“Além de viados, vocês dois acham que vão ser o que na vida?”: (re)conhecimento e representativade LGBTQIA+ na docência
“Besides being fagots, what do you two think you’re going to be in life?”: (re)cognition and representation of LGBTQIA+ in teaching
Además de maricones, ¿qué creen que van a ser en la vida?”: (re)conocimiento y representación de LGBTQIA+ en la docencia
Instituto Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
janivaldocordeiro@gmail.com
Recebido em 19 de setembro de 2024
Aprovado em 24 de abril de 2024
Publicado em 08 de junho de 2025
RESUMO
A partir dos estudos sobre gênero e sexualidade de Berenice Bento, Guacira Lopes Louro, Judith Butler e Michel Foucault e na concepção de corpo-território de Eduardo Miranda discute-se nesse artigo os movimentos de representação, representatividade e (re)conhecimento provocados e produzidos por professores/as LGBTQIA+ na Educação Básica e que, de alguma forma, (des)configuram imagens e apresentam outras narrativas do corpo LGBTQIA+ para os/as estudantes. Por meio da Entrevista Narrativa e da escrita de autorretratos, seis professores/as transviados/as do estado da Bahia relatam suas histórias de vida-formação-profissão dando foco aos movimentos de representação e representatividade de seus corpos nas instituições escolares e as reconfigurações de suas práticas diante de situações provocadas pelo gênero e sexualidade dissidentes. Os resultados apontam que esses docentes constroem suas identidades escolares atravessadas por sentimentos de medo, angústias e recuos, mas também que suas corporalidades (re)existem e funcionam como amparo para aqueles/as que se reconhecem nelas e habitam o corpo-território-LGBT+ na docência.
Palavras-chave: Educação Básica; Imagens e Narrativas; Reconhecimento, Representação e Representatividade LGBTQIA+.
ABSTRACT
Based on studies on gender and sexuality by Berenice Bento, Guacira Lopes Louro, Judith Butler and Michel Foucault, and on Eduardo Miranda's conception of body-territory, this article discusses the movements of representation, representativeness and (re)knowledge provoked and produced by LGBTQIA+ teachers in Basic Education and which, in some way, (dis)configure images and present other narratives of the LGBT+ body to students. Through the Narrative Interview and the writing of self-portraits, six queer teachers from the state of Bahia tell their life-training-profession stories, focusing on the movements of representation and representativeness of their bodies in school institutions and the reconfigurations of their practices in the face of situations caused by dissident gender and sexuality. The results indicate that LGBTQIA+ teachers construct their school identities crossed by feelings of fear, anguish and retreat, but also that their corporalities (re)exist and function as support for those who recognize themselves in them and inhabit the body-territory -LGBT+ in teaching.
Keywords: Basic Education; Images and Narratives; LGBTQIA+ Recognition, representativeness and Representation.
RESUMEN
A partir de estudios sobre género y sexualidad de Berenice Bento, Guacira Lopes Louro, Judith Butler y Michel Foucault y de la concepción de cuerpo-territorio de Eduardo Miranda, este artículo analiza los movimientos de representación, representatividad y (re)conocimiento provocados y producidos por LGBTQIA+. docentes de Educación Básica y que, de alguna manera, (des)configuran imágenes y presentan otras narrativas del cuerpo LGBT+ a los estudiantes. A través de la Entrevista Narrativa y la escritura de autorretratos, seis docentes queer del estado de Bahía cuentan sus historias de formación de vida-profesión, centrándose en los movimientos de representación y representatividad de sus cuerpos en las instituciones escolares y las reconfiguraciones de sus prácticas en ante situaciones provocadas por la disidencia de género y sexualidad. Los resultados indican que los docentes LGBTQIA+ construyen sus identidades escolares atravesadas por sentimientos de miedo, angustia y retraimiento, pero también que sus corporalidades (re)existen y funcionan como soporte para quienes se reconocen en ellas y habitan el cuerpo-territorio -LGBT+ en la enseñanza. .
Palabras clave: Educación Básica; Imágenes y Narrativas; Reconocimiento, Representación y Representatividad LGBTQIA+.
Introdução
[...] prescreve cada um no seu lugar, a cada um no seu corpo, a cada um sua doença e sua morte, a cada um seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, o do que lhe acontece (Foucault, 2013, p. 188).
No normal da paisagem, na determinação final do/a indivíduo/a, espera-se que o gênero preceda a existência do corpo sexuado, e a inteligibilidade passa a ser compreendida se ela completa a paisagem. Fora desse entendimento de constituição, a imagem é embaçada, desfocada, ilegitimada, suas narrativas completam o imaginário do vir a ser, da incompletude, do/a sujeito/a irrepresentável. Não se perspectiva outro cenário pensado de imagem ou narrativa, representação ou representatividade fora dos contextos de normalidade. Para Butler (2019, p. 18, grifos da autora), “os domínios da ‘representação’ política e linguística estabeleceram a priori o critério segundo o qual os próprios sujeitos são formados, com o resultado de a representação só se estender ao que pode ser reconhecido como sujeito”.
Nesse sentido, somente pode ser corpo de representação se estiver imerso na imagem produzida pelo regime cis heterossexista que forma sujeitos/as e os/as narram pelos únicos modos legitimados pelo dispositivo da sexualidade (Foucault, 2019). Tal dispositivo impede o reconhecimento, a representação e a representatividade de pessoas LGBTQIA+ pois elas escapam aos seus objetivos centrais de controle e governo. Uma das saídas, e talvez a mais recorrente, é a própria negação dos desejos e sentimentos dos/as sujeitos/as que buscam o conforto nos refúgios que uma suposta normalidade possa conceder, bem como na negação da imagem narrativa de si e à sombra da narrativa imagem da norma.
