Diferenças de acesso a cursos suplementares no Brasil: uma análise baseada nos dados da POF
Differences in access to supplementary education in Brazil: an analysis based on POF data
Diferencias en el acceso a cursos suplementarios en Brasil: un análisis basado en los datos de la POF
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
vizottog@gmail.com
Recebido em 25 de setembro de 2024
Aprovado em 22 de outubro de 2024
Publicado em 16 de abril de 2025
RESUMO
O artigo trata da participação em cursos suplementares e dos gastos com esses cursos, tendo por base os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF de 2017-2018. Tendo como ponto de partida a literatura sobre shadow education e o diálogo com elementos da obra de Pierre Bourdieu, traz reflexões sobre o aumento da participação em cursos suplementares e acerca das desigualdades associadas ao fenômeno. Ampara-se em análise descritiva e em análise de regressão para compreender as diferenças de participação nesses cursos no contexto brasileiro. Entre outros resultados, destaca-se que gastos médios relativamente altos com essas atividades consomem uma parcela relativamente baixa da renda das famílias mais ricas, comparativamente às famílias mais pobres, e que a renda familiar e os anos de estudo da pessoa de referência do domicílio afetam de diferentes formas a participação em diferentes cursos. Neste sentido, pode-se dizer que as práticas de ensino suplementar variam segundo a composição de capitais (econômico e cultural) dos indivíduos, destacando-se o capital econômico como relevante para a frequência em cursos de idiomas e o capital cultural para a frequência em cursos de música.
Palavras-chave: Ensino suplementar; Shadow education; Desigualdades educacionais.
ABSTRACT
The article addresses participation in supplemental courses and spending on these courses, based on data from the 2017-2018 POF. Starting from the literature on shadow education and engaging with elements of Pierre Bourdieu's work, it offers reflections on the increase in participation in supplemental courses and the inequalities associated with this phenomenon. It relies on descriptive analysis and regression analysis to understand the differences in participation in these courses within the Brazilian context. Among other findings, it highlights that relatively high average expenses consume a relatively small portion of the income of wealthier families compared to poorer families, and that household income and the years of education of the household reference person affect participation in different courses in various ways. In this regard, it can be said that supplemental education practices vary according to the composition of individuals' capital (economic and cultural), with economic capital being relevant for attendance in language courses and cultural capital for attendance in music courses.
Keywords: Supplementary education; Shadow education; Educational inequalities.
RESUMEN
El artículo aborda la participación en cursos suplementarios y los gastos en estos cursos, con base en los datos de la POF de 2017-2018. Partiendo de la literatura sobre la educación en la sombra y en diálogo con elementos de la obra de Pierre Bourdieu, ofrece reflexiones sobre el aumento de la participación en cursos suplementarios y las desigualdades asociadas a este fenómeno. Se apoya en un análisis descriptivo y en un análisis de regresión para comprender las diferencias de participación en estos cursos en el contexto brasileño. Entre otros resultados, se destaca que los gastos medios, relativamente altos, consumen una proporción relativamente baja del ingreso de las familias más ricas en comparación con las familias más pobres, y que el ingreso familiar y los años de estudio de la persona de referencia del hogar afectan de manera diferente la participación en diversos cursos. En este sentido, se puede decir que las prácticas de educación suplementaria varían según la composición de los capitales (económico y cultural) de los individuos, destacando el capital económico como relevante para la asistencia a cursos de idiomas y el capital cultural para la asistencia a cursos de música.
Palabras clave: Educación suplementaria; Shadow education; Desigualdades educativas.
Introdução
Adequando-se à dinâmica de competição que caracteriza as sociedades contemporâneas, indivíduos e famílias têm buscado continuamente formas de se diferenciarem, de adquirirem vantagens que possam ser reconhecidas nos mercados – ou nos campos – pelos quais circulam. Analogamente, tendem a procurar meios de manter ou aumentar seus patrimônios, mobilizando os recursos de que dispõe (capitais econômico, cultural, social ou simbólico) em torno de projetos ou estratégias que aumentem as chances de manutenção ou melhora de suas condições de vida (Bourdieu, 2011, p. 35-36; Bourdieu, 2017). Nas últimas décadas, a participação em atividades extraescolares parece ter assumido certa importância nesses processos de diferenciação, representando uma via flexível e personalizada de aquisição de vantagens (educacionais, profissionais e simbólicas) que estariam associadas a um aumento das chances de acesso a condições de vida relativamente satisfatórias (Brandão; Lellis, 2003; Bray, 2007, 2013, 2021; Buchmann et al., 2010; Castro, 2013; Costa et al., 2013; Exley, 2021; Hussein, 1987; Silveirinha, 2007; Southgate, 2009; Stevenson; Baker, 1992).
As pesquisas que tratam da expansão da participação dos indivíduos em atividades/cursos extraescolares – ou atividades/cursos suplementares – têm se dedicado, quase sempre, a caracterizar a participação de crianças e jovens em cursos pagos relacionados às disciplinas do ensino regular (Bray, 2007, 2013). Em geral, as pesquisas sobre o tema estão preocupadas com as desigualdades educacionais que o acesso a atividades como, por exemplo, cursos preparatórios para o vestibular, cursos de idiomas e aulas de reforço escolar, pode gerar, já que essas atividades costumam ser acessadas por uma parcela relativamente privilegiada da população. Isto é, crianças e jovens provenientes de famílias que contam com mais recursos, que já tendem a acumular vantagens educacionais, estariam acessando uma via adicional de aquisição de vantagens, o que contribuiria para o aumento das chances de sucesso escolar/universitário e/ou profissional dessa parcela relativamente privilegiada da população (Buchmann et al., 2010; Gomes et al., 2010; Liu; Bray, 2017; Southgate, 2009; Stevenson; Baker, 1992).
