Pensando uma revisitação de fontes orais na Educação Matemática

Contemplating a revisit to oral sources in Mathematics Education

Pensando en una "revisitação de fontes orais" en Educación Matemática

 

Laura Leal Moreira

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil

lauraamoreira@gmail.com

 

Recebido em 15 de fevereiro de 2024

Aprovado em 14 de janeiro de 2025

Publicado em 24 de março de 2025

 

RESUMO

Este artigo é proveniente de uma pesquisa de doutorado que realizou a constituição intencional de fontes orais, através da História Oral, para desenvolver uma pesquisa de caráter historiográfico. As discussões percebidas naquele trabalho possibilitaram a refletir sobre um movimento novo, no que tange ao tratamento e a mobilização de narrativas no campo da História Oral e Educação Matemática. Trata-se do que chamamos nesse artigo de revisitação de fontes orais e este texto, busca apresentar as principais potencialidades deste movimento para as pesquisas que também se utilizam desse referencial teórico metodológico. A revisitação de fontes orais, por parte dos entrevistados e do próprio pesquisador, além da mobilização de diversas áreas do campo da memória, nos possibilita com que sejam feitas novas reflexões sobre o fazer metodológico da abordagem da História Oral. Os resultados obtidos reforçam para a importância da preservação e a guarda institucional, das fontes orais produzidas. Essa pesquisa é vinculada ao Grupo de História Oral e Educação Matemática (GHOEM) e espera-se poder contribuir com outras pesquisas dentro e fora desse grupo, ao compartilhar estes resultados.

Palavras-chave: Educação Matemática; História Oral; Narrativas.

 

ABSTRACT:

This article stems from a doctoral research that deliberately constituted oral sources through Oral History to develop a historiographical study. The discussions observed in that work allowed for reflection on a new movement regarding the treatment and mobilization of narratives in the fields of Oral History and Mathematics Education. This is what we refer to in this article as the "revisitação de fontes orais" (revisiting of oral sources), and this text aims to present the main potentialities of this movement for research utilizing this theoretical and methodological framework. The revisiting of oral sources, both by interviewees and the researcher, along with the mobilization of various areas in the field of memory, allows us to make new reflections on the methodological approach of Oral History. The results obtained reinforce the importance of preservation and institutional conservation of intentionally produced oral sources. This research is linked to the Oral History and Mathematics Education Group (GHOEM), and it is hoped that it can contribute to other studies within and outside this group by sharing these results.

Keywords: Mathematics Education; Oral History; Narratives.

 

RESUMEN

Este artículo proviene de una investigación de doctorado que llevó a cabo la construcción intencional de fuentes orales, a través de la Historia Oral, para desarrollar una investigación de carácter historiográfico. Las discusiones identificadas en ese trabajo permitieron reflexionar sobre un movimiento novedoso en cuanto al tratamiento y la movilización de narrativas en el ámbito de la Historia Oral y la Educación Matemática. Se trata de lo que llamamos en este artículo la "revisitação de fontes orais" y este texto busca presentar las principales potencialidades de este movimiento para las investigaciones que también utilizan este marco teórico y metodológico. La revisitação de fontes orais, tanto por parte de los entrevistados como del propio investigador, junto con la movilización de diversas áreas en el campo de la memoria, nos permite realizar nuevas reflexiones sobre la metodología de enfoque de la Historia Oral. Los resultados obtenidos refuerzan la importancia de la preservación y la  conservación institucional de las fuentes orales producidas intencionalmente. Esta investigación está vinculada al Grupo de Historia Oral y Educación Matemática (GHOEM) y se espera poder contribuir con otras investigaciones dentro y fuera de este grupo al compartir estos resultados.

Palavras clave: Educación Matemática; Historia Oral; Narrativas.

 

Introdução

A pandemia trouxe tristezas, perdas, incômodos, adiamento de sonhos, mudanças de rumo, entre outros vários problemas. Na vida acadêmica não foi diferente e esse trabalho é apenas mais um exemplo.

Por decorrência da COVID-19, o projeto de doutoramento que antecede este trabalho, iniciado em 2019, precisou ser alterado e a solução foi encontrada junto ao trabalho de Iniciação Científica da pesquisadora que, em 2014, se dedicou a produzir fontes históricas a partir da oralidade. Assim, em 2020, foi lançado um novo olhar sobre tais fontes já produzidas de acordo com os princípios teórico metodológicos do Grupo de História Oral e Educação Matemática, o GHOEM[1].

Embora sempre enunciado como uma das possibilidades, a revisitação das fontes históricas constituídas no âmbito do GHOEM ainda é relativamente recente. É o caso da mobilização desenvolvida por Oliveira (2013) que culminou na constituição de um repositório de entrevistas, originárias das produções dos diversos membros do grupo e que hoje é conhecido como Hemera; e o trabalho de Silva (2023) que soma esforços ao elaborar um sistematizador de entrevistas, pensando na possibilidade da exploração destes materiais para e na formação de professores de Matemática.

Também, no que diz respeito as diversas possibilidades da exploração das narrativas para e na formação de professores de Matemática, bem como na Educação Matemática brasileira, cabe destacar os trabalhos de Tizzo (2014) e o trabalho de Silva (2020).

Embora esses trabalhos tenham pensado e olhado para as fontes orais já produzidas por esse grupo, nos mostrando, enquanto grupo, importantes resultados das possibilidades do uso das narrativas para e na formação de professores de Matemática, bem como para a grande área da Educação Matemática, esse texto realiza um movimento similar, mas que abordou questões diferentes dos trabalhos anteriormente citados.

Para esta pesquisa realizou-se o que chamamos de “revisitação de fontes orais”. Essa dinâmica de revisitação consiste no ato de pesquisadores e colaboradores olharem no hoje para as fontes orais produzidas em um outro momento, geralmente no passado, dentro de uma única pesquisa. Esse movimento de revisitar, permite que surjam novas possibilidades de discussões a respeito da própria produção das narrativas e outras questões advindas do amplo espectro da memória. Mas para que o processo de construção do movimento desenvolvido por essa pesquisa faça sentido, é preciso que voltemos ao processo de produção destas fontes orais.

Diante desse cenário e para darmos conta dos objetivos propostos para esse recorte, abriremos o próximo capítulo contextualizando a produção de fontes orais produzidas para essa pesquisa, em meados de 2015, a fim de situar o leitor do contexto percorrido. Avançando no texto, para nos ajudar no que diz respeito aos antecedentes teóricos, discutiremos como o GHOEM vem olhando para as possibilidades do uso das narrativas produzidas por estes e alargamos as discussões ao  dialogarmos com autores oriundos do campo da História Oral. No terceiro capítulo deste texto, apresentamos as reflexões produzidas a partir do que viemos chamando de revisitação de fontes orais e por fim, apresentaremos nossas considerações parciais diante do caminho trilhado.

