Educação zapatista: por um mundo onde caibam muitos mundos
Zapatista education: for a world where many worlds fit
Educación zapatista: por un mundo donde quepan muchos mundos
Universidade Estadual do Maranhão, Timon, MA, Brasil
claudio.rodrigues-silva@unesp.br
Recebido em 29 de março de 2024
Aprovado em 04 de setembro de 2025
Publicado em 24 de setembro de 2025
No contexto do aniversário de 30 anos do Levante Zapatista, comemorado em 1º. de janeiro de 2024, foi colocada em circulação uma obra sobre a educação autônoma do Zapatismo, um Movimento internacionalmente conhecido por várias razões, dentre elas, as suas escolas.
Trata-se do livro intitulado “Um mundo onde caibam muitos mundos: educação descolonizadora e revolução zapatista”, de autoria da Profa. Dra. Ana Paula Morel, docente da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Publicado em 2023 pela Autonomia Literária, essa obra, que totaliza 159 páginas, além do prefácio, da apresentação e das referências, é composta por quatro partes, com várias fotografias de territórios e instalações zapatistas.
Eduardo Viveiros de Castro[1], na quarta capa do livro, afirma que:
O livro de Ana Paula Morel, indo além dos comunicados oficiais do Movimento, descreve a intensa dinâmica intelectual do cotidiano das comunidades autônomas zapatistas. A autora viveu em Chiapas e foi aluna de espaços educativos indígenas, propondo uma experimentação com a 'imaginação conceitual' de educadores tzotzil. O livro traz ainda uma reflexão sobre o urgente chamado zapatista ao advento de 'um mundo onde caibam muitos mundos' [...].
Jean Tible[2], no prefácio (2023, p. 7-8), diz que “O belo livro de Ana Paula Morel retrata e celebra, no marco dos 30 anos do levante [...], uma das experiências políticas e existenciais mais apaixonantes e entusiasmantes das últimas décadas.” Para Tible, marcam essa obra “duas singularidades”, quais sejam, a “sua feliz opção pelo trabalho de campo junto aos promotores de saúde e educação” e a “aproximação entre perspectivismo e zapatismo.”
A relevância dessa obra justifica-se por abordar uma das iniciativas contra-hegemônicas de educação mais expressivas na atualidade por várias razões, entre elas, a perspectiva antissistêmica, as abrangências territorial e demográfica, a duração e a repercussão internacional.
O livro é resultado de pesquisa de campo, com aporte de representativas bibliografias e documentação. Segundo Morel (2023, p. 20), “inspira os escritos” dessa obra a sua Tese de Doutorado em Antropologia Social, defendida em 2018, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Articulando Antropologia e Educação, a autora discute aspectos da educação autônoma à luz da “imaginação conceitual” de educadoras(es) zapatistas falantes da língua tzotzil, sujeitos dessa pesquisa. Morel (2023, p, 20) diz que:
A partir das provocações de Célia Xacriabá, questionamos: por que não pensar a educação zapatista como uma indigenização da educação popular? Compreendemos a educação popular abarcando as propostas educativas que partem desde (e em diálogo com) os saberes dos povos para a construção de um olhar crítico e transformador, tendo uma relação histórica de continuidades e rupturas com os ‘movimentos de educação popular’ [...].
O Zapatismo é composto majoritariamente por povos indígenas de ascendência Maya cujo território de atuação é Chiapas, região Sudeste do México. Viveiros de Castro, na quarta capa, aponta que:
Os povos Maya nos oferecem, com o Movimento Zapatista, o melhor exemplo contemporâneo de uma insurreição bem sucedida contra o monstro bicéfalo Estado-Mercado que oprime as minorias étnicas e outras do planeta. Um exemplo que inspira e desafia [...].
Ainda no que se refere à sua relevância, ressalta-se que a atuação do Movimento resulta em impactos políticos, econômicos e culturais, para além do âmbito local, desde os seus primórdios até a atualidade.
Exemplificam isso apontamentos de Guiomar Rovira Sancho (2023, p. 11), que destaca que, devido à atuação zapatista, “Chiapas se convirtió en la meca de los movimientos sociales y las izquierdas renovadas. Se abrió un ciclo de esperanza y lucha, un ciclo global y heterogéneo, potente, juguetón, capaz de actuar en red y coordinarse sin comando central.” Ainda conforme essa autora, “Al calor del zapatismo se forjó una generación de activistas de todo el mundo.”
