Políticas Públicas Contemporâneas e os saberes da docência na Educação Infantil
Contemporary Public Policies and teaching knowledge in Early Childhood Education
Políticas públicas contemporáneas y conocimientos docentes en Educación Infantil
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Osório, Brasil.
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.
rochele-santaiana@uergs.edu.br
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.
Recebido em 24 de abril de 2024
Aprovado em 09 de maio de 2024
Publicado em 03 de fevereiro de 2025
RESUMO
Esta investigação constitui-se como recorte de um estudo maior, desenvolvido em nível de Mestrado Profissional em Educação, que tem como objetivo compreender como os saberes da docência se organizam e se transformam, por meio das condições políticas de um determinado tempo. Assim, este artigo problematiza as práticas de governamento exercidas pela Base Nacional Comum Curricular, na docência da Educação Infantil. Metodologicamente utiliza do referencial pós-crítico em especial das teorizações de Michel Foucault tomando o governamento como ferramenta teórico-analítica para as análises empreendidas. Buscamos o governamento neste trabalho, para entender como o poder se exerce, no sentido de condução das condutas de uns sobre outros ou sobre si mesmo. O corpus empírico, a materialidade para análise consiste em questionários narrativos realizados com docentes da Educação Infantil do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Com base nos escritos das docentes participantes, percebe-se que a Base Nacional Comum Curricular objetiva definir certos modos de ser docente, a partir de uma docência sensível e reflexiva, “criadoramente” e acolhedora, ativa e mediadora, no qual funcionam como estratégias de governamento para constituir uma normativa em torno de como ser um “bom docente” na Educação Infantil.
Palavras-chave: Docência na Educação Infantil; Governamento; Contemporaneidade.
ABSTRACT
This investigation is an excerpt from a larger study, developed at the Professional Master's level in Education, which aims to understand how teaching knowledge is organized and transformed, through the political conditions of a given time. Thus, this article problematizes the government practices carried out by the National Common Curricular Base in teaching Early Childhood Education. Methodologically, it uses the post-critical framework, especially Michel Foucault's theories, taking government as a theoretical-analytical tool for the analyzes undertaken. We seek the government in this work, to understand how power is exercised, in the sense of directing the conduct of some people over others or over oneself. The empirical corpus, the materiality for analysis, consists of narrative questionnaires carried out with Early Childhood Education teachers on the North Coast of Rio Grande do Sul. Based on the writings of the participating teachers, it is clear that the National Common Curricular Base aims to define certain ways of being a teacher, based on sensitive and reflective teaching, “creatively” and welcoming, active and mediating, in which it works as government strategies to constitute a norm around how to be a “good teacher” in Early Childhood Education.
Keywords: Teaching in Early Childhood Education; Governance; Contemporary.
RESUMEN
Esta investigación es un extracto de un estudio más amplio, desarrollado a nivel de Maestría Profesional en Educación, que tiene como objetivo comprender cómo se organiza y transforma el conocimiento docente, a través de las condiciones políticas de una época determinada. Así, este artículo problematiza las prácticas de gobierno llevadas a cabo por la Base Curricular Común Nacional en la enseñanza de la Educación Infantil. Metodológicamente se utiliza el marco poscrítico, especialmente las teorías de Michel Foucault, tomando al gobierno como herramienta teórico-analítica para los análisis realizados. Buscamos en esta obra que el gobierno comprenda cómo se ejerce el poder, en el sentido de dirigir la conducta de unas personas sobre otras o sobre uno mismo. El corpus empírico, materialidad para el análisis, consta de cuestionarios narrativos realizados con docentes de Educación Infantil de la Costa Norte de Rio Grande do Sul. A partir de los escritos de los docentes participantes, se desprende que la Base Curricular Común Nacional pretende definir ciertas formas de ser docente, basadas en una enseñanza sensible y reflexiva, “creativa” y acogedora, activa y mediadora, en las que funcionan como estrategias de gobierno para constituir una norma en torno a cómo ser un “buen docente” en la Educación Temprana. Educación Infantil.
Palabras clave: Docencia en Educación Infantil; Gobernancia; Contemporáneo.
O presente artigo objetiva compreender como os saberes da docência se organizam e se transformam por meio das condições políticas de um determinado tempo. Esta investigação constitui-se como recorte de um estudo maior, desenvolvido em nível de Mestrado Profissional em Educação, no qual, trouxe como principal material de análise, a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017). Em amplitude nacional, a Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 2, de 22 de dezembro de 2017, institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular.
A elaboração da BNCC tem por objetivo definir os conhecimentos mínimos e indispensáveis que os estudantes da Educação Básica precisam construir ao longo do processo de escolarização. Em um caráter normatizador, sua implementação vem produzindo diferentes impactos nas políticas públicas, provenientes do governo federal, estadual e municipal, que deliberam sobre o sistema educacional brasileiro (Gerhardt; Santaiana, 2019).
Em um primeiro movimento, na busca por compreender como os saberes da docência se organizam e se transformam, por meio das condições políticas de um determinado tempo, a pesquisa propõe-se a olhar para a Base Nacional Comum Curricular, pois se acredita que a partir da sua implementação surgem novas ações no que diz respeito à primeira etapa da Educação Básica. De acordo com Carvalho e Fochi (2017), a construção de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil, representa o fortalecimento e a consolidação dessa etapa como a primeira da Educação Básica, e ao mesmo tempo revela alguns temas difíceis para o campo.