 

Da produção das fontes à revisitação

Em meados de 2019, ao ingressar no curso de doutoramento tinha como projeto inicial o desenvolvimento de uma pesquisa que objetivava a compreensão de como os professores espanhóis entendiam a política pública “Os cursos de Verão”, promovidos pelo governo desse país. Trata-se de uma política pública que promovia formações ao professorado espanhol, iniciadas logo após uma mudança estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação desse país. Entretanto, em meados de 2020, durante a pandemia da Covid-19 esse projeto mostrou-se inviável por conta das viagens necessárias e de outras implicações impostas pelo cenário pandêmico.

Por uma feliz circunstância da vida - apesar do triste momento mundial- a pesquisadora encontrava-se residindo em Pelotas, atuando junto a Universidade Federal de Pelotas-RS, e por esse motivo, retomou o contato com a então pesquisa de Iniciação Científica, que outrora havia desenvolvido naquela mesma universidade. Essa pesquisa buscava compreender o cenário da formação de professores de matemática da cidade de Pelotas, antes da institucionalização do seu primeiro curso de Matemática. Este trabalho já contava com um acervo de fontes orais produzidas, a partir de entrevistas com três professores[2] de Matemática que atuaram no período anterior à criação do primeiro curso de Matemática daquela cidade.

O processo de produção dessas fontes foi marcado pela inexperiência natural a uma graduanda. Tratava-se, de fato, de sua primeira experiência de entrevistas. É importante destacar nesse momento do texto, que os comentários a respeito desse processo não existem e tão pouco surgem com a função de criticar o que foi feito e realizado naquele momento. Hoje, eles emergem com um intuito puramente reflexivo sobre a produção da pesquisa e mais profundamente, sobre a constituição de uma pesquisadora.

Foi em 2013, durante sua Iniciação Científica que a primeira autora teve seus primeiros contatos com Portelli (2010), Thompson (1992), Garnica (2011), Vianna (2000) e outros referencias que tratam especificamente do campo da História Oral. Além disso, foi nessa mesma época que foram selecionados os possíveis colaboradores da então pesquisa que estava se anunciando.

Após algumas conversas com o meu então orientador da época, Diogo Franco Rios[3], elencamos o nome de quatro professores de Matemática, que sabíamos que haviam cursado o primeiro curso superior de formação de professores Matemática da cidade de Pelotas, ou seja, o Curso de Matemática da então Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Um deles, um nome popular no cenário da Educação Matemática da cidade de Pelotas, o professor Lino de Jesus Soares.

Assim, a primeira conversa com professor Lino foi marcada por comentários ansiosos e perguntas fechadas. Como estudante de graduação, ansiosa por estar ali realizando sua primeira entrevista, a pesquisadora não conteve nenhum um pouco os sentimentos aflorados e tão pouco as palavras. Foram cerca de trinta minutos onde Lino narrava com disposição cada pergunta que o havia sido feita. Após essa conversa, foram agendadas mais uma nova sessão de entrevista, mas dessa vez, com também a presença de Diogo. Ao total, com o professor Lino foram realizadas cinco sessões de entrevistas.

Além das entrevistas produzidas com prof. Lino, também foram realizadas entrevistas com mais duas professoras de matemática que também haviam realizado o Curso de Matemática da UCPel. Trata-se da professora Regina Al-Alam Elias e da professora Maria Emilia Tavares.

Dessa vez, a pesquisadora lançou carreira solo no processo de produção das fontes orais. Naquele momento, a autora sabia apenas o quê as experiências das entrevistas com Lino e a presença de Diogo haviam a proporcionado, como por exemplo, a não interrupção e sensação de que deveria haver uma sutileza no trato da conduta de uma entrevista. Entretanto, a pesquisadora que estava lá, naquele momento, foi tomada pela empatia com a trajetória de Regina.

Regina, como mulher, egressa de um curso de magistério sofre preconceito por ingressar em um curso de exatas. Lamenta as dificuldades com disciplinas do núcleo duro da Matemática e nesse ponto, a Laura enquanto graduanda e que também teve muita dificuldade nesse tipo específico de disciplinas, desarma-se da armadura de pesquisadora e veste-se de sororidade[4], uma palavra que até então nem ela conhecia. Entende-se hoje, que a dificuldade relatada por Regina não necessariamente nasce do fato dela ser mulher, mas é aumentada pela questão de gênero. A desvalorização por estar[5] um corpo feminino e ingressar em um curso de exatas, aliado a um discurso de “vocês não sabem matemática” corrobora em nós mulheres, para uma falsa ideia de valia e potencial. Hoje conhecemos o termo Síndrome do Impostor[6], mas naquela época (ainda mais) nos validávamos pelo discurso alheio, que em suma era masculino e isso nos bloqueava. Entendemos hoje que as dificuldades e os bloqueios não partem necessariamente de uma dificuldade nossa, mas sim de um discurso[7] incrustado na sociedade, que mulher pode menos, sabe menos e por aí sucessivamente nos fazendo duvidar de si mesmas e de nosso próprio potencial.

A sessão com Regina foi marcada por sororidade. Atenta e calma a pesquisadora não conseguia entender como o quê Regina relatava, que havia sofrido na década de 1970, ainda se repetia em meados de 2015. Sua entrevista a tocava em diversos lugares, mas principalmente a fizeram enxergar coisas caras sobre ser uma mulher, heteronormativa e branca[8] em um curso de exatas.

Naquele mesmo dia, a pesquisadora foi ao encontro de professora Maria Emilia, em seu local de trabalho. Durante a entrevista com Maria Emilia houveram algumas interrupções provenientes de demandas de seus afazeres. Assim, sua narrativa foi mais cortada, mais pausada. Aquela situação não necessariamente seria um problema para a pesquisadora que escreve neste momento, mas para a Laura graduanda, tornou-se um desconforto.

A preocupação era: como retomar o diálogo após uma interrupção? As outras situações de entrevistas não haviam proporcionado esse tipo de experiência, logo a situação em si, era nova. Além da dificuldade em voltar para o discurso interrompido, havia outra dificuldade: Maria Emilia não falava dos temas propostos nas perguntas. Ela não respondia as perguntas que haviam sido realizadas. Ela discorria brevemente sobre outros temas e falava insistentemente sobre a “prática pedagógica” que, não era um tema explicito em minha pesquisa até então.

Maria Emilia, da mesma maneira que professora Regina, também sofre preconceito por ser egressa do curso de magistério. Em sua entrevista, relata sobre como fez para lidar com tanta violência verbal e como precisou lutar para ser reconhecida como boa aluna e boa professora. Sua narrativa é marcada pela audácia e pela luta para ter o seu espaço reconhecido em meio a um departamento de Matemática majoritariamente masculino.

