Aproximações entre o pensamento freiriano e a psicanálise freudiana em teses e dissertações
Approximations between freirian thought and freudian psychoanalysis in theses and dissertations
Aproximaciones entre el pensamiento freiriano y el psicoanálisis freudiano en tesis y disertaciones
Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
wxalmeida89@gmail.com
Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
lourivalfaed@gmail.com
Recebido em 20 de agosto de 2024
Aprovado em 02 de outubro de 2024
Publicado em 11 de abril de 2025
RESUMO
O presente trabalho é uma revisão integrativa que examinou a produção de teses e dissertações sobre a intersecção entre o pensamento pedagógico de Paulo Freire e a psicanálise de Sigmund Freud, constituindo-se parte de uma tese de doutorado de mesmo escopo, porém mais abrangente, desenvolvida pelo primeiro autor e orientada pelo segundo. A pesquisa ocorreu no primeiro semestre de 2023 na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), usando os descritores “Freire”, “Freud” e “psicanálise”. Dentre os documentos encontrados, foram selecionados três trabalhos brasileiros e duas teses estadunidenses que estavam catalogadas na mesma base. A análise revelou pontos de aproximação entre os autores: a relação entre o par sadismo/masoquismo nos processos de colonização das mentes e espíritos descritos por Freire; a relevância do conceito psicanalítico de “transferência” na relação professor-aluno; a importância e a desejabilidade dos afetos e do desejo de saber na aprendizagem afetiva e engajada. A pesquisa evidencia uma ressonância entre os escritos e conceitos de Freire, majoritariamente os constantes da Pedagogia do Oprimido e da Pedagogia da Autonomia, e alguns conceitos psicanalíticos freudianos.
Palavras-chave: Freire; Freud; Psicanálise.
ABSTRACT
The present study is an integrative review that examined the production of theses and dissertations on the intersection between Paulo Freire's pedagogical thought and Sigmund Freud's psychoanalysis, constituting part of a doctoral thesis of the same scope, but more comprehensive, developed by the first author and supervised by the second. The research was conducted in the first semester of 2023 using the Brazilian Digital Library of Theses and Dissertations (BDTD) with the descriptors “Freire,” “Freud,” and “psychoanalysis.” Among the documents found, three Brazilian works and two American theses cataloged in the same database were selected. The analysis revealed points of convergence between the authors: the relationship between the sadism/masochism pair in the processes of colonization of minds and spirits described by Freire; the relevance of the psychoanalytic concept of “transference” in the teacher-student relationship; and the importance and desirability of emotions and the desire for knowledge in affective and engaged learning. The research highlights a resonance between Freire's writings and concepts, mainly those contained in the Pedagogy of the Oppressed and the Pedagogy of Autonomy, and some Freudian psychoanalytic concepts.
Keywords: Freire; Freud; Psychoanalysis.
RESUMEN
El presente trabajo es una revisión integradora que examinó la producción de tesis y disertaciones sobre la intersección entre el pensamiento pedagógico de Paulo Freire y el psicoanálisis de Sigmund Freud, formando parte de una tesis doctoral de igual alcance, pero más integral, desarrollada por el primer autor y guiada por el segundo. La investigación se llevó a cabo en el primer semestre de 2023 en la Biblioteca Digital Brasileña de Tesis y Disertaciones (BDTD), utilizando los descriptores “Freire”, “Freud” y “psicoanálisis”. Entre los documentos encontrados, se seleccionaron tres trabajos brasileños y dos tesis estadounidenses que estaban catalogadas en la misma base de datos. El análisis reveló puntos de convergencia entre los autores: la relación entre el par sadismo/masoquismo en los procesos de colonización de las mentes y espíritus descritos por Freire; la relevancia del concepto psicoanalítico de “transferencia” en la relación profesor-estudiante; y la importancia y deseabilidad de los afectos y del deseo de saber en el aprendizaje afectivo y comprometido. La investigación destaca una resonancia entre los escritos y conceptos de Freire, principalmente los contenidos en la Pedagogía del Oprimido y la Pedagogía de la Autonomía, y algunos conceptos psicoanalíticos freudianos.
Palabras clave: Freire; Freud; Psicoanálisis.
Breve introdução aos autores em tela
No ensaio Análise terminável e interminável, publicado originalmente em 1937 pelo pai da psicanálise, o médico austríaco Sigmund Freud (2018), já no crepúsculo de sua vida e de sua produtiva carreira intelectual, elencou três profissões que considerava "impossíveis": governar, psicanalisar e educar. Segundo ele, essas profissões eram impossíveis porque seus resultados eram imprevisíveis de antemão, sem se ter certeza alguma de sucesso ao se lançar à empreitada. Assim, a palavra impossível não denota, nesse contexto, impraticabilidade, mas destaca a complexidade, as enormes demandas e as responsabilidades impostas aos profissionais que as exercem.
Para Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, educar demandava evocar diversos sentimentos, como amor, coragem, esperança e amizade. O grande educador brasileiro sempre defendeu um sonho utópico de educação. À semelhança de Freud, para ele o "impossível" não era um obstáculo intransponível, mas sim uma bússola para a difícil jornada. Nas belas palavras do cineasta argentino Fernando Birri, citado pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano (1993), a utopia serve justamente para que não deixemos de caminhar. Freire via o processo educativo como historicamente inacabado e inerentemente incompleto, assim como os próprios seres humanos.
Freire também preconizava que a educação não pode ser padronizada nem verticalizada, muito menos esvaziada de significado, que é o que acontece quando ela se resume a conteúdos e fórmulas a serem mecanicamente memorizados, a sua denúncia da “educação bancária” em sua obra mais famosa, Pedagogia do oprimido (Freire, 2022b). A educação, para Freire, é processo que se refaz a cada nova vez que se ensina e que se aprende: cada oportunidade de ensinar é – além de oportunidade de também aprender – chance de repensar, refletir e refazer o próprio ato pedagógico.
