Evidências de uma educação menor em acontecimentos conviviais com teatro
Evidence of minor education in convivial events with theater
Evidencia de educación menor en acontecimientos conviviales con teatro
Paulo
Ricardo Silva do Nascimento
Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
pauloinbust@gmail.com
Jose Valdinei Albuquerque Miranda
Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
jvaldineimiranda@gmail.com
Recebido em 26 de fevereiro de 2024
Aprovado em 25 de março de 2024
Publicado em 29 de janeiro de 2025
RESUMO
Neste artigo buscamos expor algumas evidências de uma Educação Menor em experiências artísticas realizadas pelo espaço coletivo de cultura de artes cênicas Casarão do Boneco, focando um dos seus eventos mais coletivos, o Amostraí, citando por vezes ações do grupo In Bust Teatro com Bonecos, seu primeiro habitante. Estas experiências serão aqui discutidas no âmbito do conceito de Literatura Menor, apresentado por Gilles Deleuze e Felix Guattari, porém, deslocado e argumentado a partir de Silvio Gallo, no campo da educação, e de Heloisa Marina, no campo dos afazeres da atividade teatral. Estas ações coletivas serão atravessadas por algumas compreensões de Jorge Dubatti em torno do acontecimento teatral e do convívio que se estabelece nele. Colocaremos a palavra Educação neste nível do acontecimento convivial, nas trocas espontâneas de experiências e saberes, em uma forma de aprendizado autônomo e mútuo. Assim, entenderemos estas experiências artísticas como vias minoritárias, espaço de trânsitos de micropolíticas em acontecimentos conviviais.
Palavras-chave: Educação; Teatro-menor; Acontecimento convivial; Micropolítica.
ABSTRACT
In this article we seek to expose some evidence of a Minor Education in artistic experiences carried out by the collective performing arts culture space Casarão do Boneco, focusing on one of its most collective events, Amostraí, sometimes citing actions by the group In Bust Teatro com Bonecos, its first inhabitant. These experiences will be discussed here within the scope of the concept of Minor Literature, presented by Gilles Deleuze and Felix Guattari, however, displaced and argued from Silvio Gallo, in the field of education, and Heloisa Marina, in the field of theatrical activities. These collective actions will be crossed by some of Jorge Dubatti's understandings regarding the theatrical event and the coexistence that is established within it. We will place the word Education at this level of the convivial event, in the spontaneous exchanges of experiences and knowledge, in a form of autonomous and mutual learning. Thus, we will understand these artistic experiences as minority paths, a space for the transit of micropolitics in convivial events.
Keywords: Education; Minor-theater; Convivial event; Micropolitics.
RESUMEN
En este artículo buscamos exponer algunas evidencias de una Educación Menor en experiencias artísticas llevadas a cabo por el espacio colectivo de cultura de artes escénicas Casarão do Boneco, centrándonos en uno de sus eventos más colectivos, Amostraí, citando en ocasiones acciones del grupo In Bust Teatro com. Bonecos, su primer habitante. Estas experiencias serán discutidas aquí en el ámbito del concepto de Literatura Menor, presentado por Gilles Deleuze y Félix Guattari, pero desplazado y argumentado de Silvio Gallo, en el campo de la educación, y de Heloisa Marina, en el campo de la actividad teatral. Estas acciones colectivas estarán atravesadas por algunas de las comprensiones de Jorge Dubatti sobre el hecho teatral y la convivencia que en él se establece. Pondremos la palabra Educación en el nivel de eventos de convivencia, en intercambios espontáneos de experiencias y conocimientos, en una forma de aprendizaje autónomo y mutuo. Así, entenderemos estas experiencias artísticas como caminos minoritarios, un espacio para el tránsito de la micropolítica en eventos convivenciales.
Palabras clave: Educacion; Teatro-menor; Acontecimientos conviviales; Micropolítica.
Evidências de uma educação menor em acontecimentos conviviais com teatro
Seções primárias
Neste artigo evidenciaremos os traços de uma educação menor em acontecimentos conviviais com o teatro. Algumas experiências culturais realizadas pelo espaço coletivo de cultura de artes cênicas Casarão do Boneco produzem a existência de vias menores de construção de conhecimentos, onde zonas de experiências e subjetivações se instauram e provocam trânsitos micropolíticos. São acontecimentos conviviais contendo trocas de experiências e saberes em uma forma de aprendizado autônomo e mútuo. Talvez, por vezes, possa parecer que estamos desviando o assunto de um sentido educacional em apresentações teatrais e tratando de um acontecimento artístico de resistência nas artes cênicas, desde um casarão centenário. Porém, é por meio desse acontecimento que se tecem as teias relacionais que produzem as vivências compartilhadas de uma educação menor no casarão, não há como falar das evidências de uma educação menor sem passar pelos acontecimentos conviviais com teatro.
Sobre o Casarão, apresentaremos à seguir algumas das suas linhas de composição e, conforme o raciocínio for adentrando nos seus territórios artísticos de convívio e experiências teatrais, vamos acrescentando outras linhas, principalmente sobre um dos seus eventos periódicos, o Amostraí. No traçado desta escrita, atravessaremos algumas ações do grupo In Bust Teatro com Bonecos, seu primeiro “habitante”, para olharmos as vivências compartilhadas com teatro, que estão aqui como campo de observação sobre o que se evidencia como uma educação composta por linhas minoritárias.
Casarão – minorações e agenciamentos coletivos com a arte
Fisicamente, o Casarão do Boneco é de arquitetura eclética, como a maioria dos casarões construídos entre o final do século XIX e início do XX, no primeiro ciclo da borracha na região norte, período de intensa transformação urbana naquela área da cidade. Fica em uma das margens do bairro de Batista Campos, em Belém do Pará. Convivialmente, foi moradia de duas famílias em períodos diferentes até meados da década de 90 do século passado. Em 2003 foi vendido ao ator e bonequeiro Anibal Pacha para ser sede do grupo In Bust Teatro com Bonecos. Começou a ficar conhecido no quarto ano da Semana de Bonecos, em 2004, quando o grupo abriu as suas portas ao público pela primeira vez. Virou referência para o teatro de animação em Belém e na região Norte do país e por isso foi visitado por alguns grupos, bonequeiros e mestres de vários lugares do Brasil e de outros países.