O que se espera é que o corpo-transviado[1] não se constitua em corpo-território[2], que não seja (re)posicionado como horizonte normativo, não protagonize histórias ou caso aconteça seja lembrado de sua condição abjeta. Nesse modelo, pessoas LGBTQIA+ são constantemente silenciadas em relação aos seus modos de vida, empurradas a se produzirem às margens e a depender do contexto, como na docência, são repelidos/as de compartilharem suas próprias identidades e histórias, como se não dispusessem de uma vida pessoal e afetiva dignas de serem contadas. Butler (2017, p. 82) nos lembra que “[...] a narração tem alguma relação propícia com a sobrevivência”, pois “ninguém pode viver em um mundo radicalmente não narrável ou sobreviver a uma vida radicalmente não narrável”. Diante disso, vale questionar: a quem é dado o direito de narrar a própria história? Quem se dignará a ouvi-las?
Delory- Momberger (2006, p. 361) acredita que “a prática de histórias de vida em formação fundamenta-se sobre a ideia de apropriação que o indivíduo faz de sua própria história ao realizar a narrativa de sua vida”. Com início no pensamento da autora, o objetivo nesse artigo é refletir acerca dos atravessamentos que constituem as identidades de professores/as transviados/as (LGBTQIA+) as apropriações que fazem no decorrer do seu processo de vida-formação-profissão, bem como capturar desses atravessamentos aqueles que remetem ao reconhecimento de si como corpo-território, ante às suas representações do corpo-transviado na docência e efeitos possíveis em razão de sua representatividade na produção de outros horizontes normativos. Esse texto, é recorte da pesquisa doutoral[3] CORPO-TERRITÓRIO-LGBT+: imagens e narrativas de professores/as transviados/as na Educação Básica e contou com a colaboração de sete docentes LGBTQIA+ atuantes na Educação Báscia do Estado da Bahia: Babafemi, Beta Queer e Eric (gays); Billy Kaplan (pan/bissexual); Cláudia[4] (trans); e Janaína (lésbica) que narraram as suas histórias de vida a partir da concessão de Entrevista Narrativa e na escrita de Autorretratos.
Nesse passo, saliento que não pretendo criar qualquer juízo de valor acerca de suas experiências, mas interpretá-las e compreendê-las como resultado do processo que constitui os/as sujeitos/as, atravessando-os/as de diversas formas e os entendimentos feitos a partir desse processo, nunca ilesos/as às normas impostas pelo sistema. Assim, compreendendo que nem todo corpo de representação constitui-se como corpo de representatividade e, na mesma lógica, nem mesmo o próprio (re)conhecimento do corpo-transviado na docência pode desembocar em acolhimentos ou no compartilhamento de experiências. Contudo, o fato de contarem as suas narrativas de vida, pode ser um indicativo de pausa para refletir sobre si mesmo/a e (re)avaliar suas práticas sobre o corpo-território do/a outro/a.
(Re)conhecimentos
Butler (2017, p. 49-50) revela que “as normas pelas quais busco me tornar reconhecível não são totalmente minhas: elas não nascem comigo; a temporalidade de seu surgimento não coincide com a temporalidade da minha vida”. Pode-se inferir, a partir da reflexão proposta pela autora que o (re)conhecimento, as representações e as representatividades estão inseridas em um modelo que normaliza as identidades, padroniza aqueles/as cujas imagens e narrativas podem ser visibilizadas e, dentro desse sistema, considera a cis heterossexualidade o horizonte normativo instituído como exemplo de vida, naturalizado cultural e biologicamente pela reiteração e reprodução de atos, comportamentos e performances dos corpos sexuados. Nesse modelo, institui a cis heterossexualidade como regime político (Curiel, 2015) e destitui fora dele as diferenças que (não) são minimamente reconhecidas e, em outras hipóteses, marginaliza ainda mais aquelas pessoas que não podem reivindicar a condição de sujeito/a.
No trecho a seguir, percebemos a ação da norma atuando sobre os corpos-transviados de dois alunos gays e sua reprodução por meio da fala do professor Eric.
Venha cá, o que tá posto, tá posto. Além de viados, vocês dois acham que vão ser o que na vida? Porque vão ser esses viadinhos fechativos, vem pra escola não querem estudar?! Você [diz o nome do aluno] inteligente o outro também, muito inteligente! Não querem estudar, querem bagunçar, querem ser vistos como que... Como a travesti de amanhã?” Aí tomaram aquele susto! Eles dois se entreolharam: ‘ah, não! [...] Não é isso que a gente quer...’
Mas hoje eu vejo que nessas comunidades onde a gente trabalha é, e na sociedade em si, o lugar do viado é muito predefinido pelo outro sabe? Tem que ser a pessoa vulgar e até, às vezes, para se defender acabam sendo uma pessoa vulgar, uma pessoa violenta. Acabam é... andando com travestis, se prostituindo cedo. Muitos..., pra se defender (Eric, professor cis gay, em Entrevista Narrativa, 2021, grifos meus).
No excerto, não ficou claro a intenção do docente ao fazer a comparação com a identidade travesti. Contudo, pareceu mostrar certo preconceito que talvez não seja de sua visão particular, mas de algo geral que marginaliza essas identidades, impulsionadas pela discriminação que impossibilita a essas existências ocuparem as escolas. Apesar de terem “garantidas” o recebimento e a permanência de/em uma educação digna que lhes assegurarem a condição de sujeitas, sabemos que as realidades são bem destoantes. Por outro lado, a representação docente e o reconhecimento junto aos estudantes gays proporcionou essa abertura de chamar a atenção de seus alunos de forma menos formal, talvez usando a linguagem que considera ser apropriada para ser entendida e, quem sabe, acometido por um sentimento de proteção a esses jovens, por também considerar o estigma e as condições de vida produzidas pelo sistema cis heteronormativo, que vulnerabiliza e precariza as vivências de pessoas trans.