Freire e Freud tinham concepções de mundo divergentes e experiências de vida distintas. Enquanto o brasileiro professava a esperança como verbo – esperançar – em seus escritos, o austríaco já era mais fatalista e pragmático. Além de personalidades provavelmente muito distintas e da separação por enorme distância geográfica, ambos também se separam no tempo. Freud nasceu no século XIX, em 1856, e já era um homem de meia idade quando da passagem para o século XX, virada temporal atravessada pela publicação de A interpretação dos sonhos, em 1900, considerada a obra inaugural do campo de conhecimento que viria a ser conhecido como “psicanálise”. Já Paulo Freire nasceu em 1921 e faleceu em 1997 e sua obra se inicia muito depois de Freud haver falecido, em 1939.
Embora singulares e aparentemente nada convergentes, a vida dos dois é marcada pelo preconceito e pela perseguição. Freud era judeu: testemunhou em primeira mão a ascensão do antissemitismo na Europa e se viu no meio do olho do furacão das duas Grandes Guerras, nas quais seus filhos, netos e familiares tiveram de lutar. Freire era nordestino de orientação política marcadamente esquerdista, teve uma infância com limitação de recursos, foi perseguido pela ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) e precisou se exilar de sua amada terra natal por longos anos, nos quais continuou trabalhando em sua obra.
Embora distantes geográfica, temporal e socialmente, esta revisão integrativa busca estabelecer um diálogo entre estes dois renomados pensadores de diferentes campos do conhecimento. A leitura de Paulo Freire revela algumas referências à psicanálise, citações de autores dessa área e a apropriação ocasional de conceitos psicanalíticos. Esta tentativa de aproximação entre o pensamento de Freire e a psicanálise nos compeliu a investigar se esses dois grandes pensadores já foram comparados ou conectados anteriormente em outros trabalhos de mestrado e/ou doutorado.
Procuramos respeitar e sempre expressar as distâncias geográficas, cronológicas e políticas de ambos os autores; fatores que certamente afetam as subjetividades que sub-repticiamente transparecem em suas formulações. Contudo, conforme dissecaremos nas próximas seções, as afinidades entre ambos são possíveis e eletivas.
Da pesquisa e seus entraves
A opção desta pesquisa por teses e dissertações encontradas na Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) se dá como um movimento natural de um continuum de pesquisa sobre o tema de pesquisa doutoral dos autores; o objetivo aqui é um levantamento preliminar de fonte acadêmicas sobre as possíveis leituras psicanalíticas que Paulo Freire fez e como elas influenciaram seu pensamento e aparecem em seus escritos. Já há um primeiro trabalho de revisão integrativa, que olha para a produção sobre essa possível intersecção em periódicos (Almeida e Martins Filho, 2024). Agora nos voltamos para trabalhos de maior vulto para corroborar (ou refutar) os achados desse primeiro trabalho.
A pesquisa foi realizada em junho de 2023 na BDTD com os descritores “freire” e “freud” e, posteriormente, “freire” e “psicanálise”. Não houve definição de um recorte temporal, optando por recuperarmos todos os documentos possivelmente registrados, uma vez que a pesquisa anterior em bases de periódicos havia nos mostrado que existe pouca pesquisa acerca dos dois autores em (tentativa de) diálogo.
Centenas de documentos foram recuperados, muito em parte devido às idiossincrasias já reveladas na pesquisa para artigo já citada anteriormente, sendo o mais notório o fato do sobrenome “Freire” ser relativamente comum no Brasil, e a busca retornou centenas de documentos que foram escritos ou orientados por alguém de sobrenome Freire, ou mesmo trabalhos que citam outros autores de sobrenome Freire que não o Patrono da Educação Brasileira.
Após esta triagem inicial, excluíram-se os trabalhos que não arrolaram os dois autores em suas listas de referências. Uma nova triagem feita pela leitura dos resumos e seções introdutórias afunilou o número de trabalhos para três. Embora suficiente de um ponto de vista qualitativo, acabamos adicionando mais duas teses em inglês, de universidades estadunidenses, e que haviam sido recuperadas não nesta base, mas sim no Portal de Periódicos da CAPES, na pesquisa que citei que nós autores deste realizamos previamente (Almeida e Martins Filho, 2024). Embora não façam parte dos achados da base eleita para este trabalho, ambas possuem convergência direta com a temática de pesquisa e expande um corpo diminuto de análise, ao que optamos por incluí-las.
Assim, o corpus analítico do trabalho é constituído por cinco trabalhos, apresentados no quadro a seguir:
Quadro 1. Trabalhos analisados
|
Autor(a) |
Título |
Tipo |
Ano |
|
ABBADE, Rosane Carvalho da Silveira |
Desejo e Saber: Desejo de Saber nas trilhas de Freud e Freire |
Diss. |
2020 |
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BACCARIN, Maria Inês |
Aprendendo a pensar, pensando o aprender: as origens afetivas do pensar |
Tese |
2000 |
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GAZTAMBIDE, Daniel José |
Freud, Ferenczi, and Freire: liberation psychology and the practice of psychoanalytic therapy |
Tese |
2015 |
|
ROBAERT, Damaris Wehrmann |
Psicanálise, educação e formação inicial de professores: desafios, articulações e contribuições possíveis |
Diss. |
2017 |
|
SLOOP, Joyce Honeycutt |
Education and critical consciousness: Freire, Freud and Hegel |
Tese |
1987 |
Fonte: Os autores (2024).
Na seção seguinte promovemos a revisão integrativa de fato, trazendo os autores em uma ordem que não expressa nenhum critério objetivo, mas sim critérios subjetivos; a sequência responde a um encadeamento que julgamos o mais didático para expor e explorar os pontos de convergência e divergência dos/as autores/as.
Diálogos possíveis entre Freire e Freud
O primeiro trabalho que convocamos para o diálogo é o mais distante temporalmente de nós, Education and critical consciousness: Freire, Freud and Hegel, de Joyce Honeycutt Slopp, datado de 1987. Sua escolha se dá não só por sua data de publicação, mas pela citação direta no título dos dois autores em tela, e mais Hegel. Embora outros trabalhos citem Freire e Freud em seus títulos, esse é o que mais retrocede na história da filosofia para buscar estofo para sua argumentação e nos parece servir para introduzir a discussão.
