O furacão da sexualidade loquaz: discursos sobre controle e poder

The hurricane of loquacious sexuality: speeches about control and power
El huracán de la sexualidad locuaz: discursos sobre control y poder

 

Jarles Lopes de Medeiros

Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil

jarles.lopes@uece.br

 

Recebido em 06 de novembro de 2023

Aprovado em 02 de abril de 2024

Publicado em 09 de junho de 2024

 

RESUMO

Este artigo apresenta uma discussão acerca do tema sexualidade e gênero, tendo como premissa a vigilância e o controle acerca dos corpos e das identidades, apresentando um panorama histórico e social envolto do tema. Tem como objetivo discutir questões sociais e históricas envolta do assunto, que repercutem diretamente na educação, por isso, torna-se relevante para a contribuição dos temas relacionados à formação docente. Como procedimento metodológico, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, que se articula a dados já publicados por outros autores, tais como livros e artigos. Sob a perspectiva transdisciplinar, a pesquisa, de caráter qualitativo, insere-se no contexto dos estudos históricos culturais, sobretudo a abordagem foucaultiana. Tendo a história como um fio condutor, os estudos históricos culturais nos permitem compreender assuntos que transbordam os limites da razão, destacando diferenças e particularidades, distanciando-se de homogeneizações, sem hierarquizações culturais. Os resultados contribuem para a compreensão acerca das problemáticas que perpassam os temas gênero e sexualidade, englobando não só a escola, mas o contexto social mais amplo.

Palavras-chave: Sexualidade; Gênero; Educação.

 

ABSTRACT

This article presents a discussion on the topic of sexuality and gender, with the premise of surveillance and control over bodies and identities, presenting a historical and social panorama surrounding the topic. It aims to discuss social and historical issues surrounding the subject, which have a direct impact on education, therefore, it becomes relevant for the contribution of themes related to teacher training. As a methodological procedure, bibliographical research was used, which is linked to data already published by other authors, such as books and articles. From a transdisciplinary perspective, the research, of a qualitative nature, is inserted in the context of historical cultural studies, especially the Foucauldian approach. With history as a guiding thread, cultural historical studies allow us to understand subjects that go beyond the limits of reason, highlighting differences and particularities, moving away from homogenizations, without cultural hierarchies. The results contribute to the understanding of the problems that permeate the themes of gender and sexuality, encompassing not only the school, but the broader social context.

Keywords: Sexuality; Gender; Education.

 

RESUMEN

Este artículo presenta una discusión sobre el tema de la sexualidad y el género, con la premisa de la vigilancia y control sobre los cuerpos y las identidades, presentando un panorama histórico y social en torno al tema. Tiene como objetivo discutir cuestiones sociales e históricas que rodean el tema, que tienen un impacto directo en la educación, por lo que se vuelve relevante para el aporte de temas relacionados con la formación docente. Como procedimiento metodológico se utilizó la investigación bibliográfica, la cual se vincula a datos ya publicados por otros autores, como libros y artículos. Desde una perspectiva transdisciplinaria, la investigación, de carácter cualitativo, se inserta en el contexto de los estudios históricos culturales, especialmente el enfoque foucaultiano. Con la historia como hilo conductor, los estudios históricos culturales permiten comprender temas que van más allá de los límites de la razón, destacando diferencias y particularidades, alejándose de homogeneizaciones, sin jerarquías culturales. Los resultados contribuyen a la comprensión de los problemas que permean los temas de género y sexualidad, abarcando no sólo la escuela, sino el contexto social más amplio.

Palabras clave: Sexualidad; Género; Educación.

 

Introdução

Os temas relacionados às práticas educativas em torno das questões de gênero e sexualidade emergem da sociedade brasileira, que se encontra em crises múltiplas, sobretudo de valores. As concepções de gênero e sexualidade, discutidas neste artigo, encontram-se na linha de frente numa batalha de grupos antagônicos: em um extremo, o conservadorismo, que prima pela preservação da suposta ordem e dos bons costumes, sob perspectivas machistas de masculinidades e feminilidades, tendo na cristalização da família patriarcal o seu ideário; no outro, temos o movimento em prol da defesa dos direitos das diversidades, incluindo pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+, dentre outras, as quais buscam por respeito e dignidade.

