Inventários, coleções, narrativas como dispositivos de formação no estágio de docência para a Educação Infantil

Inventories, collections, narratives as training devices in the teaching internship for Early Childhood Education

Inventarios, colecciones, narrativas como dispositivos de formación en las prácticas de docencia para la Educación Infantil

 

Luciana Esmeralda Ostetto

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil

lucianaostetto@id.uff.br

 

Recebido em 27 de junho de 2024

Aprovado em 11 de setembro de 2024

Publicado em 03 de abril de 2025

 

RESUMO

O contato de profissionais em formação com seu campo de atuação é apontado como imprescindível para a aprendizagem de uma profissão. No caso do magistério, se as universidades cumprem um papel decisivo e insubstituível nos percursos formativos de um iniciante, a contribuição de profissionais mais experientes é também inconteste. Neste texto, considera-se o estágio como uma das vias de aproximação ao território de atuação e ao coletivo de profissionais já engajados na profissão e, desse ponto, discorre-se sobre uma proposta de estágio de docência para a atuação na Educação Infantil. Na discussão, apresenta-se o inventário de experiência como um dispositivo que reúne coleções e narrativas de cenas observadas no dia a dia de creches e pré-escolas, documentando o percurso. Argumenta-se que, como um artefato narrativo-pedagógico, o inventário intensifica o tecido de sínteses integradoras sobre a experiência de estar no campo de atuação. No entrelaçamento de teoria e prática que circundam a temática do estágio, um conjunto de inventários, produzidos por estudantes-estagiários do curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense é tomado em análise. O diálogo com as narrativas textuais e imagéticas (coleções) evidenciou aspectos que envolvem a prática docente na Educação Infantil, como a organização do espaço, as interações e a brincadeira. A aprendizagem da escuta e do registro, centrais para a reflexão que configura e adensa saberes-fazeres docentes, também foi identificada. Assim, o inventário de experiência mostrou-se um dispositivo formativo fértil, no âmbito do estágio docente.

Palavras-chave: Formação docente; Estágio de Educação Infantil; Inventário de experiência.

 

ABSTRACT

The contact of professionals in training with their field of activity is seen as essential for learning a profession. In the case of teaching, if universities play a decisive and irreplaceable role in the training path of a beginner, the contribution of more experienced professionals is also undeniable. In this text, the internship is considered as one of the ways of approaching the territory of activity and the collective of professionals already engaged in the profession and, from this point, a proposal for a teaching internship for work in Early Childhood Education is discussed. In the discussion, the experience inventory is presented as a device that brings together collections and narratives of scenes observed in the daily life at daycare centers and preschools, documenting the journey. It is argued that, as a narrative-pedagogical artifact, the inventory intensifies the fabric of integrative syntheses about the experience of being in the field of action. In the intertwining of theory and practice that surround the theme of the internship, a set of inventories, produced by student-interns of the Pedagogy course at Universidade Federal Fluminense, is taken into analysis. The dialogue with textual and image narratives (collections) highlighted aspects that involve teaching practice in Early Childhood Education, such as the organization of space, interactions, and play. Learning to listen and to keep records, central to the reflection that configures and deepens teaching know-how, was also identified. Thus, the experience inventory proved to be a fertile training device within the scope of the teaching internship.

Keywords: Teacher training; Early Child Education teaching internship; Experience inventory.

 

RESUMEN

El contacto de profesionales en formación con su campo de actuación es señalado como imprescindible para el aprendizaje de una profesión. En el caso del magisterio, si las universidades cumplen un papel decisivo e insustituible en los transcursos formativos de un iniciante, la contribución de profesionales con más experiencia es también inconteste. En este texto, se considera a las prácticas como una de las vías de aproximación al territorio de actuación y al colectivo de profesionales ya comprometidos con la profesión y, de ese punto, se discurre sobre una propuesta de prácticas de docencia para la actuación en la Educación Infantil. En la discusión, se presenta el inventario de experiencia como un dispositivo que reúne colecciones y narrativas de escenas observadas en el cotidiano de jardines infantiles y preescolares, documentando su recorrido. Se argumenta que, como un artefacto narrativo-pedagógico, el inventario intensifica el tejido de síntesis integradoras sobre la experiencia de estar en el campo de actuación. En el entrelazamiento de teoría y práctica que circundan la temática de las prácticas, un conjunto de inventarios, producidos por estudiantes-practicantes del curso de Pedagogía de la Universidad Federal Fluminense es tomado en análisis. El diálogo con las narrativas textuales e imagéticas (colecciones) evidenció aspectos que involucran la práctica docente en la Educación Infantil, como la organización del espacio, las interacciones y los juegos. El aprendizaje de la escucha y del registro, centrales para la reflexión que configura y adensa saberes-haceres docentes, también fue identificado. Así, el inventario de experiencia se mostró como un dispositivo formativo fértil en el ámbito de las prácticas docentes.

Palabras clave: Formación docente; Prácticas docentes de Educación infantil; Inventario de experiencia.

 

Ao modo de introdução: como alguém aprende a ser professor?  

Conhecer as crianças reais e plurais que habitam os espaços de Educação Infantil, reconhecer saberes e fazeres singulares de meninas e meninos, acolher seus movimentos de buscas e experimentações, de fantasias e brincadeiras, de interações e expressões com múltiplas linguagens são princípios orientadores da prática docente na primeira etapa da Educação Básica. Decorrentes tanto das diretrizes legais quanto de estudos e pesquisas desse campo, esses princípios, como fios a serem tecidos nos percursos com as crianças, exigem escuta atenta, olhar sensível e presença respeitosa de quem as acompanha, na consecução dos objetivos indissociáveis da Educação Infantil: cuidar-e-educar.

Tais princípios e objetivos colocam desafios à formação docente, pois implicam diferentes esferas de saberes que precisam ser apropriados. São fundamentos conceituais que permitem compreender o campo de atuação em perspectiva interdisciplinar, passando pelo âmbito histórico e legal e situando determinações que fundam a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica. São também fundamentos teórico-práticos que envolvem a profissão, entre eles o papel docente e seus instrumentos de trabalho – planejamento, registro, avaliação.