Sloop alude em seu trabalho à expressão “ser mais”[1] – que se encontra recorrentemente na obra de Freire (2022a, 2022b) como a vocação ontológica do ser humano – e paraleliza a ela o pressuposto hegeliano delineado na Fenomenologia do espírito de que a dialética é um método de investigação e conhecimento que permite ao humano elevar-se a formas espirituais mais altas. A costura com Freud se dá ao explicitar que as formas de opressão denunciadas por Freire geram repressões inconscientes que impedem o “espírito” humano de (se) conhecer e de se elevar. Esse jogo de palavras entre “opressão” e “repressão”, inclusive no mesmo idioma da autora, será mais bem explicitado na tese subsequente a ser revisada.
Apoiada em Freire, Sloop busca desnaturalizar as situações de miséria e opressão demonstrando que existem dois tipos de consciência: a consciência do opressor, que é possessiva e quer a tudo controlar; e a consciência do oprimido, que por carência de recursos psíquicos e materiais sucumbe ao poder exercido pela consciência do opressor e se torna por este dominada, inclusive, aderindo ao conjunto de valores do dominador. Aí caiba, talvez, a máxima reproduzida à exaustão e que, apesar de não se encontrar ipsis litteris em sua obra, sintetiza a faceta, digamos, psicológica, do pensamento de Freire: quando a educação não liberta, o sonho do oprimido é se tornar opressor. Nesse sentido, afirma Sloop (1987, p. 34, tradução nossa) que é na educação que a ideologia do opressor “encontra o material que necessita para moldar uma cultura que sirva a seus propósitos e preserve seu poder. Essa ideologia se reproduz em mitos e tradições dentro da sala de aula”.[2]
Focando em Freud, a autora vai demonstrar que a dominação produz o efeito de incutir, inconscientemente, os conceitos e visões de mundo do dominador no dominado, imergindo-o naquilo que Freire chamou de “cultura do silêncio” (Freire, 2022b, p. 238): essa cultura do silêncio é correspondente ao que Freud chamou de “recalque” (ou “repressão”, a depender da tradução que se tome).[3] Antes de passarmos ao exame da conceitualização de recalque em Freud, é lícito retomar também a estrutura psíquica freudiana adotada por Sloop em sua tese e que servirá de introdução para os conceitos psicanalíticos de recalque e identificação.
Aquilo que em psicanálise se convencionou chamar a “segunda tópica” da teoria freudiana, a segunda e definitiva esquematização do aparelho psíquico proposta pelo autor (Laplanche; Pontalis, 1991; Roudinesco; Plon, 1998), contempla três instâncias ou estruturas chamadas Eu, Supereu e Id[4], que são descritas no seminal ensaio O Eu e o Id (Freud, 2011a). Segue uma sistematização bastante simplificada:
· Id é a parte mais primitiva e inconsciente da mente, que visa a satisfação imediata das necessidades básicas e dos desejos primários, como fome, sede e sexo; opera buscando gratificação instantânea e rejeita as demandas da realidade externa ou as normas sociais.
· Supereu é a instância moral da mente que internaliza os valores, normas e ideais morais dos pais e da sociedade; por isso, reprime energicamente o Id e julga vigilantemente as ações do Eu em relação aos ideais e padrões morais internalizados, impondo sentimentos como culpa ou vergonha quando as atitudes do sujeito não estão em conformidade com esses ideais.
· Eu é a estrutura mediadora entre o Id, o Supereu e a realidade externa; surge a partir do Id durante o desenvolvimento psicossexual infantil e representa nossa racionalidade e o senso de realidade da mente; opera principalmente no nível consciente (embora também possua uma parte inconsciente) tentando equilibrar as demandas do Id com as restrições do mundo exterior e as normas sociais que são constantemente relembradas pelo Supereu, que atua com um censor ao Eu e ao Id.
Disso depreende-se que o Eu é a mais frágil das três estruturas, pois ao mesmo tempo que é a instância que está em interface com o mundo e os outros seres de forma relacional precisa equilibrar o pulsional Id e o auto censor Supereu. Os desejos e tendências do sujeito que não forem moralmente aceitáveis para o Supereu sofrerão o destino do recalque. O recalque é um mecanismo psicológico que atua inconscientemente para remover pensamentos, desejos, impulsos ou memórias que são considerados ameaçadores para a pessoa, geralmente porque estão associados a conflitos internos ou experiências traumáticas e visa proteger a psique de sentimentos de ansiedade, culpa ou desconforto (Freud, 2010).
Outro mecanismo psicológico que concorre para explicar a perpetuação das relações assimétrica de poder é a identificação. Segundo Freud (2011b) em Psicologias das massas e análise do Eu, a identificação é um processo afetivo pelo qual os indivíduos constroem sua identidade e internalizam influências sociais significativas, como parte de seu desenvolvimento psicológico. Inicialmente moldada pela identificação com os pais, ela pode ocorrer mais tarde com outros indivíduos, como líderes, por exemplo, imergindo o sujeito numa massa. O que é comum no processo de identificação é que seja sempre uma tentativa do Eu do sujeito se moldar ao Eu do modelo investido de afeto. Aqui surge a temática do afeto, que será importante em outras dissertações e teses analisadas mais à frente.
Sloop paraleliza a relação entre Supereu e Eu com a dialética hegeliana do senhor/escravo. Entendendo o Supereu como uma introjeção dos modelos parentais e sociais de normas morais, a autora demonstra que, freudianamente, um Supereu demasiado rígido resulta em um Eu mais frágil, portanto, com mais repressões inconscientes e maior suscetibilidade de se identificar com o Eu de figuras de autoridade e poder: o oprimido que se identifica (quer ele próprio ser) opressor.