De certa forma, o poder desse discurso é preocupante, visto que caberia a essa pessoa, investida de sua autoridade docente, disseminar o debate que compreende e respeita as subjetividades outras e suas dissidências também como algo que dá abertura para outras possibilidades existenciais. No entanto, o diálogo pode também dar abertura para o estigma, a marginalização e a (re)produção do abjeto. Ainda é preciso considerar a violência simbólica implícita nesse discurso que opera em uma perspectiva ambígua: na intenção de talvez proteger, maltrata, agride, segrega e exclui a identidade travesti. De outra forma, é mais uma vez preocupante, pois encontro similaridades na narrativa de vida da professora Cláudia, em que o afastamento de outras identidades LGBT e a não identificação com a bandeira são resultados da discriminação que enfrentara, inclusive de outros professores gays. Nesse sentido, a representação dela foi repelida e, por consequência, os movimentos de (re)conhecimento e representatividade ficam à deriva.
Eu tive que me distanciar muito das pessoas homossexuais. Eu tive que ser uma resistência na figura mulher. Em nenhum momento, eu nunca defendi a bandeira LGBTQIA+... eu nunca fui de movimentos. Então, assim, pra que eu pudesse sair bem nessa escola, eu tive que fazer meu papel Cláudia mulher, sem algum momento dizer que por trás existia a mulher trans. Então, assim, eu tive que tentar de todas as formas fazer isso pra poder ir... pra poder me desvincular da bandeira LGBT, pra poder me sobressair como Cláudia. Eu não tive essa aceitação, principalmente no interior, e principalmente de gays. Então, assim eu sempre vivi, meus relacionamentos [de amizade e convivência], são mais com mulheres [cis]. Eu me identifico muito com a amizade de mulheres. Eu me sinto muito bem com mulheres, as minhas amizades são mais voltadas a grupos femininos (Cláudia, professora trans heterossexual em Entrevista Narrativa, 2021).
Cláudia não foi aceita apenas por performatizar o feminino em suas corporalidades, mas pela representação estereotipada do gênero nos corpos sexuados que busca confirmar sua feminilidade, logo, é um corpo-contraste ao sistema e, assim, revira as verdades que a norma reconhece como natural e, consequentemente, desperta para as imagens e narrativas outras dentro da própria escola. Nesse contexto, teve sua existência ignorada, rechaçada, incompreendida, inclusive por aqueles/as com os quais compartilha processos de preconceito e discriminação similares. Para Odara (2020, p. 71), a existência subversiva perspectivada nesses corpos os (re)posicionam como ameaças explícitas ao sistema, sendo capturadas por ele e de onde é “[...] possível afirmar que estas pessoas carregam consigo, em seu próprio corpo, a sua própria bandeira de luta”.
A existência transviada de Cláudia provocou os movimentos outros na escola que a colocaram como sujeita fora da normalidade e, baseados nisso, criaram barreiras que impedem a sua representatividade. Com isso, sua luta é solitária, sua bandeira é seu corpo, sua vitória é a sua (re)existência nesse espaço. Os sistemas de opressão sobre ela funcionaram como (de)marcadores de (in)visibilidades nesse duplo movimento de conhecerem a sua existência, no entanto, não tratarem dela, preferiram invisibilizá-la, rejeitá-la por sua diferença, pela ousadia de atravessar a fronteira do gênero. Assim é comparada como aquela que representa o abjeto, o inumano, bem como pela hierarquização que a inferiorizou a ponto de um outro colega dizer que “não a aceitava como mulher!”. Na escola, ela é esse ponto de intersecção entre o dito e o não dito, localizada por sua representação de representatividade opaca, não pode ser um exemplo a ser seguido ao mesmo tempo em que apresenta outra possibilidade de horizonte normativo. Assim, se (re)posiciona “nem ao centro, nem à margem” (Gomes de Oliveira, 2020).
Desse modo, colocou-se nesse ponto em que a norma opera sua vida, reproduz dela as suas práticas discursivas, mantém distância do abjeto, e se posiciona nessa linha tênue, nesse ponto opaco que produz o movimento que a afasta da norma, mas trabalha segundo as suas regras. Suas imagens representativas, suas performances estavam lá, sendo impossíveis passarem despercebidas, pois como ela mesma afirma seu armário é de vidro! Estava constantemente representada pela imagem narrativa de si mesma e pelas narrativas que reconfiguram a sua imagem, ainda que não se (re)posicionasse afirmativamente por sua identidade e não abrisse espaços para o diálogo com alunos/as que busquem nela os motivos de representatividade.
Não, nunca aconteceu! Eu não dava esse espaço! Entendeu? Eu não deixava com que ele tivesse esse espaço pra falar. Se tentasse, se falasse alguma coisa eu meio que esquivava. Entendeu? Mais devido à questão do medo. O que acontece? A gente percebe que as pessoas acham que o meio onde existe, tanto na escola, quanto na criação de um filho, a criança vai se tornar gay porque ela vai ver uma referência em você. Então, eu tinha isso já, meio que algo na minha cabeça como algo que não podia (Cláudia, professora trans heterossexual em Entrevista Narrativa, 2021).
Nessa lógica, ao expor suas feridas e medos, Cláudia revelou um dado preocupante decorrente da existência do seu próprio corpo-território, ou seja, ao contestar o sistema exibiu as brechas da heterossexualidade compulsória que condiciona os corpos e discrimina a sua existência. Dessa maneira, movimenta-se introspectivamente para seu corpo-transviado como modelo representativo rejeitado pela sua dissidência e teme que suas palavras possam ser os motivos de (re)conhecimento. Nessa realidade, ela se aproximou daquelas identidades nas quais sua representação e representatividade foram reafirmadas, reconhecidas e acolhidas pela feminilidade circunscritas às suas experiências de amizades e convivências. Ademais, ao se impor, apropriou-se de sua própria história, de suas imagens e narrativas que constituem a sua identidade e se afastou daquelas outras que a rejeitaram como produtora de possibilidades ou pudesse ser considerada como aquela que ajudou a produzir o/a abjeto/a. “Quando agimos e falamos, não só nos revelamos, mas também agimos sobre os esquemas de inteligibilidade que determinam quem será o ser que fala, sujeitando-os à ruptura ou à revisão, consolidando suas normas ou contestando sua hegemonia” (Butler, 2017, p. 167).