Entre saberes e fazeres, entre fundamentos e experiências que atravessam propostas e processos da/na formação docente universitária, recordamos a pergunta formulada por Nóvoa (2017, p.1113): “Como é que uma pessoa aprende a ser, a sentir, a agir, a conhecer e a intervir como professor?”. Tal como enunciada, a questão desvela camadas que estão a compor a profissionalidade docente: no aprender a ser professor, sentimentos, ações, conhecimentos e intervenções também estão sendo apreendidos. No caso específico da docência na Educação Infantil, como uma pessoa aprende a ser um professor[1] que escuta as crianças, acolhe seus modos próprios de ser-estar, interpreta as escutas e articula sentidos para efetivar ações pedagógicas de planejar, registrar e avaliar?

Essas indagações situam-nos sobre os diferentes âmbitos/percursos nos quais/pelos quais alguém se forma/aprende a profissão docente. Nóvoa (2017), em diálogo com outros autores, sobre os contornos próprios a cada profissão e os modos pelos quais ela é apropriada, resume que, no processo,

 

[...] há sempre uma síntese de três aprendizagens: uma aprendizagem cognitiva, na qual se aprende a pensar como um profissional; uma aprendizagem prática, na qual se aprende a agir como um profissional; e uma aprendizagem moral, na qual se aprende a pensar e agir de maneira responsável e ética (Nóvoa, 2017, p.1114).

 

Em que tempos e espaços tais aprendizagens se efetivam? Certamente, não apenas no tempo restrito da formação inicial/universitária. No caso da profissão docente, em sua complexidade, pensar e agir com responsabilidade e ética, como um professor, é um processo atravessado pela história de vida de cada um, pelos saberes disciplinares advindos dos vários campos de conhecimento que fundamentam o percurso teórico, assim como pelos saberes da prática, tecidos no território educativo, com sua organização, relações e demandas próprias desse campo de atuação profissional (Nóvoa, 1992). Assim sendo, tornar-se professor é obra da vida inteira, ato continuado que aponta para a expansão de si, pessoa-profissional, no movimento espiralado que integra diferentes temporalidades e espacialidades existenciais (Ostetto, 2008).

Preparar para as “profissões do humano”, como o magistério, além de uma sólida formação de base, para a qual as instituições universitárias cumprem papel decisivo, exige “[...] uma participação dos profissionais mais experientes” (Nóvoa, 2017, p. 1114). Esse apontamento leva-nos a pensar na importância do estágio como via de acesso e aproximação ao contexto e organização pedagógico-educativa, portanto como campo de aprendizagem profissional.

 

Estágio: contato, vivência, companhia no terreno da profissão

O eixo de qualquer formação profissional é o contacto com a profissão, o conhecimento e a socialização num determinado universo profissional. [...] não é possível formar professores sem a presença de outros professores e sem a vivência das instituições escolares (Nóvoa, 2017, p.1122).

 

No terreno da formação inicial docente, o estágio afigura-se como espaço-tempo para entrar em contato com a profissão, vivenciar a concretude de instituições educacionais, estar em companhia de professores. Estagiar oportuniza a experiência múltipla de estar no campo, de estar com outros professores, de vislumbrar atos e fatos da profissionalidade que desponta no horizonte do processo em que um estudante-professor-em formação está imerso. No movimento de ir ao encontro de contextos educativos, singularidades e complexidades dos modos de fazer e pensar, que dão forma aos saberes profissionais, são visibilizados e podem ser capturados. Quando os estudantes se deslocam para as instituições que os receberão como estagiários, eles percorrem um caminho de aproximação do campo e dos conhecimentos da profissão docente, perpassando dimensões não apenas pedagógicas, mas também humanas.

Assim, o estágio projeta-se como encontro – com as crianças, com os professores e demais profissionais, com os espaços, com os tempos, com a estrutura administrativo-pedagógica –, que fecunda a oportunidade de expandir os conhecimentos curriculares (Ostetto, 2011). Pela mediação de parceiros mais experientes, saberes teóricos e práticos podem ser mobilizados pela atitude essencial, e permanente, de observação, reflexão e ação. As perguntas/dúvidas comuns aos iniciantes – o que fazer, como fazer, por que fazer – abrem espaço para adensar a articulação entre prática e teoria, que se vai evidenciando como um par dialético imprescindível a ser cultivado. Em vista do exposto, a percepção do estágio como um tempo-espaço de estar com é deveras apropriada.

 

Estagiar é estar com, é habitar por um certo tempo um espaço formativo complexo e, por isso mesmo, especialmente adequado para potencializar a aprendizagem dos saberes docentes e para fertilizar pesquisas sobre o cotidiano educativo, seja identificando temas que podem ser investigados ou precisam ser aprofundados, seja construindo ou fortalecendo atitudes investigativas [...] (Ostetto, 2012, p. 20).

 

Pelas vias dessa concepção, o estágio mostra-se, também, como um tempo de pesquisa e prática pedagógica, pois possibilita o encontro e a interlocução, não apenas entre os profissionais que atuam como docentes e os estudantes-profissionais-em formação para a docência, mas também entre a universidade e as instituições da Educação Básica, cada vez mais firmadas como coformadoras de novos profissionais para a educação.

No curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF), o estágio curricular obrigatório efetiva-se por meio do componente denominado Pesquisa e Prática Educativa (PPE), que se desdobra em quatro momentos: PPE I, PPE II, PPE III, PPE IV, cada qual com um foco específico. A formação docente para a Educação Infantil é a ênfase do PPE II, cujo objetivo geral segue a definição ampla, que guia todos os demais componentes do PPE:

 

Considerando a docência como a base da formação do licenciando e a escola como lócus privilegiado de atuação profissional, situar-se no campo da educação e ampliar o diálogo com instituições da educação básica, tomando a prática pedagógica como campo de pesquisa, alargando olhares, saberes e fazeres sobre o cotidiano educativo, suas relações e interações (UFF, 2018, p. 42).

 

No desenho curricular, o PPE II encontra-se no quarto período do curso, embora possa ser integralizado em outros períodos, a depender do plano de atividades de cada estudante, haja vista que não há pré-requisitos. Direcionando as ações às especificidades da Educação Infantil, a ementa desse componente aponta para os propósitos de conhecer a estrutura e organização do trabalho educativo desenvolvido na primeira etapa da Educação Básica, em instituições que cuidam e educam crianças de zero a seis anos de idade e investigar dimensões da prática educativa, por meio da observação e do acompanhamento de grupos de crianças e de suas professoras.

Dentre as inúmeras questões atinentes à proposta, inclusive críticas cabíveis quanto a questões de estrutura, acompanhamento e carga horária, no espaço-tempo da discussão que se pretende tecer no decorrer deste texto, destacamos a dimensão investigativa envolvida na proposta, trazendo ao diálogo dispositivos que contribuem para a experiência de acompanhar os grupos de crianças em seus cotidianos, observando, registrando, produzindo memórias e reflexões, circunscrevendo percursos formativos.