A tese de 2015 intitulada Freud, Ferenczi, and Freire: Liberation Psychology and the practice of psychoanalytic therapy, de autoria de Daniel José Gaztambide, psicólogo e professor porto-riquenho, pretende iniciar um diálogo entre psicanálise, psicologia da libertação e a psicologia multicultural. No que tange à Psicologia da Libertação, reporta-se a Ignacio Martin-Baro que, por sua vez, convoca dois autores e teorias principais para seu arcabouço de psicologia: Gustavo Gutiérrez e sua Teologia da Libertação e a pedagogia libertadora de Paulo Freire. Embora adquira um tom panfletário em muitos momentos, a tese articula de modo eficiente e coeso diversos elementos da teologia da libertação, do pensamento freiriano e da psicanálise freudiana ortodoxa, mas também daquela vertente psicanalítica do dissidente Ferenczi, autor em destaque no título do trabalho.
Sandor Ferenczi foi um discípulo húngaro de Freud profundamente preocupado com a finalidade curativa da psicanálise, tendo sido um importante pensador e inovador das técnicas terapêuticas e práticas clínicas psicanalíticas – o chamado “manejo clínico” –, ainda que ao fim da vida tenha se afastado de Freud e do seu grupo de discípulos por divergências teóricas e pessoais (Laplanche; Pontalis, 1991; Roudinesco; Plon, 1998).
Foram justamente estas contribuições na técnica e na relação médico-paciente de onde se originaram suas divergências com Freud: enquanto o pai da psicanálise acreditava ser necessário um distanciamento emocional entre terapeuta e paciente além de um tratamento que não abreviasse o sofrimento do paciente (de modo a poder trata-lo em tempo lento mas de forma definitiva), Ferenczi defendia a empatia do analista e preconizava a conexão emocional com os analisantes, sempre buscando formas de abreviar o tratamento e acabar rapidamente com o sofrimento de seus pacientes – algo que Freud e os demais integrantes de seu círculo de discípulos viam como uma extensão dos próprios desejos emocionalmente carentes de Ferenczi (Gay, 2012; Roudinesco; Plon, 1998).
Essa opção pela “escola húngara”, como ficaram conhecidos Ferenczi e seus seguidores, se expressa não apenas teoricamente, mas eticamente, naquilo que é expresso por Gaztambide como “a escolha preferencial pelo oprimido”, na qual o autor brinca com um jogo de palavras em inglês para demonstrar os paralelos entre a psicanálise e a teologia da libertação, que exibem o mesmo tipo de ética não apenas da concepção de educação freiriana, mas também, da visão ontológica que Freire tinha do ser:
Psychoanalysis will be shown to exude a kind of ethic, a “preferential option for the repressed” which parallels liberation theology’s “preferential option for the oppressed.” Liberation theology and psychoanalysis then share a concern for what is cast out, marginalized, excluded, repressed inside and outside, in psyche and society. This sensibility holds important insights for clinical practice and social reflection. (Gaztambide, 2015, p. 19, grifos do autor)[5]
Para nossa revisão, a seção mais importante do trabalho de Gaztambide é o capítulo terceiro, A Psychoanalysis for Liberation: Reading Freire, Reading Psychoanalisys, que é profícua em apontar futuros direcionamentos para a investigação do diálogo Freire-Freud. Gaztambide inicia o capítulo citando uma frase de Paulo Freire em seu diálogo com Antonio Faundez, Por uma pedagogia da pergunta: “O que é preciso é uma psicanálise histórico-cultural.” (Freire; Faundez, 2021, p. 157). Textualmente, um outro trecho dessa obra (que não foi citado por Gaztambide) parece de singular importância para a demonstração de como Paulo Freire enxergava o potencial do ato psicanalítico:
[...] esse processo de descolonização das mentes é mais demorado do que o da expulsão física do colonizador. [...] A presença do colonizador enquanto “sombra” na intimidade do colonizado é mais difícil de ser extrojetada, porque, ao expulsar a sombra do colonizador, ele tem que, em certo sentido, encher o “espaço” ocupado antes pela “sombra” do colonizador com a sua liberdade mesma, quer dizer, com a sua decisão, com a sua participação na reinvenção da sua sociedade. No fundo, a luta de libertação, como dizia Amílcar Cabral, “é um fato cultural e um fator de cultura”. É um fato profundamente pedagógico, e me arriscaria a dizer que é também uma espécie de psicanálise histórica, ideológica, cultural, política, social, em que o divã do psicanalista é substituído pelo campo de luta, pelo engajamento na luta, pelo processo de afirmação do colonizado enquanto não mais colonizado, ou das classes dominadas libertando-se. (Freire; Faundez, 2021, p. 162-163)
E Por uma pedagogia da pergunta não é o único escrito em que o Patrono da Educação Brasileira cita a necessidade da psicanálise no seu projeto emancipatório, como podemos comprovar em Pedagogia da autonomia:
É importante ter claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação. Daí a culpa que sentem eles em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com as classes dominantes [...]. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o poder do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante. A alfabetização, por exemplo, numa área de miséria, só ganha sentido na dimensão humana se, com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social, de que vá resultando a extrojeção da culpa indevida. (Freire, 2022a, p. 80-81)
Partindo dessas costuras, depreendemos que ao se utilizar em seu trabalho como proposta terapêutica do conceito de “recuperação da memória histórica” (emprestado textualmente de suas leituras de Martin-Baro), Gaztambide mais uma vez conecta-se a Freire no sentido de que a reconstrução da memória social, econômica e política de um povo promove efeitos benéficos sobre a vida e psique desse povo. Gaztambide parece conjugar, por intermédio da teologia da libertação, o caráter terapêutico mais individual da psicanálise com a apreensão histórica com vistas à libertação coletiva do pensamento freiriano.
O terceiro e último trabalho que traz os autores-tema dessa pesquisa em seu título é a dissertação defendida em 2020 por Rosane Carvalho da Silveira Abbade, intitulada DESEJO E SABER: Desejo de Saber nas trilhas de Freud e Freire, que discorre sobre a importância da curiosidade epistêmica preconizada por Freire e do conceito psicanalítico de “transferência” dentro do ensino universitário em um curso de Medicina. O trabalhou promoveu rodas de conversas entre os alunos e entre os docentes de uma turma do primeiro ano de Medicina, as quais foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas utilizando-se da técnica de análise de conteúdo da autora francesa Laurence Bardin.