Esses temas circundam o universo escolar, porém não é tarefa fácil discutir tais questões, pois existe um silenciamento acerca do tema sexualidade, que engloba categorias como gênero, identidade sexual, prevenção de doenças, gravidez, casamento etc. Conforme Santos, Francisco e Souza (2023),A intolerância em relação às discussões de gênero e sexualidade tem se intensificado na atualidade, momento este permeado por profundas incertezas na provisão dos direitos sociais à população brasileira”. Dessa forma, o assunto se insere no contexto da formação de professores, devido à sua relevância, que, cada vez mais, exige a inclusão de problemáticas sociais.

Este artigo se trata de um recorte de uma pesquisa realizada para tese de doutorado em educação[1]. No referido estudo, foram discutidos os temas gênero e sexualidade na perspectiva dos docentes que atuam na escola. No presente recorte, apresento uma discussão acerca do tema sexualidade, tendo como premissa a vigilância e o controle acerca dos corpos e das identidades, apresentando um panorama histórico e social envolto do tema. Os resultados contribuem para a compreensão acerca das problemáticas que perpassam os temas gênero e sexualidade, englobando não só a escola, mas o contexto social mais amplo.

Como procedimento metodológico, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, que se articula a dados já publicados por outros autores, tais como livros e artigos (Severino, 2002). Sob a perspectiva transdisciplinar (Dosse, 2013), a pesquisa, de caráter qualitativo, insere-se no contexto dos estudos históricos culturais (Burke, 2005), sobretudo a abordagem foucaultiana (Foucault, 2011; 2014). Tendo a história como um fio condutor, os estudos históricos culturais nos permitem compreender assuntos que transbordam os limites da razão, destacando diferenças e particularidades, distanciando-se de homogeneizações, sem hierarquizações culturais. Nesse sentido, Burke (2005) informa que os limites que caracterizam as diferentes culturas, tornando-as únicas, escapam à nossa compreensão. A depender das escolhas e do enfoque do pesquisador, as possibilidades da histórica cultural são inesgotáveis, sendo fundamental deslocar a atenção dos objetivos para os métodos da pesquisa. Em resumo, a abordagem permite uma metodologia sem fronteiras.

 

Gênero e sexualidade: assombros e devastação, como provocam os furacões?

Fazendo uma analogia, a sexualidade seria um furacão, imponente e devastador, que vai ganhando forma e força com os ventos e seus trajetos. Qualquer sinal de seu aparecimento ou do surgimento de novas formas, causa pânico e reclusão. Alguns, de menor intensidade, são naturalizados e não causam danos, as cidades aprendem a lidar com eles, preparando-se arquitetonicamente para o seu enfrentamento, a exemplo dos abrigos construídos sob as casas em algumas regiões onde há esse fenômeno.

Sousa (2008) informa que o surgimento de um furacão está relacionado a perturbações atmosféricas, sendo o aquecimento das águas, causando a evaporação, o seu principal fator de origem. Por esse motivo, a temperatura do oceano é uma referência para calcular a incidência do furacão. Existem semelhanças semânticas entre as terminologias furacão (Atlântico e Nordeste do Pacífico), ciclone (Noroeste do Pacífico) e tufão (Oceano Índico), dependendo do local em que ocorrem, recebem nomes diferentes. Para a analogia em questão, basta-nos compreendermos tais palavras como sinônimas.

A intensidade dos furacões é medida pela Escala Saffir-Simpson, a qual leva em conta três fatores: pressão atmosférica no interior do olho, velocidade dos ventos e danos causados por onde passam. O nível de força varia entre 1 (mais fraco) a 5 (mais forte): no primeiro estágio são verificados pequenos danos, principalmente com a destruição de telhados, arbustos e árvores, com ventos de, aproximadamente, 150 km/h; já no quinto nível, o índice de devastação é maior, destruindo casas, arrancando árvores grandes pela raiz e as pessoas devem se afastar da região a uma distância de 16 km do mar, com ventos que podem atingir até 249 k/h (Macedo, 2015).