Esse reforço das chances de transmissão intergeracional de vantagens ou patrimônios, pela via do ensino suplementar, tem sido relatado em diferentes contextos e tem implicado, em alguns casos, a priorização das atividades suplementares relativamente às atividades desenvolvidas no ensino regular, o que levanta preocupações sobre a perda de interesse dos estudantes pelas atividades escolares e sobre a necessidade de regulação de determinados tipos de atividades suplementares (Costa et al., 2009; Fung, 2003; Hussein, 1987; Neto-Mendes et al., 2008; Stevenson; Baker, 1992).
No contexto brasileiro, os poucos estudos existentes têm indicado a relevância da participação de crianças e jovens em cursos de idiomas, cursos preparatórios para o vestibular e em aulas particulares de determinadas disciplinas. Ainda que geralmente baseados em pequenas amostras, essas pesquisas relatam diferenças significativas de acesso a atividades extraescolares entre estudantes/famílias que ocupam posições distintas no espaço social, sendo as atividades frequentadas principalmente por crianças ou jovens cujos genitores contam com maior renda e/ou maior escolaridade (Castro, 2013; Costa et al., 2013; Gomes et al., 2010; Gouveia; Neto-Mendes, 2014).
Tendo em vista contribuir para o avanço na compreensão do tema, este artigo procura explorar alguns aspectos da participação de indivíduos em atividades extraescolares no contexto brasileiro, tendo por base os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF de 2017-2018, conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. O objetivo é caracterizar as diferenças de acesso a determinados tipos de atividades suplementares, segundo características socioeconômicas dos indivíduos/famílias. Além disso, procura-se explorar, em alguma medida, como as práticas extraescolares consideradas na análise se ajustam a condições e estilos de vida característicos de diferentes grupos sociais.
Tendo por base esses objetivos, a opção foi considerar um conjunto relativamente amplo de atividades extraescolares pagas, e não somente atividades que dialogam diretamente com as disciplinas do ensino regular. Além disso, não foram feitas restrições relacionadas à idade dos participantes dos cursos considerados na análise. Essas escolhas foram feitas levando em conta que: 1) ainda são poucas as informações sobre as características dos participantes de diferentes tipos de atividades suplementares no contexto brasileiro; 2) a POF disponibiliza informações detalhadas sobre gastos com uma diversidade de atividades extraescolares; 3) mesmo atividades não diretamente relacionadas às disciplinas ou aos conteúdos do ensino regular podem afetar as trajetórias educacionais, profissionais e sociais dos indivíduos; e 4) os processos de diferenciação e/ou de aquisição de vantagens e/ou de transmissão de patrimônios podem ocorrer durante períodos que excedem os anos que os indivíduos dedicam ao ensino regular, podendo durar por praticamente toda a vida.
O artigo divide-se em cinco seções, além desta introdução. Na próxima seção, procuro estabelecer um breve diálogo com elementos da teoria de Pierre Bourdieu que servem de base para a análise. Na sequência, são apresentados os dados explorados e a metodologia. A seção seguinte traz a análise descritiva dos dados da POF 2017-2018, no que diz respeito a um conjunto delimitado de atividades suplementares. A penúltima parte do artigo trata da probabilidade de participação em cada tipo de curso, em função das características dos indivíduos, tendo por base a aplicação da técnica de regressão logística. Por fim, segue-se as considerações finais.
Atividades suplementares e estratégias de reprodução
Ainda que seja possível abordar o tema a partir de pontos de vista diversos, adoto como ponto de partida o entendimento de que as práticas de ensino suplementar se ajustam às possibilidades de acesso e às disposições dos indivíduos, estando tais possibilidades e disposições ajustadas principalmente ao volume e ao peso relativo dos capitais cultural e econômico que compõem a estrutura patrimonial dos indivíduos. Nesse caso, grupos de indivíduos que ocupam posições similares no espaço social contariam com possibilidades e disposições similares no que diz respeito ao percurso a ser seguido em relação às experiências de ensino suplementar, já que estariam submetidos a condições e condicionamentos que os levariam a adotar práticas e estilos de vida semelhantes (sobre o ajuste entre posições no espaço social, disposições e práticas dos indivíduos, ver Bourdieu, 2017).
Além de expressarem um pertencimento social – por meio do ajuste entre capitais, possibilidades de acesso, disposições e práticas –, essas atividades também podem estar alinhadas, intencionalmente ou não, a estratégias de reprodução social[1]. Nesse caso, os indivíduos/famílias mobilizariam seus recursos no sentido de acessar as atividades suplementares que podem aumentar as chances de sucesso educacional e/ou profissional, buscando a manutenção ou melhora da posição ocupada no espaço social. Dessa forma, seria possível dizer que os indivíduos e/ou famílias tenderiam a investir em determinadas atividades suplementares, pagando por elas, de acordo com o volume e peso relativo dos capitais que possuem (cultural, econômico e social) e de acordo com o potencial (segundo a percepção dos indivíduos) que essas atividades têm para influenciar a manutenção ou a melhora da posição social a ser ocupada, tendo em vista o contexto em que vivem (sobre o ajuste entre estratégias de reprodução e a posse de diferentes capitais, ver Bourdieu, 2004, p. 163-164; Bourdieu, 2011, p. 35-36; Bourdieu, 2013, p. 331-333; Bourdieu, 2017).
Vale ressaltar que, em muitos casos, as atividades extraescolares frequentadas podem não ser entendidas como parte de uma estratégia de reprodução. Entre indivíduos de determinados grupos sociais, a frequência a certos tipos de aulas ou cursos suplementares pode acontecer de forma despretensiosa, representando mais uma parte de um estilo de vida a ser seguido do que um esforço em torno de um movimento de ascensão social (especialmente nesses casos, podem ser comuns as atividades realizadas “por prazer” ou por serem consideradas “interessantes”, adjetivos que geralmente revelam certa distância da necessidade).