O Grupo In Bust foi fundado em 1996, por alguns amigos que experimentavam teatro de bonecos, em Belém. Há um núcleo condutor formado por quatro integrantes fixos, que define em consenso todo o rumo das atividades do grupo, a pesquisa, o tipo de material, a dramaturgia, se circula, onde investe e tudo é realizado em gestão horizontal. Estas pessoas se atribuíram a missão de apresentar espetáculos de maneira acessível, pois compartilham a crença na arte como direito do ser humano. Suas ações têm sido assim: dispondo o fazer como diversão saudável para qualquer pessoa que é ou já foi criança, sem distinções na plateia e, por vezes, sem distinção entre espectador e espetáculo. Uma convocatória à brincadeira e à partilha, à cocriação, à expectação ativa e presente, a borrar limites entre palco e plateia.
O grupo estabeleceu um vínculo territorial demarcatório, que define certas prioridades e localiza a plateia desejável para convívio, fez muitos percursos de apresentações e oficinas pela periferia da grande Belém, por municípios do Pará e por todos os estados da Amazônia brasileira, com diversas circulações fluviais. Um teatro que cabe nos urdimentos tradicionais, mas feito para quase qualquer lugar, porque é coletivo e político, porque foi/vai aonde o teatro não foi/vai. Desde que compreendeu que a poética seguida como linguagem foi rizoma brotando, capaz de fazer brotar outros, recorreu a diversas possibilidades para não parar de buscar público para o convívio pela fruição de espetáculos. O Casarão é um dos brotos de rizoma plantado pelo In Bust, que vingou para gerar outros e, assim, olhando ligeiro, nem se consegue mais discernir o primeiro.
O Casarão se constitui do desejo do In Bust de continuar nas tarefas a que o grupo se meteu a fazer, de difusão do teatro para qualquer pessoa, de manter-se em uma fala amazônida-paraense, mas em uma proposição do desejo de algo mais, para além de uma sede, agregado em uma dimensão afetiva que norteasse sua funcionalidade, com maneiras de agrupamentos configuradas em relações de afinidades, pesquisas artísticas, alinhamentos subjetivos de proximidade e realizações artísticas e formativas compartilhadas. O Casarão nasceu do seu próprio desejo de existir, “(...) o seu espaço, exíguo, faz com que todas as questões individuais estejam imediatamente ligadas à política” (Deleuze e Guattari, 2003, p. 39). Materializou-se da necessidade de seguir apresentando teatro com bonecos, sempre, na cidade, e conseguir estar em outros lugares da cidade, e em vários lugares de outras cidades. Existe pela necessidade e urgência de continuar existindo. Sorrateiro e agregante, é planta jiboia que nasce na vala de água da chuva e da pia e cresce e sobe pelo cimento para encontrar o galho do biribazeiro, do outro lado da calçada.
Integrantes do núcleo do In Bust, consideram que “compartilhar” vibra nas estruturas de cada feito do grupo pelo Casarão do Boneco, como um princípio político da relação com a lida de artistas e com a cidade. O grupo “(…) manifesta a vontade de potência se deixando afetar pela força dos artistas e coletivos ali presentes, que certamente também são afetados pelo modo de existência do grupo” (Andrade, 2020, P. 275). Outros grupos habitam a casa, além do In Bust. Digamos, assim, de um agregamento de pessoas e/ou agrupamentos e práticas e ideias, constituído a partir de algum convívio, alguma experiência com integrantes do In Bust, mas não só por isso, por desejarem assemelhados devires minoritários com a arte.
Educação Menor / Teatro Menor
Pensar evidências de uma educação menor nas tramas do convívio teatral no Casarão do Boneco consiste em dialogar com intercessores que percorrem o pensamento de uma filosofia e de uma arte das minorações, pois os acontecimentos que vamos tratar, aproximam-se do entendimento de que “uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua que uma minoria constrói numa língua maior.” (Deleuze e Guattari, 2003, p. 38). Pensar o conceito de menor como infiltrações, como ranhuras por entre os fluxos estabelecidos. Rupturas em minorações, sendo entendidas no percurso das suas existências. Esse pensamento dos filósofos franceses produz ressonâncias no nosso pensamento, quando a palavra menor é reformulada nas conjugações com as palavras educação e teatro, pois possibilita pensar os acontecimentos conviviais com o teatro que ocorrem no Casarão do Boneco, na sua composição com a educação menor. Uma educação menor que acontece quando em convívio mediado por um teatro menor.
Na companhia de Gilles Deleuze e Felix Guattari (2003), Silvio Gallo, se colocou a trabalhar sobre o conceito traçado por eles, a “deslocar esse conceito, operar com a noção de uma educação menor, como dispositivo para pensarmos a educação, sobretudo aquela que praticamos no Brasil em nossos dias” (Gallo, 2002, p.172). Buscaremos utilizar este dispositivo ao nosso pensamento para enxergar suas evidências nas experiências do Casarão do Boneco.
Na insistência em um estado de comprometimento com as transformações no que está estabelecido, “(…) insistir nessa coisa de investir num processo educativo comprometido com a singularização, comprometido com valores libertários” (Gallo, 2002, p.172). Provocar isto. Fazê-lo por dentro do que se cria e expõe como cena para ser compartilhado, cocriado com o público. Não é como uma aula com teatro ou uma encenação sobre assunto escolar, nem como uma lição ou moral colocada na apresentação para atingir algum ensinamento – nesses casos, também há o convívio, mas o viés pedagógico não está contido nele, no convívio, e sim na lição a dar. Como uma ação menor, o convívio pelo teatro, pelo palco/cena de teatro do Casarão do Boneco é a “sala de aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias, estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um futuro aquém ou para além de qualquer política educacional” (Gallo, 2002, p. 173). Um acontecimento convivial donde se dispara devires de felicidades, provocam-se rebeldias afetivas, vislumbres revoltosos de outros futuros. “Uma educação menor é um ato de singularização e de militância” (Gallo, 2002, p. 173). Assim, como um teatro menor é um ato com as mesmas substâncias.