A primeira versão do documento foi publicada em 2015. O processo inicial de elaboração da BNCC para a Educação Infantil, pautou-se no princípio da democracia, por meio de consulta pública, disponibilizada a todo(a) e qualquer cidadão(ã), bem como, reuniões em diversas regiões do Brasil, realizadas por especialistas da Educação Infantil, como Maria Carmen Silveira Barbosa, Zilma de Moraes Ramos de Oliveira, Silvia Helena Vieira Cruz e Paulo Sérgio Fochi, com o objetivo de escutar as narrativas e contextos que envolvem a educação das crianças pequenas e suas infâncias. Após o impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016, e a posse do presidente Michel Temer, assumem os representantes do Ministério da Educação Mendonça Filho e Maria Helena Castro como secretária executiva. Nesse novo cenário, o documento passou pela sua terceira versão (final), vinculado ao “Movimento Todos pela Base”, com apoio institucional de diversas mantenedoras.
Nesse quadro de discussões, por se tratar de um documento de referência nacional para o alinhamento de políticas e ações em âmbito, federal, estadual e municipal, bem como na formulação das práticas pedagógicas das instituições escolares, buscamos “[...] compreender a implicação da Base em relações de disputa, de força e de produção de subjetividades; precisa ser entendida como um elemento estratégico na regulação das condutas sociais [...]” (Silva; Freitas, 2020, p. 2). Assim, por um lado, a BNCC consiste em um documento de regulação e controle da Educação Básica, balizador da formação de professores tanto inicial quanto continuada, da produção de material didático e tecnologias e das avaliações em larga escala; por outro, os textos oficiais não acontecem idealmente como foram pensados.
O currículo acontece nos tempos e espaços da escola, ou seja, nos complexos e heterogêneos contextos que lhe darão vida e concretude. Currículos acontecem nas salas de aula, são criados pelos professores a cada momento (Traversini; Mello, 2020, p. 5). Nesse sentido, para analisar as tramas discursivas em torno da Base Nacional, em que prescreve conteúdos mínimos, a partir de competências e habilidades, precisamos compreender que sua implementação busca estabelecer um currículo comum, em um campo de tensões, entre a uniformização e homogeneização e as lutas pelas diversidades regionais, estaduais e locais.
O artigo se desenvolve, em um primeiro momento, com uma discussão sobre a constituição da docência na Educação Infantil, seguido dos aporte metodológicos que acompanharam sua feitura. Em seguida, apresenta as análises realizadas das respostas dos docentes participantes da pesquisa. Por fim, são apresentadas algumas considerações e possibilidades deste estudo.
Destaca-se que, ao longo desse estudo, podemos encontrar diferentes dimensões da docência na Educação Infantil, todas estas, a partir de determinadas verdades que circulam em um momento histórico, as quais se constituem como formas específicas de governamento para, então, conduzir a conduta dos sujeitos docentes e das populações.
[...] a docência é produzida por meio de um conjunto de saberes, normas e práticas específicas. Esses saberes e normas são instituídos a partir das condições políticas de um determinado tempo. Assim, pensar a constituição da docência implica em um mapeamento dos modos de regulação dessa atividade (Silva, 2014, p. 409).
Assim, ao problematizar alguns discursos que vêm constituindo a docência na Educação Infantil, podemos entender como os saberes da docência foram se organizando e se transformando, por meio das condições políticas de um determinado tempo. Esses deslocamentos podem ser analisados a partir das noções de governamento, isto é, “[...] tipos de racionalidade que envolvem conjuntos de procedimentos, mecanismos, táticas, saberes, técnicas e instrumentos destinados a dirigir a conduta dos homens” (Gadelha, 2009, p. 120).
Nesse sentido, recorrer ao percurso histórico do atendimento à infância, como ponto de partida para analisar os deslocamentos referentes à docência, possibilita olhar para as formas específicas de administração infantil, ou seja, “[...] uma intensificação de ideias com relação à infância, bem como de produção de saberes e de práticas voltados à melhor conhecê-la e educá-la” (Lockmann; Mota, 2013, p. 91).
Nörnberg (2020), a partir de Nóvoa (2009), destaca que no período em que a educação desloca-se do controle da Igreja e inicia com uma vinculação ao Estado, a partir da segunda metade do século XVIII, a constituição da profissão docente começa a ser pensada. Mesmo com as grandes transformações do período, a imagem do professor ainda sofria com a presença muito forte das grandes congregações católicas (Nóvoa, 2009 apud Nörnberg, 2020, p. 5).
