Educação e formação: valores e mediação de mundos na Angola colonial
Education and training: values and mediation of worlds in colonial Angola
Educación y formación: valores y mediación de mundos en la Angola colonial
Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP, Brasil
lho.silva@unesp.br
Recebido em 10 de abril de 2024
Aprovado em 15 de abril de 2024
Publicado
em 17 de outubro de 2024
RESUMO
A entrada dos missionários espiritanos em Angola a partir da segunda metade do século XIX buscou apoiar a presença portuguesa nos territórios no processo de colonização. Entretanto, para conhecer e desenvolver o processo era necessário entender os mundos e um trabalho de mediação foi desenvolvido por diversos religiosos que estudaram costumes e formas de vivência entre os diversos grupos autóctones de formação bantu que privilegia a oralidade dada pelos saberes tradicionais. A escola nestes saberes não se circunscrevia em um lugar geográfico especifico e a hierarquia familiar era respeitada. Estes valores passam a ser contestados direta e indiretamente com a presença de novos costumes e o processo de europeização que tem quem se adaptar a uma maioria de outras culturas. Nosso interesse foi analisar os processos de educacionais feitos nas missões católicas e protestantes no contexto de resistência e permanência da escravização ilegal.
Palavras-chave: Angola; Educação; Congregação do Espírito Santo.
ABSTRACT
The entry of Spiritan missionaries into Angola from the second half of the 19th century sought to support the Portuguese presence in the territories in the colonization process. However, to know and develop the process it was necessary to understand the worlds and a mediation work was developed by several religious people who studied customs and ways of living among the different autochthonous groups of Bantu formation that privileges the orality given by traditional knowledge. The school in this knowledge was not limited to a specific geographic location and the family hierarchy was respected. These values start to be challenged directly and indirectly with the presence of new customs and the process of Europeanization that allows people to adapt to the majority of other cultures. Our interest was to analyze the educational processes carried out in Catholic and Protestant missions in the context of resistance and permanence of illegal slavery.
Keywords: Angola; Education; Congregation of the Holy Spirit.
RESUMEN
La entrada de misioneros espíritas en Angola a partir de la segunda mitad del siglo XIX buscó apoyar la presencia portuguesa en los territorios en proceso de colonización. Sin embargo, para conocer y desarrollar el proceso fue necesario comprender los mundos y se desarrolló un trabajo de mediación por parte de varios religiosos que estudiaron costumbres y formas de vida entre los diferentes grupos autóctonos de formación bantú que privilegia la oralidad dada por los conocimientos tradicionales. La escuela en este conocimiento no se limitaba a un lugar geográfico específico y se respetaba la jerarquía familiar. Estos valores empiezan a verse desafiados directa e indirectamente con la presencia de nuevas costumbres y el proceso de europeización que permite a las personas adaptarse a la mayoría de otras culturas. Nuestro interés fue analizar los procesos educativos llevados a cabo en las misiones católicas y protestantes en el contexto de resistencia y permanencia de la esclavitud ilegal.
Palabras clave: Angola; Educatíon; Congregación del Espíritu Santo.
O estudo da história das missões tem se mostrado uma fonte notável para compreender o colonialismo empreendido na África e para história contemporânea. Seguindo uma ampliação maior do que os estudos dos primeiros tempos, cuja literatura investigava as estratégias europeias para a implantação do cristianismo em África ou para usos da hagiografia dos primeiros missionários. Estas fontes também têm sido pródigas para as investigações sobre os processos e dominação e resistência por parte da população, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX. Este período tem sido visto como um momento onde cada vez mais os europeus passaram a ocupar os espaços dos estados e reinos que viviam no continente sob o pretexto de colonizar, levando o modo de vida ocidental, a religiosidade cristã e explorando as potencialidades para o uso da economia europeia. Contudo, ele também marca um acirrado momento de disputas entre os europeus e as populações autóctones. Dito de outra maneira, essa entrada teve avanços e recuos e não significou apenas domínio, mas uma série de embates que tem sido descortinado por novas investigações.
