A Unesco, a universalização da educação primária e as reformas curriculares na alfabetização latino-americana (1940-1950)
The Unesco, the universalization of primary education and curricular reforms in latin american literacy (1940-1950)
La Unesco, la universalización de la educación primaria y las reformas curriculares en la alfabetización latinoamericana (1940-1950)
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
clammgont@gmail.com
Martinho Guilherme Fonseca Soares
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
martinhoesoares@gmail.com
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
allcioneazevedo@gmail.com
Recebido em 09 de julho de 2024
Aprovado em 19 de setembro de 2024
Publicado em 20 de maio de 2025
RESUMO
Ao correlacionar um conjunto de fontes documentais primárias, o artigo investiga, a partir dos pressupostos teórico-metodológicos da Análise Dialógica do Discurso, como ocorreu a atuação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura na revisão dos currículos da escola primária latino-americana entre as décadas de 1940 e 1950. Partindo de uma análise dos efeitos da Segunda Guerra Mundial sob o imaginário coletivo da sociedade do Pós-Guerra, bem como dos impactos do desenvolvimento científico e tecnológico da segunda metade do séc. XX, o texto objetiva situar como a alfabetização se tornou uma das principais promessas para o desenvolvimento social e econômico dos países que, ao pactuarem os postulados oriundos da Unesco, buscaram reestruturar seus currículos de maneira que a tríade educação, ciência e cultura assegurasse não somente desenvolvimento e modernização, mas também compromisso com a democracia, primícia a que, em último grau, a reformulação dos currículos da escola primária procurava atender.
Palavras-chave: Unesco; Escola primária; Reformas curriculares na alfabetização.
ABSTRACT
By correlating a set of primary documentary sources, this article investigates, based on the theoretical-methodological assumptions of Dialogic Discourse Analysis, how the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization in the review of Latin American primary school curricula between the 1940s and 1950s. Starting from an analysis of the effects of the Second World War on the collective imagination of post-war society, as well as the impacts of the scientific and technological development of the second half of the century. XX, seeks to situate how literacy became one of the main promises for the social and economic development of countries that, by agreeing on the postulates coming from Unesco, sought to restructure their curricula so that the triad of “Education”, “Science” and “"culture” ensured not only their development and modernization, but also its commitment to democracy, a first that, ultimately, the reformulation of primary school curricula sought to meet.
Keywords: Unesco; Primary school; Curricular reforms in literacy.
RESUMEN
A través de la correlación de un conjunto de fuentes documentales primarias, este artículo investiga, a partir de los supuestos teórico-metodológicos del Análisis Dialógico del Discurso, cómo la Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura en la revisión de la educación primaria latinoamericana currículos entre las décadas de 1940 y 1950. Partiendo de un análisis de los efectos de la Segunda Guerra Mundial en el imaginario colectivo de la sociedad de posguerra, así como de los impactos del desarrollo científico y tecnológico de la segunda mitad del siglo. XX, busca situar cómo la alfabetización se convirtió en una de las principales promesas para el desarrollo social y económico de los países que, coincidiendo con los postulados provenientes de la UNESCO, buscaron reestructurar sus planes de estudio de tal manera que la tríada “educación”, “ciencia” ” y “cultura ” aseguraron no sólo su desarrollo y modernización, sino también su compromiso con la democracia, un primer paso que, en definitiva, la reformulación de los currículos de la escuela primaria buscó dar.
Palabras clave: Unesco; Escuela primária; Reformas curriculares en alfabetización.
Considerações iniciais
Este artigo tem como objetivo historicizar e discutir as recomendações da Unesco e de outros organismos congêneres a ela associados — como o Bureau International d’Éducation (BIE) — ao promoverem a universalização da escolaridade obrigatória no século XX. As recomendações analisadas estão inseridas em um movimento mais amplo de renovação educacional que se consolidou no Pós-Segunda Guerra Mundial, no qual a Unesco desempenhou um papel central ao articular educação, desenvolvimento e democratização do ensino por meio de políticas curriculares, o que explica o fato de o estudo analisado neste artigo estar interessado em identificar relações entre os currículos e o desenvolvimento econômico e social.
A partir do fim do Conflito (1939-1945), a reconstrução da educação mundial tornou-se imperativa. A Unesco — agência educacional, científica e cultural criada pela Organização das Nações Unidas — assumiu o desafio de fomentar a paz, a segurança e a cooperação entre os povos mediante políticas educacionais. A catástrofe humanitária simbolizada pelos bombardeios atômicos a Hiroshima e a Nagasaki, em agosto de 1945, conferiu urgência à construção de um projeto educativo centrado nos ideais de solidariedade e justiça social.
Na década de 1950, grande parte da população mundial ainda não tinha acesso à escola de primeiro grau, tornando necessária a defesa da educação como um direito universal. Nesse sentido, Jaime Torres Bodet, então diretor-geral da Unesco, afirmou em discurso proferido em 1951 que a ausência de instrução primária para metade da humanidade constituía não apenas uma injustiça social, mas um entrave ao desenvolvimento humano. Em consonância com o Art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Unesco passou a enfatizar a necessidade de tornar a educação primária obrigatória e gratuita, mas também de realizar reformas educacionais que atingissem, principalmente, os currículos das escolas.