Nas palavras de Kohan (2003):
Uma das figuras privilegiadas na adoção do poder pastoral pelo Estado moderno, nas instituições educacionais, é a figura do professor-pastor. Ele assume a responsabilidade pelas ações e pelo destino da turma e de cada um de seus integrantes. Ele se encarrega de cuidar do bem e do mal que possam acontecer dentro da sala de aula. Ele responde por todos os pecados que possam ser cometidos no seu espaço. Embora assuma modalidades leves e participativas, entre o professor e a turma há uma relação de submissão absoluta; sem o professor os alunos não saberiam o que fazer, como aprender, de qual maneira comportar-se; eles não sabiam o que está bem e o que está mal, como julgar a atitude de um colega, a falta de esforço de si mesmo para cumprir uma tarefa. Para cumprir adequadamente a missão, o professor necessita conhecer seus alunos; fará diagnósticos de suas emoções capacidades e inteligências; conversará com seus pais para saber detalhes iluminados de seu passado e de seu presente; ganhará a confiança de cada aluno para que ele lhe confie seus desejos, angústias e ilusões. Por último, lhe ensinará que sem alguma forma de sacrifício ou renúncia seria impossível desfrutar de uma vida feliz e de uma sociedade justa (Kohan, 2003 apud Gadelha, 2009, p. 122–123).
Essa transformação, do poder pastoral pelo Estado moderno, é identificada por Foucault (2008) como “Crise geral do pastorado”, em que os domínios não são mais regidos pelas ordens espirituais e morais de vida, mas sim por uma nova economia de poder, referida as sociedades disciplinares, de normalização e de regulação, nos quais se apresentam uma nova modalidade de governo dos homens (Gadelha, 2009).
Os grandes acontecimentos desse contexto, como a Reforma Protestante, a Contrarreforma, o Iluminismo, a Revolução Francesa, bem como a Revolução Industrial, marcam a educação, por meio de uma nova ordem escolar. Nas palavras de Costa (2005, p. 1260), a figura dos educadores estaria vinculada a uma missão civilizadora da educação:
[...] encarnada por uma cultura europeia humanizada que celebrava a emergência de um novo homem. Um homem que se pensava e que se queria individualizado, racional, livre, esclarecido, empreendedor. Um indivíduo que, embora ainda muito sensível aos valores e à moral do Deus cristão e de sua igreja, atrevia-se a contrariá-los, desvendando e dominando os segredos de um universo cada vez menos divinizado, tornado infinito pelo conhecimento que então se passava a ter da matemática e da geometria. Um homem que, por intermédio de novas leis e das instituições, acreditava ter encontrado uma base racional e sólida, garantidora de uma sociabilidade justa e fraterna entre seus pares. Um homem, enfim, que, de tão vaidoso de si, de seus conhecimentos, valores, técnicas, e de sua ciência, queria estender-se e estendê-los para além de seu velho continente, até as “novas” terras, domínios e povos com os quais passava a ter contato, por meio de suas audaciosas navegações e de sua irrefreável sede de riquezas (Costa, 2005, p. 1262).
Pode-se compreender essa imagem, que emerge no início da modernidade, de um “educador/civilizador”, como aquele que, por meio da ação pedagógica, busca compensar a carência e a falta do “outro”, na qual, a condição de quem “educa/civiliza” é determinada por um modelo exemplar que presume a detenção de um saber e de um poder sobre o “outro”. A missão civilizadora da educação tinha como tarefa a transmissão dos valores utilitaristas, como a produção de indivíduos de direitos e deveres, a formação de um sujeito de conhecimento, livre e autônomo, para assim, chegar a um patamar mais elevado (Costa, 2005).
Era necessário criar novas táticas de governo que permitissem não apenas um controle-pastoral dos indivíduos, mas, principalmente, um controle político-biológico da população. Então, começa a ser esboçada uma nova forma de governar que possibilitasse controlar a circulação dos indivíduos, seus hábitos, suas formas de agir e conviver, evitando e prevenindo a ocorrência de acidentes, desgraças, miséria e doenças (Lockmann, 2013, p. 50).
Segundo Lockmann (2013), no Brasil, em meados do século XIX, a escolarização das massas busca trazer para dentro da escola os sujeitos pobres e operários, para, então, “[...] educá-los, civilizá-los e ensiná-los hábitos e costumes condizentes com uma vida social saudável e ordenada” (Lockmann, 2013, p. 52). A educação age sobre o corpo infantil, prescrevendo regras, comportamentos e hábitos de higiene, a fim de evitar o alastramento de doenças e contágios perante a população.
Ainda sobre as estratégias de gerenciamento dos riscos produzidos pela vida em sociedade, Lockmann (2013), com base nos estudos de Bujes (2001), salienta que a educação nas creches e nas pré-escolas, mesmo surgindo após as escolas elementares, apresentam formas semelhantes de conduzir e governar a infância, ou seja, uma educação baseada em hábitos e maneiras de se comportar na sociedade.
Assim, para compreender a emergência da docência na Educação Infantil, utilizamos um recorte da pesquisa “Docência na Educação Infantil: origens de uma constituição profissional feminina” realizada pelas doutoras Rosa Batista e Eloisa Candal Rocha (2018), na qual, apresentam importantes elementos históricos e políticos acerca da constituição das primeiras instituições de Educação Infantil, bem como, algumas fontes primárias, sobre a docência essa etapa.