 

Olhar, escutar, interrogar o real

Considerando a dinâmica de tempos, espaços, propostas e relações que estruturam o cotidiano da Educação Infantil, a observação atenta – ver, escutar, refinar os sentidos – é imprescindível para poder alargar o campo de significação dos “dizeres” de meninos e meninas, desde bebês, assim como dos contextos e dos tantos elementos que os compõem.

 

Através da observação e da escuta atenta e cuidadosa às crianças, podemos encontrar uma forma de realmente enxergá-las e conhecê-las. Ao fazê-lo, tornamo-nos capazes de respeitá-las pelo que elas são e pelo que elas querem dizer. Sabemos que, para um observador atento, as crianças dizem muito, antes mesmo de desenvolverem a fala (Gandini; Goldhaber, 2002, p. 152).

 

É da ação de observar e do registro sobre o que foi observado que se poderá tecer propostas que façam valer a ideia de currículo firmada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) – Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Segundo o art. 3º desse documento:

 

O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade (Brasil, 2009, p. 18).

 

Justamente pela complexidade de praticar um currículo assim concebido, que implica articular saberes e experiências das crianças com os conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade em seus diversos campos, é necessário problematizar os modos de ver de professoras e de professores.  Olhar as crianças, escutando-as com todos os sentidos, é um movimento decisivo para capturar a diversidade de elementos no seu existir em relação ao seu entorno – os espaços em que habitam, os tempos em que se movimentam, as propostas que são partilhadas com elas. Mais do que isso, é um movimento para interrogar os elementos capturados. E esse olhar que interpela o real não é natural, pois resulta de um intenso aprendizado.

Um renomado fotógrafo, ao contar sobre seu processo de produção fotográfica, ponderou:

 

É preciso olhar, e olhar é tão difícil. Estamos acostumados a pensar. Pensamos o tempo todo, mais ou menos bem, mas não podemos ensinar as pessoas a ver. Demora muito. Aprender a olhar leva um tempo enorme. Um olhar que pese, que interrogue (Cartier-Bresson, 2015, p. 57).

 

Tal como o olhar fotográfico, olhar as crianças é difícil! Implica desacostumar o pensamento genérico, superficial, fixado, sobre o que é ser criança, desta ou daquela idade. No caso da docência, na intencionalidade de mirar crianças e cotidianos, será fundamental limpar as lentes, posicionar-se em um ângulo diverso daquele habitual, abrir-se para a captura do que ordinariamente escaparia: buscar outros pontos de vista, para identificar e (a)colher essencialidades, iluminar o instante irrepetível em que as crianças falam de suas curiosidades, de seus saberes, de seus desejos, revelando suas experiências no/sobre/com o mundo. Essas atitudes podem ser potencializadas pelo exercício de observar, registrar e refletir (Gandini; Goldhaber, 2002; Ostetto, 2008; Rinaldi, 2012), como vias imprescindíveis para a interpretação e a articulação entre expressões, silêncios, gestos, desejos e necessidades capturados.

É por essas trilhas que professores e professoras alimentam a intencionalidade pedagógica que se reflete no planejamento organizado com maior significado, porque toma as crianças como ponto de partida ou, tal como apontado nas DCNEI: a criança como centro do projeto pedagógico (Brasil, 2009). Da observação à reflexão, registrar demanda contar o que foi visto e ouvido. Como contar o cotidiano de instituições de Educação Infantil – ações, interações e proposições de crianças e adultos que partilham tempos, espaços, materiais – a partir das capturas de olhares?  Como narrar o que a fotografia e as notas escritas recolheram, de um cotidiano dinâmico, composto com diferentes ritmos? Mais do que questões, são aprendizados que se mostram na caminhada de se fazer docente das infâncias, o que também implica refletir sobre o observado e tecer interpretações sobre o narrado.

No papel de estagiário, ações, experiências e relações de outros protagonistas são documentadas, mas o ato mesmo de estar com, de estar no, de habitar por um certo tempo, o cotidiano da creche ou pré-escola, campo de estágio, é passível de registro e reflexão. Nesse ponto, estamos no terreno do registro e da documentação e dialogamos com os sentidos da documentação trazidos por Gandini e Goldhaber (2002), como uma prática que rompe com a ideia de coleta objetiva, e impessoal, de dados. Em suas palavras:

 

A documentação não é considerada uma mera coleta de dados realizada de maneira distante, objetiva e descompromissada. Pelo contrário, ela é vista como uma observação aguçada e uma escuta atenta, registrada através de uma variedade de formas pelos educadores que estão contribuindo conscientemente com sua perspectiva pessoal (Gandini; Goldhaber, 2002, p. 151).

 

Experimentar modos de ver e de dizer: o retrato fixado provoca diálogos sobre teoria e prática

Um exercício proposto ao grupo de estudantes de Pedagogia que se prepara para a jornada de estágio: observar-analisar cenas fixadas em retratos fotográficos, protagonizadas por crianças e produzir narrativas. As imagens são projetadas, e o jogo do modo de olhar e do modo de descrever o que foi olhado tem início: olhar e descrever o contexto em que a cena ocorre, perceber o que está acontecendo, identificar quem está na cena, reparar nos gestos, nas expressões, nas ações. Como são imagens congeladas, há um convite para a imaginação e a autoria, para dar visibilidade às tramas observadas com tons, estilos e modos próprios de dizer-escrever.

As fotografias apresentadas são as mesmas para a turma toda, com a comanda: Faça de conta que você está lá, em um dia de estágio, e capturou essa cena. Como você a descreveria? Que narrativa teceria? Quando as narrativas são compartilhadas, percepções e descrições diferentes são evidenciadas, na forma e no conteúdo. Não poderia ser de outra maneira, haja vista que cada observador olha de um ponto de vista e carrega consigo, ou projeta, suas compreensões sobre o real visto. Para ampliar a compreensão da proposta, compartilhamos, na Figura 1, uma cena exibida para a observação e o registro dos estudantes e, na sequência, duas narrativas produzidas pelas estudantes Ângela e Mônica[2].

 

Figura 1 – O que é visto? Como pode ser narrado?

Fonte: Série de fotografias extraídas do Facebook e editadas pela autora.