Para condução do estudo, em termos metodológicos, adotamos a pesquisa documental, pois analisamos textos/documentos produzidos pela Unesco e pelo BIE, orientados pelos pressupostos da Análise Dialógica do Discurso (ADD). Conforme Bakhtin (1992, p. 329), o texto — seja oral, seja escrito — constitui o dado primário de análise para todas as disciplinas das Ciências Humanas e, mais amplamente, de qualquer pensamento filosófico de natureza humanista. Para o autor, o texto “[...] representa uma realidade imediata (do pensamento e da emoção), a única capaz de gerar essas disciplinas e esse pensamento. Onde não há texto, também não há objeto de estudo e de pensamento”. Nesse sentido, o texto é concebido como enunciado: um elo singular, irrepetível e dialógico da cadeia histórica de comunicação social.
Como enunciado, o texto é sempre produzido nas fronteiras entre consciências — entre sujeitos históricos e sociais — e por isso carrega em si contrapalavras, ou seja, respostas aos enunciados alheiros. Tal perspectiva implica compreender o texto como expressão de um sujeito situado, que dialoga com outros textos e discursos no interior de um determinado contexto social e ideológico.
Assim, compreendemos que a pesquisa documental, orientada pela ADD, exige que o texto seja estudado em relação com o contexto em que foi produzido. Como afirma Bakhtin (2003), o contexto extraverbal não atua de maneira exterior ou automatizada sobre o enunciado; ao contrário, ele o constitui internamente, integrando-se à sua estrutura semântica. Em outras palavras, entender um texto não requer considerar apenas os sentidos pretendidos por seu autor, mas também os horizontes sociais, ideológicos e interpretativos que o envolvem — inclusive os do(a) pesquisador(a) que se debruça sobre sua análise.
Universalização da escolaridade obrigatória
Para compreender o percurso da defesa internacional da educação como direito, é necessário recuar a iniciativas anteriores à própria criação da Unesco. Assim, antes mesmo de a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamar a obrigatoriedade da instrução fundamental ou elementar, a premissa foi discutida pelo Bureau International d’Éducation em sua Recomendação nº 1, aprovada na III Conferência Internacional de Instrução Pública, realizada em Genebra, em 1934. Essas conferências foram convocadas pelo BIE e tiveram um lugar importante na definição dos rumos da educação em nível internacional. O BIE, convém situar, foi criado como uma organização não governamental, de caráter privado, em Genebra, em 1925, com o apoio do Institut Universitaire des Sciences de 1'Education, tornando-se, em 1929, uma instituição de interesse público.
É importante notar que Jean Piaget ocupou o cargo de diretor do BIE de 1929 a 1968. Segundo Loureiro e Assis (2018), o convite formulado por Édouard Claparède a Jean Piaget para assumir um cargo no Instituto Jean-Jacques Rousseau (IJJR) e no BIE foi motivado por uma publicação de Piaget na revista Archives de Psychologie. O BIE tinha como finalidade “[...] desenvolver estudos de cunho estritamente científico e de neutralidade política, filosófica, religiosa e nacionalista para a promoção da paz e a cooperação internacional pela educação, tendo como pano de fundo o diálogo entre as nações” (Loureiro; Assis, 2018, p. 260).
O renome internacional alcançado pelo BIE na primeira metade do século XX possibilitou que a instituição mantivesse, pelo menos desde 1934, reuniões anuais regulares convocadas pelo governo suíço com a participação de até 60 países. Em 1939, as reuniões foram suspensas devido ao início da Segunda Grande Guerra, tendo sido retomadas em 1946. Em 1947, ainda sob a direção de Jean Piaget, o BIE assinou um acordo de cooperação com a Unesco e foi “[...] constituída uma Comissão mista para fixar as bases desta cooperação” (Brasil, 1965, p. XII). Desde então, as conferências passaram a ser convocadas em conjunto com a Unesco e, desde 1969, o Instituto é parte integrante da Organização, embora mantenha sua autonomia intelectual e funcional.
Em sua Recomendação nº 1, ocorrida em 1934, o BIE destaca que os anos de escolarização obrigatória eram diferenciados nos diversos países do mundo. Essa diferenciação ocorria por não haver, até aquele momento, uma medida única que pudesse ser formulada, tendo em vista que as condições, principalmente financeiras dos países, eram muito distintas. Em muitos, o número de escolas era insuficiente para as crianças em idade escolar e, sendo assim, de acordo com a Recomendação, o problema central seria, em vez de prolongar a escolaridade obrigatória, assegurar a frequência das crianças às escolas por um número mínimo de anos, considerando as condições de cada país. Nesse sentido, a Recomendação salienta que sete anos seria o número mínimo desejável para efetiva escolaridade e que a idade de ingresso deveria ocorrer após as crianças terem formação física, intelectual e moral (Brasil, 1965).