Nesse contexto, começamos a pensar sobre a docência da pequena infância, atuação esta, que emerge a partir das tensões entre o feminino e o profissional. Batista e Rocha (2018) enfatizam que “[...] a constituição profissional das professoras que atuam na Educação Infantil tem sido objeto recorrente de estudos, sinalizando que essa formação apresenta hiatos no que diz respeito ao que lhe é próprio e particular” (p. 97).
As autoras, ao buscarem ampliar o conhecimento sobre o que constitui a especificidade da docência na Educação Infantil, ressaltam o desafio de traçar um perfil de quem atua nessa etapa, pois a construção dessa profissional está imersa em fatores relacionados com o desenvolvimento das primeiras instituições de cuidado e assistência à primeira infância (Batista; Rocha, 2018).
Os modelos socialmente construídos de mulheres ― cuidadoras e homens ― provedores talvez tenham contribuído para gerar nas profissionais a aposta de que os docentes ― não dariam conta do recado, tendo em vista que são elas que historicamente e desde a infância aprendem ― como cuidar. Ou seja, parecia haver uma legitimidade nas práticas exercidas pelas mulheres ratificadas pelo argumento da feminilidade como características inatas em face de seus antecedentes como mães ou como ― cuidadoras de outras crianças no âmbito doméstico ou mesmo em experiências anteriores em instituições educativas para a infância (Sayão, 2005 apud Batista; Rocha, 2018, p. 98).
Em distintos contextos históricos e políticos, Batista e Rocha (2018) discutem as dimensões da docência na Educação Infantil, que emergem a partir dos modos específicos de gestão. Segundo as autoras, as primeiras iniciativas de Jardins de Infância e Creche apresentam a ação direta das mulheres (luteranas e católicas) na tarefa de atender às crianças, por meio do ofício moral, pelo espírito feminino, afetuoso e maternal.
O atendimento à infância, no âmbito da caridade e da filantropia, também contribuíram para vincular a experiência docente como a atividade unicamente feminina. Sob as orientações médico higiênicas, as Irmãs de Caridade, enfermeiras e visitadoras, faziam parte dos projetos da civilidade emergente, no qual desenvolvem um papel social na educação das crianças (Batista; Rocha, 2018).
As questões sobre a constituição profissional feminina no âmbito da Creche e Jardim de Infância, até aqui apresentadas, evidenciam a subordinação aos discursos médicos e religiosos, em uma clara relação hierárquica que põe em evidência as relações de gênero na constituição dessa profissão. A vinculação da disposição do trabalho das mulheres aos atributos considerados inatos ao seu sexo biológico favoreceu, de certo modo, seu ingresso nas profissões que exigem essas habilidades femininas, entre elas, o instinto maternal para a missão educadora e redentora, fator primordial do progresso (Batista; Rocha, 2018, p. 105–106).
Embora as pesquisas de Batista e Rocha (2018) apresentem hiatos quanto à constituição profissional das professoras na Educação Infantil, as mesmas indicam elementos históricos e políticos muito importantes sobre a emergência da docência nesta etapa, fornecendo, assim, bases para compreender o objeto de estudo desta pesquisa.
Pensar sobre a produção dessa infância competente, possibilita olhar para as práticas de governamento dos que irão atuar sobre e com elas. Assim, essa preocupação com os direitos das crianças é refletida nas medidas de inserção da Educação Infantil na esfera das políticas públicas educacionais. A emergência de um número significativo de documentos, políticas e tecnologias, pelos quais, se disseminam pela sociedade, produz formas específicas de ver, falar e agir sobre a docência na Educação Infantil.
Assim, para dar continuidade ao percurso investigativo, utilizamos, em uma perspectiva pós-estruturalista, as contribuições de Andrade (2014), que buscam ressignificar as pesquisas educacionais, por meio da entrevista narrativa, possibilitando reconstruir as significações que os sujeitos docentes atribuem ao processo de formação, bem como reinventar o passado, ressignificar o presente e o vivido, para assim, narrar a si mesmo (Andrade, 2014).
Desse modo, a narrativa das histórias de vida dos sujeitos docentes possibilita formas de significação de suas práticas,
[...] compreendendo-a como narrativa de si; é a compreensão de que cada pesquisador/a, na relação com o/a outro/a, ressignifica o fazer metodológico em sua trajetória pessoal de investigação. Assumo, assim, o pressuposto pós-estruturalista de que a produção do sujeito se dá no âmbito da linguagem, na relação com as forças discursivas que o nomeiam e governam, sendo a escola um desses locais da cultura no qual se produz e se nomeia o sujeito (jovem/velho, analfabeto/alfabetizado, normal/anormal, competente/fracassado, incluído/excluído, estudante regular/estudante da EJA...), por meio da forma como se organiza o espaço escolar, da seleção daquilo que conta como conteúdo válido ou não para ser ensinado, das relações que se estabelecem entre professores/as e alunos/as etc. (Andrade, 2014, p. 175–176).
Essas forças discursivas – imbricadas em relações de poder – nomeiam, governam e agem sobre os sujeitos, por meio de “[...] saberes que determinados grupos buscam definir como verdadeiros, normais e hegemônicos” (Andrade, 2014, p. 179). Nessa trama discursiva, os docentes vão construindo sua identidade e suas representações de docência na Educação Infantil (Andrade, 2014). Assim, a escolha desse procedimento metodológico possibilitou aproximar o campo de investigação, objetivando compreender como os saberes da docência se organizam e se transformam por meio das condições políticas de um determinado tempo. Assim, foi realizada a construção de dados, com a participação de quatro professoras da área de Educação Infantil, de uma escola no município de Osório/RS, nominadas para a presente análise como professora A, B, C e D.