Após as sete sessões de entrevista, desejava-se dar continuidade ao processo de criação de fontes orais, bem como o desenvolvimento daquela pesquisa, no período de mestrado. Entretanto, cabe ressaltar que a produção destas entrevistas culminou com o final do meu curso de graduação em 2015 e das seleções para os programas de mestrado. Assim, pela viabilidade, naquele momento, optou-se por transcrever apenas as cinco entrevistas realizadas com o professor Lino[9], pedir autorização para este, mediante Carta de Cessão sobre o material transcrito e deixar o restante do material guardado para a pesquisa ser retomada no possível curso de mestrado. Entretanto, essa pesquisa não pôde ser desenvolvida no período de mestrado e esse material então, ficou sob posse dos pesquisadores, guardado, a fim de encontrar outro aluno que o quisesse desenvolver.

Dessa maneira, conforme já comentado, em 2020, impossibilitada pela pandemia de realizar o projeto de ingresso no curso de doutoramento e novamente com o acesso a estas entrevistas produzidas em outra circunstância, lança-se um novo olhar para esse material. Assim nasce esse projeto que realiza um movimento de revisitação. Neste texto, explora-se o processo de revisitação dessas fontes orais. Isso engloba tanto as indagações que surgiram em meu trabalho de pesquisadora - ao olhar para essas fontes produzidas em outro momento – como os afetamentos demonstrados por dois de meus três colaboradores. Adicionalmente, reflete-se a respeito dessa possibilidade de tratamento e desenvolvimento de pesquisas dentro do Grupo de História Oral e Educação Matemática.

 

Revisitando fontes orais: antecedentes

No intuito de nos ajudar a pensar sobre as questões disparadas pelas análises, partiu-se em busca de trabalhos desenvolvidos no âmbito da História Oral, olhando em um primeiro momento para aqueles desenvolvidos dentro do GHOEM e depois, ampliando para pesquisas dentro do campo da HO. Assim, para esse recorte, traremos as produções de Oliveira (2013), Silva (2023), os trabalhos de Tizzo (2014) e Silva (2020) membros do GHOEM. E os trabalhos de Santhiago; Patai (2019) oriundos do campo da HO.

Desde sua criação, em 2002, a constituição intencional de fontes orais é um dos propósitos das pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de História Oral e Educação Matemática, que a entende como uma metodologia de pesquisa.

 

[...] a História Oral é metodologia de pesquisa que envolve a criação de fontes a partir da oralidade e compromete-se com análises coerentes com sua fundamentação (que pode envolver ou não procedimentos usados em outros tipos de pesquisa). O diferencial é essa “criação intencional” de fontes a partir da oralidade e a fundamentação que se estrutura para essa ação. Essa mesma fundamentação orienta, inclusive, práticas de análise na pesquisa. Assim, nossos pressupostos indicam, sim, como construir fontes, mas também porque construí-las e como valer-se delas. (Garnica, 2010, p. 293).

 

Tendo em vista que o grupo também desenvolve pesquisas de caráter historiográfico, em determinado momento sente-se a necessidade da idealização de um repositório para as fontes produzidas. Nesse sentido, o trabalho de Oliveira (2013) cria e testa uma proposta para sistematização das entrevistas produzidas pelas pesquisas desse grupo “que visa possibilitar análises qualitativas tendo como pressuposto a necessidade de preservar, tanto quanto possível, o caráter individual dos depoimentos”. Essa proposta recebe o nome de Hemera e o pesquisador comenta que,

 

Nossa intenção é colocar toda a produção junta e, de certa forma, misturada, para tentar “potencializar” a criação de narrativas, de histórias sobre temas já abordados ou não por trabalhos “locais”. Pretendemos criar condições para que possam surgir compreensões outras ao ser utilizado conjuntamente o rico acervo de informações e conhecimentos manifestadas nas narrativas já produzidas pelo grupo (Oliveira, 2013, p.36).

 

Levando em consideração a viabilidade de seu projeto e a gama de produção de, à época, cerca de 10 anos de trabalhos pelos membros do GHOEM, Oliveira (2013) precisou em um primeiro momento realizar uma escolha na quantidade de entrevistas que iriam para a sistematizador. Sendo assim, para aquele momento foram sistematizados dezesseis trabalhos: duas iniciações científicas, cinco dissertações de mestrado e nove teses. Foram totalizados cento e quarenta e seis entrevistas.

Embora o grupo conte com o Hemera, Silva (2023) salienta que o grupo mobiliza pouco as textualizações outrora produzidas e disponibilizadas. A pesquisadora pontua que desde 2016 o sistema parou de ser atualizado e muitas textualizações não foram cadastradas. Dessa maneira, em seu curso de mestrado, desenvolve uma pesquisa que retoma parte do trabalho desenvolvido por Oliveira (2013), mas, enfatiza que sua pesquisa não tem a como objetivo atualizar o Hemera, apenas de contribuir para a sua atualização.

 

[...] tem a pretensão de retomar os movimentos de Oliveira (2013), elaborando compreensões sobre as potencialidades narrativas de textualizações de entrevistas produzidas nos anos de 2016, 2017 e 2018 – ainda não cadastradas no Hemera –, por alguns membros do grupo no que tange à discussão sobre e para processos formativos de professores que ensinam matemática (Silva, 2023, p.60).

 

Os trabalhos de Oliveira (2013) e Silva (2023) evidenciam a importância da constituição de um acervo e da preservação das fontes produzidas a partir da oralidade, pelos pesquisadores que se dedicam à História Oral e ressaltam as potencialidades da exploração dessas narrativas em outras pesquisas, principalmente da exploração destas em processos formativos de professores de matemática.  É nesse mesmo sentido que se destaca também os trabalhos de Tizzo (2014) e Silva (2020).

O uso de narrativas como uma abordagem didático-pedagógica foi o tema escolhido por Tizzo (2014) em sua pesquisa de mestrado, que dentro do GHOEM, pertencia a um projeto maior cujo titulo era dado por “A História Oral como recurso no desenvolvimento da formação inicial e continuada de professores de Matemática . Esse projeto teve como objetivo principal elaborar, aplicar e analisar estratégias de formação de professores de Matemática em cursos de Licenciatura em Matemática, Pedagogia e Extensão, de modo que a História Oral participe de forma significativa (Tizzo, 2014, p.7).

Levando em vista o objetivo principal do projeto que comporta seu trabalho, Tizzo (2014) desenvolve uma pesquisa que objetivava,

 

Elaborar uma compreensão sobre as contribuições, limitações e potencialidades da HO como uma abordagem didático-pedagógica na disciplina Política Educacional Brasileira (PEB), a partir de uma intervenção junto a esta disciplina do curso de licenciatura em Matemática da Unesp/Rio Claro [...] (Tizzo, 2014, p.7).