Independente das intenções (ou da falta de intenção) associadas à participação em diferentes tipos de atividades suplementares, o que destaco é a possibilidade de que indivíduos ou famílias que detêm níveis médios ou altos de recursos acessem atividades que estão vetadas à maior parte da população, e as consequências que esse acesso desigual pode ter: sendo produto de desigualdades prévias, as diferenças de acesso a diferentes tipos de atividades extraescolares (ou as diferenças de qualidade das atividades acessadas, ou de duração das atividades frequentadas, ou de momento da vida em que as atividades são acessadas – precocemente ou tardiamente) podem contribuir para a criação de desigualdades futuras. Isto é, essa via extraescolar de formação pode estar atuando como uma via de transmissão de vantagens sociais entre gerações, agindo no sentido contrário de mecanismos que atuam no sentido de promover a diminuição de desigualdades. Nesse caso, mesmo que o ensino regular atue no sentido de diminuir desigualdades educacionais e sociais entre indivíduos de condições sociais diferentes, é sempre possível, para indivíduos/famílias que possuem mais recursos, “comprar vantagens” no mercado, pagando por cursos e aulas extraescolares – tenham ou não a intenção declarada de adquirir vantagens em relação aos que não podem acessar essas atividades.
Amparadas nessa abordagem, que procura compreender as práticas dos indivíduos a partir das posições que eles ocupam no espaço social, as próximas seções deste artigo analisam a participação de indivíduos em diferentes tipos de atividades suplementares, tendo por base os dados da POF de 2017-2018, conduzida pelo IBGE.
Base de dados e métodos
A Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF, utilizada como fonte de informações para a análise empreendida, é realizada pelo IBGE em periodicidade variável (as duas últimas edições são de 2017-2018 e 2008-2009) e coleta dados sobre consumo, gastos e rendimento de uma amostra representativa da população brasileira. A partir do acompanhamento dos gastos realizados pelas famílias em um período de doze meses, a pesquisa permite que sejam conhecidos, em detalhes, os gastos com itens de alimentação, educação, moradia, saúde e transportes, entre outros.
Considerando os propósitos do artigo, foram levadas em conta as despesas com as atividades extraescolares mais frequentes na amostra, listadas entre os itens de gastos com educação do POF 4 – Questionário de Aquisição Individual, disponível nos microdados da POF 2017-2018[2]. A lista de atividades pode ser conferida na Tabela 1, na próxima seção.
Os gastos com cada tipo de atividade foram informados para o último mês em que os gastos foram realizados, levando em conta um período de doze meses anteriores ao preenchimento do questionário. Além disso, foi informado o número de meses em que cada tipo de gasto ocorreu. Dessa forma, foi possível calcular os gastos totais para o período de um ano, com cada curso. Para que fosse possível o estabelecimento da relação com a renda mensal, o gasto mensal foi estimado, por meio da divisão do gasto anual por doze. As despesas foram consideradas no nível dos indivíduos (ou seja, não foram agregadas por domicílio).
Vale destacar que os dados da POF tratam das despesas de até doze meses anteriores ao momento em que o questionário foi respondido. No caso dos gastos com atividades extraescolares, isso significa que os indivíduos/famílias podem ter realizado gastos com cursos antes desse período, frequentando essas atividades em algum momento anterior de suas vidas. Nesse sentido, a POF não retrata o estoque de cursos frequentados pela população levada em conta na amostra. Assim, é possível que os padrões de participação em cursos na população, considerando todas as atividades frequentadas até certo ponto de suas vidas, sejam diferentes dos padrões de participação registrados na POF.
Os dados de gastos com cada tipo de atividade suplementar considerada apresentam uma ressalva importante: ainda que os informantes dos gastos sejam identificados individualmente, nem sempre o gasto realizado está associado à pessoa que de fato frequentou o curso. Esse problema fica claro quando são feitas estimativas de gastos segundo as características dos residentes dos domicílios, como poderá ser visto na próxima seção. De toda forma, no caso das características que são comuns a todos os residentes do domicílio, como renda familiar e anos de estudo da pessoa de referência[3], esse problema não ocorre.
A análise dos dados está dividida em duas partes: 1) análise descritiva, em que são considerados os percentuais de participação em cada curso e os gastos das pessoas que realizaram gastos com os cursos suplementares considerados na análise; e 2) análise dos fatores associados à participação nas atividades levadas em conta na análise, considerando como participação os casos de gastos maiores do que zero. Nas duas partes as estimativas levaram em conta os pesos amostrais associados a cada domicílio[4].
Análise descritiva
Os dados da POF 2017-2018 indicam que a participação em cursos se concentra entre os que se declararam brancos (Tabela 1). No caso dos cursos de idiomas, por exemplo, 68% dos que realizaram gastos com esses cursos são brancos, enquanto no total da amostra 44% dos indivíduos se declararam brancos. Indivíduos pretos e pardos, por outro lado, estão sub-representados entre os que frequentaram cursos pagos de idiomas, tendo em vista os percentuais totais na amostra (última linha da Tabela 1). Os cursos de natação e de dança também se destacam pela alta concentração de pessoas brancas.
Esse padrão de participação em cursos, segundo a cor, se repete na maior parte dos cursos. As principais exceções são os cursos de informática e as aulas particulares[5], relativamente mais concentradas entre indivíduos que se declararam pretos e pardos. Os cursos preparatórios para o vestibular/Enem também precisam ser destacados: mesmo sendo cursos relativamente caros (como veremos adiante), a participação neles é relativamente bem distribuída, seguindo percentuais próximos aos da distribuição dos indivíduos na amostra, segundo a cor.