O documento igualmente aconselha os governos quanto à oportunidade de adoção do princípio da obrigatoriedade e de sanções contra seu não cumprimento, assim como quanto à avaliação dos casos de dispensas temporárias a esses requisitos. Se a expansão dos anos de escolaridade obrigatória foi tratada na Recomendação nº 1, sua universalização, conforme proclamada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi tematizada somente na Recomendação nº 32, aprovada na XIV Conferência Internacional de Instrução Pública, convocada já pela Unesco e pelo BIE e realizada em Genebra, em julho de 1951 com a participação de 49 estados-membros da Organização.
Assim, para o alcance do direito à educação para todos e todas, o tema central dessa Recomendação (1951) foi a organização de planos nacionais de educação a serem elaborados pelos governos e, nessa direção, o documento destaca que nesses planos deveriam constar aspectos quanto à organização e financiamento das ações; à duração da escolaridade obrigatória; às medidas de estímulo e sanções; aos aspectos pedagógicos da escolaridade obrigatória; à formação docente; às construções escolares e, por último, à extensão da escolaridade obrigatória (Brasil, 1965). O objetivo central da Recomendação nº 32 foi, dessa forma, a organização de planos dedicados a proporcionar a universalização da educação obrigatória que seriam, na perspectiva da Unesco (1952), o “remédio” para solucionar o problema do analfabetismo global.
A Recomendação nº 32 trata ainda da contribuição das organizações internacionais e, nesse sentido, foi responsável por provocar os estados-membros da Unesco a priorizar projetos de assistência técnica à elaboração dos planos em países interessados em promover a universalização da escolaridade obrigatória. Os efeitos das prescrições oriundas da XIV Conferência Internacional de Instrução Pública podem ser observados no documento denominado La Unesco y su programa: el derecho a la educación (UNESCO, 1952), que, ao fazer referência à Recomendação nº 32, assinala que seu texto constituía um verdadeiro programa mundial para a universalização da escolaridade obrigatória, portanto, seria, na avaliação de seus articuladores, a solução para o enfrentamento do analfabetismo. Afinal, como falar de solidariedade humana sem conferir aos povos do mundo um elemento comum para que todos tivessem acesso aos saberes historicamente construídos pela humanidade?
A Unesco reitera, no documento de 1952, as orientações expressas na Recomendação nº 32, dando-lhes contornos que ajudariam os países a construir os seus planos. Entre outros aspectos, os planos de universalização da escolaridade obrigatória deveriam: ser dirigidos a jovens de ambos os sexos e prever medidas de execução imediata e progressiva em um número determinado de anos; precedidos de investigações que permitissem identificar, em termos quantitativos, a população em idade escolar e a previsão futura; coordenados com planos de reforma e desenvolvimento econômicos e sociais de cada país; flexíveis para permitir melhorias e adaptações ao longo da sua execução, como também difundidos para demonstrar a sua importância para os indivíduos e para a sociedade.
A publicação salienta que a duração da escolaridade obrigatória não deveria ser curta, principalmente em países em que questões linguísticas tivessem envolvidas (Unesco, 1952). Também não aconselha a diminuição dos anos da escolaridade obrigatória já estabelecidos por razões financeiras, principalmente em países com índices altos de pessoas que não se beneficiavam da escola. Nesses países, a escolaridade obrigatória poderia ser estendida para 7 ou 8 anos. Essa definição, no entanto, deveria ser fixada juntamente com a administração da instrução pública e do trabalho.
A dispensa da obrigatoriedade do ensino em função de doenças, deficiências físicas ou mentais deveria ser suprimida ou justificada. Além disso, era recomendado o recenseamento periódico das crianças em idade escolar em cada localidade, assim como a colaboração entre famílias e escola. A gratuidade do ensino primário não deveria se limitar ao não pagamento de mensalidades, mas deveria ser estendida para o material escolar, conforme previsto na Recomendação nº 21, aprovada na X Conferência Internacional de Instrução Pública e, conforme a Unesco (1952), compreender gradativamente os manuais escolares. No que se refere aos aspectos pedagógicos, destaca-se o pressuposto de que a escola deveria integrar-se à comunidade, tornando-se [...] um dos elementos de progresso social, econômico, cívico, artístico e cultural” (Brasil, 1965, p. 58).
Ainda com relação aos aspectos pedagógicos, a Recomendação nº 32 salienta que, na definição dos calendários do ano letivo, deveriam ser considerados fatores climáticos e de trabalho próprios de cada estação. Os horários escolares deveriam ser previstos em dois turnos, mas poderia ser admitido turno único na ausência de instalações escolares, na falta de professores e diante de situações sociais e econômicas que o tornassem mais vantajoso. De acordo com a Unesco (1952), a efetividade dos planos dependeria da ação docente, entretanto era sabido que a falta de professores constituía obstáculo para a universalização da escolaridade obrigatória. Nos anos 1950, portanto, a universalização da escolaridade obrigatória passou a depender também de programas de formação docente.
Dessa maneira, um enorme esforço deveria ser realizado no sentido de melhorar a remuneração dos docentes, assegurar a estabilidade e criar um número suficiente de centros de formação de professores. Em situações em que houvesse necessidade urgente de formar docentes, poderia ser admitida a formação acelerada, mas com previsão de aperfeiçoamentos futuros. No entanto, de acordo com a mesma Recomendação nº 32, a formação em cursos normais era a mais apropriada, pois permitiria uma maior profissionalização. Se a escola primária deveria se tornar obrigatória e, portanto, ser dirigida a todas e todos, era necessário, em primeiro lugar, conhecer o que e como se ensinava para assim propor reformas que fossem ao encontro dos objetivos da Unesco desde a formação de professores à reestruturação dos currículos.