A experiência missionária não é nova, uma vez que a exploração de terras pouco ou nada conhecidas para os europeus, bem como o contato com novos grupos humanos inaugurou o início do período moderno e do conhecimento das terras americanas. Contudo, a etapa desenvolvida no século XIX, foi um exercício de vultuosa expressão seguido por várias nações, que passaram a desenvolver um processo de ocupação e luta em África e Ásia por quase um século foi chamado de caracterizando de neocolonialismo. Uso aqui a definição de Kwame N´krumah, líder pan-africanista, para quem o conceito era entendido como a última etapa do Imperialismo. Usando o estudo de Lênin, ele buscou atualizar o conceito a partir do contexto de luta das colônias africanas que pelejavam pela sua emancipação. Para ele um dos primeiros a liderar a independência em Gana, antiga Costa do Ouro e que viveu parte de sua vida sob o jugo europeu, a superação dessa etapa se daria através de vários processos em benefício do próprio continente que, segundo seu levantamento tinha muitas riquezas mal exploradas. N´krumah fez uma radiografia das potencialidades do continente indicando que ele poderia alcançar níveis de desenvolvimento sem a exploração a que ele vinha senso submetido (Nkrumah, 1965). Esta interpretação traz uma chave importante ao apontar que a superação do momento de exploração podia ser vencida.
Um dos principais braços do colonialismo foi o processo educativo, ou seja, catequizar e ocidentalizar as populações, em especial do Império Português. Tais princípios podem ser melhor entendidos nas palavras de Giselda Silva quando afirma que:
A proposta educativa de Portugal para a população nativa de suas colônias englobava ações que estavam muito aquém do sistema escolar predominante para brancos, colonos e, em alguns casos, ‘assimilados; já para os indígenas “não assimilados” restava uma instrução rudimentar voltada para o trabalho. (SILVA, 2015, p.2)
Para a autora a educação tinha a função de alfabetizar os diferentes grupos étnicos e colonos europeus. Contudo havia diferentes ênfases, a alfabetização se daria para funções diferenciadas voltando-se de modo mais apurado para aqueles que se destinariam a administração e mais simplificada para aqueles que fariam o trabalho manual ou no campo. Tais diferenças entre as formas de educação apontam foco em um letramento educacional mínimo e grande ênfase para o aprendizado voltado para o trabalho manual quando voltada aos povos originários. Ainda segundo Silva, essas orientações diferiam dos objetivos dados na Conferência de Berlim (1884-1995) que preconizara uma educação ampla cujas diferenças se aprofundaram após o advento da república lusa a partir de 1910.
No caso de Angola, a presença dos portugueses pouco avançara para o interior até o século XIX. Portugal contou com o apoio de missionários e tal como no século XVI, os religiosos eram o grupo mais atuantes como era o caso dos padres da Congregação do Espírito Santo. Esses missionários de origem francesa se radicaram em Portugal e desenvolveram a criação de missões e o chamado “processo civilizatório”, levando religião e costumes europeus. Embora contassem com apoio econômico e político de Portugal e estivessem ligados pelo padroado, as relações entre os missionários e as autoridades administrativas era bastante complexa.
A necessidade de uma ordem religiosa estrangeira atuando em nome de reino português, tinha a ver com o contexto político das primeiras décadasdo XIX em Portugal. Os conflitos e disputas pelo poder régio levaram ao advento dos movimentos liberais anticlericais cujo um dos resultados foi a extinção das ordens religiosas em 1834. Tal ação levou a uma diminuição sensível no número de religiosos que poderiam atuar nos chamados territórios além-mar. Preocupados com a pouca presença nessas terras que a época, significaria a sua perda, a ordem religiosa ainda que não portuguesa, foi admitida para catequizar e levar a “ civilidade” em nome de do governo português.
Os padres espiritanos foram considerados fundamentais para a consolidação do império português africano auxiliando na ocupação efetiva. Embora estivessem ligados pelo padroado e atuassem em nome do governo português, os religiosos e as autoridades tinham uma relação cheia de percalços e, algumas das dificuldades podem ser observadas em um trecho da carta do superior religioso endereçada ao ministro da Justiça
Diz José Maria Antunes, Procurador Geral das Missões do Espirito Santo do Congo e Angola, junto do Ministério das Colônias, que os chefes das 24 missões a seu cargo não cessam de lhe representar que as missões nacionais e nacionalizadas de Angola estão numa deplorável crise de pessoal; os velhos missionários, sem que tenham recebido reforço desde há dez anos para cá, vão desaparecendo pela morte, pela doença e pelo cansaço, faltando quem os possa substituir na grandiosa e patriótica obra da civilização do indígena, por estarem encerrados na Metrópole todos os estabelecimentos de formação de missionários para as missões religiosas de África desde 1910.