Apesar de se tratar de um ciclo natural do planeta, pois existe uma alternância na temperatura dos oceanos de tempos em tempos, podendo durar cerca de uma década, mudando de um período mais frio para um mais quente, a ação humana sobre a natureza intensifica esse ciclo. Quanto mais aquecida a Terra, maior a incidência de furacões, dizem os cientistas (Battaglia, 2018).

Retomando a analogia, as questões de gênero também repercutem na classificação dos furacões, dentre os quais alguns que assolaram as regiões por onde passaram, a exemplo dos furacões Flora (1963 – Caribe) e Katrina (2005, EUA)[2], ambos níveis 5 na Escala Saffir-Simpson. A maioria dos furacões tem nomes femininos. A revista Delas (2017)[3], em reportagem, destaca que foi durante a Segunda Guerra Mundial que os cientistas, visando homenagear mães e esposas de soldados da guerra, começaram a batizar os furacões com nomes femininos. Essa homenagem também se deve ao fato muitas dessas mulheres apresentarem transtornos psicológicos devido à perda de seus familiares na guerra. No entanto, devido a reivindicações do movimento feminista na década de 1970, passou-se a batizá-los, também, com nomes masculinos, uma vez que as mulheres não queriam ser vinculadas a catástrofes naturais. Atualmente, é compreendido, segundo a reportagem, que os furacões com nomes femininos são mais mortais que os que possuem nomes masculinos.

Analogias de gênero também foram feitas para explicar alterações climáticas que repercutem na densidade dos eventos no planeta, que acabam causando furações. Exemplo disso é a explicação para os fenômenos El Niño e La Niña, com tradução literal do espanhol para o português de O Menino e A Menina, respectivamente. Thiago Azeredo, em reportagem publicada no Site O Globo[4], informa que se trata de uma elevação anual nas temperaturas das águas do Oceano Pacífico Tropical (com duração, em média, de um ano e meio) que afeta, também, o clima em proporções mundiais.

O nome do fenômeno El Niñoé uma referência ao Menino Jesus, pois, devido ao aquecimento da temperatura que leva nutrientes das águas frias profundas, provoca o aumento no aparecimento de peixes na superfície marítima na costa do Equador e Peru. Apesar da fertilidade das águas na região, trata-se de um fenômeno anormal dos mares, fruto do aquecimento global. Muitos veem o fenômeno como algo positivo, devido à abundância na pesca.

Em contrapartida, na mesma região, surge outro fenômeno que esfria as águas, alongando o período frio com intensidade de ventos, o que, dentre outros efeitos, faz reduzir a abundância de peixes, é o chamado La Ninã. A nomenclatura reforça a ideia do feminino como algo ruim, alguns o chamam também de Anti-El Niño, em outras palavras, o demônio, o AntiCristo, contendo forte teor dualista cristão, por isso mesmo o termo é evitado.

No Brasil, El Niño impacta na elevação das temperaturas na Região Norte e maior incidência de incêndios, causando aumento de chuvas no Sul. Em se tratando de La Niña, os efeitos são contrários: maior precipitação de vazão nos rios da parte norte do país e acentuação da seca na parte sul, conforme Thiago Azeredo.

Nos fenômenos citados, o feminino é concebido como algo ruim e devastador. Ao longo do século XX, essa concepção do feminino como um ser inferior, restrita ao lar, compreensiva, emotiva, vai acentuar as desigualdades entre os gêneros, o que acaba por repercutir em sujeitos diversos, tais como os LGBTQIA+. No final das contas, o que está em jogo na luta contra a LGBTQIA+fobia e contra o machismo é a dualidade entre o masculino e o feminino. As mulheres, cada vez mais, ocupam espaços outrora restritos ao homem, não se restringindo ao lar e aos cuidados com as crianças para se lançarem ao mercado de trabalho, sendo essa uma necessidade das sociedades capitalistas.

Dessa forma, a educação sexista, que coloca o feminino e o masculino em antagonia, precisa ser repensada, o que repercute diretamente na formação docente. A escola precisa gerir esse debate. Conforme Duque (2014), “ao pensarmos em sexualidade e gênero, é fundamental compreender que é um equívoco acreditar em uma base natural que é binária e sexuada [...]”. Dessa forma, as questões biológicas não podem servir de parâmetro para determinar os papéis sociais de homens e mulheres.