Tabela 1 - Participação em cursos pagos, segundo a cor, entre os que frequentam cada curso, e distribuição dos indivíduos, segundo a cor, no total da amostra*
|
Tipos de cursos |
Branca |
Parda |
Preta |
|
Participação em cursos de idiomas |
67,97% |
23,00% |
6,54% |
|
Participação em cursos pré-vestibulares |
52,09% |
38,19% |
8,98% |
|
Participação em aulas particulares |
39,14% |
46,19% |
13,65% |
|
Participação em cursos de informática |
41,53% |
45,12% |
12,43% |
|
Participação em cursos de música |
62,94% |
27,97% |
5,97% |
|
Participação em cursos de dança |
71,80% |
25,81% |
2,05% |
|
Participação em cursos de balé |
60,36% |
25,99% |
12,64% |
|
Participação em cursos de natação |
67,95% |
26,59% |
4,71% |
|
Distribuição no total da amostra |
44,01% |
44,42% |
10,22% |
Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da POF 2017-2018/IBGE. *Indivíduos que se declararam amarelos ou indígenas não foram incluídos na tabela devido à falta de informações sobre a participação em parte dos cursos.
No que diz respeito ao gênero, a predominância é feminina em praticamente todos os cursos, com destaque para os cursos de dança, que contam com aproximadamente 80% de indivíduos do gênero feminino (Tabela 2). Esses resultados dialogam com os resultados de pesquisas que exploram o tema em outros países: tendo por base os dados do Programme for International Student Assessment – PISA de 2003 para 36 países participantes do exame, Southgate (2009) indica a maior prevalência de estudantes do gênero feminino em atividades suplementares. Tendo por base esse resultado, a autora aponta que a participação em atividades suplementares pode contribuir para a redução de desigualdades educacionais relacionadas a gênero, sobretudo em contextos em que o ensino regular é acessado principalmente por estudantes do gênero masculino.
Ainda em relação à participação em atividades suplementares segundo o gênero, pode-se notar que os cursos de música e de balé são os que apresentam maior equilíbrio de participação entre os gêneros, com predominância masculina no caso de música. Vale lembrar, contudo, que essa distribuição tem relação com o gênero dos participantes de cada tipo de curso, mas também pode ter sido afetada pela imprecisão apontada anteriormente: em alguns casos, é possível que o gênero declarado não seja o de quem de fato participou do curso, mas o gênero do indivíduo que respondeu como informante do gasto (que pode ser quem pagou pelo curso).
Tabela 2 - Participação em cursos pagos, segundo o gênero e segundo a idade
|
Tipos de cursos |
Feminino |
Masculino |
Até 15 anos |
De 16 a 23 anos |
De 24 a 35 anos |
De 36 a 50 anos |
Mais de 50 anos |
|
Participação em cursos de idiomas |
58,58% |
41,42% |
6,86% |
12,99% |
24,10% |
32,91% |
23,13% |
|
Participação em cursos pré-vestibulares |
59,86% |
40,14% |
2,37% |
42,75% |
8,76% |
26,92% |
19,19% |
|
Participação em aulas particulares |
67,70% |
32,30% |
7,86% |
8,23% |
26,15% |
40,21% |
17,55% |
|
Participação em cursos de informática |
54,10% |
45,90% |
10,56% |
31,33% |
20,19% |
23,26% |
14,67% |
|
Participação em cursos de música |
48,61% |
51,39% |
8,12% |
6,17% |
21,67% |
31,09% |
32,95% |
|
Participação em cursos de dança |
80,45% |
19,55% |
4,05% |
4,89% |
31,04% |
33,30% |
26,72% |
|
Participação em cursos de balé |
51,86% |
48,14% |
2,48% |
3,54% |
25,32% |
58,06% |
10,60% |
|
Participação em cursos de natação |
62,38% |
37,62% |
2,16% |
2,27% |
28,49% |
41,89% |
25,19% |
|
Distribuição no total da amostra |
51,62% |
48,38% |
22,00% |
12,78% |
17,67% |
21,22% |
26,33% |
Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da POF 2017-2018/IBGE.
Essa possibilidade de imprecisão fica destacada no caso dos percentuais de participação segundo faixas de idade (Tabela 2). No caso dos cursos pré-vestibulares, por exemplo, parece razoável a frequência nesses cursos se concentrar na faixa de 16 a 23 anos (42,75%), mas geram desconfiança os percentuais de 26,92% e de 19,19% nas faixas de 36 a 50 anos e de mais de 50 anos, respectivamente, principalmente após uma queda na frequência a cursos pré-vestibulares na faixa de 24 a 35 anos. Assim, fica a suspeita de que, em parte dos casos, os gastos tenham sido declarados por adultos com mais de 35 anos que tinham filhos frequentando cursos pré-vestibulares.
A imprecisão acerca das características dos que de fato frequentaram os cursos não ocorre no caso da participação em cursos segundo os anos de estudo da pessoa de referência do domicílio. Nesse caso, como o valor assumido pela variável “anos de estudo da pessoa de referência” é o mesmo para todos os membros de cada domicílio, a informação sobre o curso frequentado fica associada sempre ao mesmo valor, independente de quem tenha informado o gasto e de quem tenha frequentado o curso.
O objetivo, ao considerar os anos de estudo da pessoa de referência como uma das variáveis de interesse neste estudo, foi ter uma medida (ainda que imprecisa e insuficiente) que pudesse dar indícios acerca do capital cultural dos indivíduos. No caso da POF, que é uma pesquisa preocupada principalmente com informações sobre consumo e rendimentos das famílias, a variável anos de estudo da pessoa de referência pareceu ser a que melhor poderia representar o capital cultural dos residentes de cada domicílio.
Como é possível notar (Tabela 3), a participação em cursos de natação, idiomas, dança e música se concentra na faixa superior de anos de estudo da pessoa de referência do domicílio. No caso de natação, por exemplo, 61,28% dos indivíduos que frequentaram esses cursos no período de referência contam com a pessoa de referência na faixa de mais de doze anos de estudo. Os cursos de idiomas, que podem ter consequências importantes nas trajetórias educacionais e profissionais dos indivíduos, contam com percentuais de 6,42% e 10% nas faixas de até cinco anos de estudo e de seis a nove anos de estudo da pessoa de referência, respectivamente, sendo que essas faixas, somadas, contam com mais de 50% do total dos indivíduos da amostra. Esses resultados se alinham aos obtidos por outros estudos: ainda que, em muitos casos, os tipos de atividades não sejam discriminados, estudos empreendidos em diferentes países indicam a maior proporção de participação em atividades suplementares entre indivíduos cujos pais ou responsáveis se encontram nas faixas superiores de anos de estudo (Brandão; Lellis, 2003; Buchmann et al., 2010; Gomes et al., 2010; Liu; Bray, 2017; Silveirinha, 2007; Stevenson; Baker, 1992).