Reformas curriculares na década de 1950
A universalização e a obrigatoriedade do ensino primário eram vistos como condições para assegurar o direito à educação. Contudo, ainda era preciso realizar reformas educacionais que atendessem principalmente às necessidade de desenvolvimento econômico e social. As reformas educacionais, em nível mundial, que começaram a ocorrer após a Segunda Grande Guerra, tiveram como objetivo reformar os currículos da escola primária. No que se refere a essas reformas, é necessário revisitar um estudo, publicado pela Unesco em 1958, intitulado Curriculum: revision and research, cujos objetivos, conforme discriminados no texto, consistiram em apresentar os procedimentos adotados em vinte países na revisão de seus currículos, encorajar outros a realizar tais revisões e auxiliar as autoridades educacionais envolvidas nesse movimento. Nessa perspectiva, era possível aprender com as experiências alheias, mas também ter à disposição um órgão como a Unesco, que auxiliaria nas mudanças que se faziam necessárias em nível mundial.
A Unesco partia do entendimento de que, naquele momento, existia uma demanda universal por reformas do ensino. Assim, inobstante as diferenças entre os diversos países, acreditava que as reformas tinham em comum a necessidade de ampliar a prestação de serviços educacionais para a maioria da população em idade escolar, evitar que as crianças abandonassem precocemente a escola, elevar a qualidade da educação adaptando-a às características/aptidões dos alunos e adequar os objetivos e os currículos escolares à sociedade moderna e, portanto, às necessidade do desenvolvimento econômico e social.
Entre os motivos apontados como desencadeadores das revisões, citamos: as mudanças da vida em sociedade, originárias do desenvolvimento e da aplicação de conhecimentos científicos; as modificações nos objetivos da educação; a compreensão dos processos de aprendizagem infantil decorrentes do desenvolvimento dos conhecimentos construídos nos campos da Psicologia, da Biologia e da Educação; a ampliação dos conceitos de democracia e direitos humanos que passaram a incluir todos os cidadãos e cidadãs, independentemente de raça, cor, sexo, religião, filiação política e condição socioeconômica; finalmente a orientação da educação como fundamental para o desenvolvimento econômico.
Na perspectiva da Unesco (1958), a visão tradicional de currículo, entendido como uma lista de disciplinas cujos conteúdos deveriam ser estudados e memorizados pelos alunos, estava sendo substituída por uma perspectiva que compreendia o currículo como todas as atividades, as experiências, os métodos de ensino e outros meios empregados pelos docentes nas escolas para alcançar os objetivos educacionais.
Nesse sentido, o documento de 1958 assinala que havia uma variedade de tendências no planejamento das reformas curriculares, entre as quais realçamos a de destinar a escola primária para a satisfação das necessidades das crianças sem, contudo, desvalorizar a preparação para os estudos posteriores; a de integrar ao conceito de aprendizagem, além da aquisição de conhecimentos e habilidades, outros aspectos como aprender a aprender, aprender a se comportar e aprender a direcionar as ações para o bem-estar alheio e para a realização pessoal; a de reconhecimento de valores culturais, morais, espirituais e condições socioeconômicas; a de manter no currículo apenas o que é essencial, excluindo o que produzia excesso de trabalho e cansaço para discentes e docentes; a de revisão das avaliações tradicionais com a proposição de formas mais funcionais que levassem em consideração o pleno desenvolvimento da personalidade infantil e o conhecimento do assunto avaliado.
A Unesco entendia, assim, que não existia apenas um caminho possível para esse processo de revisão, mas procedimentos distintos ancorados em diferentes concepções de educação, de criança e de aprendizagem que poderiam coexistir dentro de uma mesma região do globo ou de um país. Em 1947, a Organização havia definido as “zonas mais atrasadas” do mundo, assim classificadas: Extremo Oriente; Oriente Médio e Países Islâmicos; África Tropical; América Latina e Índias Ocidentais (Unesco, 1947, p. 126). A América Latina, nesse contexto, “se propôs uma agenda centrada no problema do ‘atraso’ e no desafio do desenvolvimento e da ‘modernização’ de suas sociedades e economias nacionais” (Fiori, 2020, p. 3).
O caso latino-americano ilustrava bem a visão adotada pela Unesco, uma vez que a região, livre do domínio colonial, despontava no imediato Pós-Guerra, como uma das zonas de maior interesse dos organismos internacionais dedicados à promoção de ideais democráticos, de desenvolvimento econômico e social. Sob a ótica da comunidade internacional, as características comuns a esses países seriam sua localização no Hemisfério Ocidental e as origens de seus respectivos idiomas (Bethell, 2009; Bulmer-Thomas, 2003; Hartlyn; Valenzuela, 1998). Sob o ponto de vista autóctone, no entanto, sua experiência colonial compartilhada foi crucial na definição de um “passado comum” a unir os povos latino-americanos. Tal perspectiva conforme veremos, influenciou na definição dos currículos da escola primária na região, sobretudo no que se refere ao ensino da História e língua maternas.