Para tanto, foi apresentada, inicialmente, a proposta de pesquisa aos sujeitos docentes da escola de Educação Infantil do Município de Osório/RS, a partir da Declaração De Instituição Co-Participante, escolhida devido à aproximação de uma das pesquisadoras com os participantes da comunidade escolar, o comprometimento das participantes com a Educação Infantil, bem como a constante participação do grupo em formação de professores da rede Municipal de Osório.
Após a assinatura da diretora da instituição de Educação Infantil, foi enviado o projeto ao Comitê de ética, para o aval de seguimento do estudo. Em seguida, foi realizada a aproximação com a instituição de ensino, apresentado o termo de autorização da pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, com os objetivos, procedimentos, riscos e benefícios para os professores participantes dessa pesquisa.
As perguntas narrativas tiveram como fio condutor, um questionário narrativo, com problematizações referentes à trajetória profissional e formativa das professoras, as concepções sobre infâncias e de crianças e suas transformações, as políticas que orientam a docência na Educação Infantil em articulação com Base Nacional Comum Curricular. Também foi perguntado sobre a formação continuada, as intencionalidades pedagógicas, os campos de experiência, e a constituição enquanto professora na Educação Infantil atravessada pela BNCC. Após a construção dos dados, deu-se início à leitura dessas narrativas como mais um elemento de análise para a presente investigação.
Em linhas gerais, esta investigação trabalha na lógica do governamento, objetivando, especificamente, compreender como os saberes da docência se organizam e se transformam por meio das condições políticas de um determinado tempo. Ao longo da construção desta investigação, podemos considerar que a BNCC têm em seu arranjo curricular, múltiplos elementos capazes de possibilitar modos específicos de direção das condutas dos sujeitos docentes, como também, daqueles que têm ligação com o documento.
Assim, essa seção apresenta as análises resultantes da investigação empreendida mediante nos discursos e escritos das docentes participantes da pesquisa. Desse modo, discorremos sobre alguns discursos em circulação sobre a docência na Educação infantil, em especial, aqueles provenientes dos documentos legais, tais como a BNCC, os quais são utilizados como norteadores para o trabalho nessa etapa.
Para Anflor (2019), as políticas públicas e os programas destinados – em especial – a Educação Infantil, põem em funcionamento o discurso dos direitos das infâncias, regulando e produzindo uma infância administrada, conduzida a partir de um modelo científico e institucionalmente aceito, estabelecendo o que é melhor, o que se pode esperar ou como preparar as infâncias para viver em sociedade.
Acredito que as políticas destinadas à infância produzem um campo de saber e poder, gerando com isso possibilidades de intervenção sobre a mesma, sujeitando-as a uma verdade do que é o melhor para as crianças. As políticas públicas se instituem e se acoplam em saberes, imbricam-se em mecanismos de poder, cujo resultado acaba sendo a produção de uma infância governada, segundo normatividades da sociedade que se empreende (Anflor, 2019, p. 58).
Nesse seguimento, os discursos produzidos pelo conjunto de saberes, presentes na BNCC, encontram-se como produtoras de subjetividades, ou seja, essas diretrizes instituem formas de ser e estar no mundo contemporâneo. Dessa forma, para gerenciar e controlar essa determinada população infantil de direitos, é necessário governar os que irão atuar sobre e com ela, os docentes da Educação Infantil.
Richter (2013, p. 18) ressalta que a presença disseminada dos direitos das crianças ganhou visibilidade na sociedade, a partir da sua objetivação, em outras palavras, da constituição de um saber específico sobre as crianças, que define o que é “[...] dito, escrito, documentado, comentado, praticado, repetido, ensinado [...]”. Essa constituição sugere e determina modos de educar e de ser docente na Educação Infantil, o que pode ser visto nos discursos das professoras participantes da pesquisa ao perguntar sobre as concepções sobre as crianças e de infâncias (Quadro 1), e se essas compreensões foram se modificando ao longo do fazer docente na Educação Infantil (Quadro 2).
Quadro 1 – Concepções sobre infância e crianças para as docentes
Professora A coloca: Entendo a criança como sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, desejo, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentido sobre a natureza e a sociedade, sendo uma produtora de cultura. Professora D descreve: Crianças são seres naturalmente curiosos, que gostam de interagir, questionar, conhecer o mundo, estas possuem sua própria forma de pensar e sentir. A infância é uma etapa de vida dos seres humanos, repleta de experiências que podem “afetar” todo o desenvolvimento. Nesta etapa é crucial que a criança experiencie momentos e vivências que contribuem para seu desenvolvimento integral e seus direitos sejam respeitados, bem como seus sentimentos. |
Fonte: autores (2024).