 

Construindo juntos. Na atividade com as crianças do Infantil 2, registrei a cena do Carlos e sua professora. Com um pincel, a professora pinta uma das mãos do menino e a direciona para uma folha branca, tipo ofício, deixando então o formato da mão da criança no papel. Pode-se perceber que a professora direciona todo o processo de construção, e o Carlos está atento à atividade, observando minuciosamente cada passo realizado. Através dessa atividade, percebo uma construção mútua sendo realizada, assim como o trabalho com as cores, a exploração de formatos e dos sentidos (tato e visão) (Narrativa da Estudante Ângela).

 

Carimbo. Hoje, a professora que acompanho realizou uma atividade de carimbo de mão com as crianças, chamando uma por uma. Nesse registro, vemos que ela pintava, segurava e carimbava a mão de um menino, com tinta verde. Carimbos de mão fazem parte da Educação Infantil. Está na essência dessa fase do desenvolvimento atividades desse tipo. Acredito que elas podem ser bem legais e bonitas também. Às vezes, para uma atividade que precise estar mais padronizada e arrumada, por requisição da escola, ela é válida, e esse tipo de direcionamento é necessário. No entanto, creio que esse tipo de proposta não seja tão válido no âmbito do desenvolvimento pessoal da criança. Ela não produz, não cria, não faz, não tem liberdade, é apenas objeto daquela manipulação. Portanto, creio que, apesar de válida, a criança está na fase de criar e desenvolver suas habilidades manuais por conta própria (Narrativa da Estudante Mônica).

 

Deixamos ao leitor o diálogo interpretativo das narrativas das duas estudantes, pois queremos apenas destacar as singularidades de como foram vistos e significados os elementos que compõem a cena – os gestos, a proposta, os materiais, a ação docente, a criança –, traduzindo compreensões sobre o papel do professor e das propostas pedagógicas na Educação Infantil.

Esse exercício permite bons diálogos e problematizações sobre teoria e prática na formação docente e no cotidiano pedagógico. As produções escritas, articulando observação, registro e reflexão, apontam temas para estudo/debate. Por sua vez, os registros trazem à tona, na linguagem utilizada, algumas especificidades da Educação Infantil que requerem ser discutidas, repensadas e redefinidas: alunos, sala de aula, aula, em geral, aparecem nas primeiras narrativas. As palavras utilizadas nos modos de dizer sobre uma cena observada, seja na fotografia, seja na presença no dia a dia, carregam concepções, revelam modos de ver e de compreender a docência e o espaço da Educação Infantil, sem dúvida!

Na experiência com diferentes grupos, é muito comum se referirem a: aluno (e não criança), sala de aula (e não sala de referência), aula e/ou hora da atividade (e não percurso e/ou propostas). No exercício de dizer, e à medida que os referenciais teóricos também se ampliam, as palavras empregadas em um relato vão sendo questionadas e, no decorrer da produção de outras observações/narrativas, são suprimidas, dando lugar, nos registros e nas discussões, com firmeza e intencionalidade, a: crianças, salas de referência, propostas.

Testemunhamos que a autoria de estudantes-educadores em formação se projeta nas narrativas: ao longo do processo, elas ganham densidade descritiva e analítica, vão sendo habitadas com modos próprios de dizer. Criação, invenção e imaginação, como dimensão estética constitutiva da aprendizagem (Rinaldi, 2012), vão ocupando formas de um discurso, de um pensar-fazer que, na continuidade, no encontro com crianças e com espaços concretos – no estágio e na atuação docente –, poderá ser acionado. Interessante assinalarmos também que, no início do processo de observar fotografias/cenas, os pequenos relatos aparecem soltos, sem a preocupação com uma forma e estética narrativa, sem títulos, por exemplo. Na partilha dos registros, o grupo entra em contato com diferentes estilos textuais, captam nuances do autor e são instigados a revisarem seus próprios relatos, refinando forma e conteúdo, dando melhores contornos, inclusive atribuindo-lhes um título.

 

Em campo: modos de dizer amplificados em coleções

O exercício narrativo, experimentado em sala, na universidade, desdobra-se como orientação para a observação e o registro, no campo de estágio. Nesse momento, um roteiro de observação é disponibilizado, propondo: Exercitar o olhar sensível sobre as crianças (o que fazem, como fazem, com quem, onde), aprendendo a ver além do aparente, para reconhecer as múltiplas formas de ser criança e seus modos próprios de conhecer e expressar o mundo; Produzir registros, escritos e fotográficos, como exercício de aprendizagem de documentação pedagógica, um dos instrumentos do trabalho docente.

Ao longo do período de estágio, na relação direta com as instituições e os grupos de crianças, vários serão os focos: 1) espaço; 2) organização dos tempos da rotina; 3) proposta pedagógica – proposições encaminhadas com as crianças, materiais utilizados, temas/projeto em estudo etc. Dos registros realizados, segue a proposição de produzirem “coleções” em retratos do cotidiano no qual estão desenvolvendo o estágio. São coleções de imagens fotográficas e coleções de narrativas escritas, ao modo de pequenas histórias, crônicas breves, em que o exercício de olhar, pelas vias da memória, vai se traduzir em um modo de dizer.

Algumas proposições: “Coleção de imagens dos espaços”, “Coleção de imagens das paredes/decoração”, “Coleção de imagens dos murais”, “Coleção de objetos que estão na sala”, “Coleção de imagens de materialidades e brinquedos utilizados pelas crianças nas brincadeiras”, “Coleção de imagens de gestos das crianças: nas refeições, nos espaços externos etc.”, “Coleção de retratos dos tempos: narrativas escritas sobre a rotina”, “Coleção de narrativas escritas sobre tempos vividos na sala de referência”; “Coleção de narrativas escritas sobre tempos vividos com/na alimentação e higiene”; “Coleção de narrativas escritas sobre tempos vividos na brincadeira”. A partir dessas sugestões e do material reunido em seus registros, os estudantes-estagiários selecionam e organizam os dados em coleções, ampliando a possibilidade de significação do fato/gesto/ato/tempo/espaço/protagonista em foco.

As coleções, sobretudo com a utilização da fotografia, inspiradas no trabalho do fotógrafo e arquiteto Ricardo Luis Silva (2022), convidam a focar o olhar nas crianças e seus contextos, a procurar ver além do habitual, para capturar elementos constitutivos do dia a dia que, por vezes, se repetem, e outros são reinventados. Nas coleções, há uma provocação e um convite para se pensar a linguagem fotográfica e a intencionalidade do fotografar: capturar este ou aquele gesto, este ou aquele ângulo do espaço é uma escolha.