 

Embora o objetivo principal da pesquisa de Tizzo (2014) não contemplasse necessariamente o uso de narrativas produzidas pelo GHOEM em outros momentos, o uso acontece quando no decorrer da intervenção, um estudo sobre a teoria que cerca a HO precisa ser feito e nesse momento o autor apresenta aos discentes da disciplina alguns trabalhos desenvolvidos pelo GHOEM, que continham entrevistas bem como transcrições e textualizações. Tais entrevistas, foram utilizadas com o intuito de familiarizar os discentes com os procedimentos que posteriormente estes precisariam desenvolver (TIZZO, 2014).

Conforme já sinalizado, a História Oral é mobilizada de diferentes maneiras e com diferentes modos de operar dentro do Grupo de História Oral e Educação Matemática. Além disso, dentro e fora desse grupo e dentro do campo da Educação Matemática, há outras tantas maneiras de operar com o termo narrativas e esse foi o um dos temas do trabalho desenvolvido por Silva (2020).

A partir da problematização de oito narrativas de pesquisadores, que em sua maioria são líderes dos grupos de pesquisa que utilizam o termo narrativas em suas pesquisas, Silva (2020), salienta que os resultados de sua pesquisa sinalizam que

 

a potência do trabalho com as narrativas em processos de formação de professores está vinculada a uma política de narratividade, a qual compreende uma dimensão ética, porque respeita a visão de mundo dos sujeitos; estética, no sentido que propõe um estilo de escrita; e política porque diz respeito aos processos de subjetivação e empoderamento pessoal (p.8).

 

As narrativas produzidas em pesquisas que se propõem a isso, para além de nos falarem sobre os objetos a serem investigados, apontam para uma diversidade de temas que estão subjetivamente ligadas àqueles sujeitos, como por exemplo, no nosso caso em que Maria Emilia, nossa colaboradora, relata sobre a prática pedagógica. Nesse sentido, Silva (2020) defende que,

 

As narrativas produzidas nesta pesquisa levam, portanto, a um movimento para além da mobilização dos modos como se opera com as narrativas. Elas dizem sobre a constituição de Programas de Pós-Graduação, orientação de pesquisas, temas plurais, histórias de vida que afloram discussões de como a educação é estruturada, de como a educação faz diferença nessas vidas. Em termos sociais, sobretudo, são vidas, pessoas, subjetividades que se constituem ao longo das experiências pessoais e profissionais dos colaboradores e, disso, decorre a riqueza dessas fontes e a diversidade de fatores que são articulados para tratar da complexidade do tema (p.347-348).

 

E é para ajudar a pensar sobre os sentidos produzidos a partir das questões voltadas a subjetividades, que se traz o trabalho de Silva (2020).

 

Desse modo, a História Oral, para além de uma metodologia de natureza qualitativa, constitui-se como um modo de olhar para os processos de constituição dos sujeitos em nossas pesquisas e, como eles, em suas singularidades, atribuem significados às suas práticas e aos seus modos de existir (Silva, 2020, p.353).

 

As narrativas de Lino, Regina e Maria nos contam sobre três histórias de vidas que, mesmo localizadas em períodos temporais similares, nos apresentam as subjetividades de cada história e de cada professor em formação. A divulgação destas narrativas através das pesquisas, imprime em nós, pesquisadores, diferentes leituras a respeito do cenário da Educação Matemática em um município interiorano do sul do Brasil, que, ao mesmo tempo, ao serem lidas por outras pessoas, despertarão outros significados e outras contribuições a partir das histórias de vidas destes outros sujeitos.

 

Nesse sentido, a História Oral oferece também essa contribuição, ou seja, a de possibilitar outras leituras (teóricas) das fontes produzidas a partir das entrevistas. Graças a isso, o pesquisador que produz as fontes não é o único teoricamente responsável pelas leituras possíveis que se pode fazer delas e, com isso, também vejo que é uma preocupação com e na diferença, característica dessa perspectiva de pesquisa. [...]. Espero que elas, as narrativas dos colaboradores, sejam disparadoras de novas problematizações e compreensões, diferentes das produzidas naquele texto. Considero importante no ato de pesquisar, criar espaços para a discussão dos pontos divergentes (ou talvez convergentes construídos de modos diferentes), que o pesquisador possa atribuir significados diversos, dada a singularidade de cada sujeito (Silva, 2020, p.360).

 

Além dos trabalhos produzidos pelo grupo, outras iniciativas fora da área de Educação Matemática foram encontradas, para ampliar o diálogo com esse nosso trabalho. Nesse movimento, ressalta-se o trabalho de Santhiago; Patai (2021).

Santhiago; Patai (2021), nessa ocasião, refletem sobre os resultados de um projeto que realizou entrevistas, utilizando a história oral como metodologia, com mulheres brasileiras, nos anos 2010, com quem já tinham tido a oportunidade de realizar entrevistas cerca de três décadas antes. Nesse artigo, os autores abordam a entrevista de Marialice, realizada nos anos de 1981,1983 e 2015, e analisada à luz de quatro eixos:

 

O primeiro deles, metodológico, problematiza as relações intersubjetivas estabelecidas em uma pesquisa projetada no tempo e em diálogo com o desenvolvimento da literatura de história oral entre os anos 1980 e 2010. Os demais, interpretativos, avaliam a construção sintagmática da narrativa de Marialice; os padrões narrativos mobilizados por ela em sua construção de si; e, finalmente, os usos práticos de sua própria história pessoal (Santhiago; Patai, 2021, p. 451).

 

Embora o trabalho de Santhiago; Patai (2021) não seja exatamente o que foi realizado nesta pesquisa – nesse estudo não foram realizadas novas entrevistas, mas sim o processo de tratamento dessas fontes orais produzidas anos antes –, ele apresenta elementos importantes que podem nos ajudar a pensar sobre o movimento que aqui se intenciona e, em perspectiva com os demais trabalhos apresentados é o trabalho que mais se assemelha aos movimentos iniciados nesse estudo.

Em suma, os trabalhos de Oliveira (2013), Silva (2023), Tizzo (2014), Silva (2020) e Santhiago; Patai (2021) apresentam as diferentes perspectivas a respeito do uso da constituição intencional de fontes orais, bem como exploram as potencialidades do uso de narrativas no processo de constituição de professores e pesquisadores dentro e fora da Educação Matemática. Avançar nessa direção é um dos objetivos deste trabalho e por isso, acredita-se ser cara a evidência destes estudos na composição desta pesquisa.

Dando continuidade neste texto, na próxima sessão, apresenta-se os elementos disparados a partir do que se chama de revisitação de fontes orais. Nesse momento, também busca-se se refletir sobre o processo de constituição de uma pesquisadora em formação.

 

Algumas reflexões sobre a revisitação de fontes orais

Voltar ao início pode ser considerado um movimento poético. A volta para casa, a volta ao passado, a volta a um espaço e para um sujeito que não somos mais, mas, que é parte integrante de nós, foi nós em algum momento. Mesmo que sejamos racionais, ao entender que o passado existe, mas não pode ser palpado, voltado, aprisionado (em se tratando de estudos relacionados a memória) é quase que insano não refletir sobre a volta ao início de tudo, a uma graduação, a inexperiência.