A Unesco (1958) reitera, no texto, que melhorias na educação poderiam ocorrer com o envolvimento de pais, professores, leigos, profissionais e técnicos da educação na revisão dos currículos. Por outro lado, a sua eficácia dependeria do conhecimento sobre o modo como as crianças se desenvolvem e aprendem, além do entendimento sobre as necessidades da sociedade moderna. No entanto, conforme apontado pelo organismo, havia críticos quanto à possibilidade de contribuições do conhecimento científico para eficácia do ensino e dos currículos. De um lado, se posicionavam aqueles que acreditavam que ensinar é uma arte e, de outro, aqueles que consideravam que a sala de aula é uma situação social influenciada por diferentes fatores e, sendo assim, a aprendizagem era afetada por elementos que os currículos não conseguiriam abarcar.
Diante dessas posições, a Unesco assinala que, mesmo na Arte, há lugar para a Ciência e que a pesquisa educacional, especificamente a pesquisa sobre currículos, não se restringia a estudos empíricos ou experimentais baseados em medição e avaliação, mas abrangia estudos que buscavam reinterpretar fatos conhecidos. Nesse sentido, era uma forma de reflexão crítica sobre a experiência e sobre o que havia de novo nela.
Currículos na América Latina
No caso específico da América Latina, a Unesco desenvolveu iniciativas voltadas à compreensão das particularidades regionais dos sistemas de ensino, especialmente no que diz respeito aos currículos da escola primária. O Relatório Final do Seminário sobre Planos e Programas de Estudos da Educação Primária, organizado pela Unesco no Peru, em 1956, contribui para compreendermos a evolução dos currículos na região. A primeira parte das Recomendações aprovadas nesse Seminário faz referência às principais etapas da evolução dos sistemas de ensino, assinalando que, do ponto de vista histórico, os currículos adotados nos países latino-americanos seguiram curso semelhante pelo fato de a região ter sido descoberta, “[...] explorada e colonizada por espanhóis e portugueses” (Unesco, 1961, p. 45).
Com o advento dos regimes republicanos, conforme as Recomendações, houve um esforço para criar uma cultura autóctone, com normas educativas próprias, e que conferisse ao povo latino-americano uma identidade cultural, sobretudo no que se refere ao ensino das línguas maternas, ou seja, buscou-se romper o sistema educacional da Era Colonial, porém as características essenciais dos currículos, até então adotados, persistiram até meados do século XIX (Unesco, 1961, p. 46). Apesar disso, foram notadas duas tendências:
Por um lado, o propósito de formar cidadãos para a República, o que resulta em um enriquecimento dos currículos para incluir as disciplinas de língua nacional, aritmética, cívica e civilidade, religião, geografia, história e cosmografia. Por outro lado, percebe-se a preocupação de universalizar o ensino primário como base para o exercício das prerrogativas do sistema democrático (Unesco, 1961, p. 45).
No início do século XX, essas mudanças começam a ter efeitos e há confecção de dispositivos legais para formulação dos currículos que passam a adquirir um carácter de formação cidadã. Os programas vão além do livro de leitura do tipo enciclopédico, se caracterizando pela presença de textos separados por matéria, embora de forma muito rudimentar (Unesco, 1961, p. 46). A etapa final dessa evolução é caracterizada pelo compromisso, por parte dos governos, em proporcionar a todas as crianças em idade escolar ensino primário gratuito. Essa aceitação é derivada “[...] da convicção de que a educação das crianças referenciada em currículos adequados é o meio mais eficaz de formar cidadãos capazes de criar uma nação próspera e feliz” (Unesco, 1961, p. 47), promessa do regime republicano.
No ano de 1957, a Unesco publicou um estudo intitulado Los programas de enseñanza primaria en América Latina, produzido por Lourenço Filho. Conforme escrito no Prefácio da publicação, o estudo foi elaborado a pedido da Secretaria da Unesco com o objetivo de apresentá-lo na Conferência Regional sobre Educação Gratuita e Obrigatória na América Latina, organizado pela agência e pela Organização dos Estados Americanos (OEA), em Lima, no Peru. Ele também foi colocado à disposição dos participantes da Conferência de Ministros da Educação da América Latina, convocada pela OEA e ocorrida na mesma cidade no período de 3 a 5 de maio de 1956 e, ainda, usado como documento de trabalho no Seminário sobre Planos e Programas de Estudos para a Educação Básica na América Latina realizado em Humpan, de 9 a 22 de maio de 1956.
A Unesco buscou dar ampla divulgação ao estudo elaborado por Lourenço Filho, uma vez que poderia, em primeiro lugar, servir de referência para aqueles países que tinham interesse no agenciamento da Organização, notadamente no que se referia às orientações sobre a extensão da educação primária e ao aprimoramento dos currículos. O projeto de expansão da educação primária, a ser realizado a longo prazo, conforme registrado no estudo realizado por Lourenço Filho (1957), visava, assim, auxiliar os estados-membros da Unesco no planejamento do ensino no que se refere à formação de professores e especialistas em currículo.
