundo na área em que a configuração subjetiva do desenvolvimento se organiza (González Rey; Mitjáns Martínez, 2017, p. 73).

 

Em resumo, os sentidos subjetivos produzidos por Nilce, durante a ação de aprender no estágio supervisionado e na prática de ensino, estavam relacionados com configurações subjetivas de sua história de vida e da subjetividade social dos contextos que participava. Também estavam articuladas às suas relações com as professoras, os colegas e os estudantes. Nesse percurso, Nilce produziu uma nova configuração de sentidos subjetivos de envolvimento e identificação com a docência e desenvolveu recursos subjetivos que ampliaram suas possibilidades de atuação e de relação com as professoras (da universidade e da escola), os colegas e os estudantes. Tais recursos, especialmente relacionados à comunicação e argumentação, também a ajudaram no contexto do trabalho. Nesse sentido, consideramos que a configuração subjetiva da ação de aprender tornou-se uma configuração do desenvolvimento subjetivo de Nilce.

 

Considerações finais

O estudo de caso de Nilce ilustra de forma importante como os conceitos centrais da Teoria da Subjetividade, aliados aos princípios da Epistemologia Qualitativa, podem oferecer visibilidade aos processos subjetivos envolvidos na formação docente. O conceito de configuração subjetiva da ação de aprender, em particular, possibilita dar visibilidade não apenas aos momentos contemporâneos à formação inicial, mas também permite explorar a historicidade da trajetória pessoal de Nilce, ampliando nossa compreensão sobre sua preparação para a futura atuação profissional como professora.

Durante o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, especialmente ao longo do Estágio Supervisionado e da Prática Pedagógica, Nilce passou por um processo de transformação significativa. Inicialmente, ela buscava apenas a obtenção do diploma e enfrentava dificuldades de relacionamento e aprendizagem. No entanto, ao ser inserida em contextos comunicativos dialógicos, próprios de ambientes colaborativos, Nilce começou a interagir com colegas e discentes (na escola campo de estágio), o que gerou tensões produtivas que favoreceram seu desenvolvimento subjetivo. Essas interações permitiram que ela se envolvesse mais profundamente com a docência e reorganizasse suas práticas de estudo de forma autônoma e criativa.

Os contextos formativos foram fundamentais para que Nilce emergisse como agente e, muitas vezes, como sujeito ativo de seu próprio processo de aprendizagem. O tensionamento gerado pela docência em sala de aula, aliado às interações que surgiram no estágio, possibilitou que Nilce superasse suas inseguranças iniciais, desenvolvesse recursos pedagógicos e integrasse suas experiências de vida na prática educativa. A partir dessa vivência, Nilce passou a propor estratégias inovadoras e socialmente relevantes, ampliando o escopo de suas contribuições para além do que inicialmente havia presenciado nas escolas.

Dessa forma, a configuração subjetiva de Nilce foi transformada durante o estágio e a prática pedagógica, resultando em uma configuração subjetiva do desenvolvimento. Essa transformação gerou novos sentidos subjetivos, que indicam não apenas maior envolvimento com a docência, mas também a ampliação de suas possibilidades de ação e relação, fundamentais para a construção de uma identidade docente. Em termos de recursos subjetivos, relacionais e operacionais, Nilce desenvolveu ferramentas importantes para sua futura atuação profissional.

Este estudo corrobora com a perspectiva do papel da formação inicial e dos estágios supervisionados no desenvolvimento da identidade profissional, destacando a importância de práticas reflexivas e dialógicas, especialmente ao evidenciar que as práticas formativas e os contextos comunicativos desempenham um papel central na transformação da subjetividade docente. O diferencial reside na adoção de uma abordagem mais profunda da história de vida e dos sentidos subjetivos que atravessam as experiências formativas, considerando como a subjetividade individual se articula com a subjetividade social no desenvolvimento de uma identidade docente singular. Isso nos permite compreender a formação docente não apenas como um processo técnico ou cognitivo, mas como um fenômeno integrado, em que a dimensão subjetiva e os contextos sociais são imprescindíveis .

 

Referências

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