Por intermédio da aplicação dessa metodologia de investigação dos dados transcritos, a autora chega a duas grandes categorias em sua análise: 1) desejo de saber e o protagonismo do aluno no processo de ensino e aprendizagem; e 2) transferência e o processo de ensino-aprendizagem – sendo esse termo “transferência” extraído diretamente da terminologia freudiana, conforme explicitaremos.
O desejo de saber aqui em questão é posto em evidência pela dissertante já no título do trabalho. É uma categoria de análise que diz respeito às percepções dos alunos sobre o desejo/vontade/interesse pelos estudos, suas curiosidades a respeito dos conteúdos e temas. A categoria contempla, ainda, as formas pelas quais esse desejo de saber pode ser reavivado quando o professor desocupa o lugar de saber incontestável e absoluto.
Essa expressão, desejo de saber, especificamente, parece-nos a que melhor articula de fato o arcabouço freudiano da psicanálise com os pressupostos freirianos. Esse desejo de saber, argumenta Abbade, é a curiosidade epistemológica apontada por Freire (2022a) na Pedagogia da autonomia como um dos motores da aprendizagem.
A autora contribui com ineditismo para a investigação das possíveis intersecções entre o pensamento dos autores-chave ao demonstrar que a filosofia da educação freiriana coincide com a metapsicologia freudiana na medida em que as duas partilham traços de uma concepção ontológica: o ser humano é incompleto, é um ser de faltas, e é esta incompletude – que nunca poderá será plenamente resolvida e da qual o sujeito às vezes sequer se dá conta – que o move pela vida e pelo mundo como ser desejante. Dentre muitos dos desejos disponíveis para o indivíduo, o desejo pelo saber é considerado uma das possibilidades mais socialmente elevadas para o desejo, tanto para Freud quanto para Freire.
Desde 1905, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (2016) sustenta que a curiosidade adulta, que se volta para a busca de respostas aos problemas práticos e/ou científicos da vida, nada mais é do que a curiosidade sexual infantil redirecionada em seu objetivo. Comparece também, nessa concepção, o conceito de sublimação, um conceito difuso e pouco explorado pelo próprio Freud em sua obra.
De acordo com o conceituado dicionário psicanalítico de Roudinesco e Plon (1998), a sublimação é uma operação psíquica em que a energia sexualizada da libido encontraria uma maneira de expressão não-sexual, por intermédio da criação artística, literária ou científica. Assim, como motor da produção de ciência ou arte, a sublimação é uma das operações psíquicas que compele o ser a buscar o conhecimento e o prazer da atividade criadora.
Essa operação psíquica nos remete diretamente à “curiosidade epistemológica” de Freire (2022a), que é aquela atitude inquiridora que supera a curiosidade ingênua, e a supera não apenas porque possui o foco de conhecer, mas porque tem consciência da historicidade do conhecimento, ou seja, é uma curiosidade crítica. Assim, Abbade em sua primeira categoria de análise acaba por aproximar, incidentalmente, a curiosidade epistêmica de Freire do processo de sublimação das pulsões sexuais em objetos científicos e artísticos descrito por Freud.
Na segunda categoria, a autora aborda explícita e literalmente o conceito de transferência em Freud (2014), que se trata de uma projeção de sentimentos e afetos (ora amorosos, ora hostis) da parte do paciente em análise em direção ao analista. Quando amorosa ou positiva, a transferência atua, na maioria dos casos, como uma “mola” propulsora para o tratamento psicanalítico, pois o paciente coloca o analista em um lugar idealizado de autoridade, competência e afeto.
É importante ressaltar que o próprio Freud extrapola o fenômeno da transferência para todas as relações humanas, afirmando que ele não é exclusividade da relação médico/paciente; essa reedição de afetos (geralmente reminiscentes da infância) ocorre em toda situação em que se instaura alguma presunção de autoridade, incluindo a situação pedagógica. A transferência psicanalítica aparecerá em Paulo Freire ao analisarmos a próxima tese, de maneira prosaica, demonstrando uma importância da confiança e do afeto no processo educativo.
Abbade observa pelas suas conversas com alunos e professores do curso de Medicina que onde os docentes estabelecem uma relação menos verticalizada, mais acolhedora e harmoniosa dentro das disciplinas, instala-se um ambiente de aprendizagem mais dinâmico e saudável para todos os envolvidos. A postura do professor que acolhe o desejo de saber dos alunos e trabalha juntamente com eles no desenvolvimento deste parece trazer implicações positivas para o aprendizado.
Há que se observar que esta categoria lida ela também, assim como a do desejo pelo saber, com subprodutos reminiscentes da infância do sujeito: enquanto o desejo de saber é derivado da infantil curiosidade sexual (“como são feitos os bebês?”, “como eu nasci?”, “por que meninos têm pênis e meninas não?” etc.), a transferência é, literalmente, como uma reedição dos afetos parentais, fraternais e familiares. O professor, parece, mesmo na universidade trabalhando com jovens e adultos, está sempre às voltas com a infância.
É nesse sentido que Abbade (2020, p. 47) faz uma importante ponderação prática sobre a intersecção da psicanálise e da educação: “Não faremos psicanálise em sala de aula, mas poderemos estar em sala de aula advertidos de que a transferência está presente em todas as nossas relações e promovendo e/ou dificultando avanços no aprendizado.” E na sequência, aborda a delicada questão dos métodos e das práticas ao afirmar corajosamente que “[...] não é necessariamente o método que favorece o desejo de saber e consequentemente o desenvolvimento do protagonismo do aluno. Mais do que isso, é a função que o professor ocupa na relação com o aluno que parecer ser decisivo” (Abbade, 2020, p. 49).