Por isso, começarmos este texto pelas indagações da pesquisadora, a partir do momento que esta teve oportunidade de re-escutar as entrevistas produzidas, bem como folhear os materiais e as anotações que a guiaram durante a produção dessas fontes. E até mesmo a pensar sobre a preservação desses documentos durante um período de quase seis anos é um dos pontos de reflexão que desejamos propor pois, é um ato que só foi gerado a partir dos movimentos iniciados em sua Iniciação Científica.

Naquela ocasião, em 2013, a possibilidade de trabalhar com a preservação do Acervo Escolar do Colégio Municipal Pelotense (CMP)[10], junto ao seu projeto de Iniciação Científica, bem como o acesso a lugares quase insalubres, mas que deveriam ter como principal objetivo a guarda da memória institucional, despertou na primeira autora uma mudança de pensamento. Ou seja, após ter vivenciado esses processos ela não poderia simplesmente descartar os materiais que a ajudaram a compor a sua pesquisa.

A guarda da memória institucional por parte de instituições, bem como de acervos pessoais, no campo da história da educação matemática é um tema que precisa avançar para estar ainda mais no centro das pautas de discussão desses pesquisadores. Embora os objetos de estudos dos diferentes grupos presentes em nosso país sejam os mais variados possíveis, é inevitável não falar da importância dos acervos institucionais, bem como dos acervos pessoais. Esses “lugares de memória” (RIOS, 2015) nos ajudam a entender outras características de um mesmo movimento. Um exemplo que poderia ter sido explorado nesta pesquisa são as fotografias de encontros, reuniões e até mesmo de momentos de descontração, de nossos colaboradores. Para além do recurso visual, as fotos nos fazem entender que as fontes orais produzidas são vidas e nos interessam as vidas.

No trabalho de Santhiago; Patai (2021, p. 453), a preservação dos materiais originais, para além das fontes orais produzidas, possibilitou a construção das “histórias de elaboração e documentação dos materiais produzidos”.

 

A preservação dos materiais de pesquisa originais, por Daphne, permitiu ainda reouvir e digitalizar as entrevistas gravadas em fita cassete; acessar os formulários com dados das entrevistadas e as primeiras versões das transcrições, várias delas com apontamentos manuscritos; rever as notas de campo, feitas no calor da hora; ler a correspondência com a editora que trouxe o livro à luz, com comentários que reorientaram sua composição; [...]

 

A guarda desses materiais, bem como o olhar no presente para esse manancial, permitiu que os pesquisadores refletissem sobre os modos de produção de história oral em diferentes tempos e por diferentes pessoas, ajudando a constituir a história da área.

 

Assim como são muitas as maneiras de olhar para o desenvolvimento da história oral, como área, ao longo do tempo, também são numerosos os caminhos interpretativos para as histórias elicitadas e verbalizadas em tempos, espaços, e para interlocutores diferentes (Santhiago; Patai, 2021, p. 453).

 

Em nossas pesquisas, dentro do Grupo de História Oral e Educação Matemática (GHOEM), entendemos que embora a HO praticada por nós tenha um conjunto de procedimentos característicos, ela é uma metodologia em trajetória. Um exemplo claro foi visto no desenvolver desta pesquisa: a guarda desses materiais possibilitou o processo que viemos chamando de revisitação de fontes orais, e nesse movimento, já consegue-se perceber o quanto o nosso próprio modo de produzir HO mudou e como ele se constituiu ao longo dos anos.

Se a revisitação causou estranheza e ao mesmo tempo proporcionou relembrar nossas trajetórias como pesquisadores, com nossas colaboradoras não foi muito diferente e o primeiro destaque vem com a Professora Regina Al- Alam Elias.

Professora Regina, ao reencontrar em 2020 as fontes orais produzidas em 2015, demonstrou surpresa. Ao revisitar o material, Regina incomodou-se com a falta de “norma culta”, bem como com a repetição de palavras ou de marcações vocais, que estavam presentes no texto. Após sua leitura além de pedir a supressão de alguns pontos, nos questionou se não poderíamos deixar o texto mais fluido. Nesse momento, explicamos que aquele texto que estávamos trabalhando juntos, diferenciava-se de um texto formal, escrito por ela, justamente porque era um texto degravado e textualizado.

Para situarmos o leitor do processo de retorno do texto para o nosso colaborador, cabe nos explicarmos em relação a uma prática que desenvolvemos dentro do GHOEM. Após a entrevista, o texto é transcrito (degravado) e textualizado pelo pesquisador. Esse processo, consiste em deixar o texto mais organizado. Após esse trabalho o texto passa por um novo momento, que chamamos de legitimação das fontes orais, ou seja, o texto é encaminhado pelos pesquisadores aos colaboradores. Estes, o lerão, e após esse procedimento ainda terão a oportunidade de pedir a supressão de trechos que não os deixem confortáveis bem como sugerir ajustes na escrita. Essa ação é uma das práticas mais comuns realizadas dentro de nosso grupo, por isso, entendemos que esse depoimento é uma construção em conjunto. Não se trata de um texto de uma única pessoa, é um texto elaborado em conjunto, pesquisador e colaborador.  Após esse ajuste por parte do pesquisador, o texto novamente pode voltar ao colaborador, a fim de uma leitura final para assim assinarmos a carta de cessão de direitos.

Infere-se que o estranhamento por parte de Regina, bem como a sua tentativa em deixar o texto mais limpo, esteja relacionado à sua trajetória profissional. Regina foi professora universitária e orientadora de monografias e trabalhos de conclusões de curso. Também pode-se inferir que a professora Regina, que tem reconhecimento na academia, ampliado no decorrer dos anos, teme uma leitura equivocada por parte de outros colegas perante a um texto que tenha seu nome.

Essa última característica também esteve presente durante as conversas com a Professora Maria Emilia Tavares, também colaboradora desta pesquisa. Após uma leitura do material, Maria sinalizou diversas pontuações, bem como sugestões em relação à estrutura do texto. Assim como a Professora Regina, Emilia pediu para que deixássemos o texto mais limpo, com menos marcas da oralidade. Da mesma maneira que a Professora Regina, Emilia é professora universitária. Uma conversa a respeito da diferença entre um texto escrito e um texto construído a partir de uma entrevista também foi realizada com professora Emília, a fim de tentar mantermos o texto daquela maneira.

Aqui cabe abrir um parêntese. Essa é uma dificuldade partilhada por muitos colegas pesquisadores que mobilizam a História Oral em suas pesquisas. Entretanto, essas características não aparecem descritas em nossos trabalhos. O que nos proponho refletir e nos questionarmos é como agimos mediante a esses pedidos? Sabemos que a estrutura de uma textualização, em que se procura manter a identificação de sua origem na oralidade é diferente de um texto escrito, no entanto, nem sempre essa explicação evita uma indesejável reescrita, a pedido do colaborador. O limite entre um texto escrito e uma textualização é problemático. No âmbito do GHOEM, convencionou-se manter uma estrutura que permita ao leitor identificar sua origem na oralidade, bem como a preservação do “tom do entrevistado”. Esse “tom do entrevistado” deve ser tal, que uma pessoa que conheça o entrevistado, mesmo que não conheça suas memórias, seria capaz de identificá-lo no meio de tantos outros.