Saffioti (1973) salienta para o cuidado em analisar a inserção da mulher no cenário do trabalho capitalista sob quatro óticas em relação à quatro funções que a ela ocupa: de produção, de sexualidade, de reprodução e da socialização com a geração imatura.  De uma forma geral, o padrão de mulher trabalhadora aceito gira em torno da viúva, desquitada, casada sem filhos ou casada com filhos em idade escolar, os quais podem ficar um dia inteiro sob os cuidados de uma instituição sem a presença da mãe. Vista a partir de uma concepção de inferioridade em relação ao masculino, devido às suas limitações biológicas (segundo a concepção machista), as quais incluem variações emocionais e fragilidades físicas, a entrada da mulher no mercado de trabalho surge como uma ameaça ao bom funcionamento do sistema.

Apesar de terem se passado quase cinco décadas desde a publicação de “Trabalho feminino e capitalismo”(Saffioti, 1973), os seus apontamentos continuam atuais e contribuem para ilustrar o cenário feminino no mercado de trabalho. As ideias de Saffioti desmontam a ideia cultuada ainda hoje de que a família seja um obstáculo à inserção da mulher no mercado de trabalho e que a luta contra o machismo é, também, articulada ao sistema capitalista. Quanto mais espaço as mulheres conquistam, mais violência essas ocupações têm gerado.

Retomando a analogia dos furacões, Viviane Mosé (2018) destaca que a metáfora é a transposição de uma ideia para uma imagem. Assim, podemos capturar essa discussão em torno da força dos ventos, a partir de metáforas, para as discussões em torno da sexualidade (o furacão da sexualidade) buscando aproximações entre seus impactos na vida social. A primeira observação a se destacar é que a gravidade dos danos causados pela velocidade dos ventos está diretamente relacionada à proximidade do olho do furacão. Assim, quanto mais próximo desse olho, maior o dano causado. Talvez, e é bem provável, a questão matrimonial, portanto religiosa e política, esteja no olho do furacão da LGBTQIA+fobia. Ouseria melhor dizer que a LGBTQIA+fobia é que está no olho do furacão?

Existe uma naturalização em considerar o furacão como parte da geografia. Ciências são desenvolvidas para prever a sua aparição e poder de destruição, mas nunca para contensão. Assim como o furacão, a sexualidade não pode ser contida, embora exista uma cristalização moderna de que a ciência pode conseguir tal feito. Noutro período histórico, a religiosidade também buscou contê-la, sob a vigilância e castigos metafísicos.

Os furacões que não causam transtorno ou devastação aos seres humanos são aqueles que passam longe das cidades, no oceano, no deserto, quando não atingem a população. Esses são silenciados, não causam espanto, pois quando não os vemos, eles não existem. Da mesma forma, durante muito tempo a população LGBTQIA+ não existiu aos olhos da sociedade. Não frequentavam lugares públicos com demonstração de sua condição identitária, sem expressão de suas sexualidades. A partir do momento que começaram a ocupar espaços públicos, profissões, cargos políticos, com demonstração de afeto em relações não heteronormativas, passaram a existir, mesmo que de forma clandestina. O efeito colateral foi a segregação, o medo, a violência.

A cada furação mais forte, ciências do clima, mas também das engenharias arquitetônicas, traçam planos e estudos para que as populações afetadas possam resistir ou conviver com os seus efeitos. Assim, também, é com a sexualidade. Há mais ou menos dois séculos a homossexualidade dotada de afetividade e capaz de constituir família era inconcebível. Era um transtorno, verdadeira abominação. Há mais tempo, no período medieval, era pecado oficial, crime. Qual movimento promoveu a sua suposta tolerância, uma vez que ainda não podemos falar em sua aceitação plena?