A mesma reclamação é repetida constantemente pelos Governadores Gerais das nossas Províncias Ultramarinas, que tem abertamente feito notar que, ao passo que este fato se está dando com as missões católicas, as únicas que são nacionais e nacionalizadas, estão-se por outro lado desenvolvendo assombrosamente as missões protestantes estrangeiras, desnacionalizando completamente o nosso sertão africano (BRASIO, Antologia Espiritana vol.5, 1970, p.334)
Iniciadas em 1866, as missões dos espiritanos vivenciaram dificuldades como as citadas no trecho acima. O responsável pela coordenação das missões respondia pelos territórios do Congo e Angola explicava alguns dos problemas que enfrentavam. Questões como o envelhecimento dos subordinados, as doenças que ceifavam vidas dos estrangeiros, o cansaço e a necessidade de reposição de novos elementos. Tais problemas mostram que a catequização não era uma tarefa simples. Também é sublinhado que eles representavam a “verdadeira missão” que agia em favor de Portugal, reafirmando su fidelidade e importância do seu papel em um trabalho que tinha cada vez mais concorrência com as missões cristãs protestantes, ali acusadas de desnacionalizar o sertão.
De imediato, dada sobre as dificuldades que enfrentavam no trabalho missionário bem como a preocupação com a concorrência com as missões não católicas, poderia parecer estranho as preocupações com missões cristãs de outra orientação, afinal não estariam todas pela mesma causa cristianizar?
Na realidade as diferenças entre as orientações cristãs tinham uma história longa iniciada por Lutero no século XV e depois aprofunada por um movimento amplo de diversas orientações[1]. Embora fossem igualmente cristãos, o nome genérico protestantes remetia à oposição a Igreja Católica que dividiu e conquistou diversas pessoas a essa fé. Também é necessário lembrar que a denominação protestante no século XIX, representava um grande número de igrejas com várias interpretações do cristianismo e criadas em diversos lugares como Estados Unidos, Alemanha, Canadá, Suíça todas igualmente imbuídas em fazer missão assim como os católicos. Ou seja, indiretamente o padre sugeria que seus “adversários” tinham vantagens em relação a eles próprios e uma delas era a presença numérica. Para Carlos Serrano os protestantes representavam um grupo que se ampliava a cada dia e ao falar sobre Angola cita a Sociedade Batista Missionária que chegou ao Congo e depois Angola em 1878. Lembra ainda que as instituições também criavam escolas e hospitais além de igrejas (Serrano, 1992, p.32).
A educação pré-colonial dos falantes bantu, língua de boa parte da população do território de Angola, estava associada a religiosidade, onde deus é a força primordial e se assentava no homem vivo, acima deles os ancestrais e acima dos ancestrais Deus (Neto, 2005, p. 54).
O aprendizado era um processo de educação passado oralmente através do saber tradicional como firma Conceição Neto:
A educação oral das tribos está implícita nos contos, nos provérbios, nas histórias, nos mitos e ritos, na música e dança; em todas as manifestações culturais dos membros da tribo. A aprendizagem se processava com base na tradição oral como testemunho transmitido de geração em geração (NETO, 2005, p.56).
Todos da tribo ou sobado se envolviam na educação da criança dada no seio familiar, no trabalho, na caça, na forma de expressar religiosidade enfim, no seu cotidiano. Não havia uma maneira específica de educar, mas a transmissão de ideias, saberes, crenças e valores. Como afirma Tereza Neto, embora os colonizadores, incluindo os missionários entendessem por vezes, as línguas das populações autóctones, não conheciam profundamente os valores e a sua civilidade destes grupos que eram parte do sistema educacional.