Quadro 2 – Compreensões sobre infâncias e crianças ao longo do fazer docente na Educação Infantil
Professora A menciona: Sim, através das metodologias, na prática cotidiana e no fazer pedagógico. Respeitando a criança, escutando-a e tendo um olhar mais sensível e acolhedor. Respeitando seu tempo, sua história, sua cultura. Professora B coloca: Sim, através das leituras, cursos, formação fui tendo acesso a novos olhares e me inspirando em novas abordagens para uma prática mais prazerosa e que realmente seja uma abordagem prazerosa. Professora C ressalta: Sim, através do contato com as crianças, observando as diferenças e singularidades. Professora D coloca: Historicamente as concepções de criança e infância passaram por modificações, está já foi vista como um miniadulto, também como um cristal frágil que necessita de um adulto para tudo. Percebe-se que atualmente tem buscado respeitar a criança como ser completo, individual e com direitos. Durante o meu fazer docente um dos principais pontos que acredito que fui trabalhando foi à busca por auxiliar o desenvolvimento da autonomia das mesmas. |
Fonte: autores (2024).
As respostas colocadas pelas docentes têm considerado as crianças enquanto “sujeito histórico e de direitos”, “produtoras de cultura”, “seres naturalmente curiosos” bem como, a “criança como ser completo, individual e com direitos”. Essa caracterização das infâncias e das crianças representam uma forma de pensar ou ainda, um modo de educar. A ação pedagógica nessa etapa da Educação Básica se constitui, a partir de práticas prazerosas e acolhedoras, com respeito, escuta e olhar sensível, que objetivam auxiliar o desenvolvimento da autonomia das crianças.
Com o fortalecimento da Educação Infantil no Brasil, a partir do processo de redemocratização, emerge um agrupamento de estudos sobre as especificidades no atendimento às crianças de zero a seis anos, rompendo com o caráter “assistencialista, higienista e disciplinador”. Esse conjunto de estudos é denominado como Pedagogia da Infância, na qual se caracteriza por uma Pedagogia que considera as experiências das crianças na construção dos conhecimentos, por meio da voz dos sujeitos envolvidos nesse processo (Richter, 2013).
Essas ideias apontam para a necessidade de estarmos atentos para um fenômeno muito comum aos campos teóricos estabelecidos, a maneira como os regimes de verdade a eles associados operam, realizando um escrito controle dos discursos e levando a uma naturalização dos conceitos – produzindo o apagamento das relações de poder que os constituíram historicamente. Ao pôr e evidência esse controle exercido pelos discursos, as formações provenientes do universo foucaultiano afirmam que a produção de verdade é um empreendimento histórico, uma coisa desse mundo, um mecanismo centralmente como exercício do poder (Bujes, 2005, p. 184).
Nesse entendimento, destacamos que, não procuramos revelar algo oculto nos escritos das professoras, ou dizer o que está errado ou certo, verdadeiro ou falso, mas sim analisar o discurso que é produzido, naquilo que é dito “[...] esse dizer obedece a certas regras que não são universais e imutáveis, mas históricas. Elas variam, se alteram, se repetem, se atualizam, se modificam a cada época, funcionando como matriz de sentido àqueles que falam, produzindo subjetividades (Richter, 2013, p. 14).
Nessa perspectiva, o que é dito pelas professoras, também pode ser relacionado com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs), que reconhece as crianças como sujeitos sociais ativos, sendo elas o centro o planejamento curricular, em uma ação pedagógica que acontece a partir da sua participação ativa na produção cultural (Brasil, 2009).
Essas especificidades sobre ser docente na Educação Infantil, são impulsionadas nos discursos das professoras participantes, no qual, encontram-se naturalizados na atualidade. No contexto pesquisado, as docentes da Educação Infantil apresentam em seus escritos, modos de dizer, pensar e agir. Tais práticas, utilizadas pelas docentes para descrever seu trabalho na Educação Infantil, estão atravessadas pelos discursos presentes na BNCC, no qual se constituem numa rede de saber e poder específico.
A Base, ao ser implementada como um documento normativo, produz efeitos nas práticas das docentes. Vejamos no Quadro 3, as indagações das participantes da pesquisa, quando foi perguntado sobre a docência na Educação Infantil em articulação como a Base Nacional Comum Curricular, bem como, a necessidade de uma formação continuada, a partir do contexto proposto pela BNCC.
Quadro 3 – Docência na Educação Infantil e BNCC
Professora A menciona: Penso que a BNCC, quando bem aplicada, vem propor uma educação infantil que atenda a necessidade das crianças desta faixa etária. Pois a ludicidade, brincar, respeitar o tempo da infância está muito claro na Base. E se todos os profissionais que atendem essa faixa etária se embasarem neste documento, as crianças estarão garantindo seus direitos de aprendizagem. Professora B coloca: No planejamento deve conter garantia de alimentação, troca de fraldas (idas ao banheiro), descanso. Um acolhimento diário, envolver a livre escolha da criança como a condução respeitosa do professor. Professora C descreve: Penso que existe um movimento para pôr em prática a BNCC. As formações, a organização escolar, bem como a própria vontade do PROFESSOR em proporcionar aos alunos os cinco campos de experiência. Professora D menciona: A BNCC surgiu como um documento norteador para o professor, ao contrário do que muitos pensam, que a base tirou a autonomia do professor, vejo está como um auxílio. Professora A coloca: Para que o documento seja base para nossa prática é necessário formação. Pois muitos profissionais precisam estudar e entender a BNCC. Formação continuada sempre se faz necessário para aqueles que se comprometem com uma educação de qualidade. |
Fonte: autores (2024).