Nesse ponto, retomo que não apenas a representação funciona como um dispositivo que (re)posiciona a norma, provoca outros sentidos para as imagens e narrativas dos corpos-transviados, mas como também, juntas, representação e representatividade sejam impulsionadoras dessas discussões, precisam agir sobre os esquemas de integibilidade, provocar as rupturas que revisam os/as sujeitos/as e criar movimentos importantes dentro da escola (e fora dela) na formação de outros/as sujeitos/as.
Eu me sinto [..] um pouco egoísta, mas, às vezes, eu tive um certo medo de aproximar daquele aluno [LBGTQIA+] e a própria família ou a própria escola dizer o seguinte ‘a professora Cláudia, ela foi uma das incentivadoras do meu filho’, e seria na verdade um acolhimento, de dar uma mão amiga ‘oh, estou aqui, estou pronta, o que que está acontecendo? Você precisa de alguma ajuda?’ Eu nunca fiz isso! (Cláudia, professora trans heterossexual em Entrevista Narrativa, 2021).
Cláudia foi afetada por aquela prescrição que coloca cada um/a no seu lugar, como menciona Foucault (2013). (Re)posicionada dentro da abjeção e incompletude manteve-se, dessa forma, no silêncio que habita suas corporalidades, sentindo a sensação panóptica de que observam seus passos, seus olhares, suas falas, suas aulas, suas performances, sua representação e sua representatividade, a ponto de a constituir como sujeita não narrável e não reconhecível por suas experiências, assim como um corpo-morto que vaga naquelas regiões sombrias da ontologia denunciadas por Butler (2002).
Na linguagem que articula a oposição a um começo não narrável reside o medo de que a ausência de narrativa represente uma ameaça à vida e um risco, se não a certeza, de certo tipo de morte, a morte de um sujeito que não pode e nunca poderá reaver de todo as condições de seu próprio surgimento (Butler, 2017, p.88).
Dessa forma, não pode se constituir também como sujeita de representatividade, não consegue, pois habita aquele lugar prescrito pelo sistema, não lhe foi dado o direito nem a condição de cidadania. A linguagem articulada ao redor de si criou as imagens e as narrativas de uma identidade subversiva, a qual ameaça e põe em risco a cis heteronormatividade e, com efeito, sua representatividade aconteceu pela morte do corpo em vida, sem ou com poucas condições de reaver a própria narrativa.
Louro (2014, p.106), ao escrever sobre as representações, explica que “não apenas são múltiplas, mas elas podem, também se transformar ou se contrapor. O que é importante notar é que nelas sempre estão implicados jogos de poder, melhor dizendo, elas estão sempre estreitamente ligadas ao poder”. Assim, estão submetidos/as, assujeitados/as a essas normas, às quais não podem estar isentas, nem se decidirem sem ser afetados/as por elas, mesmo que escolham, encolham ou obriguem a morte de suas identidades estão visivelmente provocando os (re)conhecimentos.
Para Butler (2017, p. 154), “[...] nossa capacidade de refletir sobre nós mesmos, de dizer a verdade sobre nós mesmos, é igualmente limitada por aquilo que o discurso, o regime, não pode conceder no âmbito do pronunciável. Diante disso, Cláudia embora concebesse suas narrativas no âmbito do impronunciável, Babafemi (a seguir) preferiu fazê-las nas zonas de invisibilidade, externalizaram aberturas para outras possibilidades e, por isso se constituem em representatividade. Bento (2021, p. 85-86, grifo da autora) sinaliza que “o ‘reconhecimento’, tanto na questão racial quanto na dimensão das homossexualidades e dos gêneros dissidentes, se dá por mecanismos de apagamento das diferenças e não pelo reconhecimento da diferença. Ou seja, acontece via assimilação”.
Acho que... essa minha docência como homem gay e preto... a depender da forma que eu faço a minha interlocução com meus alunos. Da forma como eu... a minha postura diante desses alunos, acho que eu contribuo bastante para que se tornem jovens... adultos melhores (Babafemi, professor cis gay em Autorretrato, 2021).
No seu autorretrato, Babafemi (de)marcou suas diferenças e as mostrou como produtora de (re)conhecimento e representatividade. Apontou a representação do seu corpo-transviado como corpo-território de possibilidades, que dialogam com seus/suas alunos/as, (re)posiciona a diferença e cria plausíveis redes de apoio. Nesse modelo, Pinho (2004, p. 107, grifos do autor) sinaliza que “o corpo negro é um Outro para o self do negro, na medida em que se constitui como representação alienada de si”, logo, nesse reflexo e interlocução “[...] ele está sendo reinventado, substituído, suplementado, na medida em que reinscrevemos nele os signos da historicidade e revertemos o estigma e a corporalidade compulsória a ele atada” (ib, p. 107).
É, acho que o meu corpo tem uma importância. A minha identidade no processo de formação desses alunos foi importante porque, por exemplo eu sempre ... o último fato que ocorreu foi de um garoto que ele, inclusive, recebia chacota de outros coleguinhas e eu não deixava. Eu chamava os coleguinhas e conversava com eles no particular e falava “não faça isso porque não é legal. Se ele não é igual a você, você não é igual a ele” e conversava sobre essa questão de que as pessoas são diferentes, de que ninguém pode fazer isso um com o outro... (Babafemi, professor cis gay em Entrevista Narrativa, 2021).
Babafemi pontuou suas ações para além das imagens e narrativas que performatizam sua existência, pois precisou se distanciar de sua particularidade para ajudar e intervir diversas vezes e corrigir atos de discriminação e preconceito contra seus/suas alunos/as homossexuais. Assim, logrou êxito “[...] ao tornar visível para o corpo-território as suas singularidades, as quais podem criar redes de coexistências com as singularidades das outras corporeidades existentes nos espaços educativos” (Miranda, 2020, p. 101). Nesse sentido, seu corpo-território é perspectivado como um porto seguro para as outras dissidências que se reconhecem nele, sendo acionado vez ou outra por conta da sexualidade representada também em sua autoridade docente.