E, depois, a maneira de expor esses registros fotográficos também convida à criação, mobilizando a dimensão estética, em tantas formas de mostrar o que fora capturado. Aqui também há um movimento de aprendizagem do olhar e do modo de compartilhar, de tornar visível a história/cena que foi documentada (Rinaldi, 2012), que agora integra uma “coleção” (Figuras 2, 3 e 4).


 

 

Figura 2 – Coleção de gestos: cotidiano

Fonte: Inventário de experiências do/no estágio (Gabriel, estagiário de Pedagogia, 2023).

 

 

Figura 3 – Coleção de gestos: mãos na argila

Fonte: Inventário de experiências do/no estágio (Luise, estagiária de Pedagogia, 2023).

 

 

 

Figura 4 – Coleção de gestos: brincadeira e interação

Fonte: Inventário de experiências do/no estágio (Pedro, estagiário de Pedagogia, 2023).

 

Inventário de experiências do/no estágio

Registrar é parte constitutiva do fazer docente, incentivar a escrita dos estagiários, apoiar o exercício de dizer a experiência vivida, para então refletir sobre ela e, completando o ciclo, comunicá-la são ações importantes na formação de professores, pois potencializam a compreensão da documentação pedagógica como instrumento de trabalho docente, ao mesmo tempo que abrem espaço para a afirmação de autorias. É uma ação compreendida no âmbito do necessário “isomorfismo pedagógico”, referência do Movimento da Escola Moderna de Portugal, compreendido como

 

[...] estratégia metodológica que consiste em fazer experienciar, através de todo o processo de formação, o envolvimento e as atitudes; os métodos e os procedimentos; os recursos técnicos e os modos de organização que se pretende que venham a ser desempenhados nas práticas profissionais efetivas dos professores (Niza, 2009, p. 352).

 

Nessa direção, ao final do processo, propõe-se a produção de um inventário, que carrega a ideia de registro e documentação: descrição, catálogo, relação de fatos, fotos, narrativas. Inventariar é (re)colher os “achados” do percurso para expor as histórias do vivido, em palavras e imagens que revelam processos: caminhos percorridos – sair da universidade, entrar em uma instituição de Educação Infantil, encontrar-se com as crianças, as profissionais, os espaços, os materiais, o cotidiano, a proposta pedagógica. Fazer um inventário do estágio curricular realizado em PPE II – Educação Infantil é recolher elementos do vivido (as coleções dos diversos aspectos observados, segundo os roteiros propostos ao longo do semestre), organizar os registros (as coleções de registros – narrativas escritas e fotográficas). É também fazer considerações sobre tudo o que foi inventariado: Quais os sentidos de tudo o que foi recolhido da experiência de “estar em estágio”? Quais as aprendizagens? Quais os limites e as possibilidades?

A partir de um roteiro, como proposta geral, como ideia dos “conteúdos” que deveriam ser contemplados no inventário, há um convite para imaginar, inventar, criar, dar a “forma” com os elementos recolhidos nas coleções e apresentados brevemente em conversas, nos encontros na universidade, ao longo do semestre. Três tópicos são sugeridos para o “Inventário de experiências do/no estágio de Educação Infantil: narrar e refletir sobre processos e aprendizagens”: 1) Coleções de imagens e narrativas que falam do cotidiano: Coleções retratos do espaço [fotografias]; Coleções retratos dos tempos [narrativas textuais] – Narrativas/cenas de tempos vividos na sala de referência, Narrativas/cenas de tempos vividos relacionados à higiene, Narrativas/cenas de tempos vividos relacionados à hora da alimentação, Narrativas/cenas de tempos vividos na/com a brincadeira; Coleção retratos da proposta pedagógica – Lista de proposições, dos materiais utilizados ao longo dos dias e reflexão sobre formas de encaminhar, fotografias das produções das crianças. 2) Prática e teoria em diálogo: construindo saberes. 3) Considerações finais: sobre processos e aprendizados.

Aqui, tomamos em diálogo oito “inventários de experiências” produzidos por estudantes-estagiários que cursaram o componente curricular PPE II no ano de 2023. É importante informar que os estudantes autorizaram a utilização do material produzido para fins de análise e publicação, assim como autorizaram que fossem utilizados seus primeiros nomes para identificar as narrativas.

Nesta oportunidade, dentre os elementos constitutivos do inventário, anteriormente descritos, destacamos o terceiro tópico, que oferece um panorama reflexivo sobre processos e aprendizados vividos pelos estagiários. Para apresentá-los, lembrando Benjamin (1987) e suas escritas memorialísticas – sobretudo no conjunto de textos “Infância em Berlim por volta de 1900”, que recorre à composição de breves histórias e pequenas crônicas que deixam antever, na forma e no conteúdo, o espírito da época, entrelaçando dimensões individual e coletiva –, destacamos trechos dos inventários produzidos pelos estudantes-estagiários, com pequenas edições para projetar a força da experiência formativa que dão a conhecer em suas narrativas. Cada história é precedida de um título, em sua maioria já presente no inventário, que introduz o leitor ao foco do conteúdo desenvolvido na história apresentada.

 

Encantos e desafios da minha primeira experiência de estágio. Ao finalizar o estágio, compreendo que o aprendizado não se limita apenas ao que é positivo, mas também ao que podemos aprender com os desafios e as situações que não estão de acordo com as teorias e os princípios estudados. A convivência com as crianças foi uma oportunidade de reflexão sobre práticas pedagógicas que devemos evitar e reforçar a necessidade de promover uma educação que valorize a singularidade de cada criança, respeitando suas características e seus interesses. O estágio, proporcionando um olhar mais sensível e consciente em relação à prática pedagógica, me ensinou tanto o que fazer quanto o que evitar, reforçando meu compromisso em atuar como educador. Dialogando com nossos estudos, percebi a importância das observações e dos registros como forma de documentação pedagógica, o que me fez exercitar o olhar sensível, com uma abordagem criativa, respeitosa, cuidadosa e afetuosa. É importante limpar o olhar e aprender a ver de novo! (Pedro, estagiário de Pedagogia, PPE II, 2023).