Tabela 3 - Participação em cursos pagos, segundo os anos de estudo da pessoa de referência do domicílio
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Tipos de cursos |
Até 5 anos de estudo |
De 6 a 9 anos de estudo |
De 10 a 12 anos de estudo |
Mais de 12 anos de estudo |
|
Participação em cursos de idiomas |
6,42% |
10,00% |
26,50% |
57,08% |
|
Participação em cursos pré-vestibulares |
14,11% |
11,01% |
35,43% |
39,45% |
|
Participação em aulas particulares |
14,75% |
15,97% |
31,12% |
38,16% |
|
Participação em cursos de informática |
28,41% |
15,72% |
35,65% |
20,23% |
|
Participação em cursos de música |
8,57% |
9,80% |
26,97% |
54,66% |
|
Participação em cursos de dança |
5,83% |
6,60% |
30,77% |
56,80% |
|
Participação em cursos de balé |
3,60% |
6,87% |
44,55% |
44,98% |
|
Participação em cursos de natação |
5,98% |
11,45% |
21,29% |
61,28% |
|
Distribuição no total da amostra |
30,46% |
22,19% |
29,37% |
17,99% |
Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da POF 2017-2018/IBGE.
Os cursos de informática são os únicos que escapam aos padrões de concentração da participação em cursos nas faixas mais altas de anos de estudo da pessoa de referência. Provavelmente mais voltados a um preparo de curto prazo para o trabalho, esses cursos contam com percentual relativamente alto de participação entre as pessoas que contam com a pessoa de referência na faixa de até cinco anos de estudo.
A participação em cursos pré-vestibulares e em aulas particulares, apesar de ser relativamente baixa nas menores faixas de anos de estudo da pessoa de referência, é mais alta do que no caso dos demais cursos (com exceção dos cursos de informática). Ao que parece, o pagamento por cursos pré-vestibulares e aulas particulares é priorizado por indivíduos cuja pessoa de referência do domicílio conta com menos anos de estudo, relativamente aos outros tipos de cursos considerados. Isto é, os recursos destinados ao pagamento desses dois tipos de atividades poderiam viabilizar a participação em outros tipos cursos, como os de idiomas, mas isso não ocorre. Esse padrão precisa ser melhor compreendido, mas é possível que esses dois tipos de atividades (cursos pré-vestibulares e aulas particulares) estejam sendo priorizados como vias de formação extraescolar por indivíduos que contam com relativamente menos recursos, possivelmente os mais dependentes da via escolar/educacional para que alguma ascensão social seja alcançada. Esse tipo de estratégia, que prioriza atividades extraescolares que podem aumentar as chances de sucesso escolar/educacional (ao menos no caso dos cursos pré-vestibulares, geralmente a expectativa é de ganho de desempenho nos testes que medeiam o ingresso no ensino superior), faria sentido em nosso contexto, já que a via escolar/educacional tem sido apontada como o principal fator explicativo da mobilidade social no Brasil (Ribeiro, 2006, 2014; Souza, 2010).
A possível priorização de aulas particulares e de cursos pré-vestibulares parece se confirmar quando olhamos a distribuição da participação em cursos segundo faixas de renda (Tabela 4). A comparação com os cursos de idiomas é novamente útil: na segunda e na terceira faixas de renda (partido da mais baixa para a mais alta), a participação em cursos pré-vestibulares e em aulas particulares é muito maior do que a participação em cursos de idiomas, mas a situação se inverte a partir da faixa de renda de mais de R$ 5.724 a R$ 9.540, ponto a partir do qual os percentuais de participação em cursos de idiomas são maiores. Ao que parece, os cursos pré-vestibulares e as aulas particulares são priorizados como via extraescolar de formação entre indivíduos de faixas baixas e médias de renda familiar, enquanto os cursos de idiomas (relativamente caros e de longa duração) são a prioridade nas faixas mais altas de renda.
Tabela 4 - Participação em cursos pagos, segundo a renda familiar
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Tipos de cursos |
Até 1.908 |
Mais de 1.908 a 2.862 |
Mais de 2.862 a 5.724 |
Mais de 5.724 a 9.540 |
Mais de 9.540 a 14.310 |
Mais de 14.310 a 23.850 |
Mais de 23.850 |
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Participação em cursos de idiomas |
3,33% |
4,52% |
17,90% |
22,21% |
16,78% |
19,16% |
16,11% |
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Participação em cursos pré-vestibulares |
4,18% |
11,03% |
28,45% |
20,67% |
12,16% |
14,24% |
9,27% |
|
Participação em aulas particulares |
10,61% |
10,61% |
29,06% |
17,31% |
10,59% |
12,12% |
10,86% |
|
Participação em cursos de informática |
14,62% |
13,14% |
35,90% |
19,50% |
6,37% |
6,94% |
3,52% |
|
Participação em cursos de música |
5,79% |
9,95% |
20,13% |
20,12% |
13,65% |
17,16% |
13,21% |
|
Participação em cursos de dança |
1,68% |
8,85% |
18,14% |
21,46% |
16,98% |
17,05% |
15,84% |
|
Participação em cursos de balé |
1,39% |
8,50% |
21,66% |
23,52% |
23,55% |
11,22% |
10,16% |
|
Participação em cursos de natação |
1,79% |
4,26% |
18,30% |
24,02% |
15,33% |
16,50% |
19,79% |
|
Distribuição no total da amostra |
21,96% |
17,87% |
32,24% |
15,02% |
6,48% |
3,89% |
2,53% |
Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da POF 2017-2018/IBGE.