Seguindo os filósofos franceses e a linha de pensamento de Gallo (2002), no contexto de uma Educação Menor, a teatrista, professora, pesquisadora, Heloisa Marina buscou no contexto das artes cênicas, entre manifestações teatrais da América latina compreender um teatro que chamou de menor. Sigamos pelo entendimento da autora:
Além do termo teatro não comercial, outra categoria que me parecia pertinente era a de teatro de grupo. Esta última estaria vinculada a um formato de produção e gestão no qual a horizontalidade das relações seria uma premissa, bem como o desejo em realizar criações cênicas autorais e voltadas a pesquisas de linguagem e estéticas. Assim, ambos os termos (teatro não comercial e teatro de grupo) se definiriam por suas características referentes aos meios de produção e gestão (Marina, 2017, p. 60).
As pessoas do Casarão do Boneco se juntaram em seus grupos para uma convivência duradoura, em função de uma busca e desenvolvimento de uma experiência cênica, de uma relação política com a cidade, com o mundo e com o trabalho, com as formas de produção. “Dessa forma estou refletindo acerca de um tipo de fazer teatral cujo modelo de produção é reflexo dos desejos e necessidades que estão alinhadas com concepções ideológicas próprias de um grupo ou artista individual” (Marina, 2017, p. 62). E ainda que nos moldes legais, nos seus grupos, se organizem com diretorias e funções específicas, o que parece é que os ajustes hierárquicos, se é que existem, estão à mercê do exequível, da funcionalidade, estão como a sílaba para a palavra, são partes de um modo coletivo de produção e gestão. O Casarão do Boneco não é uma personalidade jurídica, por vezes se comporta como se fosse, tem currículo, pessoas que o representam, atuação e participação política, é conhecido, porém, não se “mexe” juridicamente.
No sentido da linguagem, o teatro que se pratica por lá não é um tipo que quer encher grandes salas e que se interessa por festivais competitivos, por grandes atuações etc. Não renega estas práticas, porém, está mais voltado para a proximidade com o público, para o teatro como tarefa do dia a dia, não para a excepcionalidade da temporada em um teatrão do centro da cidade. Mais interessado em buscar formar público que em um público já formado. Tendentes a pesquisar práticas e assuntos diversos para levantar cenas e a se envolver em práticas pedagógicas que envolvam práticas teatrais. Nesse ponto, já tocamos em evidências de que é um teatro que está também em um território pedagógico, onde a apresentação da peça, a zona de experiência convivial, não é, por si, eventual, mas cotidiana, periódica, diversa e a sua prática não se restringe a sua própria finalidade de apresentação. É um fazer teatral que não se pretende grandioso, mas, talvez, duradouro, sempre em construção.
Percebamos que as micropolíticas argumentadas a partir de Heloisa Marina como teatro menor – que passará a se ver como elementar nas experiências do Casarão do Boneco – quando atravessam a perspectiva do acontecimento, fazem apontar um viés formador, educacional, que está no convívio, no presente do acontecimento teatral, num campo educacional traçado por linhas minoritárias, conforme discutido por Gallo (2002). O veículo da minoração pode estar na brincadeira, no ridículo, no afrouxamento do riso, na captura para o jogo da cena, nos planos hierárquicos do vai e volta entre o palco e a plateia, transduzindo funções. Sendo militante, permanentemente, mesmo se lhe parece puro riso, diversão despretensiosa.
Aliás, talvez isso faça a minoração do ato: ser aparentemente despretensioso e verdadeiramente divertido. Sobrepondo realidades e realidades fictícias, na cumplicidade da mentira do boneco que parece vivo, na construção coletiva da dramaturgia em convívio, nas histórias e maneiras de contá-las. Um tipo de teatro, de dramaturgia, de encenação, de criação atoral, que se desenha pela presença do espectador e do quanto este se dispõe a contribuir. Um acontecimento teatral que conta com os saberes do espectador participante para que se complete enquanto obra.
Acontecimentos Conviviais
Nestas experiências vivenciadas no Casarão do Boneco, o que estamos chamando de convívio, vamos compreender pela escrita de Jorge Dubatti:
Chamo de convívio ou acontecimento convivial a reunião, de corpo presente, sem intermediação tecnológica, de artistas, técnicos e espectadores em uma encruzilhada territorial cronotópica (unidade de tempo e espaço), cotidiana (uma sala, a rua, um bar, uma casa etc., no tempo presente) (Dubatti, 2016, p. 31 e 32).
Aqui trataremos teatro como acontecimento convivial, pois, mais que a estrutura de signos, verbais ou não verbais, ou o encadeamento significante, ele não se restringe à função de expressão de um sujeito emissor, não se comunica num sistema na ordem da linguagem, é um acontecer vital na ordem da experiência. É “(...) algo que acontece e em que se dá a construção de sentido. Um acontecimento que produz entes em seu acontecer, vinculado à cultura vivente, à presença aurática dos corpos” (Dubatti, 2016, p. 27). Escapando dos muitos manuais de teatrologia de bases semióticas de definição do teatro como sistema de linguagem humana expressiva, comunicativa e de recepção, Jorge Dubatti amplia o campo e propõe essa ideia mais complexa e precisa do Teatro:
“(...) ele é um ente complexo que se define como acontecimento, que se constitui historicamente no acontecer; é algo que ocorre graças à ação do trabalho humano. Retorno aqui a ideia marxista da arte como trabalho humano: o teatro é um acontecimento do trabalho humano. O trabalho produz um ente-acontecimento, isto é, um acontecimento ontológico produzido na esfera do humano, mas que a transcende; um ente sensível e conceitual, temporal, espacial, histórico. Se théatron, em grego, remete a ideia de mirante, a raiz compartilhada com o verbo theáomai remete a ver aparecer: O teatro como acontecimento é, pois, um mirante onde se veem aparecer entes poéticos efêmeros, de entidade complexa (Dubatti, 2016, p. 31).