 

Trazer sensibilidade ao olhar. Eu já havia feito estágio remunerado numa turma de Educação Infantil há alguns anos. Então, já tinha ideia do que esperar, as rotinas, músicas, propostas, enfim, tudo que permeia as ações pedagógicas das professoras. Mas a grande diferença nesta nova experiência de estágio era que seria numa instituição pública, a anterior foi em uma escola privada. E provavelmente isso me desestabilizou, a diferença, porque, ainda que tenham semelhanças, o tempo na Educação Infantil na UMEI [Unidade Municipal de Educação Infantil] é diferente da escola particular em que estagiei. Eu estava acostumada a apagar letrinhas feitas por crianças de 5 anos, porque a professora achava que não estavam bem escritas, ou a ficar retirando as crianças das estantes de brinquedos para sentá-las nas cadeiras, porque a professora dizia que era hora de estarem sentadas. Ter contato com um lugar com semelhanças (crianças, cadeiras, brinquedos, mesas, atividades, brincadeiras...), e, ao mesmo tempo, completamente diferente, de imediato abala. Conforme os dias passavam, fui me reconhecendo parte daquele espaço, do fazer novo. Diferente da experiência anterior, pude me sentar e brincar com as crianças. Essas experiências tocaram um lugarzinho que eu não acessava há um tempo... Me fez refletir: como conviver, aprender e se relacionar com as crianças sem dar importância ao brincar? Sem ter prazer em brincar? Então, com a combinação das provocações e referências trazidas pela professora de PPE II e a vivência do tempo da UMEI, eu pude exercer meu olhar que se admira com o rotineiro, que enxerga fios entre as interações, que percebe o que “passa batido”. Mais que uma contribuição para minha formação profissional, essas experiências impactaram minha formação humana. E foram muitas vivências, através de propostas de trabalho feitas pela professora de PPE II. Inicialmente, confesso que não compreendi o objetivo [...]: Por que descrever tantas cenas? Por que tentar interpretar fotografias? Mas segui, fingindo que entendia e me dedicando às propostas. Quando iniciei o estágio e a professora nos enviou os roteiros (de observação, com apontamentos importantes para o trabalho em campo, sugestões, um ótimo guia para nos inspirar!), em um deles o objetivo era observar e escrever cenas do cotidiano. Aí captei! A professora nos deu a oportunidade de ensaiar em sala o que precisaríamos fazer no estágio e, futuramente, como professoras: Registro! Aquela era uma proposta para colocarmos em prática o que aprendemos sobre registro, sobre as diversas formas de registro, as possibilidades no processo de produção, os objetivos de registrar, o que registrar, como observar, escutar, enxergar – não de uma forma mecânica ou engessada, mas inspirações que pudessem trazer-nos mais sensibilidade ao olhar (Luise, estagiária de Pedagogia, PPE II, 2023).

 

Estágio docência na Educação Infantil: escuta atenta, observação ativa. O estágio de docência na Educação Infantil, com minhas observações e também participação, me ensinou concepções; me fez entender que ser professora não é trabalhar por amor, mas com amor. A criatividade, que muitos acham que já nasce com os professores, na verdade é desenvolvida ao longo do tempo. A paciência é uma virtude incrível, que sempre será testada. A escuta atenta precisa ser constantemente exercitada. A observação, que é mais ativa do que pensamos, também é uma aliada para qualquer docente. Portanto, aprendi que, na docência na Educação Infantil, os mínimos detalhes são importantes. E é fundamental registrar! Aprendi que as crianças possuem uma imaginação que caminha em passos mais velozes do que suas pernas curtas poderiam caminhar. [...].  Falando sobre o estágio, Ostetto e Maia (2019, p. 2) ressaltam que o mais desafiante é “[...] olhar o todo sem se descuidar do particular”. É mesmo difícil! Eu experimentei e notei muito esse desafio no comportamento das professoras. Por isso, ver e ouvir suas experiências, foram oportunidades ricas para minha formação. Elas me ensinaram a respeitar, ouvir e dar espaço às crianças e a valorizar pequenas conquistas. Recordo do cuidado e paciência que tiveram, para me corrigir, quando fazia ou falava algo que não era a melhor opção. Fui incluída no grupo; me chamavam para falar sobre o porquê de suas atitudes e, assim, me permitiram ser ativa e experimentar cada momento com as crianças, com intensidade (Stéphanie, estagiária de Pedagogia, PPE II, 2023).

 

Teoria e prática: A linha tênue entre anestesia e estesia no trabalho realizado em uma Creche. Esse estágio com certeza foi uma das coisas mais difíceis na minha formação em Pedagogia até aqui. Apesar de estudarmos tantos teóricos e acadêmicos na faculdade, a realidade é outra, e é dura. Assistir de perto as pequenas negligências com essas crianças me fez sentir impotente. Pensava todos os dias de estágio: como seria se eu estivesse naquele lugar? De que forma planejaria uma rotina que evidenciasse o que há de mais especial ali: o protagonismo infantil? Aprendi que a docência na Educação Infantil vai muito além do cuidar e produzir “atividades”: é escutar com atenção as crianças, fomentar relações de troca, sensibilizar para as descobertas e dar significado às propostas. Essa experiência foi um divisor de águas na minha formação e contribuiu ainda mais para que eu lutasse contra um ensino engessado e insensível, apurando o olhar crítico sobre o cotidiano e a rotina na creche (Juliana, estagiária de Pedagogia, PPE II, 2023).

 

Inventário: o diálogo entre as minhas experiências e a teoria estudada. A docência na Educação Infantil não está focada no ensino-aprendizagem, para além disso, ser docente na primeira etapa da Educação Básica é assumir o compromisso de estar com/para as crianças nas relações, nas interações, no brincar e na brincadeira, eixos norteadores das práticas. Assim como é necessária uma “didática da maravilha” pautada na observação atenta e na escuta sensível com as crianças, de forma a promover um ambiente saudável e uma relação em que elas possam manifestar seus interesses individuais e coletivos, sua personalidade. Além disso, aprendi que as crianças possuem cem linguagens que não podemos tolher e que, como equipe que está na escola, seja os/as docentes, a gestão, funcionários da cozinha, da limpeza, porteiros, entre outras, precisamos oferecer uma relação de confiança com elas e estimular o respeito e a confiança entre elas mesmas. Na Educação Infantil, precisamos ser professoras que educam e cuidam, como estabelecido nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil; por isso, não há uma profissional somente para o cuidar e outra para educar [...]; fazer o registro e a documentação das experiências vividas cotidianamente pelas/com as crianças. Nessa disciplina de Pesquisa e Prática Educativa II, aprendi diversas formas de se fazer o registro e a documentação – por narrativas descritivas e analíticas, por fotografias, por mini-histórias –, que ajudam na observação de desenvolvimento de cada criança de forma individual e coletiva, bem como na construção dos relatórios individuais de cada criança a serem entregues aos pais/responsáveis no primeiro e segundo semestre do ano. Ademais, nas relações diretas no campo de estágio, aprendi que devemos observá-las com maior atenção, para além do que dizem sobre e a respeito delas, conhecê-las como pessoas que possuem cem linguagens, cem pensamentos, cem modos de pensar, de jogar e de falar, desejos, sonhos (Mayara, estagiária de Pedagogia, PPE II, 2023).