Novamente, esses padrões precisam ser melhor explorados, mas é possível que os indivíduos de faixas mais altas de renda, sendo menos dependentes da via escolar/educacional para que condições de vida satisfatórias sejam viabilizadas (sobre isso, ver Bourdieu, 2013, p. 324; Bourdieu, 2017, p. 112), direcionem menos seus recursos e esforços a atividades como cursos pré-vestibulares e aulas particulares, atividades pelas quais possivelmente poderiam pagar. Por outro lado, os cursos de idiomas, que aumentam as chances de acesso a posições profissionais de maior prestígio e possibilitam o acesso a espaços e experiências relativamente comuns entre membros de camadas superiores (realização de intercâmbios, leitura de livros no idioma em que foram originalmente escritos, realização de viagens internacionais, outros), são priorizados (relativamente aos cursos pré-vestibulares e a diversos outros cursos) por indivíduos que contam com maior renda familiar (principalmente quando a renda ultrapassa R$ 9.540). Nesse sentido, seria preciso compreender, em pesquisas futuras, como a fluência em determinados idiomas tem a função de legitimar as posições a serem ocupadas por indivíduos que compõem determinadas elites no contexto brasileiro e/ou de viabilizar o acesso de camadas médias a espaços educacionais e profissionais mais disputados ou de maior prestígio.
Seguindo a tendência dos cursos de idiomas, os participantes de cursos de música, dança e natação estão concentrados principalmente nas três faixas superiores de renda (levando em conta os percentuais dos indivíduos nessas faixas de renda no total da amostra). Esse padrão guarda alguma correspondência com os dados de participação nesses cursos segundo as faixas de anos de estudo da pessoa de referência: são esses mesmos cursos que contam com seus participantes concentrados na faixa de mais de doze anos de estudo da pessoa de referência.
Ainda no que diz respeito à participação em cursos segundo a renda familiar, vale destacar, novamente, o caso dos cursos de informática. Relativamente às demais atividades, a participação em cursos de informática está claramente concentrada entre os indivíduos que contam com renda familiar mais baixa e que possivelmente buscam esses cursos como uma via de preparo para o trabalho. O ajuste desses cursos às condições de existência das pessoas que contam com relativamente poucos recursos tem seu oposto entre os indivíduos que contam com renda familiar nas faixas mais altas: levando em conta os percentuais de participação nos demais cursos, parece possível inferir que os que possuem renda familiar superior a R$ 9.540 poderiam frequentar cursos de informática, mas optam por quase não fazê-lo, pois esses cursos dificilmente se ajustam às trajetórias formativas desses indivíduos, não atendendo às suas expectativas, necessidades ou interesses.
No que diz respeito aos valores médios de gastos com cada tipo de curso, vale notar que os cursos de idiomas e pré-vestibulares são, em média, bem mais caros do que os demais cursos (Gráfico 1). Além disso, vale notar que os cursos de informática, os mais baratos entre os cursos considerados, representam um sacrifício relativamente alto da renda dos que frequentam esses cursos (Gráfico 2), o que reforça o que já havia sido indicado: esses cursos são acessados principalmente por pessoas que contam com renda familiar mais baixa.
Gráfico 1 - Estimativa de gasto mensal com cursos, considerando as famílias que realizaram esses gastos (em reais de 2018)
Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da POF 2017-2018/IBGE.
Gráfico 2 - Percentual da renda gasto com cursos, considerando as famílias que realizaram esses gastos
Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da POF 2017-2018/IBGE.
A próxima seção explora alguns dos fatores que podem explicar a participação em cada um dos cursos considerados. Esse tipo de análise é útil por permitir uma maior compreensão acerca de como as características dos indivíduos e de suas famílias afetam, de diferentes formas, a participação em diferentes tipos de atividades suplementares.
Fatores associados à participação em cursos suplementares
Para a estimativa dos fatores associados à participação em cada um dos cursos, foram utilizados modelos de regressão logística, que permitem o controle simultâneo das variáveis que explicam a participação nos cursos considerados na análise. Levando em conta as variáveis disponíveis na POF 2017-2018, os modelos utilizaram como variáveis explicativas: 1) a renda familiar, conforme as faixas indicadas na Tabela 6, utilizada como proxy do capital econômico dos indivíduos; 2) a idade declarada pelo informante do gasto; 3) os anos de estudo da pessoa de referência do domicílio, variável utilizada como proxy do capital cultural dos indivíduos; 4) o local do domicílio (rural ou urbano); 5) o gênero declarado pelo informante do gasto (masculino ou feminino); 6) a cor informada pelo informante do gasto (branca, parda, preta e outras); e 7) a região do país em que o domicílio está localizado (norte, nordeste, centro-oeste, sudeste e sul). No caso das variáveis categóricas, que assumem valor zero ou um, os valores dos coeficientes estimados indicam o efeito de cada categoria relativamente à categoria tomada como referência (por exemplo, o efeito do gênero masculino é estimado em relação ao feminino, o efeito de cada faixa de renda sobre as chances de participação em cada curso é estimado em relação a uma determinada faixa de renda etc.). Na Tabela 6, os valores negativos em cada coluna indicam uma diminuição das chances de participação em cada curso e os positivos indicam um aumento das chances de participação. Assim, os coeficientes estimados, associados a cada variável explicativa, indicam se a respectiva variável está relacionada a um aumento ou a uma diminuição da probabilidade de participação em cada curso. A existência de asteriscos junto ao coeficiente indica que o valor estimado é estatisticamente significante, com o número de asteriscos aumentando em função do aumento da significância.
Tabela 5 - Fatores associados à participação em diferentes cursos suplementares
Fonte: Elaboração própria, com base nos dados da POF 2017-2018/IBGE.