Os primeiros missionários espiritanos etnografaram os costumes dos diversos povos que viviam em Angola e um trabalho de destaque foi o realizado por Ernesto Lecomte. O missionário chegou em 1884 em Moçâmedes e veio substituir padres que haviam adoecido. Ele desenvolveu estudos sobre língua de vários grupos étnicos observando seus costumes. Visitando a região do Catoco onde se construiu o Forte Amélia, uma vez que o anterior fora destruído pelo soba Chiuanaco, Lecomte conta que enfrentou adversidades quase morrendo, frente ao soba que era contrário à presença de brancos. O missionário produziu descrições sobre a etnias Caconda, Huambo, Galangue, Sambo, Bailundo, Bié entre outras.
Ao discorrer sobre os diversos grupos que viviam ao sul do Planalto angolano, descreveu um pouco do que seria a educação dada por eles religiosos e o cotidiano missionário. Lecomte explica que para se constituir a missão, era necessário escolher, o lugar e a presença de pelo menos dois padres dirigentes, dois irmãos, alguns jovens já educados, isto é convertidos a fé católica, que auxiliavam nos trabalhos de construção e produção de alimentos. Era a ação deste grupo que formaria uma aldeia cristã. Segundo ele, a presença convertidos atraia outros que acabavam por formar a base da futura escola e missão-vila (Lecomte, 1897, p.12).
O missionário explica que os contatos iniciais com a população autóctone sempre eram permeados pela desconfiança, afinal não se sabia as intenções daqueles homens brancos. Uma forma de quebrar as desconfianças era iniciar o trabalho cuidando das pessoas doentes. Tal gesto indicava que eles não eram militares, nem comerciantes. Outro gesto de aproximação era o acolhimento das populações escravizadas que eram resgatadas do tráfico ilegal. Uma vez quebrado o gelo, eram os rapazes catequizados que ajudavam na comunicação e na divulgação da cultura e religiosidade ao se inserirem nas comunidades. O conhecimento dessas ações de aproximação, especialmente voltado para a educação, incentivava muitas pessoas a permitirem que os filhos frequentassem as escolas missionárias. Os alunos estudavam em período integral, eram vestidos e alimentados pela missão e os pais podiam visita-los se morassem longe. Lecomte finaliza dizendo que o processo de educação dos filhos, levava mães e pais a missão e depois a prática do batizado de seus filhos e iniciação ainda mais constante do uso de costumes europeus.
Há menos informações em seus escritos sobre a educação das mulheres, que frequentavam em menor número as escolas assim como na Europa. Ele informa que as “raparigas se aplicavam aos trabalhos que lhes são próprios, ou seja, costura, leitura, doutrina além do trabalho no campo, fabrico de tijolos adobe, ceifar e transportar as ervas que serviriam de telhado para as casas. Foi somente a partir da chegada das irmãs religiosas que foram criaram escolas femininas que tinham também o aprendizado da vida doméstica e de trabalho mais que propriamente da educação formal. Já o catecismo era dado em língua umbundu e português e podia ser ensinado por um padre ou uma pessoa que soubesse ler (Lecomte, 1897, p.13).
Já as missões protestantes objeto de preocupação do coordenador das missões católicas na região do Congo e Angola tinham formação plural. Suas obrigações não eram legalmente impostas e nelas havia um incentivo maior para a formação educacional e também profissional. É comum cita-las como espaços onde havia fortes vínculos entre os catequizados que se distinguiam e, de onde saíram diversos líderes dos grupos de resistência e pró-independência. A antropóloga Iracema Dulley (1978) cita a trajetória de Jesse Chiula Chipenda (1903-1969), filho do chefe de uma aldeia de Lomanda. Nascido na região de Bailundo, ele se aproximou-se da missão congregacionalista da American Board of Commissioners for Foreign Missions (ABCFM). Chiula se converteu ao protestantismo, tendo se tornado catequista e pastor de destaque. Dulley cita ainda a influência de Héli Chatelain, missionário suíço ligado à Mission Philafricaine que coordenou uma a missão ao sul de Angola e trouxe muitos participantes da região.
Segundo Dulley as conversões feitas pelos protestantes eram diferenciadas e, em menor número que as católicas, mas tinham em comum, uma conversão pensada nos princípios reguladores do universo colonial. Apesar disso cabe destacar o caráter questionador das orientações religiosas nas missões protestantes, tematizados em pesquisa feita por Margarida Paredes (2010). Paredes estudou especialmente a trajetória da guerrilheira Deolinda Rodrigues da MPLA e observou que Deolinda vinha de família convertida ao Metodismo. Esta influência cultural religiosa esteve presente nos grupos nacionalistas de Angola, assim como na formação do líder e depois presidente Agostinho Neto que também pertencia ao partido de influência marxista e se considerasse ateísta.