Conforme comentamos, após a realização da transcrição e textualização, o texto retorna ao colaborador, permitindo que ele tenha direito de vetar ou de autorizar passagens, bem como negociar alterações. Essa conduta em específico, culmina com nosso aceite em relação às sugestões e às modificações sugeridas por nossos colaboradores. Além dos pedidos de remoção de marcas da oralidade, bem como de ajustes na estrutura já comentados, outra caraterística que gostaríamos de trazer para essa discussão diz respeito a pedidos de inserções.

Após o texto voltar da primeira leitura realizada por Maria Emilia, o processo de revisitação de fontes orais trouxe um elemento que, até então, para nós enquanto membros do grupo, era novo. Professora Emilia sugeriu diversas inserções de nomes, datas, bem como, realizou a inserção de comentários em diversos trechos da entrevista e até mesmo tons de surpresa quando narrava algo que sua leitura no hoje, a faria dizer. Um exemplo dessas inserções pode ser percebido quando ela versa sobre determinado professor que lhe deu aula e no áudio não faz nenhum comentário sobre. Entretanto, no agora, ao reler o texto, ela nos traz alguns comentários que caracterizam profissionalmente esse professor, bem como deixa demarcado exclamações ou frustrações.

É importante ressaltar que a estrutura narrativa não mudou. Maria Emilia mantém a indignação e entusiasmo com os mesmos pontos narrados em 2015. O que difere são alguns comentários que somam a essas indignações, mais indignações ou mais felicidade. Na pesquisa de Santhiago e Patai, os pesquisadores perceberam que a narração de Marialice, quase trinta anos depois, mantém essa mesma característica: “Suas narrativas são praticamente idênticas no que diz respeito às expressões utilizadas e aos temas recorrentes (sofrimento, responsabilidade, aceitação)” (Santhiago; Patai, 2021, p. 457).

Acreditamos que essas modificações tenham sido motivadas justamente pela sua leitura no hoje, no presente, para uma leitura de seu texto, produzido no passado. As discussões sobre a memória e como ela atua em diferentes temporalidades não é um assunto novo quando falamos de História Oral. Portelli (2011) já nos alertava sobre esses pontos ao conversar com um entrevistado com o qual ele já havia realizado outras entrevistas no passado. O fator “tempo” altera a narração, e nesse caso, em específico de professora Maria, pudemos perceber isso de perto.

Todavia, se as narrações foram “alteradas” pelos adicionais de marcação e estrutura, é inevitável não falarmos das permanências. Em nosso primeiro encontro pessoalmente em 2022, Maria, que já havia realizado uma primeira leitura em sua textualização, agora, no presente, mostrava-se a mesma professora, apaixonada pela “prática pedagógica” de cerca de sete anos atrás.

Falando de sua textualização, não foi diferente. Quando menciona sobre a importância de um professor saber o “conteúdo” e ter “a didática”, hoje, realiza as mesmas afirmações, inclusive com as mesmas palavras. Em nosso encontro presencial, repetia as afirmações feitas em sua narração. Santhiago; Patai (2021) defendem que a cristalização de episódios como esse, no interior da história oral, pode ser entendida a partir de dois caminhos: o da repetição e o da emoção.

 

Ambos [caminhos] são reconhecidos e analisados pelo neurobiólogo James McGaugh em seu livro Memory & emotion: the making of lasting memories (2003). Ele aponta que a repetição — efetuada à exaustão de uma prática, até que ela seja sabida “de cor” — é um dos mecanismos mais eficazes para a criação de memórias duradouras. […] McGaugh (2003) reconhece também a emoção como um influxo central para a formação dessas memórias que sobrevivem no tempo. As experiências que nos instigam emocionalmente são aquelas que tendem a permanecer “gravadas” na memória. Tais experiências podem ser eminentemente individuais ou socialmente ancoradas; importa o nível de “alerta emocional” presente no momento de sua aquisição. Esse nível responderá pela consolidação de determinada memória como uma memória de longa duração, que se refere a muitas horas, dias, meses, anos, e que poderá, posteriormente, ser evocada (Santhiago; Patai, 2021, p. 464, grifos nossos).

 

Tomando a sinalização de Santhiago; Patai (2021), parece ficar claro o porquê das marcações a respeito da “prática pedagógica” ou os elogios a um colega, permanecem na narrativa de Maria Emilia, ainda no hoje. Maria, que atua como professora, fala que nasce para ser professora demonstrando emoção. Além disso, entende que a “prática pedagógica” é também sinônimo de vocação, o que carrega características bem-marcadas pelas tendências de seu período de formação[11] e que provavelmente evocada com repetição por professores e colegas da época; quando elogia o colega e amigo de profissão é marcada pela emoção. Primeiro porque fala de um colega que recentemente partiu, vítima de complicações causadas pela Covid-19, e segundo, porque esse colega era também seu amigo.

Se o processo de revisitação de fontes orais causou estranhamento aos colaboradores, retomando o que já tratamos em outros momentos desse texto, a autora deste texto também precisou refazer as pazes com sua eu do passado.

Em meio a tantas voltas ao passado, a constituição intencional das fontes orais que constituíram a tese de doutoramento dessa pesquisadora, se tornaram um processo reflexivo para uma pesquisadora que precisou deixar de lado a autocrítica e passou a exercer um pouco de compaixão com o seu eu do passado.

 

Hoje, após todos esses momentos e durante a escrita destes parágrafos, percebo o quanto é importante olhar para si e entender que “o passado” é algo que só pode ser lembrado com olhares de respeito por quem já fui, porque é aquela pessoa a grande responsável, por hoje, eu ser o que sou hoje (Moreira, 2022, p.56).

 

O afastamento das fontes orais durante esses seis anos, a trouxe experiência e com isso mais rigor. Ao revisitar o material produzido em meados de 2015, sofreu e entendeu como é importante estar em formação, além de parar para refletir sobre o seu próprio trabalho. Ao olhar para essas entrevistas, que foram suas primeiras experiências de entrevistas sozinha, apoiadas na história oral, o orgulho aparece apesar de ter a clareza de que algumas coisas precisavam ter sido feitas de forma diferente.

Sabemos que não é justo julgar o passado com a experiência do presente. É quase que cair em anacronismo consigo mesmo e, vejam bem, logo com uma pessoa que também se dedica a falar de história. Entretanto, mais do que refletir sobre esses momentos, sobre os porões de uma pesquisa, parafraseando Veiga-Neto (2012), trazemos tais discussões com o intuito de humanizar o trabalho desenvolvido em um curso de doutoramento. Muito se espera de um trabalho de doutorado e pouco se fala das fragilidades e dificuldades encontradas nesse caminho.