Só pra você ter uma visão, ele [referindo-se ao aluno que cobrava dele explicações, quando usava roupas combinadas e perfumes cheirosos] tinha o jeito que a gente chama de feminino beeeem [fala com ênfase] ... Ele, por exemplo, levantava e dizia: ‘professor, eu quero ir ao toalete!’. Ele dizia com essas palavras e os coleguinhas diziam ‘o que é isso?’ Eu disse: ‘olha, foi assim que ele aprendeu a chamar e não tem problema, ele pode ir ao toalete.’ E ele saía rebolando, bem feliz, voltava e dizia ‘obrigado, professor!’ Mas aí com o decorrer do ano letivo, ele foi sentindo que aqueles outros garotos que estavam incumbidos de... meio que é... bloquear aquilo, sabe? Meio de debochar, aí ele começou realmente a me fazer indagações para que eu dissesse e assim reforçasse isso. E eu fiz... isso, mas eu faço no particular. Na questão, por exemplo, das roupas quando ele me indagava era no particular. E eu dizia no particular. A gente não tecia essas conversas diante do restante da classe. Eu só chamava a atenção dos garotos no geral quando era uma coisa muito gritante, tipo falar pra todo mundo coisas sobre ele. Eu dizia ‘olhe não fale isso porque a gente vai ter que resolver. Você tá errado!’ (Babafemi, professor cis gay em Entrevista Narrativa, 2021).
Infere-se da história contada que o (re)conhecimento do aluno às performatividades de Babafemi e ao seu corpo-transviado foram motivadoras para encontrar abrigo em quem lhe era semelhante via assimilação dos seus apagamentos como corpo-território, bem como buscando proteção daquele que, para ti, é representatividade. Embora o professor fosse um aliado com quem o aluno podia compartilhar suas dúvidas e defesas, observa-se que as conversas ainda permaneciam na clandestinidade, fadadas ao mutismo como espera a norma. Assim, reciprocamente, Babafemi via essas e tantas outras experiências se repetirem como um ciclo ininterrupto produtor de bullying e de homofobia, porque entende esses atravessamentos como constituintes de sua própria pele, ou pelas trocas de pele que foi obrigado a fazer. Diante disso, (re)posiciona-se por meio da (re)apropriação de sua história de vida, replicada nas imagens e narrativas de outra vida, como uma reencarnação “[...] de um poder que não só se furta a se exercer diretamente sobre os corpos, mas se exala e se reforça por suas manifestações físicas” (Foucault, 2013, p. 56) pelas corporalidades dissidentes e performances inadequadas dos corpos sexuados e que requerem o controle do sistema, entretanto, também a (re)existência revelada por meio dele.
No trecho a seguir, Beta Queer expõe suas angústias de quando era atormentado na época da escola, e reflete sobre as suas ações, imagens e narrativas de (re)conhecimento, representação e representatividade docente.
Acho que meu medo maior de perguntarem em relação a mim era perceber que aquilo que aconteceu comigo na infância acontecesse com outro aluno. Porque eu sempre ficava, eu não vou saber o que fazer, não vou saber o que fazer porque quando eu estive nesse lugar foi muito doloroso pra mim. E aí eu nunca tive um professor ou professora pra dizer... pra falar sobre ... me ajudar, ou me abraçar nesse momento. Era sempre eu, me, myself, mine. Era eu, eu, eu e eu mesmo. E eu sempre ficava muito... desejando, procurando alguém pra me ajudar nessa coisa que acontecia na escola e que teoricamente era o professor é... quem tá lá e deveria intervir nessas situações, mas nunca houve essa intervenção. Eu sempre pensava se acontecer comigo eu preciso intervir, mas eu não sei como e se eu consigo intervir. Porque se acontecer eu vou rememorar muitas coisas que foram dolorosas pra mim e que de alguma forma eu não soube é... lidar totalmente ainda 100% ainda (Beta Queer, professor cis gay em Entrevista Narrativa, 2021).
Do lugar onde habita Beta Queer, o medo de que sua sexualidade fosse questionada por seus/suas alunos/as viria acompanhado do temor de reviver coisas que foram muito dolorosas para ele durante seu período de estudante e, por conta disso, previa que poderia não saber agir diante do ciclo ininterrupto de violência que surge naturalmente contra os corpos-transviados. Como podemos observar, Beta Queer lutou sozinho, sem apoio, sem defesa das agressões sofridas ocasionadas pelos atravessamentos advindos não apenas da sexualidade transviada, mas das performances que o posicionam em um lugar outro da masculinidade, produzindo traumas que reviveram feridas e (de)marcaram a condição de abjeto do próprio corpo-território. “Paradoxalmente, esses sujeitos ‘marginalizados’ continuam necessários, pois servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam” (Louro, 2018, p. 61, grifos da autora). Embora não tenha mencionado, é possível que, para além de não encontrar intercessão e acolhimento entre os/as professores/as, o sistema o tenha ignorado ou vinculado a ele a culpabilidade de não ser um sujeito normal, pela necessidade de demarcar e enaltecer os contornos daqueles/as que realmente importam. Em seu autorretrato, Beta Queer revela atenção aos movimentos que transcendem as suas aulas e busca fazer o que não fizeram por ele enquanto aluno.
A professora chamou meu nome, respondi. “Viado!”, escutei alguém atrás de mim cochichar. Passei o dia inteiro, a semana inteira, o mês inteiro, o ano inteiro neste ritual e tentando entender o apelido.
No ano seguinte, como uma erva daninha, meu apelido se multiplicou: viado era para o início da aula; bicha para o intervalo; e baitola para hora de ir embora. E o baitola ia embora triste e frustrado por ser aquilo que não devia e que não havia escolhido. “Por que eu sou assim?”. “Será que tem cura?”. “Deus deve estar me castigando agora mesmo.”. “Eu sou um pecado?” – e por entre essas mil perguntas e reflexões, eu tentei caminhar como se devia, tentei segurar minha mochila como se devia, tentei me coçar como se devia, tentei ser como se devia. Eu nunca consegui ser como se devia – pra eles.