Sem ter a necessidade de envolver no processo de “portugalização”, as várias igrejas de cunho protestante se dividiram em as áreas etnolinguisticas diferenciadas. Os metodistas norte-americanos por exemplo, ficaram com a área umbundu enquanto que os batistas ingleses ficaram na área de língua ovimbundu (Paredes, 2010). As missões e sociedades protestantes como a Sociedade Missionária Batista de Londres se estabeleceram em São Salvador do Congo e, segundo Tony Neves, estiveram envolvidas com os grupos de libertação de Angola, embora houvesse muito católicos na MPLA Movimento de Popular de Libertação de Angola. Para Marion Brepohl, a implantação de comunidades eclesiais anglicanas e protestantes indica que teologicamente as populações autóctones reapropriaram a religiosidade, ajudando a criar uma forma de luta por “liberdade em diversas dimensões (Brepohl, 2016, p.175).
Contudo, embora houvesse afinidade entre o protestantismo e a democracia essas relações não eram sólidas e tampouco tranquilas, uma vez que tradicionalmente se opunham a hierarquia e incentivavam a formação da consciência individual na religião, o que poderia redundar em olhar crítico para a própria evangelização. O protestantismo contribuiu para o desenvolvimento e a atuação de missionários livres de apoio estatal que contribuiram para questionar os abusos coloniais sobre a população, mas houve quem evangelizava em uma linguagem puramente religiosa que incluia passividade, obediência além das ideias presentes do racismo social (Woodberry, 2004, p. 47).
Pensando na questão das escolas, os conceitos de educação, participação cívica e atitudes de interpretação pessoal da bíblia, pode-se considerar que as missões protestantes incentivaram a criticidade. Além disso, nelas havia incentivo para o aumento do nível educacional, diferentemente das missões católicas onde a educação para o trabalho foi se tornando cada vez mais prioritária. Porém nunca é demais considerar que havia diversidade de correntes e linguagens teológicas e, que elas variavam mesmo entre as missões católicas feitas pelas diversas ordens religiosas. De fato, as missões católicas tinham uma proposta de catequização ampla, mas seu letramento formal era modesto e subserviente. Mesmo sendo conduzido nessas orientações, é válido considerar que nem sempre havia correspondência desejada e, indiretamente reconhecimento pelo trabalho. O apoio estatal do padroado, as determinações do governo não isentava o governo de problemas e conflitos com os missionários.
Ressentimentos por parte dos missionários eram ocasionados pela falta de atenção as necessidades em relação as autoridades coloniais, são manifestados sempre nas discussões de forma indireta ou direta. Em alguns casos de conflitos com a Revolta Bailundo de 1902 um significativo levante contra as duras condições impostas sobre a imposição do trabalho forçado, havia desconfianças sobre a possível influência de missões protestantes. O fato é que o trabalho missionário religioso a serviço do poder luso sempre reivindicou maior atenção e maior apoio econômico para a execução e continuidade do trabalho como expõe no trecho abaixo:
Da veracidade do que afirmo pode V. Ex. ª obter informações importantes da Repartição do Ministério das Colônias que tem a seu cargo o serviço das missões ultramarinas. Ao passo que tão triste situação se está dando entre nós, posto de parte este problema tão grave das nossas missões religiosas coloniais, vê-se agora mesmo na questão das missões católicas alemãs, na conferência da paz, a importância que as grandes potencias ligam cada vez mais a ação das suas missões religiosas, tão de sobra está provado que é só por meio destas que se civilizam os povos bárbaros e selvagens. A Franca gastou rios de dinheiro nas suas colônias com missões laicas civilizadoras, mas não consta que uma só de entre elas tenha podido subsistir entre o gentio, ainda bárbaro, a ação civilizadora da missão religiosa; por isso conservou essa nação cuidadosamente todas as suas missões católicas e cada vez mais as protege e auxilia com o maior carinho. (BRASIO, Antologia Spiritana, 1970, p.4)
Observa-se que a comparação entre as formas de apoio dada pela França e a Alemanha as suas missões eram indicadas ali para mostrar o descompasso entre o apoio dado por Portugal em relação aquelas nações. Ao reconhecer as dificuldades dos missionários católicos, o padre Antunes também revelava como a distância da metrópole interferia no processo de fortalecimento de Portugal nos territórios. Ele finaliza a missiva depreciando as populações autóctones chamando-as de bárbaras e reafirmando a importância para que o trabalho fosse valorizado e apoiado pelo Estado. Antunes refletia a mentalidade das autoridades imperialistas eivada de ideias do racismo científico, colocando o trabalho missionário com características heroicas que mereciam maior atenção. Também revela que a missão não estava só e de fato, no começo do século XX, Antunes afirma que havia cerca de 27 missões católicas e cerca de 30 protestantes[2].