Apontamentos de Juan Villoro (2023, p. 25) também corroboram a relevância desse Movimento: “El neozapatismo surgió como una apuesta intelectual desconcertante. Treinta años después, su discurso sigue produciendo ideas heterodoxas.” Esse autor entende que “La potente influencia discursiva del EZLN sigue vigente.” (2023, p. 19). Aliás, essa influência envolve as áreas da política, da economia e da cultura – que inclui a educação escolar – e reverbera entre movimentos, coletivos e outras formas de auto-organização contra-hegemônicas em diferentes pontos do Planeta.
Trata-se de um Movimento complexo, cuja compreensão requer análises condizentes com essa característica, inclusive para a devida compreensão do seu sistema educacional. A obra em tela contribui para isso.
Para propiciar ao público leitor uma espécie de panorâmica sobre as temáticas tratadas nesse livro, apresentam-se, a seguir, os tópicos abordados em cada parte.
A primeira parte, intitulada “Autonomia: cuidado próprio de um povo”, é composta pelos seguintes tópicos: “as vidas nas comunidades”, “a composição do movimento zapatista”, “a autonomia na voz dos educadores”, “as mulheres zapatistas” e “saúde autônoma”. Enfatiza-se a autonomia como componente fundamental da vida – em acepção ampliada – coletiva das comunidades zapatistas.
A segunda parte, “Educação autônoma: um caminho para o chanel”, apresenta os tópicos a seguir: “Centro de Espanhol e Línguas Mayas Rebelde Autônomo Zapatista”, “as escolas como experimentos” e “chanel, a educação verdadeira”. Destacam-se detalhes – pretéritos e atuais – dessa educação e o relato de aspectos da vivência de Morel nessas escolas.
A terceira parte, intitulada “Espíritos, deuses e o mundo”, é composta por esses tópicos: “ch’ulel”, “yajval, os deuses”, “fim do mundo (slaje’m balumil)” e “origem de um mundo perfeito”. Ressaltam-se a inter-relação entre diferentes seres, humanos e não humanos, e a importância da língua tzotzil e da palavra, enfatizando-se conceitos-chave da educação autônoma.
A quarta parte, “A terra”, é composta pelos tópicos “os homens e mulheres verdadeiros” e “por fim...”. Destaca-se a centralidade da terra para o Zapatismo, pois ela é um quesito imprescindível para a vida, tanto na sua dimensão material quanto na simbólica, especialmente para povos indígenas de ascendência Maya.
Segundo Morel (2023, p. 147-148),
Ao refletirmos sobre a máxima de um mundo de muitos mundos com os educadores zapatistas produzimos um deslocamento de alguns de seus termos chaves, como palavras, mundo, verdade. Tal máxima tece uma proposta de organização política horizontalizada, que se desdobra na articulação entre a autonomia local e a crítica anticapitalista, ao mesmo tempo que possibilita também uma reinvenção metafísica das práticas que habilitam o Antropoceno.
À guisa de considerações, ressalta se que, com quatro décadas de atuação, o Zapatismo é um dos principais movimentos contra-hegemônicos na atualidade, com reverberações internacionais, configurando-se como uma referência em vários quesitos, entre eles, a educação, que é operacionalizada articuladamente com as demais áreas da autonomia (frentes de atuação). Trata-se de um sistema educacional composto por diversas escolas autônomas, concebidas, geridas e financiadas pelas comunidades zapatistas.
Dentre os vários legados – renovados e ampliados cotidianamente – do Zapatismo está a forma como esse Movimento lida com a educação – em acepção lato desse termo, em especial a escolar – das suas comunidades. Por um lado, o Movimento não somente apresenta severas críticas como também recusa a educação escolar oficial, mas, por outro lado, concebe e executa o seu próprio sistema educacional que, como apontado, cumpre papel-chave no processo de resistência e de constituição do projeto político zapatista.
A educação autônoma zapatista foi – e continua a ser – objeto de expressiva quantidade pesquisas acadêmico-científicas em diferentes países e continentes, a partir de variadas delimitações temporais, temáticas e referenciais teórico-metodológicos, o que tende a gerar diferentes pontos de vistas acerca dos limites, potencialidades e contradições – inclusive os ônus e bônus em diversos aspectos – que envolvem o sistema educacional desse Movimento (Barbosa, 2015, Menezes Neto, 2016, Silva, 2019). Não obstantes essas produções, esse tema continua a demandar pesquisas, inclusive envolvendo outros aspectos da educação autônoma, a partir de variados referenciais teórico-metodológicos.