Faz aparecer uma teia de relações possíveis no acontecimento da obra teatral. Afirma que o teatro, como acontecimento do trabalho humano, é capaz de gerar entes potentes que se instalam assim que desaparecem, transcendem. Relacionam-se entre si e com tudo o mais em volta. “Trata-se de pensar em que consiste o teatro, se ele pode ser pensado como ente e como se relaciona com os demais, sobretudo com o ente fundante, metafísico e independente, condição de possibilidade do restante: a vida” (Dubatti, 2016, p. 29). Nas experiências de convívio mediadas pela obra teatral, que estamos expondo aqui, as pessoas estão pela abundância da partilha, não pela escassez do domínio, necessariamente esperançam vida.
Aqui tem indícios de micropolíticas transitando nos feitos do Casarão capazes de atravessar os campos da diversão, do teatro e da educação. A provocação da abundância a partir dos recursos que se tem, colocados ao uso de uma coletividade, com reverberações públicas, que será percebida, pensada, questionada, comparada, conversada, e nesse percurso, aprendida e, tomara, espalhada.
É na experiência vivida que se faz transitar micropolíticas. “Trata-se de agenciamentos cotidianos, de microgestos, de um nível capilar de operação” (Schneider, 2014, p. 30). Confabulações relacionais de modos de ver mundos, presentificadas, possibilitando vínculos sociais e novos devires. Para o teatro que estamos olhando, precisamos estender os limites do acontecimento ao convívio que este teatro provoca. Por exemplo: olhar o acontecimento de quando o portão do Casarão do Boneco se abre para a primeira pessoa entrar e fazer acontecer um dos seus movimentos, o mais coletivo, o Amostraí.
Divaguemos sobre a participação de uma pessoa que chega para expectar. A tendência individual, ao chegar ao evento teatral, é a de reproduzir um funcionamento preestabelecido: se colocar como espectador, como contraponto à cena, ao elenco e demais realizadores, como um lugar de estabilidade frente ao inesperado que é o jogo dos atores e demais elementos componentes da obra de arte. Contudo, o jogo de cena destas experiências expostas aqui escapa de se manter hierarquicamente como colocado para ser visto e cumprir assim o código posto, se faz muito mais em agenciamentos imprevistos ou previstos até certo ponto. Estabelece diálogo direto e solicita ao espectador que se manifeste, que esteja tão ativo e atuante quanto o atuante de cena, que traga além da sua presença, sua história, seu dia, e compartilhe ali, em tipos de agenciamentos que são moleculares, instáveis, que atiçam desejos, desequilibram e expõem experimentos de novos raciocínios que precisavam ser raciocinados. Dito por François Zourabichvili,
(...) a maneira como o indivíduo investe e participa da reprodução desses agenciamentos sociais depende de agenciamentos locais, "moleculares", nos quais ele próprio é apanhado, seja porque, limitando-se a efetuar as formas socialmente disponíveis, a modelar sua existência segundo os códigos em vigor, ele aí introduz sua pequena irregularidade, seja porque procede à elaboração involuntária e tateante de agenciamentos próprios que "decodificam" ou "fazem fugir" o agenciamento estratificado: esse é o pólo máquina abstrata (entre os quais é preciso incluir os agenciamentos artísticos). Todo agenciamento, uma vez que remete em última instância ao campo de desejo sobre o qual se constitui, é afetado por um certo desequilíbrio (Zourabichvili, 2004, p. 8).
O acontecimento está neste momento da convivência criada e mediada pela obra teatral, intermediada pelas expressões dos corpos de quem está em cena em convívio com quem “veio ver”. Está também no convívio entre as pessoas que vieram ver, nos momentos que antecedem a peça e nos que a sucedem. “O convívio multiplica a atividade de dar e receber a partir do encontro, do diálogo e do mútuo estímulo e condicionamento (...)” (Dubatti, 2016, p. 32). Reverbera desde antes do seu acontecimento, ou começa antes, fato é que provoca convívio de antes e até depois nos encontros que sucedem na plateia ou por dentro do casarão.
Encontro é o nome de uma relação absolutamente exterior na qual o pensamento entra em conexão com aquilo que não depende dele. (...) Quer se trate de pensar ou de viver, o que sempre está em jogo é o encontro, o acontecimento, portanto a relação exterior aos seus termos (Zourabichvili, 2016, p. 52).
O trânsito das micropolíticas acontece no encontro. Suas condições de trânsito estão no estabelecimento da disponibilidade farta de encontros para provocar os pensamentos inesperados: A casa aberta periodicamente; a disponibilidade corriqueira de apresentações de espetáculos; as diversas chances de convívio nestes acontecimentos; as maneiras como são preparados os acontecimentos teatrais e o que pretendem colocar em pauta como preenchimento dos convívios. “É o acaso do encontro que garante a necessidade daquilo que é pensado” (Zourabichvili, 2016, p. 51). Então, se provocarem muitos encontros, também garantam que brotem pensamentos que necessitam ser pensados. Ter a consciência das artimanhas do encontro e disponibilizar cutucões pensantes ao longo do convívio. “É preciso que algo force o pensamento, abale-o e o arraste numa busca; em vez de uma disposição natural, há uma incitação fortuita, contingente, que depende de um encontro.” (Zourabichvili, 2016, p. 51). Engendrar e dispor cutucões. Torça-se que algum cutucão vingue e que fique latejando pensamentos impensados que brotem nos encontros.