Mas e o que mais faziam tantas missões? Boa parte delas centrava o seu trabalho de evangelização no ensino e cuidados com a saúde. Nos interessa aqui evidenciar a questão educacional dos espaços onde os espiritanos foram mais ativos em Angola. Oficialmente houve iniciativas para se criar um sistema de ensino em Angola em 30 de novembro de 1869 quando se determinou a criação de uma escola de nível correspondente ao secundário. Este direcionamento buscava otimizar o ensino voltado principalmente para os colonos, uma vez que o ensino primário era feito pelos religiosos e oferecido aos colonos e populações locais (Liberato, 2014, p. 2006).Também como afirmado anteriormente, o ensino dado pelos missionários era comum a todos, mas os estudantes das missões vindos das populações locais também contribuíam com seu trabalho coletivo como indica outro trecho de uma missiva do bispo de Angola e Congo Dom Antonio dirigida ao ministro dos Negócios da Marinha e Ultramar
Dizia que a Missão de S. Jose da Huila acha-se a meia hora deste povoado, na margem direita do rio Mucha, ficando na margem esquerda a Missão das Irmãs educadoras auxiliares da missão. Esta missão tem lutado com dificuldades devido ao subido preço a que tem chegado os gêneros alimentícios; espero, porém, que este estado cessara devido ao desenvolvimento da agricultura, na qual se empregam a maior parte dos educandos da missão, podendo esta em breve colher gêneros suficientes para as despesas da mesma missão. Carta do Dom Antonio Lévesque bispo de Angola e Congo (25-IX -1893)
A carta revela que os estudantes contribuíam com o trabalho na agricultura, no caso, colhendo gêneros plantados, possivelmente por eles mesmos. Também narra a participação de religiosas no trabalho missionário e educacional, o que indica que as meninas e moças tinham oportunidade de estudar. Contudo, a despeito das obras missionárias, as autoridades lusas usualmente expressavam desconfiança com o trabalho feito pelos religiosos.Um exemplo desta postura era a manifestação de um ministro por conta da criação do colégio de Cernache do Bonjardim. Oficializado em 1856 como Colégio das Missões Ultramarinas esta instituição formava sacerdotes para as missões e professores para os seminários, mas havia escassez de padres o que causava desconfiança por parte das autoridades. Andrade Corvo ministro da Marinha e do Ultramar e 1875 a 1877 dizia não acreditar nas congregações religiosas e ainda menos nos padres, bem como Antonio Enes comissário régio em 1891 que reconhecia os serviços prestados pelos missionários mas duvidava da lealdade dos mesmos. (Gonçalves, 2001)
Contudo, diversas mudanças aconteceram a partir do final da monarquia como o advento da república em 1910 e principalmente com a Política do Indigenato. Maria da Conceição Neto explica que as mudanças após a república foram significativas, se considerarmos o contexto da chamada “viragem de 1910 em Angola” . Para Neto o surgimento do Indigenato em 1926 oficializou uma política de segregação que durou até 1962 (Conceição Neto, 2010). Utilizo aqui uma das definições de Michel Cahen (2015) que define indigenato como uma forma de legislação que não estabeleceu a escravidão, mas uma quase análoga pois impunha uma forma de sujeição ao trabalho e discriminação imposta a população autóctone. Desse modo, ela combinava a discriminação pela forma de produção combinada e também pela origem sujeitando-os a uma série de taxações sobre sua própria terra e condição, praticamente como um sistema de servidão.