Finalizando sua pesquisa, Abbade argumenta que o principal impulsionador do desejo de aprender, estudar e aprofundar o conhecimento sobre um determinado tema é a postura adotada pelo professor em relação aos seus alunos. Isso implica o abandono da posição autoritária, onde o professor é visto como detentor absoluto do conhecimento e superior intelectual, e a adoção de uma abordagem dialógica que permita aprender em conjunto com os alunos. Nós finalizamos a revisão do escrito da autora apontando que essa postura profundamente freiriana é a mesma de Freud, que construiu o próprio corpo teórico da psicanálise em “aliança” com seus pacientes, elaborando suas teorias a partir da prática clínica: de uma atenta escuta às demandas e queixas daqueles que afluíam para seu consultório em Viena (Gay, 2012).
Na curtíssima dissertação defendida em 2017 intitulada Psicanálise, educação e formação inicial de professores: desafios, articulações e contribuições possíveis, a autora, Damaris Wehrmann Robaert, que é psicóloga por formação, explora as possibilidades da psicanálise como atividade formativa válida para professores em formação, recorrendo ao referencial freiriano de forma marginal, porém sugestiva. Robaert destaca uma experiência pessoal de infância narrada por Paulo Freire (2022a) em Pedagogia da autonomia: a importância emocional para o futuro educador do olhar aprovador e amoroso de um de seus professores e de como esse gesto lhe deu confiança nos estudos e marcou sua trajetória escolar. A autora discorre sobre o lugar da afetividade na experiência educativa, apontando em uma mesma direção que o trabalho de Abbade (2020). Podemos interpretar essa passagem da vida de Paulo Freire utilizando o conceito de transferência que já vimos anteriormente; podemos dizer que houve uma relação desse tipo entre Freire criança e seu professor, uma relação de afeição e encorajamento da parte deste em direção àquele que foi decisiva para sua vontade de aprender, e, por que não, para suas futuras escolhas profissionais, teóricas e metodológicas. Afinal, não se tornou também Freire, décadas depois, um educador popular que defendia o amor pelos semelhantes como condição sine qua non para o ato pedagógico? A transferência, nesse caso, teria produzido uma identificação positiva com o professor-modelo.
Ainda recorrendo a Freud (2012) em seu artigo Sobre a psicologia do colegial, Robaert revela como o pai da psicanálise já pensou a relação entre afeto e desejo de aprender muito antes de Freire, também se valendo de uma reminiscência juvenil:
Não sei o que mais nos absorveu e se tornou mais importante para nós: as ciências que nos eram apresentadas ou as personalidades de nossos professores. De todo modo, esses eram objeto de um contínuo interesse paralelo, e para muitos de nós o caminho do saber passava inevitavelmente pelas pessoas dos professores. [...] Nós os cortejávamos ou nos distanciávamos deles, neles imaginávamos simpatias ou antipatias provavelmente inexistentes, estudávamos seus caracteres e com base neles formávamos ou deformávamos os nossos. Eles suscitavam nossas mais intensas revoltas e nos compeliam à mais completa submissão. Nós espreitávamos suas pequenas fraquezas e tínhamos orgulho de seus grandes méritos, de seu saber e senso de justiça. No fundo os amávamos bastante, quando nos davam um motivo qualquer para isso. Não sei se todos os nossos professores se deram conta disso. (Freud, 2012, p. 419-420)
Mesmo sem explicitar discursivamente uma aproximação entre Freud e Freire (tampouco era este seu objetivo), Robaert reforça o corpo de escritos que apontam para uma desejável característica docente: a de inspirarem autoridade em seus alunos pelo afeto, nos remetendo novamente à noção freudiana de “transferência” no âmbito psicanalítico. Propõe, em síntese, uma formação docente que auxilie educadoras e educadores a também lidar com esse tipo de fenômeno afetivo, incorporando-o no seu acervo de saberes docentes e estratégias pedagógicas para estimular o aprendizado engajado.
Por fim, passamos ao último trabalho do corpo de análise, a tese Aprendendo a pensar, pensando o aprender: as origens afetivas do pensar, de Inês Maria Baccarin, defendida em 2000. No trabalho, a autora articula o pensamento de Paulo Freire ao de outros quatro autores: o filósofo alemão Martin Heidegger, os psicanalistas britânicos Melanie Klein e Wilfred Bion, e Freud. Embora Klein e Bion tenham importância gigante para a psicanálise, sendo atualmente considerados autores que produziram suas próprias correntes ou “escolas” de psicanálise, focaremos na aproximação com Freud.
Como o título da pesquisa entrega, trata-se de tentativa de pensar teoricamente a partir da filosofia, da psicanálise e da pedagogia crítica a gênese e importância do afeto no processo do pensamento gnosiológico, corroborando Abbade (2020) e Robaert (2017). A ênfase do trabalho acaba recaindo não sobre Freire e Freud, mas sim, sobre Heidegger e Bion, embora, reiteramos, ficaremos com os autores em tela, uma vez que existem algumas relações propostas pela autora que são dignas de um escrutínio.
Baccarin traz Freire para o estudo elegendo-o como uma “ponte” que faz a transição do pensamento filosófico de Heidegger com o pensamento psicanalítico que se inicia com Freud. Essa proposta da autora parece situar a pedagogia e o pensamento de Freire como um mediador entre a filosofia contemporânea e a psicanálise. Segundo esta autora, a aproximação de Freire com a psicanálise se dá pela relação de similaridade que ela vislumbra entre a educação dialógica – com ênfase no conceito de palavra para o educador brasileiro – e o sentido também dialógico e libertador que a palavra assume na psicanálise. Ao esmiuçar o modelo bancário de educação denunciado por Freire, Baccarin aponta ao já conhecido conceito de identificação, visto em Sloop (1987). A identificação do oprimido com o habitus e o ethos do opressor é o elemento facilitador dos processos de inculcação ideológica que resultam no domínio destes sobre aqueles.
Baccarin recorda que, de acordo com os pressupostos psicanalíticos, as relações “bancárias” são formas de relação infantis, aprisionadas na díade “adulto manda, criança obedece”. Assim, a educação bancária, além de uma reminiscência de um modelo rígido de autoridade materna/paterna, pode converter-se no modelo pelo qual a pessoa apreende, enquadra e processa o mundo e as relações.