 

Superar o medo, ver de perto as cem linguagens da criança em ação. Quero dizer que foi a experiência da qual eu mais tive medo de entrar a fundo nela. Adiei minha inscrição nessa disciplina por um semestre por isso, por não me sentir madura o suficiente para estar numa sala com 15 crianças. No meu primeiro dia, cheguei à UMEI um tanto quanto desesperada e tensa, com medo e pensando em quantas vezes eu provavelmente seria chamada a atenção por algum erro. Achava que era só uma insegurança minha; o próprio Freire diria o contrário na quinta carta de “Professora sim, tia não”. E como tive dificuldades! Quantas vezes não entendi o que as crianças estavam tentando me dizer, não consegui fazer uma das crianças dormir, não consegui fazer com que seguissem o que eu dizia; quantas vezes quis consolar uma das crianças mas fui impedida pelas professoras porque ela “não está bonita hoje”. Falando assim, pode parecer que foi a pior coisa que já me aconteceu, mas eu diria o oposto: esse estágio me deixou tão encantada! Eu pude ver de perto as cem linguagens da criança. Em ação, pelos seus risos, choros, olhares e até por suas birras; pude ver a evolução das suas brincadeiras, montando suas próprias regras; pude ver as interações, crianças se aproximando e fortalecendo vínculos de grupo. Fui aprendendo mais a cada dia. Mesmo com as dificuldades, estar no GREI 2A [Grupo de Referência de Educação Infantil] me dava energia e colocava um sorriso no meu rosto (Sophia, estagiária de Pedagogia, PPE II, 2023).

 

Distanciar-se da indiferença, aprender com as crianças: o que aprendi no estágio. Durante o estágio, tive a oportunidade de ver como a teoria nem sempre se aplica à prática, mas serve como ferramenta para que possamos nos guiar na busca pelo gerenciamento de nossas práticas, na forma como lidamos com as situações. O domínio do conteúdo teórico, por si só, não é suficiente para garantir o sucesso de uma determinada proposta pedagógica ou mesmo de soluções de conflitos, por exemplo. O professor, na relação teoria-prática, deve procurar preservar o olhar sensível, distanciando-se da indiferença; deve ter consciência da importância de sua forma de ensino. No caso da Educação Infantil, a forma de cuidado com as crianças tem conteúdos implícitos que vêm das relações que ocorrem entre a sociedade e a escola, e a forma de ensinar transmite uma visão de mundo que pode contribuir ou não para a manutenção dessa mesma visão. O professor deve permanecer na busca pela tomada de consciência sociopolítica, para que seja possível o desenvolvimento de uma educação crítica e, ao mesmo tempo, sensível – especialmente quando se trata de crianças pequenas, pois é na infância que é necessário mais cuidado, atenção, delicadeza e sensibilidade. É preciso aprender a se colocar no lugar da criança, aprender a ouvir a criança e a falar com ela, pois esse é o único caminho saudável para a criança e para o educador em busca de uma educação que cuide e acolha. A experiência do estágio foi enriquecedora e emocionante. Poder me sentir envolvido no cotidiano da instituição e acolhido pelas crianças, professoras e demais funcionários realmente tornou essa experiência não apenas satisfatória, mas verdadeiramente boa e feliz. Me fez questionar nossa relação com os afetos após a infância, assim como nossa relação com as crianças. Observar com atenção e cuidado a forma como as crianças interagem entre si e com os adultos, como expressam seus sentimentos e a maneira genuína de viver os afetos, cada uma de um jeito singular, é um ato que precisa ser polido, treinado, pois olhos acostumados e indiferentes deixam, com certa facilidade, passar essa oportunidade de aprender com as crianças e de perceber que há muito mais a ser observado e extraído do contato com elas (Gabriel, estagiário de Pedagogia, PPE II, 2023).

 

A necessária educação do olhar e a aprendizagem do registro. O olhar do estágio curricular, panorâmico e geral no começo, não pode se deter apenas à superfície, ao aparente. Precisa ir além, o que se dá com a vivência, a aproximação e a crescente interação no cotidiano pedagógico. Sabendo disso, quando comecei o estágio, isso se tornou um desafio para mim, pois fiquei me questionando para o que, quem e onde olhar, visto que, ao mesmo tempo, aconteciam várias situações diferentes. Além disso, como aprendi nos estudos teóricos, o olhar atento não basta; precisa vir acompanhado do registro. E, mais uma vez, surgiam os questionamentos, pois a escolha do meu olhar refletiria na escrita do meu registro no diário de campo. Isso acabava fazendo com que, na expectativa de registrar o máximo de elementos e detalhes possíveis, eu não aproveitasse as atividades com as crianças. Como forma de melhor experienciar a vivência daquele contexto, resolvi deixar o caderno de lado por um tempo e passei a me inserir mais nas atividades e brincadeiras das crianças, procurando captar e estar nos diferentes movimentos que elas realizavam. Apenas após o término do dia de estágio é que eu organizava os registros no diário, retomando pontos relevantes que eu tinha na memória e desenvolvendo breves reflexões. Isso se tornou essencial para que eu pudesse conhecer melhor as crianças, como se davam as suas relações, como se organizavam no espaço, olhando para suas individualidades. Assim, registrar estava relacionado com a pesquisa do cotidiano, em que os acontecimentos vividos podiam ser revistos pelas lentes da teoria. Esse exercício me instigou, como estagiária observadora, a reflexões que posteriormente foram desenvolvidas (Letícia, estagiária de Pedagogia, PPE II, 2023).

 

Na perspectiva da pesquisa narrativa (Josso, 2004), reconhecemos a autoria dos estudantes-estagiários e a importância de dar visibilidade a processos, percepções e modos de dizer a experiência. De tal maneira, não pretendemos analisar o que compartilharam, na materialidade dos inventários produzidos, dos quais trazemos apenas um pequeno retrato.  Renunciar à análise não significa recusar-se à significação da palavra de quem viveu e narrou a experiência, pois as histórias-vida aqui reunidas dão a ver, no fluxo testemunhal, os direitos e os avessos, os pontos e os nós que costuram e sustentam o processo de formação, como deve ter notado o leitor cuidadoso. Bastaria retomar os títulos de cada narrativa para identificar os temas que atravessaram os estudantes, com/no/pelo estágio. Citamos:

 

Encantos e desafios da minha primeira experiência de estágio.