Um meio de forçar o pensamento é o que o teatro tem de específico.
Se o teatro é acontecimento, denominamos teatralidade singular do teatro ou especificidade da teatralidade do teatro, que a distingue de outras formas e usos da teatralidade, aquilo que só é gerado nas coordenadas específicas do acontecimento convivial-poético-expectatorial, produto da densidade que concorre na zona de experiência determinada por este conjunto de saberes únicos e específicos do teatro (Dubatti, 2016, p. 161).
Dubatti destaca dois tipos de especificidades: uma que define de forma lógico-genética, que se expressa como a expectação da poiesis corporal em convívio; e outra, uma pragmática, que o define como “uma peculiar zona de experiência e subjetividade” sob interferência de convívio-poiesis-expectação. O teatro aqui é, então, “(…) um acontecimento constituído de três subacontecimentos relacionados: o convívio, a poiesis e a expectação” (Dubatti, 2016, p. 31). Ali, no convívio, em pleno acontecimento teatral, uma parte dos participantes, em atuações físicas e físico-verbais, em jogo com os outros elementos que compõem a cena, produz poiesis e a outra porção de participantes passa a expectar a poiesis em produção.
Bem aqui se instaura uma zona de experiência e subjetivação, engendrada pela apropriação e uso da política do olhar pela teatralidade do teatro. Um campo convivial entre expectação e poiesis, que nem é um e nem é outro.
No ‘entre’ teatral, a multiplicação convivial de artista e espectador gera um campo subjetivo que não marca a dominância do primeiro nem do segundo, e sim um estado parelho de benefício mútuo em um terceiro. Este se constitui na - e durante a - zona de experiência (Dubatti, 2016, p. 33).
A zona de experiência se estabelece nas encenações dos espetáculos, no momento das apresentações, bem no fluxo do acontecimento. Mas há também uma zona de experiência no fluxo de um movimento como o Amostraí, no qual ao menos três eventos cênicos acontecem – duas contações de histórias e um espetáculo de teatro. Uma zona de experiência estendida, considerando o evento todo como um campo convivial, produzido pelo acontecimento teatral, que se instala no meio dos encontros por dentro do Casarão.
Não se trata de “ir ao teatro”, mas de conviver no Casarão do Boneco tendo apresentações cênicas como impulso movente, como meio de fluxo relacional. “Servir-se do polilinguismo na sua própria língua, fazer desta um uso menor ou intensivo.” (Deleuze e Guattari, 2003, p. 55, 56). Maneiras de teatros traduzidos em convivências, formas de convívios revisados pelas cenas, tempo ficcional em embaralhamento com o “ao vivo”, presentificação como argamassa na construção dramatúrgica, nada mais que encontros e conversas fiadas em devires de criação com a arte, produzindo linhas feiticeiras de uma educação menor.
Casarão – A partilha como princípio político
O verbo habitar posto como dar vida ao inanimado é bem interessante para diferenciar a maneira como o casarão foi/é usado. “Antes de o ator-manipulador animar um boneco, ou seja, antes de habitá-lo, no sentido de dar-lhe vida, quem o construiu já o habitou, já colocou ali um personagem” (Amaral, 2004, p. 80). Pela demanda, o In Bust necessitou de tal boneco para certa dramaturgia de teatro com bonecos, numa trajetória de experimentação e criação na linguagem; ou para algum enredo de cunho artístico e político, inserido na dinâmica cultural da cidade. Imaginou, planejou e iniciou sua confecção. Já o animavam, pois eram geradores de fluxos internos, das respirações com as aberturas públicas, as trocas com o entorno, com grupos e fazedores de artes de vários lugares. Eram os únicos habitantes do Casarão do Boneco. Foram por muito tempo quem planejava, cuidava, agenciava, propunha os movimentos que territorializavam e personalizavam o Casarão do Boneco. Únicos a dar vida ao casarão. Os demais que por lá transitavam, o visitavam.
Por um tempo tentou-se afirmar sua vocação específica para o teatro de animação em suas diversas vertentes e linguagens. Mas pela carência de abrigos para os quantos grupos de teatro da cidade de Belém, e para alguns de fora, manteve-se disponível às artes cênicas de uma maneira geral. Diversos grupos e artistas das cenas, não só de Belém, passam ou passaram por lá, ensaiando/montando e/ou apresentando seus espetáculos.
Em partes destes anos aconteceu de a casa ficar pouco habitada pelo In Bust. Em uma dessas vezes alguns grupos e pessoas que utilizavam o casarão, de certa forma, se apropriaram dele, tomaram os hábitos da casa. Cuidados, manutenção e funcionamento não mais sob apenas determinação do grupo.
(...) há uma relação de imanência entre o humano e os espaços produzidos por ele na construção de um lugar. De forma equivalente, há uma relação de imanência entre os artistas-gestores e seus espaços artísticos, na medida em que sua proposição poética é produto daquilo que o produz (Tavares, 2017, p. 34/35).
É Casarão do Boneco porque é habitado por esta composição de pessoas e grupos com intencionalidades para o devir Casarão do Boneco. Nos últimos anos, está ocupado de uma maneira peculiar e, como manifestação coletiva, passou a expor-se mais à diversidade e ao conhecimento público, se abre para a cidade para a manutenção da cultura das artes cênicas, disposto a outras expressões e em relação com muitos artistas, alunos de oficinas, com o público frequente, com outros espaços de artes, em diversas maneiras de atuar em rede e desassociado dos seus habitantes.
Seus movimentos se geram em um cotidiano de convivência, instaurada por um sentimento coletivo de pertencimento à rotina e ao rumo, na maneira de gerir, de articular seus espaços, de compartilhar objetos, memórias, saberes e possibilidades. “Trata-se de uma relação diferenciada com o processo/tempo, com o lugar/espaço, com o fazer e suas consequências, com as pessoas, os modos de valoração, seus valores e motivações” (Toledo, 2014, p.145). Está num aprendizado diário de colaborativismo e, no geral, “o trabalho não fala apenas dos benefícios que retornam ao sujeito e seu sistema familiar ou institucional, característica própria dos sistemas unicamente competitivos” (Toledo, 2014, p.144). Agrega-se ao labor diário o que dele pode retornar ao meio de onde veio e ao coletivo, agrega-se autonomia em relação às instituições, auto-organização e transparência.