Pensar na proposta da Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017) como norteadora do trabalho docente na Educação Infantil, ou, ainda, como base das propostas pedagógicas para a etapa, é pensar no funcionamento de um biopoder, o que Foucault (2010) colocaria como, uma nova mecânica do poder, ou seja, uma biopolítica.
Sua emergência tem como condição de possibilidade o fato de o poder soberano não poder mais se exercer sem que, para tanto, tome a si o encargo do governo do vivo, do vivente, ou, em termos mais concretos, da vida da população, do corpo-espécie da população como suporte de processos biológicos. Daí a razão desse tipo de poder soberano não operar mais sob a lógica do "deixar viver e fazer morrer", mas passar a funcionar sob o princípio do "fazer viver e deixar morrer". Governar, sob essa perspectiva, já não constitui mais, como nos tempos de Maquiavel, governar apenas e tão-somente o território de um principado; trata-se, doravante e, sobretudo, de governar, mediante o exercício de biopoderes, os modos de vida das populações, estabelecendo as condições para isso e regulamentando os processos desde os quais essas vidas devem ser vividas (Gadelha, 2012, p. 59).
Essa tecnologia política de poder permite problematizar os fenômenos ligados aos processos de natalidade, mortalidade e longevidade, como também aos fenômenos ligados à educação, assistência, políticas sociais, entre outras. A BNCC, ao afirmar a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, objetiva unificar e homogeneizar modos de vidas, condutas e valores, no sentido de estabelecer um “norte”, para então controlar, normalizar, regular e conduzir o trabalho docente na Educação Infantil.
Segundo Gerhardt e Santaiana (2019), a Base Nacional Comum Curricular funciona no território nacional, como uma espécie de porta-voz oficial, para então colocar em prática a maquinaria de biopoder. Em outras palavras, o documento põe um funcionamento modelos e padrões, através dos processos de subjetivação dos professores e estudantes, para então controlar as concepções educacionais dissociadas em todo o território nacional.
Ainda, de acordo com a “Professora A”, para que a BNCC funcione como um “norte” para as práticas e intencionalidades educativas, “[...] é necessário formação. Pois muitos profissionais precisam estudar e entender a BNCC”. Nesse sentido, surgem novas estratégias de governamento dos docentes da Educação Infantil, como podemos visualizar no Quadro 4, quando foi perguntado sobre as práticas exercidas no seu trabalho docente na Educação Infantil.
Quadro 4 – Intencionalidades educativas na Educação Infantil
Professora A ressalta: Prática da escuta da criança, do olhar sensível e reflexivo para as coisas do cotidiano. Respeito pelas crianças. Proposta que tenham/desperte o interesse e curiosidade das crianças. Professora B menciona: Educar criadoramente a criança em nossos dias. Escutar sua voz, suas perguntas, suas histórias. Acolher seu modo de ver e compreender as coisas. Cultivar sua inteligência, sua sensibilidade, sua imaginação. Professora C coloca: Procuro realizar uma AÇÃO consciente que conduz o aluno/criança a aprendizagem, mediando propostas com experiências, questionamentos, onde este é o protagonista do conhecimento. |
Fonte: autores (2024).
Os modos de exercer a docência na Educação Infantil, desde as primeiras instituições escolares, vêm sofrendo diversas transformações, por meio de uma determinada racionalidade. Como já vimos ao longo da pesquisa, o momento presente, exige uma ressignificação diante da figura docente para atuar na Educação Infantil. Ora, ao invés de investir em práticas rígidas e autoritárias, o trabalho na Educação Infantil é constituído por uma intencionalidade pedagógica sensível e reflexiva, “criadoramente” e acolhedora, ativa e mediadora.
Esses jogos de verdade, que objetivam definir certos modos de ser docente na Educação Infantil, está muito presente nos escritos das professoras participantes. Essa docência, sensível e reflexiva, “criadoramente” e acolhedora, ativa e mediadora, funciona como estratégias de governamento para constituir uma normativa em torno de como ser um “bom docente”, ou ainda, a melhor forma de ser docente na Educação Infantil.
Assim, a constituição do sujeito docente da Educação Infantil encontra-se atrelada às práticas socioemocionais de sensibilidade e acolhimento das crianças. De acordo com Carvalho (2011), a produção da gramática normativa do “bom professor”, por meio do imperativo do amor aos alunos, adquire centralidade nas práticas cotidianas vivenciadas entre os professores e alunos.
Os discursos a respeito da importância do afeto no processo educativo e da responsabilidade do professor pela promoção de vínculos cada vez mais estreitos e duradouros com seus alunos proliferam-se nas searas educativas. A questão afetiva e a linguagem sentimental ocupam um espaço singular na cena contemporânea e vêm adquirindo cada vez mais centralidade na descrição do cotidiano escolar vivenciado por professores e alunos. A afetividade do professor passa a ser entendida como um atributo natural - que deve ser utilizado para o exercício da docência. Vivencia-se, portanto, uma espécie de inflação retórica de discursos a respeito do imperativo do amor docente pelos alunos como estratégia infalível para identificação e resolução dos problemas educacionais (Carvalho, 2011, p. 215).