Ao apresentar uma análise comparativa dos programas de ensino primário adotados na América Latina, o levantamento empreendido tornou-se fundamental para promover uma ação orientada em nível regional pelos pressupostos educacionais vindos da Unesco. O estudo permitiu ainda que os docentes da região e de outras partes do mundo conhecessem uma primeira abordagem da situação da educação na América Latina que, de acordo com o registrado no Prefácio, a partir da decisão da Conferência Geral realizada da Unesco em Nova Delhi, em novembro de 1956, seria destinatária de um projeto especial de educação.
Segundo Lourenço Filho (1957), o estudo objetivou identificar diferenças e semelhanças nos programas adotados, assim como se eles levavam em conta as necessidades econômicas e sociais de desenvolvimento em que foram aplicados. Considerando os seus objetivos, o relatório do estudo foi organizado em duas seções. Nossa atenção se voltou para a primeira, na qual são apresentados os programas de ensino, atendo-nos ao conteúdo a ser ensinado na fase inicial de escolarização. É importante salientar que os dados analisados pelo autor foram produzidos anos antes, entre 1942 e 1955, tendo sido fornecidos pela Secretaria da Unesco.
Tomamos apenas alguns aspectos do relatório para entender principalmente quais conhecimentos/conteúdos eram trabalhados nas escolas primárias latino-americanas. Assim, no que se refere ao órgão responsável pela organização dos programas, é necessário, em primeiro lugar, salientar que, exceto no Brasil, os programas eram unificados nos demais países. Assim, são apresentados elementos que nos permitem identificar a duração do ensino primário e as disciplinas constantes nos programas. Lourenço Filho (1957) salienta que, nos planos e nos programas de ensino dos países de língua espanhola, é utilizada a terminologia “disciplinas” ou “matérias”.
No Brasil, no entanto, os componentes curriculares eram denominados disciplinas. Assim, o autor preferiu usar, em seu relatório, o termo “disciplina” para designar o ramo de estudos ou práticas educacionais constantes nos programas e o termo “matéria” para denominar o conteúdo total do programa de cada disciplina. Assim, com os dados do estudo, construímos o Quadro 1 que permite discriminar a situação de cada país latino-americano, quanto à duração do ensino primário, etapas e disciplinas constantes nos currículos do 1º ano:
Quadro 1 – Situação dos países quanto à duração do ensino primário
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País |
Duração |
Etapas |
Disciplinas constantes nos programas do 1º ano |
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Argentina |
7 ou 6 anos para todas as escolas |
Inferior e superior |
Aritmética; geometria; gramática, incluindo leitura e escrita; geografia; história; educação cívica; natureza; poupança e provisão; música; desenho; trabalhos manuais e ginástica |
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Bolívia |
6 anos para as escolas urbanas |
- |
Leitura; recitação; aritmética; geografia; moral e cidadania; ciências naturais e físicas; música; ginástica; exercícios de gramática |
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Brasil |
5 anos |
Elementar e complementar |
Leitura e gramática, iniciação à matemática, geografia e história do Brasil; conhecimentos gerais aplicados à vida social e educação para a higiene e o trabalho; desenho e artesanato; cantando coral; educação física. |
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Chile |
6 anos nas escolas urbanas |
- |
Educação física; castelhano; matemática; ciências naturais; ciências sociais (incluindo história e geografia); artesanato educacional; trabalhos práticos domésticos; atividades agrícolas; artes plásticas; caligrafia; música e canção; religião e moral |
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Colômbia |
5 anos nas escolas urbanas |
- |
Religião e história sagrada; leitura e escritura; urbanidade; educação cívica e higiênica; cantando; desenho; trabalho manual e práticas agrícolas; educação física; aritmética e noções de história e geografia |
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Costa Rica |
6 anos |
- |
Matemática; estudo da natureza; geografia e história; língua materna; educação física; trabalhos manuais; educação agrícola e industrial, música e religião |
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Cuba |
6 anos |
Divididos em dois ciclos de 3 anos |
Leitura; escrita; gramática; estudo da natureza; aritmética; desenho; trabalhos manuais; educação moral e cívica; educação física; educação musical. |
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Equador |
6 anos |
Divididos em 3 etapas de 2 anos |
Língua nacional; matemática; educação para a vida social e cívica (incluindo geografia e história); ciências naturais; higiene; atividades artísticas e manuais; educação doméstica |
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Guatemala |
6 anos |
- |
Gramática; estudo da natureza; estudos sociais; matemática; práticas agrícolas; trabalhos manuais; educação física; educação estética |
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Haiti |
6 anos |
Divididos em 3 ciclos de 2 anos |
Leitura, escrita e língua francesa; cálculo e geometria; instrução religiosa; desenho; geografia e história; trabalho manual e educação física, educação moral |
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Honduras |
6 anos nas escolas urbanas |
- |
Educação física; castelhano; matemática; ciências naturais; estudos sociais; artes industriais; educação em casa; trabalho agrícola; artes plásticas; música e canto |
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Peru |
5 anos |
Divididos em 2 ciclos |
História natural; vida social; cálculo; gramática e outros meios de expressão; cursos especiais; educação moral e religiosa; educação física |
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República Dominicana |
5 anos |
- |
Língua espanhola; matemática; estudo da natureza; religião; atividades artísticas, manuais e esportivas; práticas de civilidade e higiene |
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El Salvador |
6 anos |
Divididos em 3 ciclos de 2 anos |
Língua nacional; matemática; estudo da natureza; estudos sociais; canto e música; educação física; artes e ofícios |
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Uruguai |
6 anos nas escolas urbanas |
- |
Aritmética e geometria; língua nacional; desenho; escrita; trabalhos manuais; cantando |
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Venezuela |
6 anos |
- |
Gramática; matemática e cálculo elementares; ciências da natureza; higiene; educação física; educação manual e estética |
Fonte: Elaboração dos autores (2023) com base em Lourenço Filho (1957).