Em casa, eu era só uma criança brincalhona e dedicada aos estudos. Na escola, eu era pregado à cruz e rogava para que qualquer professor ou professora pudesse intervir, pudesse me dizer uma solução, pudesse me mostrar que o problema não era comigo. Eu nunca tive retorno nas minhas intercessões, que ecoavam até os domingos na igreja, onde eu só fortalecia minha semelhança a Judas: traidor.
Hoje, sou eu quem faz a chamada na sala de aula. E me atento. Me atento às ervas daninhas, mesmo que as minhas ainda existam em quantidade controlada. Mas eu me atento. Me atento às cruzes esperando pelas próximas vítimas, me atento às intercessões, me atento ao caminhar entre os corredores, me atento aos gritos silenciosos. Me atento a Judas [...] (Beta Queer, professor cis gay em Autorretrato, 2021).
O autorretrato de Beta Queer descortinou as imagens e narrativas que produziram o seu corpo-território e junto com ele as angústias, os conflitos, atravessamentos, mas também o olhar atento ao/a outro/a que se forma a partir da vida constituída na abjeção e negação. Nesse contexto, é constituído “[...] mediante normas que, quando repetidas, produzem e deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos” (Butler, 2018, p. 17) e como a própria autora defende, são capazes de estabelecer ou desestabelecer o/a outro/a como sujeito reconhecível.
Assim, trocam-se os termos, desloca-os, e Beta Queer é reposicionado - sua vida inteira - em busca de entender os significados que estariam intrínsecos às classificações não reivindicadas, mas atribuídas a ele. Entendia que era diferente, no entanto, ser classificado como homossexual não foi uma necessidade sua, mas da norma, ou seja, ser a bicha, o viado, o estranho que tantas e tantas vezes foi posto em pauta, categorizado, fixado, assentado em roteiros de vidas marcados/as pela não vida e por essências e naturezas requeridas convenientemente.
Nessa escrita, Beta Queer mostrou a (re)apropriação de sua história também similar à de tantas outras crianças transviadas que (não) encontram apoio - mas não com certeza - de outros/as professores/as transviados/as, quiçá como fez/faz Babafemi, na clandestinidade, nos sussurros, ou publicamente em atitudes extremas, como agiu Eric.
O seu autorretrato revela os atravessamentos ao seu corpo-transviado e as torturas e homofobias, as quais forçosamente obrigou-se a naturalizar, resultado de um processo no qual não encontrou intercessores/as que pudessem ajudá-lo em suas demandas identitárias, menos ainda em seu (re)conhecimento como corpo-território, forçando a se constituir como um traidor em diversos sentidos, fabricando um outro corpo-transviado dentro dos seus próprios transvios. Nesse contexto, Beta Queer deixou, ou pelo menos tentou deixar de ser e transparecer, aquilo que brota de sua natureza para se adequar aos modos de vida e performances convenientemente cis heteronormativas. “Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporado por meninos e meninas, tornam-se parte de seus corpos” (Louro, 2014, p. 65, grifos da autora) e, desse modo, produz sua identidade incorporada, reencarnada, deslocado pelas normas e regras que eles/elas (as normas) definiram como certos.
Beta Queer carrega consigo essas imagens e narrativas que o diferem e, talvez por isso, perceba no/na outro/a o pedido de socorro não ouvido na época em que era atacado, colocando-se, nesses contextos, no lugar desse/a outro/a também da diferença e se atentando aos possíveis atos de LGBTfobia que podem surgir durante suas aulas, ressignificando sua identidade pessoal docente e suas práticas em sala de aula. Nesse sentido, o movimento de (re)posicionar o seu corpo-território provoca outros movimentos de representação e representatividade e, com isso,
[...] propicia ao indivíduo entender o que está ao seu redor a partir do seu próprio corpo, de si mesmo, sua posse sobre o seu corpo, assim como uma territorialidade em constante movimento que para onde se desloca carrega consigo toda a bagagem cultural construída ao longo das suas trajetórias (Miranda, 2014, p. 69-70).
Com efeito, (re)existir não é uma opção para os corpos-transviados, é uma necessidade. Poder ou conseguir falar a respeito desses atravessamentos que acometem o seu corpo-território significa dizer que esse corpo cria ressignificações sobre si, entendeu o que está ao seu redor, tomou posse do próprio corpo, demarca sua territorialidade e, entre outras coisas, indica a abertura de caminhos. Desse modo, ao retornarem aos espaços em que suas existências eram rechaçadas como alunos/as, (re)posicionam suas corporalidades. “Essa partilha entre os corpos-territórios é de extrema relevância ao passo que, ao permitir a alteridade, acentua-se a necessidade de trazer para a evidenciação as diversas experiências corporais, o campo das possibilidades indetermináveis” (Miranda, 2020, p. 73), as quais, ao circularem pela escola, naturalizam as diversas expressões do gênero e da sexualidade. Billy Kaplan também compreende dessa forma e partilha sua identidade sexual com seus/suas alunos/as o que, segundo ele, possibilitou aproximações e amizades, principalmente de estudantes LGBTQIA+.
Desde o momento que eu entrei no colégio e assim... não foi uma questão esconder isso... aqui em Salvador, não! Eu sou de Minas Gerais, não sou baiano. Lá na minha cidade natal já é outra história.
[...] Então, desde o momento que eu entrei na escola, nunca passou pela minha cabeça não falar sobre a minha identidade (Billy Kaplan, professor bi/pansexual em Entrevista Narrativa, 2021).
A representação do corpo-transviado de Billy vai além da sua identificação como homem bi/pansexual, visto que também por meio de sua estética demonstra sua inconformidade na imposição dos estereótipos do gênero e da mesmice nas imagens narrativas dos corpos. O (re)conhecimento e aproximação de seus/suas alunos/as ao seu corpo-território acontecem não apenas pelas aberturas e temas como gênero e sexualidade trazidos em suas aulas, nem pela representatividade de suas práticas discursivas que normalizam a diferença, mas também pelo desprendimento apresentado visualmente em sua estética corporal por suas tatuagens mais visíveis e pelas unhas pintadas em tons fortes (quando concedeu a Entrevista Narrativa), apontando que “[...] só podemos reconhecer e ser reconhecidos sob a condição de sermos desorientados por algo que não somos, sob a condição de experimentarmos uma descentralização e ‘fracassar’ na tentativa de alcançar nossa identidade pessoal (Butler, 2017, p. 60).