Em comparação com a medição da intensidade dos furacões de 1 a 5, de acordo com a Escala Saffir-Simpson, poderíamos dizer que, sob a ótica heteromachista, a transexualidade/travestilidade é o nível máximo do furacão da sexualidade, para alguns com poder de destruição total da família clássica e/ou desconfiguração de uma sexualidade naturalizada colada no biológico, da concepção binária de gênero. Recorrendo a Beauvoir (1980), podemos questionar: o que torna um ser humano homem ou mulher? A transexualidade/travestilidade causa verdadeiro abalo sísmico nos imaculados bons costumes cisgêneros.

Como exemplo, temos o caso do bar nova-iorquino chamado Stonewall, nos Estados Unidos. Em uma época em que a homossexualidade, permeada pela ideia de ilegalidade, era considerada doença, sendo perseguida e reprimida pela ação policial, em 1969 ocorreu o que hoje conhecemos como Levante de Stonewall (Belmonte, 2009). A comunidade LGBTQIA+, devido à violência e exclusão, frequentava o referido bar como forma de resistir às intempéries de uma sociedade homofóbica.

Naquele ano, aponta Belmonte (2009), houve uma ação policial para fechar o bar, sob a alegação de que não havia permissões legais para venda de bebidas alcóolicas, mas, sobretudo, guiada pela preservação dos bons costumes. Várias pessoas LGBTQIA+ foram presas. Porém a comunidade do local do estabelecimento enfrentou as tropas policiais durante dias. Gays, lésbicas e travestis, dentre outros, tomaram as ruas, incendiaram carros, transformando o bar Stonewall em um símbolo da resistência LGBTQIA+ no mundo inteiro.

Foi a primeira vez que esse público se uniu em prol dos seus direitos. Até hoje, a data é um marco no movimento pela diversidade, sendo comemorada em diversos países, até mesmo no Brasil, tendo na Parada pela Diversidade Sexual, popularmente conhecida como Parada Gay, o seu principal símbolo. Aquele momento ficou conhecido mundialmente como o Dia do Orgulho Gay, de luta e resistência. Repressões desse tipo é fruto do que Foucault (2011) chamou de poder de polícia em torno do sexo, que surge a partir do século XVII.

Por isso, surgem os guetos LGBTQIA+, local de refúgio, resistência e articulação política em prol de direitos e dignidade, os quilombos contemporâneos da sexualidade. Quilombos, segundo Silva (2016), são comunidades negras que surgem e têm suas histórias pautadas nas lutas e resistência desses sujeitos, produzindo e mantendo uma cultura específica de povos negros. Certamente, as lutas dos sujeitos LGBTQIA+ foi e é força motriz, uma vez que agrega força política, científica e econômica.

Todo esse movimento causa medo,assim como os furacões. Os ecrãs globais trazem a transexualidade em seus estandartes, a cultura LGBTQIA+ tem destaque político, legal e econômico. Tecnologia, ciência, economia, política e religiosidade constituem um complexo terreno de disputa.


 

Jogos de verdade sobre o sexo: sexualidade em discurso e a administração dos corpos

A análise foucaultiana, longe da pretensão de narrar a evolução de uma sexualidade, buscou discutir as novas formas de ser e viver a sexualidade, seja no campo identitário, político ou científico, sendo permeada por um sistema de regras e coerções. “O projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto experiência, se entendermos por experiência a correlação numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade” (Foucault, 2014, p. 8).

O autor não busca uma história da sexualidade, mas as problematizações que a circundam, as quais fazem surgir novas práticas, e isso só é possível por meio da arqueologia. De alguma forma, a problematização da sexualidade apontou práticas sexuais saudáveis/permitidas (silenciando outras). A abordagem foucaultiana nos permite compreender os deslocamentos que o sexo e a sexualidade fizeram ao longo do tempo, sem, com isso, traçar uma linha cronológica.

Assim, podemos dividir/relacionar três momentos que merecem destaque durante a análise da história da sexualidade foucaultiana. A arserotica, ou arte erótica, durante a Antiguidade pagã, onde o sexo era concebido como fonte de prazer. Na Grécia Antiga, o sexo era concebido como suporte de iniciação ao conhecimento, com sexo e verdade ligados através da transmissão corpo a corpo. No período medieval, tem-se a concepção cristã de sexo, vinculado ao negativo, ao pecado e à morte, sendo validado apenas para fins matrimoniais e de procriação. Já na Modernidade, temos a ampliação do sexo para a sexualidade, momento em que surge o sujeito dotado de subjetividade, consciente do prazer sexual, livre (até certo ponto, e nem todas as pessoas), para usufruir diferentes manifestações de uma sexualidade até então contida, mas que jamais escapa aos dispositivos de poder que a cercam.