Tais questões levantadas, como por exemplo, a falta de paciência com situações do passado, bem como outras situações apontadas, marcaram o trabalho de doutorado da primeira autora também nos modos de produção das  fontes orais que compuseram aquele texto: por mais que a vontade de mexer na estrutura narrativa, assim como realizar recortes e deixar a narrativa em um texto único se fizesse presente, naquele momento de escrita da tese tomamos a liberdade de não realizar tais mudanças por acreditar que a constituição daquelas fontes foi realizada daquela maneira e compõe os modos de produção de história oral, pelos quais a pesquisadora percorreu até aqui.

Ainda sobre aos encontros que a revisitação proporcionou, cabe destacar as questões emergente do gênero.  O incomodo na garganta relatado anteriormente, durante os encontros com Maria Emília e Regina, não tinham nome naquele momento de vida da pesquisadora e das colaboradoras até porque também não eram temas latentes na Ed. Matemática. Hoje, conseguimos nomear o sentimento de sororidade, bem como anunciar os enfrentamentos que emergem da psicologia tais como a Síndrome do Impostor, ou o mansplaning[12], e os elementos emergentes do discurso, como por exemplo a noção de capacidade e valia dentro do Ensino de Matemática. Atualmente são temas estudados e enfrentados por pesquisadores tais como Walkerdine (2007), Preciado (2021), Reis, Souza, Conceição e Fonseca (2010) dentre outros que se dedicam a temática.

Nesse sentido, Regina relatou-nos:

 

[...] aí fiz vestibular na época e entrei na faculdade de Matemática e sofri as consequências de não ter nada de matemática. Inclusive numa aula de cálculo, eu perguntei se o seno era o inverso do cosseno! O professor ficou tão bravo comigo, tão bravo que disse: “Quem fez o Normalzinho, não merece resposta!” (Professora Regina, 2015, in Moreira, 2022, p.210).

 

Maria Emila, relatou:

 

[...] Eu peguei uma turma da Católica que ia ser aluna do Lino e que naquela época acabou passando para mim. Eu sou bem diferente do Lino para dar aula, o Lino trata todos os alunos até hoje de senhor e de senhora. Assim, né? E eu sou brincalhona, aí eu entrei naquela turma enorme que esperava o professor Lino e eu dei aula à minha maneira. Eu brincava com eles e eu não tinha “nome” naquela época, eu sempre digo que eu era a “professora nova”. Aí eles acharam que “a professora nova” (barulho de batidas de mãos de tanto faz), professora jovem, nova, não deve saber grande coisa. Cálculo II, ainda. Aí um dia eu entrei em aula, até a roupa eu cuidei para que fosse nude, entrei em aula bem séria, dei toda a aula daquele jeito. Chegou no fim, eram dois períodos, eles perguntaram: “Professora, o que houve com a senhora?” “Não, eu quero até conversar com vocês sobre isso, quero saber que professor vocês querem. Eu posso dar aulas assim como dei hoje e posso dar aulas como eu sempre dei. Eu sou a mesma, vou exigir a mesma coisa, só quero saber a preferência de vocês.” “Pelo amor de Deus, professora, não venha mais assim.” (Professora Maria Emilia, 2015, in Moreira, 2022, p.245)

 

Ainda que Regina e Maria Emilia apesar de relatarem e estranharem, não nomeiem, a tomada de consciência de que situações rotineiras não devem ser normalizadas, quando estas nos provocam ansiedades e frustrações, trata-se de um processo (que não é fácil) em um dos sentidos literais da palavra. Processo: ação contínua e prolongada de alguma atividade[13] – que nestes casos podem demorar uma vida inteira, uma fase da vida e podem nem acontecer. É por isso que destacamos estas questões, no intuito de elucidar que se trata de vidas que são marcadas pelas questões de gênero e por todas as relações que estes podem inferir.

Esse texto procura elucidar as questões provenientes do processo de revisitação de fontes orais, proporcionados pela pesquisa de doutorado que comporta parte desse trabalho. Para além de um movimento reflexivo, esse processo, pode ser explorado por outras pesquisas e ajudar outros pesquisadores a refletirem sobre suas próprias práticas, bem como esgarça as possibilidades da exploração do uso de narrativas dentro do campo da História Oral. É nesse sentido que essa pesquisa se propõe.

 

Considerações

Esse texto procurou apresentar ao leitor o que viemos chamando de revisitação de fontes orais, dentro do campo da Educação Matemática discutindo as potencialidades desse movimento novo, situando e alargando as possibilidades de exploração das narrativas, produzidas pelo Grupo de História Oral e Educação Matemática (GHOEM).

Ainda que existam outras possibilidades de exploração com relação à revisitação das fontes orais produzidas, tais como os desdobramentos da memória e outras problematizações, neste ensaio trouxemos as primeiras iniciativas por nós pensadas. Trata-se de um movimento que buscou refletir sobre uma dinâmica peculiar, no que tange ao tratamento de fontes orais nas pesquisas que tratam de aspectos históricos da história da educação matemática. Refere-se a esse novo olhar, no presente, para uma entrevista produzida no passado, e é justamente por se tratar de algo novo, que as perguntas suscitadas, bem como as reflexões propostas, ainda têm um caminho de reflexão longo a ser percorrido.

Destacamos ainda, que embora o trabalho de revisitação realizado seja viável, uma vez que o GHOEM produz intencionalmente fontes orais, os resultados obtidos apontam a necessidade de se pensar a preservação e a guarda institucional destes acervos, reforçando a importância dos trabalhos desenvolvidos por Oliveira (2013) junto ao Hemera e de Silva (2023).

Espera-se que os questionamentos aqui levantados possam servir de reflexão para outras pesquisas que também venham a passar pelo mesmo movimento, sejam intencionalmente pensadas ou por um acaso do percorrer acadêmico.

 

Referências

BARRETO, I. B. Lino de Jesus Soares: Uma História de Vida. 2017. 78 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de Ciências e Matemática) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2017. Disponível em: http://repositorio.ufpel.edu.br:8080/handle/prefix/3785. Acesso em: 21 jul. 2020.

 

GARNICA, A. V. M. História Oral e História da Educação Matemática: considerações sobre um método. In: Congresso Ibero Americano de História da Educação Matemática, I, 2011, Covilhã, Portugal, 2011.

 

______. Cartografias Contemporâneas: mapa e mapeamento como metáforas para a pesquisa sobre a formação de professores de matemática. Alexandria (UFSC), v. 06, p. 35-60, 2013.

 

GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. – São Paulo: Cia. das letras, 1989.