Podemos observar que havia variação quanto ao número de anos do ensino primário: a maioria tinha seis anos de duração, podendo esse número variar de acordo com a localização da escola: se urbana ou rural. Na Argentina, no Brasil, em Cuba, no Equador, no Haiti, no Peru e em El Salvador, o ensino primário era dividido em ciclos. As disciplinas são muito variadas, havendo forte presença de trabalhos manuais, o que indica a necessidade de a escola primária, desde o 1º ano, ensinar disciplinas que pudessem estar relacionadas com o preparo para o trabalho e para a vida profissional. Cumpre assinalar ainda, para além das disciplinas voltadas ao ensino da língua materna e da aritmética, aquelas relacionadas a história e geografia, moral e cívica, revelando um certo padrão do que se considerava, nos diversos países da região, como elementar para a formação cidadã.
Quanto aos objetivos expressos nos programas de ensino, Lourenço Filho (1957) salienta que, no capítulo introdutório dos documentos de 13 países, foram expostas as finalidades gerais da educação primária, destacando aspectos políticos e sociais e problemas econômicos. Somente nos programas do Brasil, do Haiti, da Nicarágua, do Paraguai, da República Dominicana, de El Salvador e da Venezuela, os objetivos não estavam explicitados. Com relação à gradação dos objetivos das disciplinas, o autor demonstra o que ocorria em sete países, destacando que a sequenciação era muito semelhante na maioria dos casos. Assim, mostraremos, com base no estudo e a partir do Quadro 2, a gradação no primeiro e no segundo ano das matérias de idioma oral, leitura e escrita.
Quadro 2 – Língua materna: gradação das matérias do 1º e 2º ano
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Argentina |
Bolívia |
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Fonte: Adaptação dos autores (2023) a partir de Lourenço Filho (1957).
A gradação construída por Lourenço Filho permite inferir que os currículos das escolas nos países da América Latina listados no Quadro 2 eram compostos por duas disciplinas: idioma oral e leitura e escrita. As matérias destacadas objetivavam o desenvolvimento da linguagem oral e a aquisição de conhecimentos sobre a leitura e a escrita. É importante notar que as matérias compreendiam conhecimento das vogais e das consoantes, das sílabas, de palavras e frases, de redação e de aspectos gramaticais e ortográficos.
Os programas de ensino, conforme analisado pelo autor do estudo, recomendavam, prescreviam e proibiam o uso de métodos de ensino da leitura. Os programas do Chile, da Costa Rica, de Honduras, do Panamá, da República Dominicana e da Venezuela orientavam o uso do método ideovisual ou global. Os demais países prescreviam expressamente, segundo o autor, o emprego do método de palavração (palavras normais) ou de palavras-chave. Os programas da Nicarágua e de alguns estados do Brasil definiram que os métodos seriam escolhidos pelos professores, porém proibiam o uso do método alfabético. O programa do Haiti recomendava o uso do método misto. Ao final da primeira parte do estudo, Lourenço Filho (1957) conclui, com base nos resultados alcançados, que, na América Latina, os programas possuíam mais semelhanças do que diferenças. As semelhanças podiam ser explicadas, segundo o autor, não somente pelo fato de os países terem origem cultural “idêntica”, mas também por fatores relacionados à formação de professores e de especialistas em educação.
Outro aspecto destacado refere-se ao fato de que os primeiros modelos de instituições de ensino foram introduzidos na América Latina por congregações religiosas católicas (dominicanos, jesuítas e franciscanos) antes do século XVI. Com a independência das antigas colônias, os primeiros ensaios de instituições de ensino públicas seguiram os modelos deixados pelos religiosos que, depois, foram modificados para imitar modelos europeus, principalmente os oriundos da França. No Brasil, segundo Lourenço Filho (1957), a reforma realizada pelo Ministro Francois Guizot[1], em 1833, na França, inspirou a maioria dos sistemas escolares provinciais. Mais tarde, começaram a ser sentidas as influências advindas dos Estados Unidos. Essas últimas, vistas pelo autor como expressão do amplo movimento da Escola Nova, começavam a ser percebidas com mais intensidade após a Primeira Guerra Mundial, fundindo com outras influências advindas da Europa.