Aqui, interessa-nos os dois últimos períodos: Idade Média e Modernidade. Ambos concebem o sexo de formas distintas, mas que têm no sexo e na sexualidade do sujeito uma fonte de curiosidade, jamais saciada, por compreensão e controle. O traço comum na abordagem foucaultiana em torno do sexo nos dois tempos históricos é a confissão como busca da verdade. Primeiramente, os sujeitos se confessavam dentro da Igreja, para o padre, sobretudo a partir do século XVI, momento em que se deu início a colocação do sexo em discurso. A principal função da confissão era chegar à verdade. Após a confissão e decifração, constrói-se um discurso de verdade (controle).

A partir de então, começou a se implantar uma política do sexo, “[...] isto é, necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (Foucault, 2011, p. 31). Qualquer prática sexual que se distanciasse do matrimônio com fins de procriação era duramente reprimida e/ou purificada com os castigos divinos.

Não se falava em homossexualidade, histeria e pedofilia (não havia o sentimento de infância, o cuidado, logo, não eram incomuns práticas sexuais com os pequenos, não havia uma interdição e vigilância constantes como atualmente), dentre outras categorias tão comuns na contemporaneidade. A única expressão sadia e reconhecida do sexo estava restrita ao quarto do casal. A Igreja, a partir da confissão eclesiástica, conhecia as práticas sexuais dos fiéis, por isso era mais fácil regulá-las. Esse cenário caracteriza o que Foucault (2011) chamou de Dispositivo da Aliança. O discurso medieval era unitário, em torno da carne. Na Modernidade, essa unidade foi decomposta, dispersa. Aparelhos foram inventados para dele falar, para fazê-lo falar.

A partir do século XIX, com a consolidação das ciências modernas, sobretudo a psicologia, psiquiatria e psicanálise, há uma compreensão mais ampla acerca das práticas sexuais. O divã do psicólogo substitui o confessionário da Igreja. O sujeito se confessa a cada instante com diversos especialistas nos consultórios médicos. O sexo é compreendido para além do coito, surgindo novas personagens: a histérica, o homossexual, o pedófilo, o sádico, a sexualidade infantil, enfim, categorias outrora silenciadas, que agora emergem em torno do sexo matrimonial. Trata-se do Dispositivo da Sexualidade. Sujeitos que transcenderam a cópula e entraram no rol da sexualidade, devendo ter suas várias espécies classificadas.

Surge a sexualidade, mais ampla, polimorfa, líquida. Foucault a concebe como um dispositivo histórico, portanto, suscetível de variações ao longo do tempo e espaço, refletindo normas sociais vigentes, ou transgredindo-as. As pessoas transexuais/travestis de hoje não eram reconhecidas no século XVIII, embora, de alguma forma, mesmo que silenciadas, já existissem. O discurso das ciências oferecia vida às práticas até então demonizadas e silenciadas, ao mesmo tempo em que a emersão das novas categorias causava incômodo social.

As diversas ciências produziram os arquivos de prazeres, com registros infinitos,a partir da confissão dos sujeitos. A sexualidade surge como algo a ser interpretado, tendo o sexo como um terreno patológico, podendo gerar outras doenças, como é o caso da AIDS e da sífilis, dentre outras. A conduta sexual passa a ser objeto de análise e intervenção. São inúmeras as tentativas de regulação. Análise das condutas sexuais, com teias de observação nos limites da biologia e da economia. O Estado deve saber sobre as condutas sexuais das pessoas. Foucault (2011) destaca que foi a primeira vez que a sociedade afirmou que o seu futuro estava ligado ao sexo. Instituições o controlam – natalidade, saúde, demografia e economia. Mas a polícia do sexo se relaciona não com a proibição, mas por meio de discursos úteis e públicos, de gerência.