Mas como ficaram as escolas criadas pelos missionários sob o regime de indigenato? Para Patricia Schermann , sobretudo após os anos 1930, as instituições escolares nas colônias se voltaram para a preparação do “novo trabalhador”. A escola era um espaço importante para levar as ideologias das nações colonizadoras. Embora com a república tenha ocorrido um período anticlerical, os governadores locais não abriram mão do trabalho missionário. No caso dos padres da Congregação do Espírito Santo, estas ações refletiram na educação como um todo em Angola, uma vez que esta ordem religiosa continuou a desenvolver um trabalho de educação de duas ênfases voltado para a população autóctone e para os colonos. A educação do nível no secundário só parece na formação de religiosos de origem africana, e em algumas escolas de ensino secundário nas cidades mais desenvolvidas como Luanda. Natan Nunn (2011) confirma em sua pesquisa no contexto do fim do século XIX, que maiores níveis de escolaridade vinham das missões protestantes que tiveram mais fortes efeitos na conversão e e nível de escolaridade que as missões católicas.
Considerações finais
As fontes primárias aqui trabalhadas, ou seja, a correspondência de padres missionários e seus gestores e dos religiosos com as autoridades coloniais indicam que as missões analisadas pelos seus participantes inauguraram um processo longo e complexo onde as formas privilegiadas de mediação aconteceram pela educação. Era necessário se render aos costumes locais de cada região, aprender a língua falada em cada tribo e oferecer um gesto de empatia para facilitar o contato. É possível verificar que houve resistência e troca de interesses em vários níveis e de ambas as partes, tanto por parte dos povos ancestrais quanto dos missionários. A experiência missionária protestante se beneficiou da experiência anterior católica e ao se levar a religiosidade e civilidade cristã europeia igualmente perceberam a importância de moldar o catolicismo aos costumes africanos, tornando-o possível de ser seguido seja pelas instituições de apoio como as escolas e hospitais, seja pela necessidade de aprender a ler a bíblia. Por outro lado, o letramento social e educacional se tornou um instrumento para a população conseguir trabalho na colônia, acesso à educação e principalmente prestigio social em um momento de muita tensão na África. O ensino foi massivamente feito pelos religiosos cristãos católicos e protestantes, mas algumas iniciativas foram feitas pelo governo português. Ainda em setembro de 1888 em Luanda começou a funcionar uma escola primária para o sexo masculino, sustentada pela Câmara Municipal. Destinava-se principalmente para os filhos de famílias muito carecidas de recursos, pois podia ser frequentada usando-se somente uma tanga, se não tivessem outra roupa para vestir. Percebe-se pelas orientações que o ensino se destinava aos filhos dos colonos que tinham uma situação precária, mas seria uma das poucas iniciativas feitas pelas autoridades lusas no sentido de resolver o problema de mão de obra qualificada.
As escolas abarcaram a diversidade de pessoas que estavam em Angola e como afirma Ana Madeira abarcaram mulheres, os mestiços, os escravizados e povos originários faziam parte da diversidade característica das sociedades coloniais. Esta pluralidade inferiu em diferentes perspectivas e experiências de vida. Na ausência dos religiosos, os catequistas que eram parte da população convertida, visitavam as aldeias e sobados desenvolvendo os processos de tradução. Tais produções discursivas agiam no sentido de apresentar o mundo colonial e nunca foram isentas e nem sempre eram literais no sentido ocidental. Nosso intento, nesse sentido é aprofundar o estudo sobre a mediação entre pessoas locais e os catequistas pensando da pluralidade de elementos aqui discutidos (Madeira, 2018).
O que devemos considerar é que em um contexto colonialista as missões não tinham um papel inocente. Embora as ações não fossem iguais, elas não estavam livres das ingerências estatais, dos conflitos entre os países colonialistas e, principalmente dos processos de resistência por parte da população. Em estudo anterior, focamos na história do colonialismo em Uganda onde a forte influência do anglicanismo aparentemente moldou as relações políticas do sobado e alterou os padrões religiosos a partir do rei Mutesa e seu súditos. Contudo, as relações mediações passavam pelo entendimento da religiosidade própria, do interesse dos missionários em expandir a religião e a ocidentalização e dos conflitos com os muçulmanos que sempre estiveram presentes nas relações econômicas e culturais (Silva, 2022).
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Notas