Esse ideário encontrou centros de divulgação em vários países da América Latina por meio das escolas experimentais e institutos de investigação pedagógica e pela circulação de uma abundante bibliografia de obras traduzidas e trabalhos originais de autores latino-americanos. A União Pan-Americana iniciou uma série de publicações especializadas e, com a cooperação da Unesco, reuniu administradores de ensino e pedagogos em congressos, conferências e seminários. Com a assistência da Unesco, também foi criado, por exemplo, o Centro Regional de Educación Fundamental para la América Latina (Crefal), a Editorial Latinoamericana de Educación Fundamental e a Escuela Normal Interamericana. Todos esses movimentos, entre outras ações da Unesco, ajudaram o autor a explicar a semelhança entre os programas de ensino da escola primária na região latino-americana.
Lourenço Filho (1957) admite ainda que os programas foram influenciados pelos trabalhos dos seminários realizados em Caracas (1949), no Rio de Janeiro (1949) e em Montevidéo (1950). Todos esses encontros trataram da educação rural, da educação fundamental e da educação primária. No último, foram preparadas recomendações para os programas de ensino primário, sintetizados da seguinte maneira pelo autor: “a) a ‘atividade’ como base do trabalho educativo; b) ‘globalização’, como critério normativo; e c) o ‘conhecimento’ transformado em técnica, critério e conduta, como objetivos” (Lourenço Filho, 1957, p. 27).
Desse modo, podemos concluir que a defesa da obrigatoriedade da escola primária é acompanhada por ações da Unesco na busca por conhecer os currículos existentes nos países latino-americanos. Destaca-se desse processo o interesse da Organização pelos currículos que orientavam o ensino da leitura e da escrita nos anos iniciais de escolarização, assim como nos métodos de alfabetização a serem adotados pelos professores. Analisados no contexto do Pós-Guerra, os estudos, somados à participação desses países nos diversos eventos conclamados pela Unesco, revelam a busca por uma integração regional com vistas à projeção da região no cenário internacional, na medida em que a padronização do ensino, nos primeiros anos de escolarização, por suposto, implicaria na melhoria dos índices de alfabetização e, por conseguinte, no padrão de desenvolvimento social da região, vista como “atrasada” e prenhe de programas de universalização do ensino primário.
Considerações finais
A experiência traumática provocada pela Segunda Grande Guerra desencadeou movimentos de solidariedade que se aglutinaram, entre as décadas de 1940 e 1950, em torno da ONU e de suas agências. A dor e o sofrimento provocados pelas perdas humanas no contexto da Guerra, sobretudo a partir dos bombardeios atômicos a Hiroshima e a Nagasaki em agosto de 1945, orientaram as ações da Organização para uma preocupação central: como evitar que o impulso trazido pela Ciência moderna conduzisse a humanidade, uma vez mais, à barbárie? Era preciso reconstruir o tecido humano ora desfeito a partir de um projeto de educação que se queria universal, gratuito e obrigatório, tal como assegurava a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948).
Sem perder de vista seu objetivo primeiro, a Unesco empreendeu assim um movimento mundial na forma de programas e ações voltados à universalização da escolaridade obrigatória, com foco na escola primária. Recorreu, para tanto, aos pressupostos da própria Ciência moderna ao realizar estudos de situação com vistas à produção de dados sobre o estado geral da educação primária, sobretudo nas zonas mais “atrasadas” do Globo, elegendo a América Latina como embrionária de um projeto amplo de reformas curriculares. Reformar os currículos tornou-se, dessa forma, elemento-chave para “formar”, igualmente, a mente daqueles que poderiam contribuir para a promoção de ideais democráticos, de modernização nacional e de desenvolvimento social que, por suposto, evitariam uma nova “era da catástrofe” naquele já conturbado século XX.
Muito embora defendesse a não existência de modelos prontos para a reorganização dos currículos escolares, a Unesco fez prevalecer a noção de que era preciso propiciar às crianças condições de aprender a aprender, aprender a se comportar e aprender a direcionar as ações para o bem-estar alheio e para a realização pessoal, atuando, ao fim e ao cabo, como um agente singular na definição dos currículos nacionais latino-americanos. Por sua vez, os sistemas de ensino, ao definirem, de maneira unânime, seus currículos a partir da priorização do idioma oral e da leitura e escrita, reforçaram a crença na alfabetização como o meio mais eficaz de formar cidadãos capazes de criar uma nação moderna, solidária, próspera e feliz nos moldes do pensamento pacifista, de viés técnico-científico, que emergiu ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Referências
BETHELL, Leslie. O Brasil e a ideia de “América Latina” em perspectiva histórica. Tradução de Érica Cristina de Almeida Alves. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 22, n. 44, p. 289-321, jul./dez. 2009. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-21862009000200001. Disponível em https://www.scielo.br/j/eh/a/wDjSryQpkTFYcKBMHqwfNKD/abstract/?lang=pt. Acesso em: 25 nov. 2023.
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HARTLYN, Jonathan; VALENZUELA, Arturo. Democracy in Latin America since 1930. In: BETHELL, Leslie (Ed.). Latin America: politics and society since 1930. New York: Cambridge University Press, 1998. p. 3-66.
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Nota
[1] Tornous-se ministro da Instrução Pública da França, em 1832, quando iniciou o trabalho de reorganização das escolas do país (Weiss, 2001, p. 58).