Trazer sensibilidade ao olhar.

Estágio docência na Educação Infantil: escuta atenta, observação ativa.

Teoria e prática: A linha tênue entre anestesia e estesia no trabalho realizado em uma Creche.

Superar o medo, ver de perto as cem linguagens da criança em ação.

Distanciar-se da indiferença, aprender com as crianças: o que aprendi no estágio.

A necessária educação do olhar e a aprendizagem do registro.


 

Uma costura de sentidos inventariados: considerações finais

A começar pelos títulos, colocados em evidência ao final do tópico anterior, são inúmeros os fios que teceram as experiências e compuseram as narrativas nos inventários, que dão visibilidade à busca de sentidos do estágio.

Um dos fios tece os dilemas que perpassam a relação entre teoria e prática no percurso formativo, com uma miríade de sentimentos que podem ser experimentados pela pessoa-estagiário-licenciando: dificuldade, medo, questionamentos, olhar crítico, percepção de negligências, encantamento e alegria.

A materialidade do inventário de experiência, como um artefato narrativo-pedagógico, oferece outros fios para a intensificação do tecido de sínteses integradoras sobre a experiência de estar no campo de atuação: um fio dá visibilidade às aprendizagens relacionais – escuta atenta, observação ativa, olhar sensível, reconhecimento das potencialidades das crianças, testemunho das suas múltiplas linguagens; outro identifica saberes da profissão – articular cuidar e educar, observar, registrar, respeitando os tempos das crianças, o que implica flexibilizar as rotinas para acolher singularidades. Saberes da profissão que são efetivados também pelas vias do compromisso e do afeto, cultivando a sensibilidade estética (contra a anestesia), traçando um auspicioso caminho para tecer uma “didática da maravilha” (Nigris, 2014).

 O diálogo com as narrativas textuais e imagéticas colecionadas evidenciou que a aprendizagem reflexiva sobre a prática docente na Educação Infantil pode ser adensada com o registro de saberes-fazeres fertilizados no âmbito do estágio. Nessa direção, observar, registrar e documentar foram nomeados como experiências significativas pelo conjunto dos estagiários. Como apoio e convite a (re)colher matéria do cotidiano vivido, a observação e o registro, que circunscrevem processos/instrumentos de base da docência, conduzem à reflexão e contribuem para a construção da profissionalidade docente, na perspectiva de “[...] aprender a sentir como professor” (Nóvoa, 2017, p. 1124).

As narrativas de experiências inventariadas confirmam que o estágio, como um tempo-espaço do processo formativo docente, é um percurso trilhado com a singularidade de cada um, mas se inscreve como perspectiva articulada ao todo/com todos. Corroboram a essencialidade do estágio como “[...] um ambiente formativo com a presença da universidade, das escolas e dos professores, criando vínculos e cruzamentos sem os quais ninguém se tornará professor” (Nóvoa, 2017, p. 1124).

 

Referências  

BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim por volta de 1900. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 71-143.

 

BRASIL. Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 242, p. 18-19, 18 dez. 2009.

 

CARTIER-BRESSON, Henri. Ver é um todo: entrevistas e conversas, 1951-1998. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.

 

GANDINI, Lella; GOLDHABER, Johan. Duas reflexões sobre a documentação. In: GANDINI, Lella; EDWARDS, Carolyn (org.). Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002. p.150-169.

 

JOSSO, M-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.

 

NIGRIS, Elisabetta. A “didática da maravilha”: um novo paradigma epistemológico. In: GOBBI, Marcia Aparecida; PINAZZA, Mônica Appezzato (org.). Infâncias e suas linguagens. São Paulo: Cortez, 2014. p.137-153.

 

NIZA, Sérgio. Contextos cooperativos e aprendizagem profissional: a formação no movimento da escola moderna. In: FORMOSINHO, J. (coord.). Formação de professores: aprendizagem profissional e ação docente. Porto: Porto Editora, 2009. p. 345-362.

 

NÓVOA, António. Os professores e as histórias da sua vida. In: NÓVOA, António (org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1992. p. 11-30.

 

NÓVOA, António. Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 47, n. 166, p. 1106-1133, out./dez. 2017. DOI:  https://doi.org/10.1590/198053144843

 

OSTETTO, Luciana Esmeralda. O estágio curricular no processo de tornar-se professor. In: OSTETTO, Luciana Esmeralda (org.). Educação Infantil: saberes e fazeres da formação de professores. Campinas: Papirus, 2008. p.127-138.

 

OSTETTO, Luciana Esmeralda. Deslocamentos, aproximações, encontros: estágio docente na educação infantil. In: GOMES, Marineide de Oliveira (org.). Estágios na formação de professores: possibilidades formativas entre ensino, pesquisa e extensão. São Paulo: Loyola, 2011. p. 79-98.

 

OSTETTO, Luciana Esmeralda. O estágio tecido com os fios do ensino, da pesquisa e da extensão. In: NORONHA, Elisiane; ANDRADE, Izabel; MAURÍCIO, Wanderléa (org.). Itinerários da formação docente: saberes e experiências do estágio curricular do UJS. São Paulo: Laborciência, 2012. p. 17-32.

 

OSTETTO, Luciana Esmeralda; MAIA, Marta Nidia Varella Gomes. Nas veredas do estágio docente: (re)aprender a olhar. Olhar de professor, Ponta Grossa, v. 22, p. 1-14, 2019. DOI: https://doi.org/10.5212/OlharProfr.v.22.0005

 

RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

 

SILVA, Ricardo Luis. Coleção das coisas que. Volume 3. Coisas que pedem, têm um nome, vêm escritas nas paredes. São Paulo: Edição do Autor, 2022.

 

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. Curso: Pedagogia – Niterói: Projeto Pedagógico – Estrutura Curricular. Niterói: Coordenação do Curso de Pedagogia, Faculdade de Educação. Disponível em: https://coordenacaopedagogia.uff.br/wp-content/uploads/sites/593/2022/09/PPP-2018-ajuste.pdf. Acesso em: 5 maio 2024.

 

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Nota



[1] Haja vista o limite de caracteres permitido pelo periódico, ao longo do artigo não utilizaremos a flexão de gênero quando estivermos nos referindo aos sujeitos de um modo geral, apenas o faremos para apontar especificidades.

 

[2] Os nomes das duas estudantes referenciadas são fictícios.