O reconhecimento de nossas identidades requer que outros modelos além dos hegemônicos sejam visibilizados, naturalizados, “normalizados”, estranhados, para que esses estranhamentos, visibilidades e desorientações criem os entendimentos acerca das diferenças. Nesse contexto, os estranhamentos derivados do corpo-território de Billy são provocadores da norma e geram aproximações e afastamentos. Assim, seu próprio corpo-transviado representa a inconformidade e desestabiliza o sistema. Em suas aulas, temas que visibilizam a diferença e questionam os regimes de verdade são recorrentes. O diálogo abaixo ocorreu com uma aluna (após uma aula em que depressão e ansiedade eram debatidos) que o procurou pedindo informações sobre os efeitos da medicação. Após as orientações de procurar seu médico,
ela falou: “é que também tem a questão da sexualidade, mas eu também não entendi isso bem na minha cabeça, então, primeiro eu quero refletir, porque eu nem sei direito o que falar, mas aí quando eu souber direito, eu quero falar com o senhor, pode ser?” Eu disse “claro, claro, pode vir!” E aí, ela quer entender também o local que ela se encaixa e tal. E isso já aconteceu assim... se eu fosse contar... pelo menos umas 15, 20 vezes desde que eu entrei no colégio, com alunos diferentes, de irem me procurar para tentar se entender... “sou gay, sou bi, sou lésbica, tá certo eu ser assim? Tá errado eu ser assim?” Parece que eles querem o meu aval. [...] Então, esses limites eu tô aprendendo a colocar agora... porque eu dou meu WhatsApp, eu recebo mensagens à noite... de madrugada... eu recebo mensagem no final de semana. E, às vezes, são coisas muito pesadas: “Professor, eu tô perdendo a vontade de existir! Eu não tô vendo mais sentido na vida! Eu tô pensando em me matar!” “Eu tô pensando em fugir de casa!” é... “o meu namorado foi agressivo comigo!” “Eu sofri isso, eu sofri aquilo!” Então, eu recebo isso diariamente e isso vai pesando demais no meu corpo e eu tive que levar isso para a terapia porque eu não tava aguentando mais viver com isso. E, ao mesmo tempo, eu não conseguiria fechar a porta para eles e falar “não... agora a gente não vai ter mais essa amizade!” Eu não consigo (Billy Kaplan, professor bi/pansexual em Entrevista Narrativa, 2021).
A representatividade de Billy reverbera em movimentos que auxiliam os/as seus/suas alunos/as nos conflitos da identidade. Sua presença, disponibilizada também por meio de meios eletrônicos, funcionam como porto seguro para que dúvidas possam ser acolhidas e conflitos possam ser minimizados com base em suas experiências docentes e também de seu corpo-transviado. Suas imagens e narrativas na escola (e fora dela) estão expostas e dispostas a encontrar as imagens e narrativas dos outros/as, ficando vulneráveis às desterritorializações de suas capacidades conclusivas e promovem a humanização do/a outro/a (Miranda, 2020).
[...] o diálogo faz parte do encontro dos corpos e estes potencializam os atravessamentos das experiências, o encontro com a bagagem existencial do outro e ao mesmo tempo reforça que somos seres da incompletude cultural, portanto, dotados de lacunas que podem ser preenchidas a partir da história de vida dos sujeitos que cotidianamente cruzam as nossas trajetórias (Miranda, 2020, p. 110).
Ao cruzarem com Billy, sua representação e representatividade criam os (re)conhecimentos que se expandem também pelos corredores, pela sala de professores/as, pátio e outros espaços e tempos, e podem eventualmente preencher algumas lacunas das histórias de vidas e experiências que florescem no chão da escola. Os/As seus/suas alunos/as dissidentes se (re)conhecem naquele corpo-transviado como um corpo-território que representa possibilidades, pertencimentos e (re)existências.
Billy carrega em si a bagagem existencial do/a outro/a a ponto de sentir o seu peso, o qual provoca nele outros conflitos. Sua representação e representatividade, nesse aspecto, são diferenciais para apontar outros caminhos para os corpos-transviados. O seu relato revela que os conflitos vivenciados por ele quando adolescente se repetem nos corpos-transviados de seus/suas alunos/as, e reforça a necessidade de inserir as temáticas de gênero e sexualidade nos currículos e nas práticas pedagógicas, bem como a desnaturalização e a desnormalização das identidades, ou, em outro movimento, a naturalização e normalização das identidades dissidentes.
[...] toda minha constituição social e pessoal permeia cada relação educacional estabelecida no espaço escolar. Ali sou professor, sou ouvinte, sou rebelde, sou motivador, sou tensionador, sou confidente, sou exemplo, sou disruptivo, sou amparo. E aqueles que estão ali são minhas fontes de esperança e aprendizado (Billy Kaplan, professor bi/pansexual em Autorretrato, 2021).
Ao contrário de Billy, Janaína foi constituindo o seu (re)conhecimento nas corporalidades do/a outro/a, na defesa do direito do/a outro/a manifestar as suas existências de acordo com os pertencimentos próprios. Assim constituía também a representatividade em suas práticas discursivas, imperceptíveis na representação do seu corpo-transviado, no entanto, atenta às imagens e às narrativas que poderiam brotar dos seus (re)posicionamentos.
Eu sou uma mulher muitíssimo feminina, e amo ser feminina, então, é difícil alguém perceber através da minha performance corporal, mas eu trabalho nesta escola em especial há nove anos e as pessoas começaram a me cobrar a presença de um namorado, eu dizia:” sou solteira, mas não sou sozinha”! Usava frequentemente essa fala. Quando percebia que minha defesa sobre as questões LGBTQI+ estavam muito evidentes, eu sempre justificava para as pessoas que eu sabia o que meu sobrinho passou e não falava de mim (Janaína, professora cis lésbica em Autorretrato, 2021).