Entre as relações, transitam distintas linguagens artísticas, formações, práticas e poéticas diversas, muitos saberes trocados e experiências em comum, envolvendo não apenas os habitantes, mas também o público visitante dos eventos periódicos. Ciente que “Teatro, por sua territorialidade, por sua corporalidade, por seu convívio, é uma arte de minoria” (Dubatti, in Mendonça, 2012, p. 7), o casarão expande ações para fora dos seus limites prediais e até geográficos. Gera diálogo e convivência entre grupos diversificados de diferentes regiões da cidade, tece rede com espaços semelhantes e entidades culturais não só de Belém, por compartilhar-se, disponível para realizar desfrute coletivo de bens culturais e produções artísticas, de abrir-se aos encontros criativos vindos dos diversos lugares e indo até esses lugares.
Como siga agregando, o Casarão do Boneco se modifica continuamente. Cada vez mais sendo Casarão do Boneco, mais coletivo, mais dissociado dos que o habitam. Indica que há um comum partilhado, que há heterogeneidade e consensos de pensamentos, ações e modos de fazer. Michel Maffesoli (1996) diz de um consenso repousado sobre a partilha do sensível, do que é vivido e experimentado em comum, que gera uma liga essencial entre os que partilham. Há “(...)um sistema de evidências sensíveis, que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas” (Rancière, 2005, p. 15). O fluxo relacional se estabelece e sustenta o entrecruzamento de pontos de vistas, de formação de afetos territorializantes e de linhas espontâneas de saída. Cada meio é partilhado por quem pode tomar parte do que é comum em função do que faz, do tempo e do espaço da atividade. Um território existencial sempre se produzindo com e no Casarão, um corpo relacional em compartilhamento, como atitude contida na sua ânima.
Pensar a experiência conectada ao território existencial da arte vivenciada no Casarão, é uma ideia-força que movimenta a linha desta escrita, porque nos traz mais evidências de micropolíticas transitando nestas tantas possibilidades de compartilhamento que faz mover um território existencial. Um casarão, um corpo relacional coletivo, disponível à ânima coletiva; experimentando gestão compartilhada e atuação em rede, disposto para a cidade; de arquitetura e herança colonialista instaurando outras culturas em rumos rizomáticos decoloniais; cultivador de felicidades; inventando um caminho, porque o que estava feito não vai para onde se quer, que nem se sabe onde é. Sabe-se, talvez, onde não é. “E a primeira característica é que a língua, de qualquer modo, é afectada por um forte coeficiente de desterritorialização” (Deleuze e Guattari, 2003, p. 38). Um teatro que não quis/quer ser/estar um teatro maior, exatamente para transitar pelos ocos, rasgar matos e adivinhar caminhos.
A busca é que a própria cidade mantenha o Casarão (e espaços assim), de forma espontânea, porque necessário(s) e urgente(s). “A questão individual, ampliada ao microscópio, torna-se muito mais necessária, indispensável, porque uma outra história se agita no seu interior” (Deleuze e Guattari, 2003, p. 39). O Casarão, é ser coletivo, nele se expressam as histórias das pessoas que o movimentaram/movimentam, frequentadoras da casa, incluindo o público; da relação das artes cênicas de resistência, forçando acesso da população ao convívio com as artes e a certeza de que isso faz toda a diferença para a melhoria social.
Não cabe no modelo de desenvolvimento vigente no país, cabe menos se pensarmos em termos regionais, numa Amazônia internacional, cheia de políticas nacionais não articuladas entre si e cuja lógica de capital, a lógica da monocultura, não opera diversidades culturais. Produção de convívios mediados pelas artes e culturas, com ou sem intenções educacionais evidentes, é atividade pouco olhada pelos organismos do poder público, relacionados à cultura e à educação. Não há agendas oficiais para estes tipos de espaços e experiências, nem na cidade há lugar para isto. Não que as pessoas não desejem e/ou necessitem desse tipo de espaço, não há chances de saberem disso, a menos que se depare com ele.
A máquina literária reveza uma máquina revolucionária por vir, não por razões ideológicas, mas porque esta está determinada a preencher as condições de uma enunciação colectiva que falta algures nesse meio: a literatura é assunto do povo (Deleuze e Guattari, 2003, p. 40).
Estas experiências do Casarão, são composições de proposições, de atitudes e desejos individuais de coletividade. Desde 2015, o Casarão se expõe cada vez mais como atitude coletiva, mas, faz pouco mais de quatro anos que há um Coletivo se chamando Casarão do Boneco, que atua além da sua estrutura física, e que independe de qualquer outro coletivo ou artista da casa que se queira aparecer.
Um agenciamento é isso. Não apenas a reunião ou o ajuntamento de corpos, mas o que acontece aos corpos quando eles se reúnem ou se juntam, sempre sob o ponto de vista de seu movimento e de seus mútuos afectos. Não se trata apenas de uma questão de soma, mas de encontro ou de composição. Não apenas a simples justaposição assinalada pela conjunção "e", mas a complexa combinação implicada pela partícula "com". "Isto e aquilo" é bom, mas "isto com aquilo" é ainda melhor (Tadeu, 2002, p. 56).
Só é Casarão do Boneco porque é aberto ao público, livre acesso para a cidade, com periodicidade e constância. Agenciamentos coletivos “(...) onde eles existem apenas como forças diabólicas por vir ou como forças revolucionárias por construir” (Deleuze e Guattari, 2003, p. 41). O ato de se dispor para a cidade é a resistência de um pensamento focado no direito ao acesso às manifestações artísticas e culturais e à expressão livre, de ideias, de maneiras, de diversidades, de ter a arte como ofício e profissão.