Os resultados das estimativas, apresentados na Tabela 6, indicam como cada uma das variáveis afeta a probabilidade de participação em cada um dos cursos considerados. No caso dos cursos de idiomas, rendimentos abaixo da faixa tomada como referência (mais de R$ 9.540 até R$ 14.310) diminuem a probabilidade de participação nesses cursos e rendimentos acima dessa faixa aumentam a probabilidade de participação nos cursos de idiomas. Vale notar que as diferenças de renda familiar não afetam tanto a participação nos outros cursos, comparativamente ao efeito da renda sobre a probabilidade de participação nos cursos de idiomas. No caso de música, especificamente, rendimentos familiares acima e abaixo da faixa de referência não estão associados a aumentos ou reduções de probabilidade de participação nesses cursos. Rendimentos próximos ou acima da faixa de referência também não afetam as chances de participação em cursos de dança e de balé.
De forma geral, é possível perceber que o indicador de capital econômico (renda familiar) afeta mais as chances de participação em alguns cursos e menos em outros. Esses resultados sugerem que, mesmo que a posse de determinado nível de renda seja condição necessária para a participação em cursos suplementares pagos, as escolhas acerca da participação em certos tipos de cursos não se explicam pelas diferenças de renda. Ou, mais precisamente, parece possível concluir que a posse de determinado nível de capital econômico é mais importante na definição sobre a participação em alguns cursos do que em outros.
Contrastando com a pouca importância da renda familiar para explicar a participação em cursos de música, os anos de estudo da pessoa de referência, variável utilizada como proxy do capital cultural dos indivíduos, afeta positivamente as chances de participação em cursos de música. Ao que parece, o que pesa na explicação da participação em cursos de música é o capital cultural dos indivíduos. Dito de outra forma, entre indivíduos com um conjunto semelhante de características (como gênero, cor, renda e local de residência), os que provavelmente vão frequentar os cursos de música são os que contam com maior capital cultural.
A importância do indicador de capital cultural, relativamente ao indicador de capital econômico, também se destaca no caso dos cursos de dança e balé, tomando por base os coeficientes associados a renda e anos de estudo da pessoa de referência relativos aos cursos de idiomas (nos casos de dança e balé, faixas de renda abaixo da faixa tomada como referência afetam negativamente a probabilidade de participação nesses cursos, mas contar com rendimentos acima da faixa de referência não aumenta as chances de participação nesses cursos).
Ao que tudo indica, a posse de recursos econômicos é relativamente mais importante para a explicação da participação em cursos de idiomas e a posse de capital cultural é relativamente mais importante para a explicação da participação em cursos de música. Os demais casos ocupam posições intermediárias, sendo possível sugerir que os cursos pré-vestibulares e as aulas particulares apresentam comportamento mais próximo dos cursos de idiomas (em que a importância do capital econômico se destaca) e que os cursos de dança e balé se aproximam dos cursos de música (em que a importância do capital cultural assume certa importância). Além disso, o caso dos cursos de informática se destaca como o único em que a variável relativa ao capital cultural (anos de estudo da pessoa de referência) não é estatisticamente significante.
A variável idade pouco afeta a probabilidade de participação nos cursos considerados e viver em espaços urbanos afeta positivamente as chances de participação na maior parte dos cursos, relativamente a viver em espaços rurais. Em relação ao gênero, a probabilidade de participação na maior parte dos cursos é menor quando o informante do gasto é do gênero masculino. No caso da cor declarada pelos informantes dos gastos, os indivíduos que se declararam brancos contam com menor probabilidade de participação em aulas particulares e em cursos de informática, mas com maior probabilidade de participação em cursos de dança, relativamente aos indivíduos que se declararam pretos, cor tomada como referência. Os que se declararam pardos também contam com maior probabilidade de participação em cursos de dança, relativamente aos que se declararam pretos. As diferenças de cor não afetam as chances de participação em cursos de idiomas, pré-vestibulares, música, balé e natação, mantidos constantes os demais fatores. Isso significa que quando são comparados indivíduos com a mesma renda, mesmo gênero e com outras características também semelhantes, as diferenças de cor não implicam diferenças de probabilidade de participação nesses cursos, tendo por base a amostra da POF. Isso não significa, contudo, que não existem diferenças, associadas a cor, nos valores pagos nas mensalidades ou nas experiências dos indivíduos ao frequentarem cada curso.
As variáveis relacionadas à região do país indicam que a probabilidade de participação em cursos de idiomas nas regiões norte, nordeste, centro-oeste e sul é menor do que na região sudeste, tomada como referência. Os cursos pré-vestibulares, contudo, são acessados com maior probabilidade nas regiões nordeste e centro-oeste, relativamente à região sudeste. As aulas particulares e os cursos de informática são acessados com maior e menor probabilidade, respectivamente, nas regiões nordeste e sul e os cursos de música e dança são acessados com menor probabilidade nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, relativamente à região sudeste. Explicar as variações regionais de probabilidade de participação em cada curso extrapola o objetivo deste artigo, mas é possível sugerir que estejam associadas às dinâmicas dos sistemas de ensino e do mercado de trabalho de cada região. Além disso, essas variações podem estar relacionadas ao próprio desenvolvimento do mercado de cursos suplementares de cada região. Nesse sentido, é possível que algumas atividades tenham assumido a forma de cursos mais frequentemente em alguns contextos do que em outros.
Além das observações sobre cada curso e cada variável, vale destacar que, em linha com o que já havia sido destacado na seção anterior, os indivíduos que contam com renda familiar abaixo de certo patamar (R$ 2.862) têm menos chances de frequentar os cursos considerados na análise (com exceção dos cursos de música), relativamente aos indivíduos da faixa de renda de referência. Ademais, quanto maior o valor dos anos de estudo da pessoa de referência do domicílio, maiores são as chances de os indivíduos frequentarem os cursos considerados na análise (com exceção dos cursos de informática).