No excerto, Janaína mostrou sua (in)quietação de que seu discurso em defesa de pautas LGBTQIA+ poderia impactar o seu corpo-território, precisando justificar-se e justificar porque razão se entregava com bastante evidência a problemas que suas performances diziam que não eram suas. Assim, como em outras vezes, Janaína abdicou do seu existir a experiência de corpo-território e indicou o/a outro/a como forma de se eximir da inconformidade de sua orientação sexual e, a partir daí, desvincular-se das imagens e narrativas que rondam os corpos-transviados dentro e fora da escola, ainda que o seu (re)conhecimento com estas corporalidades estejam cada vez mais próximos. “O reconhecimento de que existe um ‘outro’ que me constitui implica o reconhecimento de que somos constituídos na e pela diferença” (Bento, 2017b, p. 202, grifos da autora). Nesse processo, Janaína foi se descontruindo, entendendo-se, constituindo-se em pertencimentos outros, reconhecendo-se como sujeita transviada, inquietada pelos atravessamentos que a (re)posicionam e, em vez de se encontrar apenas nas narrativas do/a outro/a, passar a vivê-las também como parte de si, talvez absorvendo a ideia de que “inquietar a nossa identidade docente é algo fundamental para continuar a busca pelo forjar do nosso corpo-território” (Miranda, 2020, p. 87). Assim, iniciou sua trajetória de (re)existência dentro da própria família e com os/as amigos/as mais íntimos/as.
Tomar a decisão foi, por um lado, resultado da autoaceitação e, por outro, uma decisão política, pois eu entendi no processo que eu estaria falando para as pessoas que eu amava sobre quem eu era, poderia viver em todos os lugares, inclusive no trabalho, o lugar em que eu fico a maior parte da minha vida, pois é o lugar que mais frequento e com a maior carga horária, pois nem na minha casa fico acordada o tempo que fico na escola. Então, era extremamente relevante, pois é sobre quem sou e preciso ser eu mesma no meu trabalho, mesmo que me cubra da persona da professora, mas também dizer sobre mim era muito mais agregador que o contrário, era abraçar os meus, as minhas, embora hoje não saiba exatamente como me definir, posso dizer que sei quem sou, que subjetividade mora na minha alma e ela não é mais hetero (Janaína, professora cis lésbica em Autorretrato, 2021).
[...]
Aí já é uma etapa que não é só eu, não tem mais a ver só comigo, sabe? Com meus dilemas pessoais, tem a ver com o coletivo que eu faço parte. Tem a ver com quem eu represento, com quem eu sou de verdade, sabe? E quem eu sou, não é mais aquela menina hétero, tipo “boa praça” [fez aspas com os dedos] que é solidária a todos os grupos, e que tá aberta, abraça, defende, posso levantar bandeira, como... simpatizando com as pautas dos outros grupos. Não! Agora aquela menina, hetero, Janaína, que não se diz que é hetero, que é homo, diz que é amar, é ser feliz e que reconhece o corpo de outras pessoas, né? (Janaína, professora cis lésbica em Entrevista Narrativa, 2021).
Nesses trechos, Janaína ressaltou o seu envolvimento com a causa LGBTQIA+, agora movida pelas inquietações e pelos pertencimentos próprios/as do seu corpo-território e começou a refletir sobre o/a outro/a, na representação e representatividade brotadas do seu corpo-transviado na docência e nas imagens e narrativas que podem reverberar em seu ato político de (re)conhecimento. Para Miranda (2020, p. 85), “repensar essa conduta de silenciamento e naturalização dos privilégios sociais é reestabelecer o posicionamento político do educador na construção do outro, dos educandos”. Assim, Janaína destacou de si o privilégio de ter suas performances inteligíveis com seu gênero, (re)posicionou o seu corpo-transviado e principiou, se não a falar de si, a (re)existir nesse processo, a protagonizar aquelas histórias encarnadas no/a outro/a e, entre outras coisas, a evidenciar sua própria identidade. Nesse contexto, “[...] a identidade do sujeito é imediatamente afetada como sujeito do discurso, pois se sabe que a identidade resulta de processos de identificação segundo os quais o sujeito deve se inscrever em uma formação discursiva a fim de que suas palavras tenham sentido” (Rios, 2008, p. 163-164).
Considerações finais
Diante do exposto, percebe-se que professores/as transviados/as, em suas identidades diversas, lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans etc. são referências públicas importantes e carregam em si representações sociais de legitimação das possibilidades de viver gênero e sexualidade, além de demonstrar a (re)existência desses corpos nesses espaços, vitais para a representatividade na formação de outros/as cidadãos/as. Foucault (2019, p. 360) explica que “para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de ‘baixo e se distribua estrategicamente”. A presença de professores/as transviados/as inquietam essas formas de poder dominante, reorganizam, reinventam a lógica criada pela e para a homogeneização e, além de tudo, fazem-se representar, enunciam-se além do corpo-território e das imagens e narrativas que historicamente vigiam e condenam essas identidades (des)construindo horizontes normativos outros.
Referências
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Notes
[1] A ideia de corpo-transviado está na tradução do queer para o contexto brasileiro proposto por Berenice Bento (2017a, p. 249, grifos da autora) em que “ser um transviado no Brasil pode ser ‘uma bicha louca’, ‘um viado’, ‘um travesti’, ‘um traveco’, ‘um sapatão’”.
[2] “[…] corpo-território é um texto vivo, um texto-corpo que narra as histórias e as experiências que o atravessa” (MIRANDA, 2020, p. 25).
[3] A referente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (parecer nº 4.565.257) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e seus/suas colaboradores/as assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido autorizando a análise e divulgação de suas narrativas.
[4] Somente Cláudia solicitou que seu próprio nome fosse mantido. Todos os outros nomes são fictícios e adotados pelos/as próprios/as colaboradores/as.