 

MOREIRA, L.L. Trajetórias de Formação (1930-1970): Da criação de grupos de estudos ao curso de Matemática da Universidade Católica de Pelotas-RS.365f. 2022. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática), Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Exatas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022. Disponível em: https://hdl.handle.net/1884/80077.

 

OLIVEIRA, F. D. HEMERA: sistematizar textualizações, possibilitar narrativas. 176f. 2013.Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática), Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP, 2013.

 

PORTELLI, A. Ensaios de história oral / seleção de textos Alesandro Portelli e Ricardo Santhiago. Trad. Fernando Luiz Cássio e Ricardo Santhiago. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

 

PRECIADO, P. B. (2021) "Eu sou o monstro que vos fala". Trad. Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior. 16 de julho de 2020. Disponível em: < https://medium.com/@sarawagneryork/eu-sou-o-monstro-que-vos-fala-94dd10a366ef>. Acesso em 12 de set. de 2023.

 

RIOS, D.F. Contribuições dos lugares de memória para a formação dos professores de Matemática. Acta Scientiae, Canoas, v. 17, p. 5-23, Edição Especial, 2015.

 

SANTHIAGO, R.; PATAI, D. Uma História Oral em três tempos: relações, construções narrativas, usos práticos da memória. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), v. 34, n. 74, p. 450-471, dez. 2021. ‌Disponível em: https://dspace.almg.gov.br/handle/11037/41908. Acesso em: 05 maio 2022.

 

SILVA, M. dos S. O que podem as narrativas na Educação Matemática brasileira. 2020. 404f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2020. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/193252.

 

SILVA, B. B. da. Arquitetando Histórias de Formação em Formação: compreensões junto a narrativas da História Oral em Educação Matemática. 2023. 380 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, 2023. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/250242.

 

TIZZO, V. S... A História Oral como uma abordagem didático-pedagógica na disciplina Política Educacional brasileira de um curso de licenciatura em Matemática. 2014. 346 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, 2014. Disponível em: https://www2.fc.unesp.br/ghoem/trabalhos/51_3_Disserta%C3%A7%C3%A3o_Vin%C3%ADcius_Tizzo_ _Final.pdf.

 

VEIGA-NETO, A. É preciso ir aos porões. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 50, p. 267-282, ago. 2012.

 

VIANNA, C. R. Vidas e Circunstâncias na Educação Matemática. 573f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2000.

 

WALKERDINE, V. Ciência, Razão e a Mente Feminina. Educação & Realidade[S. l.], v. 32, n. 1, 2008. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/6657. Acesso em: 16 nov. 2023.

 

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Notas



[1] Para saber mais acesse: https://www2.fc.unesp.br/ghoem/.

[2] A pesquisa atual passou pelo comitê de ética em pesquisa, junto a Universidade Federal do Paraná e por tratar-se de História Oral, o nome dos colaboradores também foi autorizado a estar presente em meio ao texto. Também, foram concedidos direitos das entrevistas através da Carta de Cessão de Direitos.

[3] Diogo Franco Rios possui doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atualmente é professor do Departamento de Educação Matemática, da Universidade Federal de Pelotas, atuando no Curso de Licenciatura em Matemática e no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática. Líder do Grupo de Pesquisa em História, Currículo, Cultura e Educação Matemática.

[4] Sororidade: Segundo a Academia Brasileira de Letras, sororidade pode ser definida como: Sentimento de irmandade, empatia, solidariedade e união entre as mulheres, por compartilharem uma identidade de gênero; conduta ou atitude que reflete este sentimento, especialmente em oposição a todas as formas de exclusão, opressão e violência contra as mulheres. [Do latim soror, ‘irmã’ + -(i)dade.] Disponível em: <https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/sororidade>.

[5] Ainda que as discussões sobre performar um ser feminino, estar em corpo feminino, pertencer a um corpo feminino, em uma sociedade patriarcal, sejam atravessamentos que serão ampliados nesse texto, deixamos aos leitores indicados os trabalhos de Preciado (2021), “Eu sou o monstro que vos fala”; e também o trabalho de Walkerdine (2007), “Ciência, Razão e a Mente Feminina”.

[6] Síndrome do impostor: If you have a impostor syndrome, you feel that you do not deserve your status or success. It is a classic case of impostor syndrome: having archived great wealth, she feels as thought she does not deserve it. Disponível em: https://www.collinsdictionary.com/pt/dictionary/english/impostor-syndrome.

[7] Aliado aos discursos de menos valia referente a mulher e ao papel que ela desempenha na sociedade, destaca-se que na Matemática há também a presença de enunciados tal como “Homem é melhor em Matemática do que mulher” que segundo Reis, Souza, Conceição e Fonseca (2010), corroboram com a produção de desigualdades entre gêneros.

[8] Tais questões não serão ampliadas para esse trabalho.

[9] Por esse motivo, quando lançarmos mão das discussões a respeito da revisitação de fontes orais, as fontes orais produzidas com Lino não serão abordadas, uma vez que o processo de cessão destas fontes já havia sido consolidado e este não teve contato novamente com o material produzido. A realização deste “não contato” com professor Lino foi realizada de forma intencional pois em meados de 2020, por estarmos em uma pandemia, e o professor Lino estar com uma idade avançada, optamos por não o incomodar.

[10] Durante esse período, no âmbito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o trabalho desenvolvido como bolsista do Pibid estava vinculado ao projeto de Pesquisa “A Modernização da Matemática em Instituições Escolares de Pelotas-RS (1950-1979) (RIOS, 2013). Em 2014, esse projeto foi finalizado, e em 2015, foi constituído o projeto “Educação Matemática no Rio Grande do Sul: instituições, personagens e práticas (1890-1970) (RIOS, 2015) que foi encerrado no ano de 2020. Nesse mesmo ano de 2020, um novo projeto foi constituído com o nome: “Educação Matemática no Rio Grande do Sul: instituições, personagens e práticas (RIOS, 2020)”.

[11] Acredita-se que a formação no Curso Normal, de Maria Emília, em meados da década de 1960 possuía uma preocupação com a metodologia do ensino, que segundo Tanuri (2000), é característica herdada do ideário escolanovista.

[12] Mansplaning: Quando um homem explica algo que é óbvio para aquela mulher (por exemplo: um homem não psicólogo explicando sobre psicologia para uma mulher psicóloga), quando um homem tenta explicar os sentimentos, pensamentos, comportamentos e o próprio funcionamento do corpo da mulher para ela mesma (por exemplo, um homem explicando sobre menstruação para uma mulher). No Brasil, popularmente o homem que comete mansplaining é chamado de “macho palestrinha” e geralmente essa violência acontece em qualquer lugar e situação, o que pode gerar diminuição da autoestima e autoconfiança, como também invalidação dos conhecimentos da mulher diante de outras pessoas e de si mesma. Disponível em: https://ibac.com.br/gaslighting-mansplaining-manterrupting-bropriating-e-manspreading-uma-visao-analitico-comportamental/.

[13] Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/processo/.