Habitantes do casarão - por uma educação menor
Os grupos que habitam a casa ou o grupo que se forma como Coletivo Casarão do Boneco, segue fazendo isso como meio de produção de alguma renda, pelo ímpeto de fazer chegar a mais gente, pela sina de ter este como principal ofício, ainda, quando possível, “(...)de dentro da máquina opor resistência, quebrar os mecanismos, como ludistas pós-modernos, botando fogo na máquina de controle, criando novas possibilidades” (Gallo, 2002, p. 175). Todos, em seus coletivos, têm funções artísticas (criativas); tarefas administrativas e financeiras; atribuições de cuidado e de zelo para com as coisas e o espaço; Incumbências sobrepostas em tipos de gestão peculiares. “Nesse sentido é necessário perceber que outros formatos de produção cênica, com estruturas e relações móveis ou mais permeáveis, começam a existir” (Marina, 2017, p. 61). As formas de organização de cada coletivo habitante são diferentes, precisaram acumular funções de gestão para materializar devires; para fazer a arte como direito, fundamental para exercício da liberdade e da preservação da vida e que precisa estar disponível como bem público.
O que se apresenta como Casarão do Boneco, no Amostraí, é uma ideia de convívio através da arte cênica, pautada em lógicas de partilhas. Artistas que tramam este território existencial e movimentam a casa para desenvolverem seus processos criativos, aprofundarem suas pesquisas estéticas, conceituais, compartilharem seus saberes na arte e na vida, produzem, lá mesmo, várias mostras de teatro por ano. E, ainda que o mote seja o consumo de produtos artísticos e a finalidade seja pagar os boletos mensais do lugar, todos ali estão em estado coletivo, festivo.
A estética menos “conceitual” ou “arriscada” que surge nas propostas desses teatreiros não anula a precisão e qualidade artística de suas criações, a seriedade de suas pesquisas de linguagem e, especialmente, o viés de resistência em seus discursos, práticas e modos de produzir teatro. (Marina, 2017, p. 66)
O que acontece no Amostraí é este teatro feito para caber em quase todo lugar, dependendo de poucas necessidades técnicas relacionadas ao espaço e com muita proximidade da plateia. É também teatro infantil, mas toca uma infância que independe da idade do espectador. É lúdico e já provoca um estado de brincadeira e fantasia, bem no território do ser criança. Serve, portanto, de um acesso ou resgate da própria memória do espectador, da memória da comunidade, onde o lapso memorial planeja rever os convívios, inventar esperanças, provocar diversidades, instalar amabilidades, acumular saberes. “Só o menor é que é grande e revolucionário” (Deleuze e Guattari, 2003, p. 54). Por isso, ir para alterar o público pelo bom humor, com um tipo de teatro considerado mais popular porque referenciado em culturas populares e que possa ser presenciado e vivido por qualquer pessoa.
Trata-se de insistir em provocar possibilidades conviviais que sejam no mínimo vasculhadoras de referências pessoais e provocadoras de memórias afetuosas. “Uma das premissas do teatro menor seria, portanto, a fabricação de um tipo de relação entre criadores e espectadores capaz de gerar experiências que se estendam para além do ato de consumo” (Marina, 2017, p. 59). Para além das apresentações, das peças, contações de histórias, seus conteúdos, acredita-se que as pessoas que frequentam o evento, levam para a vida os efeitos do convívio daquela tarde/noite, daquele acontecimento, daquelas experiências.
E depois ainda, perguntar-se se elas são boas ou se são más. Mas não relativamente ao critério transcendente de "bem" e de "mal", mas ao critério imanente de aumento ou diminuição da potência. Aumenta ou diminui nossa capacidade de vida, de gozo, de alegria? (Tadeu, 2002, p. 53)
Nesta maneira de fazer teatro, o espectador decide o detalhe que quer ver, constrói a narrativa visual, faz sua própria encenação. Neste plano é que a criança confunde a cena com a sua própria realidade e o adulto se povoa de memórias. “O pensamento, nessa pedagogia, tem pouco a ver com aquilo que já tem forma. Tem tudo a ver, por outro lado, com aquilo que, em uma zona que não é a da atualização, das coisas já determinadas e já formadas, faz saltar o impensável” (Tadeu, 2002, p. 49). A menina criança que vai com o irmão menor assistir ao espetáculo Fio de Pão a Lenda da Cobra Norato, – o mais antigo do repertório do grupo In Bust - dá uma significação à comédia apresentada a partir da própria vida, da própria experiência, e interrompe a cena, segurando forte a mão do irmãozinho, e avisa para a Jandira (personagem) que, se ela cumprir a ameaça de dar chineladas no seu filho Jirino (personagem), será denunciada ao Conselho Tutelar. Naquela altura do espetáculo, o menino Jirino já havia “aprontado” muitas desfeitas e danações e tinha acabado de derrubar a panada de cena. Sua mãe, Jandira, estava muito aborrecida e garantiu que as chineladas aconteceriam. Finalmente, quando o menino chegou perto e a mãe levantou a chinela de couro para dar a chinelada, houve a interrupção. “Essa é a chave da ação do militante. Sempre uma construção coletiva” (Tadeu, 2002, p. 171). Não saberemos se a menina teve algum aprendizado, mas algumas boas coisas o pessoal da cena e espectadores experimentaram com ela.
Uma criança, que bem poderia ser qualquer uma criança daquela plateia vai para a contracena para ajudar outra criança, “pois o um que aí se expressa faz parte do muitos, e só pode ser visto como um se for identificado também como parte do todo coletivo” (Gallo, 2002, p. 172, 173). É justo neste convívio em que atuante confunde história com o espectador, se reposiciona como cena, não há hierarquias entre a cena e a vida naquele momento. Ela compartilha memórias coletivas, histórias que bem podem ser contadas por/para qualquer pessoa. “Uma micropolítica da percepção, da afecção, da conversa, etc” (Deleuze e Guattari, 2012, p. 99). O riso aperfeiçoa a aproximação, abre à empatia e aceita a troca, protagoniza.