Esta influência do lar se alonga na experiência da escola. Nela, os educandos cedo descobrem que, como no lar, para conquistar alguma satisfação, têm de adaptar-se aos preceitos verticalmente estabelecidos. E um destes preceitos é não pensar. Introjetando a autoridade paterna através de um tipo rígido de relações, que a escola enfatiza, sua tendência, quando se fazem profissionais, pelo próprio medo da liberdade que neles se instala, é seguir os padrões rígidos em que se deformaram. Isto, associado à sua posição classista, talvez explique a adesão de grande número de profissionais a uma ação antidialógica. (Freire, 2022b, p. 207)
Nesse ponto, Baccarin recorre a escritos de Freire que são influenciados por Erich Fromm, psicanalista estadunidense que buscou articular em sua obra a psicanálise freudiana com a teoria marxista, elaborando (com outros autores de destaque na psicanálise da primeira metade do século XX) o que mais tarde seria conhecido como “freudo-marxismo” (Roudinesco; Plon, 1998). Freire cita nominalmente Fromm em algumas de suas obras, fazendo destas e também de suas citações de Herbert Marcuse as provas mais textuais de que o brasileiro tinha conhecimento, ao menos, das revisões da psicanálise e dos cotejamentos desta com as teorias econômicas que estes autores e outros da chamada “Escola de Frankfurt” promoveram. Assim, apoiando-se na leitura de Fromm por Freire, a autora afirma que
[...] o prazer derivado destas relações de controle, opressão e domínio de um ser humano sobre outro constitui-se na essência do impulso sádico. Os vínculos entre os homens ficam assim aprisionados em relações sado-masoquistas. Quando alguém se coloca num lugar de opressor, atua seu impulso sádico sobre aquele que oprime, no qual seu atualiza o seu oposto complementar, o masoquista. Estas duas posições extremas alternam-se, a depender das circunstâncias, e um de seus aspectos dolorosos é o sentimento de aprisionamento neste vínculo. (Baccarin, 2000, p. 145)
Baccarin, aqui, vincula-se novamente a pressupostos de base da teoria freudiana, no caso, sadismo e masoquismo. Em Os instintos e seus destinos,[6] Freud (2010, p. 65) define o sadismo como um traço constitutivo do sujeito, sendo a “prática de violência, exercício de poder tendo uma outra pessoa como objeto”. Já o masoquismo, é esse impulso de destruição e agressividade dirigido contra a própria pessoa, mais precisamente, contra a instância psíquica conhecida como Eu. Este é mais um dos processos ao qual o Eu pode ser submetido em sua tríplice demanda, a lembrar: satisfazer o Id, obedecer aos imperativos morais do Supereu, fazer mediação do sujeito com a realidade e o(s) outro(s).
Anos mais tarde, em O problema econômico do masoquismo, Freud (2011a) dirá que a reversão do sadismo original em masoquismo pode surgir devido a uma combinação de fatores, incluindo conflitos internos entre pulsões sexuais e agressivas, além de experiências traumáticas da infância. Ele também discute a relação entre o masoquismo e a culpa, sugerindo que o masoquismo pode ser uma forma de autopunição para aliviar sentimentos de culpa inconsciente, que podem ser oriundos das demandas morais do Supereu.
Embora não concatene as discussões dos conceitos por ela inventariados, pode-se dizer que existe uma ligação “invisível” entre os conceitos freudianos mobilizados e a denúncia de Paulo Freire de que a educação bancária é uma ferramenta utilizada pelos opressores para a manutenção do seu projeto de dominação, impondo seu sistema de valores e crenças aos oprimidos. Ligação esta que exploraremos na próxima sessão, para enfeixar esse estudo.
Considerações finais e/ou Pistas para trabalhos futuros
Retrocedendo na ordem de exposição dos trabalhos, em Baccarin (2020) temos uma teia de conceitos que se articula, talvez, sem que sua autora tenha percebido (ou sem que tenha havido interesse desta em explorar). A introjeção desde cedo de modelos rígidos e desprovidos de afeto por parte dos pais e/ou cuidadores de uma criança favorece uma espécie de “predisposição” psíquica para o masoquismo, uma crença de que merece sofrer; essa crença reverte o sadismo que para Freud é constitutivo do ser humano, e que seria, normalmente, dirigido “para fora” do sujeito. Tal convicção se origina de um excepcionalmente rígido Supereu, que é a estrutura que se molda à autoridade parental e começa a atuar como censor e juiz interno da criança. Ela se reforça por meio da educação dita bancária: um modelo vertical e frio de relação entre docente e alunos e que não estimula o pensamento crítico, que seria capaz de desvelar as realidades materiais e psíquicas a que o sujeito é submetido. O masoquismo é reforçado, o sujeito acredita que merece tudo de ruim que lhe advém, inclusive a dominação e exploração por outrem. A subserviência do oprimido é facilitada pelo reforço de seu masoquismo. Fragilizado psiquicamente pela realidade material e dilacerado pelas considerações morais do Supereu, conforme podemos ver em Sloop (1987), o Eu de uma pessoa busca, então, um modelo ao qual possa aderir para tentar “escapar” de sua sina. Assim, processa-se a identificação com o opressor, processo que não liberta o sujeito, muito pelo contrário, mas, ao menos psicologicamente, lhe traz algum conforto. Ao ser agraciado com o mínimo de poder ou influência, esse antes oprimido não hesitará em exercer seu sadismo contra os semelhantes. Nesse caso, não sofrerá censuras do Supereu, pois com a mesma severidade que essa instância psíquica julga o indivíduo, ela julga aos demais. A ausência de afeto no processo educativo e civilizatório da criança aparece como condição do surgimento desse tipo de subjetividade. Coaduna com o que as outras duas pesquisadoras brasileiras consultadas, Abbade (2020) e Robaert (2017), explanam sobre a importância do afeto no desenvolvimento psicológico e cognitivo do ser.