A proliferação desses discursos afetivos ganham maior força com a implementação da Base, que busca desenvolver habilidades práticas, cognitivas e socioemocionais para resolver as demandas complexas da vida cotidiana. Essa fabricação de saberes sobre habilidades a serem desenvolvidas, presentes na BNCC, tem por intuito, conduzir a docência da Educação Infantil.
Assim, considerar a infância enquanto aprendizado em potencial demanda o investimento pessoal do docente (Carvalho, 2011), a partir de vínculos afetivos, que objetivem a garantia dos direitos das crianças, atender as necessidades e interesses de aprendizagem das mesmas na Educação Infantil, compõe o trabalho nessa faixa etária, como podemos verificar no Quadro 5, quando foi perguntado sobre as possibilidades que os campos de experiência, apresentados pela BNCC, trazem para o trabalho docente com bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas.
Quadro 5 – Campos de experiências e suas possibilidades
Professora A menciona: Garantir os direitos de aprendizagem das crianças, infantilizando noções, habilidades, atitudes, valores, afetos, que elas devem desenvolver dos 0 a 5 anos. O conhecimento virá com a experiência que cada criança vivenciará no ambiente escolar. Professora B coloca: Garantir as continuidades das experiências de aprendizagem. Uma abordagem respeitosa, com direito à participação e à singularidade. Professora C descreve: Penso que os campos de experiência nos proporcionam planejar uma prática intencional, buscando garantir os direitos de aprendizagem da criança, além disso, descobertas e aprendizagens. Professora D coloca: Estes possibilitam que o professor planeje atividades e momentos em que a criança possa se desenvolver através de experiências e vivências de acordo com a etapa que se encontra; a convivência com os outros, o autoconhecimento, a motricidade, a linguagem, a leitura do mundo. |
Fonte: autores (2024).
Conforme os excertos, essa docência com características específicas, com intencionalidades educativas, busca garantir os direitos de aprendizagens, aqueles estabelecidos pela BNCC, como, habilidades e atitudes, valores e afetos, descobertas e experiências, participação e singularidade. Nesse sentido, lugar de interação entre, crianças e crianças, docentes e crianças, docentes e famílias, a Educação Infantil assume um espaço privilegiado para o processo de socialização, que, por meio de políticas públicas, institui técnicas de intervenções específicas, no caso da BNCC, os direitos de aprendizagens, as competências e habilidades, os campos de experiências, entre outras.
Para Cruz e Mota (2022), podemos entender “[...] o governamento como uma forma de conduzir à docência e o currículo, por meio de políticas públicas que estão implicadas na produção de um determinado modo de ser criança”, operadas a partir de uma determinada racionalidade. Assim, com base nos excertos do Quadro 5, podemos verificar que a BNCC, age e produz efeitos sobre a conduta dos docentes na Educação Infantil, por meio das noções de direitos de aprendizagem das crianças.
Para olhar os modos específicos de exercício docente na Educação Infantil, foi realizado um questionário com algumas docentes da etapa. A ação de escrita das participantes proporcionou um olhar sobre o processo de formação, do cotidiano na Educação Infantil e formas de significação de suas práticas. Percebe-se, nos escritos das docentes participantes que, a BNCC objetiva definir certos modos de ser docente, a partir de uma docência sensível e reflexiva, “criadoramente” e acolhedora, ativa e mediadora, no qual funcionam como estratégias de governamento para constituir uma normativa em torno de como ser um “bom docente” na Educação Infantil.
No percurso de construção desse estudo, apresentamos as habilidades e competências, as intencionalidades educativas para a EI, e os direitos de aprendizagens, como um campo de saber, no qual a BNCC utiliza como discursos específicos, para conduzir a docência na Educação Infantil. As estratégias de governamento, colocadas em ação pela BNCC, não estão desvinculadas, mas funcionam como uma engrenagem, para conduzir toda uma população docente a um determinado fim.
Em linhas gerais, podemos considerar que a BNCC tem em seu arranjo curricular, múltiplos elementos capazes de possibilitar modos específicos de direção das condutas dos sujeitos docentes, como também, daqueles que têm ligação com o documento. Essas tramas fornecem condições de possibilidade para problematizar a produção de uma docência contemporânea na Educação Infantil, engendrados na lógica da racionalidade neoliberal.
As docentes, frente ao documento, estabelecem a melhor forma de desenvolver sua prática pedagógica na Educação Infantil, esforçando-se para alcançar a garantia dos direitos de aprendizagens, a partir do que a Base estabelece os quais são – conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se – pensados a partir do desenvolvimento de habilidades e competências. Assim destaco que, na perspectiva de estudo, é importante estarmos atentos às formas de padronização de modos de vida, bem como problematizar a BNCC como uma política curricular, produtora de padrões, que fixa princípios de normalização e objetiva atender às demandas em vários contextos educacionais, que acaba por excluir a infinidade de diferenças existentes.
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