A menina também deu ao grupo a chance de revelar ainda mais as especificidades do teatro. Adriana Cruz (atriz, mãe Jandira) precisou parar mesmo a encenação e mostrar que tudo era teatro: Que um chinelo batia, mesmo, no outro chinelo para fazer barulho; que o Jirino era o ator Anibal Pacha, que em idade nem era mais criança e não estava chorando; que ela não era mãe dele; que o pai cego via tudo. E, mais, depois da explicação, fez tudo voltar a ser teatro novamente.
Onde a encenação expõe significados sociais, onde a atitude é de seguir fazendo apesar da precariedade da existência como fazedores de arte, ali o ato é de acolhida e partilha do ser sensível ao outro, ao alcance do riso presente. Se o bem-estar está instalado no convívio no ato da encenação no Casarão, se o que se está tratando em cena pode envolver toda e qualquer pessoa, sem nenhum problema quanto a todas as diversidades neste convívio, só isso já vai provocar raciocínios e possibilitar aprendizados, cultivo de novos saberes. “Ora, se a aprendizagem é algo que escapa, que foge ao controle, resistir é sempre possível. Desterritorializar os princípios, as normas da educação maior, gerando possibilidades de aprendizado insuspeitadas naquele contexto” (Gallo, 2002, p. 175). Não à toa, o brinquedo de miriti vira boneco personagem de espetáculo. Não à toa, o menino Jirino reclama da fome, rouba bolacha que “é pá dá pas pessoa” e só quer brincar (fazer teatro é trabalho). Ali é que fazem minorar, deslocados ao momento da apresentação. Isso, usando a própria fala, a língua do lugar donde se faz, dizendo para iguais, transitando, pelo imaginário das beiras de rio e da floresta, mas habitando a urbanidade da capital. Peixes-bois materializados com paneiros, campos marajoaras em panos de rede, plásticos reaproveitados convertidos em monstros mitológicos, carimboleiras de cabaças, telhados e trapiches de buchas de miriti.
Onde o teatro menor se encontra com uma educação menor, o ato político deve ser “ainda mais evidente, por tratar-se de um empreendimento de revolta e de resistência” (Gallo, 2002, p. 175). Sempre a buscar outras possibilidades ao instituído, sempre a duvidar das políticas impostas e realizar as reais, as do cotidiano. O que se quer é que as pessoas tenham teatros à sua disposição, de forma acessível, diversos tipos de teatros, em toda parte da cidade e que sirva para convívios saudáveis em zonas de experiências e subjetivações capazes de fazer prolongar afetuosidades.
Um casarão, vários grupos insistentes em fazê-lo vivo, ativo na peleja pela cidade e articulado a outros espaços de culturas. Instala territorialidades, algumas bem efêmeras, voláteis, mas escapa-se por fugas que se fazem no percurso, constrói caminhos e deixa rastros e puxa outros, se deixa puxar, engata em outros, brotam pontas de conexões. “Para a literatura menor, o próprio ato de existir é um ato político, revolucionário: um desafio ao sistema instituído” (Gallo, 2002, p. 172). Junta as fraquezas para ter a força. Aprendizados que se extraem do dia a dia dos grupos da casa, suas posturas sociais, maneira de ver, querer e desejar o mundo.
Habitantes do Casarão sabem que são como chuvisco em meio a aridez, então provocam outros chuviscos onde podem, afinal, são também floresta. Podem ser rios voadores. Querem que as pessoas sintam a importância e a potência do convívio mediado pelas artes cênicas, que entendam que disso depende um devir libertário, que espalhem este desejo, que o façam como política e para preservar a vida. O mínimo que há contido nestes convívios, pressupõe uma formação de públicos consumidores de teatro, pressupõe a formação de um hábito cultural de relação com a cidade, de pertencimento à construção simbólica do lugar onde se vive e de onde está acontecendo a apresentação.
Considerações
O caminho do menor como máquina de resistência, tem sido a prática nestas experiências de culturas de artes cênicas. Não há sobrevivência para elas senão existindo nas brechas, rasgando mato para fazer caminho, confiando no faro, como cachorro que cava. Então, não há mecanismo de controle que se crie, que não seja de dentro para fora, pois coletivo, e mesmo este não durará “(...) é necessário, uma vez mais, resistir” (Gallo, 2002, p. 176). Vai porque a lida é coletiva, onde sempre se aprende, onde sempre há troca.
Educadores, precisamos estar noutra linha de relação com o planeta e podemos ter consciência desta postura como atitude pedagógica menor. Se adentrarem ao palco, habitantes do Casarão, artistas de cena mais apropriados dos fazeres da educação menor, artistas docentes que são, trilharão mais uma reinvenção. “O principal desafio da educação na região amazônica é o de reinventar-se para ser um espaço inclusivo e decolonial” (Silva e Mascarenhas, 2018, p.17). Educação que se dá na resistência, engendrada como menor, o que a deixa mais potente e revolucionária e “(...) precisa ser chamada a intervir, dada sua responsabilidade social em um país democrático e que deve velar pela promoção da cidadania, (...)” (Silva e Mascarenhas, 2018, p. 9). Reinventar-se em minorações. Quantas afetações de efeito imediato, instaladas numa apresentação de teatro com bonecos são necessários para enfraquecer ganâncias ou incentivar cordialidades sinceras, no próximo sábado à tarde? Fluxos relacionais diminutos e constantes, em diversas velocidades, água transitando pela floresta, vinda da chuva, de escorrer dos troncos e folhas, descendo pelo córrego, misturando em lama da beira do rio, do próprio rio, entrando e saindo nas raízes, voltando para chover novamente.
Referências
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