Esses resultados parecem reforçar o que a análise descritiva dos dados já indicava: as atividades consideradas na análise são acessadas principalmente por indivíduos com rendimentos médios e altos, que vivem em domicílios em que a pessoa de referência pôde dedicar mais anos aos estudos e que residem em contextos urbanos. Se essa desigualdade de acesso, que é negativa em si, estiver viabilizando a manutenção ou o aumento de diferenças/distâncias educacionais, profissionais e sociais entre indivíduos que ocupam posições diferentes no espaço social, é possível sugerir que as atividades de ensino suplementar estejam atuando como instrumentos de reprodução social no contexto brasileiro.
Além disso, os resultados parecem indicar que algumas práticas de ensino suplementar são acessadas principalmente em função do capital econômico em posse dos indivíduos, enquanto outras são acessadas principalmente em função do capital cultural. Ou seja, enquanto a decisão acerca do acesso a alguns cursos depende principalmente da disponibilidade de recursos financeiros, a decisão sobre o acesso a outros cursos depende principalmente da escolaridade da pessoa de referência do domicílio. Em resumo, parece possível sugerir que o capital cultural tende a privilegiar certos percursos na formação suplementar, enquanto o capital econômico tende a privilegiar outros, com as práticas se ajustando a um “espaço de possíveis” vinculado a disposições socialmente constituídas (ver Bourdieu, 2004, 2017).
Tendo em vista a análise conjunta dos dados (resultados das regressões e estatísticas descritivas), parece ser possível concluir que a possibilidade de acesso a cursos extraescolares pagos é uma fonte potencial de reforço de desigualdades, podendo atuar como uma via adicional de aquisição de vantagens e de conservação ou aumento de patrimônios. Além disso, diferentes tipos de cursos parecem fazer parte de estilos de vida distintos e distintivos, refletindo um ajuste entre as práticas e as disposições dos indivíduos, que variam em função da composição de seus capitais (ver Bourdieu, 2017).
Considerações finais
O artigo procurou caracterizar, no contexto brasileiro, a participação dos indivíduos em um determinado conjunto de atividades extraescolares pagas. A partir dos dados da POF 2017-2018, foi possível notar que a participação nas atividades suplementares consideradas quase sempre se concentra entre indivíduos que residem em domicílios em que a renda familiar é média ou alta, em que a faixa de anos de estudo da pessoa de referência do domicílio é relativamente alta e que se localizam em espaços urbanos.
Além disso, foi possível notar que os indicadores de capital econômico e de capital cultural considerados na análise afetam desigualmente as chances de participação em cada tipo de curso, o que sugere que a participação em diferentes tipos de cursos tende a se ajustar à estrutura patrimonial dos indivíduos (representada pela composição de capitais econômico e cultural). Nesse sentido, as práticas de ensino suplementar podem expressar e, ao mesmo tempo, contribuir para que sejam criados, estilos de vida distintos e distintivos, revelando nuances sobre as posições que os agentes ocupam no espaço social.
Por fim, dependendo dos efeitos que a participação em cada tipo de curso tenha sobre as trajetórias educacionais, profissionais e/ou sociais dos indivíduos, é possível que as atividades de ensino suplementar estejam atuando como uma via de reforço das chances de sucesso educacional, profissional e social entre indivíduos que já contam com melhores condições de acessar posições escolares/universitárias, profissionais e sociais relativamente satisfatórias. Ou seja, essas atividades podem estar atuando como uma via de aumento de desigualdades no contexto brasileiro, se contrapondo a mecanismos que tenderiam a promover a diminuição das desigualdades, como a expansão da oferta do ensino público e gratuito, nos níveis básico e superior. Para compreender os efeitos da participação em atividades suplementares sobre os destinos educacionais, profissionais e sociais dos indivíduos, e os sentidos que diferentes tipos de atividades assumem no contexto brasileiro, são necessários novos estudos sobre o tema, baseados em outros tipos de abordagens de pesquisa.
Referências
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This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)
Notas
[1] Tratando das diferentes estratégias de reprodução possíveis (estratégias matrimoniais, estratégias de herança, estratégias econômicas e estratégias educativas, entre outras) em conferência na Universidade de Todai (Japão) realizada em 1989, Bourdieu (2011, p. 35-36, 2011) trata a participação em classes preparatórias para os concursos de ingresso no ensino superior (juku e yobi-ko) no contexto japonês como exemplo de estratégias educativas de reprodução, exemplo que encontra respaldo na pesquisa posteriormente empreendida por Stevenson e Baker (1992), que explora os fatores associados à participação dos estudantes japoneses nessas atividades e os efeitos dessas atividades sobre o desempenho dos estudantes nos exames de ingresso no ensino superior.
[2] Os dados utilizados são da POF mais recente até o momento de realização da pesquisa. Dados e questionários estão disponíveis em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/24786-pesquisa-de-orcamentos-familiares-2.html?=&t=microdados>. Acesso em: 22 out. 2023.
[3] De acordo com a publicação do IBGE que traz os primeiros resultados da POF 2017-2018, a pessoa de referência “Foi considerada aquela pessoa responsável por uma das seguintes despesas: aluguel, prestação do imóvel ou outras despesas de habitação (condomínio, imposto predial, serviços, taxa etc.). No caso em que nenhum morador satisfez a pelo menos uma das condições acima, a pessoa de referência foi aquela assim considerada pelos moradores da unidade de consumo. Se mais de uma pessoa foi identificada pelos moradores, estabeleceu-se a idade mais alta como critério de escolha.” (IBGE, 2019, p. 14)
[4] Para a estimativa dos valores foram utilizados os pacotes survey e srvyr, do software R, adequados para pesquisas amostrais complexas como a POF.
[5] O questionário da POF não detalha o conteúdo das aulas particulares. É possível, contudo, supor que as respostas a este item do questionário incluam aulas de reforço escolar (relativas a diferentes disciplinas).