A obra em tela propicia dados acerca de principais aspectos dessa iniciativa, digna de ser conhecida e estudada por pesquisadores, docentes e estudantes de Licenciaturas que se pautam por perspectivas contra-hegemônicas, pois é uma experiência educacional que, não sem complexas condições adversas e contradições, registra numerosas conquistas, configurando-se – na acepção zapatista – como a “outra educação” ou a “verdadeira educação”, que – num momento distópico, marcado por ascensão de movimentações reacionárias e de intensificação de políticas ultraconservadoras, tanto no âmbito do território mexicano quanto em âmbito transnacional –, contribui para o processo de resistência e de combate à “hidra capitalista” e, por conseguinte, para avanços rumo a “um mundo onde caibam muitos mundos”.
O Zapatismo enfrenta, na atual conjuntura, um – a rigor, mais um – complexo momento de “encruzilhada” na sua trajetória de 30 anos de atuação pública (Gil, 2023, Mora, 2023, Villoro, 2023). O Movimento é afetado e se posiciona criticamente acerca de questões que envolvem não apenas assuntos locais, mas também questões prementes da geopolítica internacional. Inclusive em decorrência disso, ele se envolve e é envolvido em disputas de variadas ordens, tanto entre setores conservadores quanto entre setores contra-hegemônicos.
A educação autônoma, em sinergia com as outras áreas, cumpre, desde os primórdios desse Movimento, papel imprescindível no processo de constituição e consolidação da autonomia zapatista. O Zapatismo, devido às suas características e ao seu contexto de atuação – território e conjuntura –, é complexo, o que reverbera, inevitavelmente, no seu sistema educacional.
A obra de Morel contribui para a compreensão ampliada de vários aspectos do Zapatismo e das suas complexidades, desde questões macrossociais até aspectos da operacionalização curricular, inclusive no que se refere a inter-relações entre a educação e outras áreas da autonomia. O livro propicia, também, aportes atinentes à metodologia de pesquisa em movimentos sociais contra-hegemônicos, que têm várias especificidades que impactam direta ou indiretamente a realização de pesquisas acadêmicas empíricas ou de campo, a começar pelo acesso a seus territórios.
Assim, o estudo dessa obra é recomendável por vários fatores imbricados entre si, tais como, a atualidade, a abordagem e as temáticas tratadas – várias delas com abundância de detalhes inéditos. Especificamente para a área da Educação, destaca-se, ainda, a sua potencialidade de contribuição para o processo de formação docente, por exemplo, como mote para problematizações, a partir de casos reais, de assuntos abordados em determinadas disciplinas das Licenciaturas. Já para interessados – independentemente dos seus níveis – na “zapatologia”, trata-se de uma obra imprescindível.
Referências
BARBOSA, Lia Pinheiro. Educación, resistencia y movimientos sociales: la praxis educativopolítica de los Sin Tierra y de los Zapatistas. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2015.
GIL, Yásnaya Elena A. ¿A quiénes les habla el zapatismo ahora? Revista de la Universidad de México, Ciudad de México, n. 903/904, p. 16-21, 2023. Disponível em: https://www.revistadelauniversidad.mx/download/4697ea55-66b9-481f-bb50-7135fcc68ff0?filename=ezln. Acesso em: 10 dez. 2023.
MENEZES NETO, Antonio Julio de. Movimentos sociais e educação: o MST e o Zapatismo entre a autonomia e a institucionalização. São Paulo: Alameda, 2016.
MORA, Mariana. Kanantayel lum k’inal en la autonomía zapatista. Revista de la Universidad de México, Ciudad de México, n. 903/904, p. 56-59, 2023. Disponível em: https://www.revistadelauniversidad.mx/download/4697ea55-66b9-481f-bb50-7135fcc68ff0?filename=ezln. Acesso em: 10 dez. 2023.
MOREL, Ana Paula Massadar. Um mundo onde caibam muitos mundos: educação descolonizadora e revolução zapatista. São Paulo: Autonomia Literária, 2023.
ROVIRA SANCHO, Guiomar. Sigamos siendo zapatistas del 94. Revista de la Universidad de México, Ciudad de México, n. 903/904, p. 7-13, 2023. Disponível em: https://www.revistadelauniversidad.mx/download/4697ea55-66b9-481f-bb50-7135fcc68ff0?filename=ezln. Acesso em: 10 dez. 2023.
SILVA, Cláudio Rodrigues. Educação em movimentos sociais: princípios educativos comuns ao Movimento Zapatista e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 2019. 410 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2019. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/Educacao/Dissertacoes/silva_cr_do_mar1.pdf. Acesso em: 13 mai. 2023.
VILLORO, Juan. El futuro, instrucciones de uso. Revista de la Universidad de México, Ciudad de México, n. 903/904, p. 22-27, 2023. Disponível em: https://www.revistadelauniversidad.mx/download/4697ea55-66b9-481f-bb50-7135fcc68ff0?filename=ezln. Acesso em: 10 dez. 2023.
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Notas