Cremos que além dessa possibilidade de investigação, de como a falta de afeto primordial na vida de uma pessoa pode levar a um desenvolvimento psíquico instável, e, portanto, um Eu fácil de se dominar, outra importante discussão se abre, nesta mesma linha, sobre a transferência psicanalítica, este fenômeno de revivescência dos afetos infantis que pode se processar com o psicanalista, médico, professor, ou qualquer outro(a) profissional que detenha uma posição de (suposta) autoridade. A transferência, sendo de afetos positivos ou negativos, parece ser um “espaço” psíquico, digamos assim, privilegiado, onde a ação do professor, em especial, pode encontrar sua potência maior. É certamente uma linha de investigação promissora. A preferência sistemática pelo oprimido, imperativo ético defendido por Gaztambide (2015), parece ser essencial aos educadores que encaram sua função como mais do que apenas “ensinar”, reconhecendo exercer uma influência direta na saúde psíquica daqueles que ensinam.
Os cinco registros encontrados não foram esmiuçados na profundidade que mereceriam, pois tangenciam vários outros aspectos teóricos e colocam outras questões diversas. Falta espaço em um artigo para tal; a tese à qual esta pesquisa se incorpora tratará dessas questões. O controverso conceito psicanalítico de pulsão de morte, que em Freire aparece com a terminologia de “necrofilia” (amor à morte), por exemplo, que aparece nos trabalhos de Baccarin e Sloop, dada sua complexidade conceitual (e suas possibilidades de vinculação ao sadomasoquismo estrutural que permeia as relações de identificação do oprimido com o opressor) extrapolaria o que nos propomos neste estudo, sendo material para futuros trabalhos.
Esse fecho deve servir como convite a pesquisadores da educação e da psicanálise – que se interessem pelo campo outro – explorarem novos pontos de convergência entre os dois autores, ou ainda, entre estes os dois campos do conhecimento.
Referências
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BACCARIN, Maria Inês. Aprendendo a pensar, pensando o aprender: as origens afetivas do pensar. 2000. 273f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/202452. Acesso em: 30 jun. 2023.
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FREUD, Sigmund. Totem e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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Notas
[1] Nas traduções de Freire para o inglês que a autora consultou, a clássica expressão freiriana aparece vertida para o inglês como “being more fully human”, que poderíamos retraduzir, ao pé da letra, como “ser mais completamente humano”, o que adicionaria uma camada extra de leitura à expressão freiriana. Ficaremos nesta revisão com a expressão original, pela sua poética abertura à polissemia e pela aparente incompletude – ou interrupção – da expressão, o que a aproxima do discurso psicanalítico.
[2] No original: Ideology finds in education the very material it needs to shape the culture that serves it needs and preserves its power. This ideology reproduces itself in myths and traditions within the classroom.
[3] Cabe observar, ainda que rapidamente devido ao escopo do artigo, que nas traduções brasileiras acham-se as duas versões possíveis para a palavra alemã Verdrängung: recalque e repressão. Alguns autores, como Gilson Iannini (2024), irão demonstrar que a escolha das terminologias não acontece sem a demonstração de preferências epistemológicas e até mesmo ideológicas. Nesse artigo e na tese mencionada, adotamos “recalque” ao invés de “repressão” de forma a destacar essa complexa operação psíquica de uma mera supressão de afetos, emoções ou lembranças.
[4] No alemão original da pena de Freud: Ich, Über-ich e Es. A tradução inglesa de James Strachey, da qual se originou a primeira (e por muito tempo única) versão brasileira, publicada pela Editora Imago, se valeu de três termos em latim para designar essas estruturas; respectivamente: ego, supergo e id. Acontece que os termos em alemão são palavras de uso corrente na linguagem alemã: Ich (Eu), Über-ich (Super-eu) e Id (Isso). A proposta de Freud sempre foi propor terminologias usando palavras correntes do idioma alemão e que fossem autoexplicativas. Assim, nas traduções contemporâneas no Brasil, vertidas para o português diretamente do alemão, foram abandonados os termos latinos intermediários da tradução inglesa e passou-se a usar e difundir os termos Eu, Supereu e Isso, traduções diretas das palavras. Eventualmente, algumas versões – como a Obras Completas da Companhia das Letras, traduzida por Paulo César de Souza, que foi a mais consultada para esta revisão, continuam utilizando o termo Id, mesmo quando utilizam os termos Eu e Super-eu, dada a estranheza, cremos, que a aparição do pronome “isso” causaria na leitura em português. Utilizaremos sempre a tríade: Id, Eu e Supereu, como forma de contrabalançar a exatidão dos termos e a fluidez da leitura, e com iniciais maiúsculas não como preciosismo pelo modo de grafia alemão, mas para clara sinalização de que se referem às instâncias elaboradas no cânone freudiano.
[5] Será demonstrado que a psicanálise transpira uma espécie de ética, uma “opção preferencial pelos reprimidos” que se assemelha à “opção preferencial pelos oprimidos” da teologia da libertação. A teologia da libertação e a psicanálise compartilham então uma preocupação com o que é expulso, marginalizado, excluído, reprimido dentro e fora, na psique e na sociedade. Essa sensibilidade contém insights importantes para a prática clínica e a reflexão social. (tradução nossa)
[6] Título da versão da editora Companhia das Letras, mais amplamente conhecido pelo título da versão da Editora Imago: As pulsões e suas vicissitudes. Aqui, novamente optamos por uma terminologia: neste caso, pelo termo “pulsão” em detrimento de “instinto”, mesmo este constando do título de obra consultada. Assim como no caso recalque versus repressão, preferimos o termo “pulsão”, pois o termo “instinto” remete a algo da esfera do biológico e essencialmente ao corpo físico, sem participação da esfera psíquica no processo. Ainda, Freud utiliza-se das palavras em alemão Trieb e Instinkt em seus escritos: essa escolha, novamente segundo diversos autores nacionais, representa não uma opção de Freud por tomar ora esse ou aquele vocábulo como forma de diminuir a repetição em seus textos; pelo contrário, revela que o pai da psicanálise não os utilizava como intercambiáveis, mas, sim, como conceitos distintos. As traduções de Freud (as primeiras que surgiram) aplainaram essa diferença vertendo Trieb e Instinkt para um único termo, instinct, e assim sedimentaram o caminho das traduções que versionam palavras (e conceitos) diferentes para um mesmo vocábulo/conceito.