O filósofo destaca que no campo sexual o pecado cedeu lugar ao patológico, e, em nossa busca de autoconhecimento, a sexualidade, movida pela vontade de saber, é uma chave universal. O sexo se tornou algo inteligível, razão de tudo, causador de patologias. O dogma cedeu lugar à evidência científica. A Modernidade surge com uma vontade de saber sobre o sexo. Uma das formas que as ciências modernas encontraram para validar suas observações conjuntamente com a confissão, ou seja, validar a confissão científica, foi relacionar as diversas doenças ao sexo das pessoas, nas mais diferentes idades. Uniram-se os sintomas e memórias à confissão.

O cuidado de assegurar a saúde do corpo, garantindo a longevidade, a não perpetuação das doenças hereditárias, fez surgir um projeto médico, em que o sexo e o seu poder de reprodução da espécie deveriam ser administrados com fins a assegurar a saúde e preservação da espécie humana. E a primeira personagem que o Dispositivo da Sexualidade se debruçou foi sobre a mulher ociosa de família burguesa, histérica, cheia de vapores. A família burguesa, economicamente mais favorecida, foi o foco privilegiado de atuação e análise desse dispositivo. Criou-se o corpo de classe, o qual foi atribuído à classe burguesa para ser cuidado, protegido, preservado. Ao corpo, foi vinculado a vida e a morte. Essa foi uma das primeiras preocupações da burguesia, assumir o próprio corpo.

A afirmação do corpo é uma das formas de consciência de classe. A burguesia converteu o sangue azul da nobreza medieval em um corpo saudável. O sangue azul na Modernidadematerializa-se em um corpo saudável, capaz de gerar descendentes saudáveis, os quais assegurariam a transmissão dos bens, e isso só seria possível através de uma tecnologia sexual, eis o Dispositivo da Sexualidade. Toda a bagagem cultural e científica, desde a Antiguidade Clássica, permitiu, na Modernidade, a transição “[...] de uma simbólica do sangue para uma analítica da sexualidade” (Foucault, 2011, p. 161). Essa transição não necessariamente se deu de forma pacífica. O terror do holocausto, por exemplo, tem suas relações com essa política do sexo, uma vez que o nazismo se solidificou na busca e perpetuação do sangue superior, puro, justificando a morte de milhares de pessoas.

O corpo e o sexo das classes mais pobres demoram a ser reconhecidos, o que só ocorreu quando o movimento de urbanização se intensificou, ampliando as possibilidades de contaminação de doenças, até mesmo as venéreas, através da prostituição. Era preciso conter e prevenir tais enfermidades. Outro ponto que se destaca no surgimento desse corpo de classe menos favorecido é a questão econômica, que apresentava a necessidade de trabalhadores fortes e saudáveis que a sociedade industrial, que se consolidara, exigia. Assim, “[...] todo um aparelho administrativo e técnico permitiu, sem perigo, importar o dispositivo da sexualidade para a classe explorada” (Foucault, 2011, p. 138).

A sociedade, com o Dispositivo da Sexualidade, foi dotada de um corpo sexual. Uma sexualidade que foi, também, submetida à lei. Numa época em que o incesto era proibido por lei, a teoria psicanalítica de Freud, a exemplo do Complexo de Édipo, põe em xeque essas proibições. Isso mostra que a história do Dispositivo da Sexualidade está relacionada à arqueologia da psicanálise, uma vez que esta ciência vai questionar a interdição do incesto, apontando uma sexualidade reprimida.  Freud conheceu o sexo e o colocou em discurso como fonte de poder (Foucault, 2011).

As imediações biológicas do homem o colocam fora da história, ao mesmo tempo em que as técnicas do saber-poder o colocam na historicidade humana. “Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (Foucault, 2011, p. 157). A vida surge como objetivo político e o sexo como disputa política. Surge um micropoder sobre o corpo, com vigilância, controle e ordenações constantes. A sexualidade foi detalhada, incessantemente, “[...] desencavada nas condutas, perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade [...]” (p. 159). O sexo passa a ter um lugar político, ideológico e biológico.

O sexo foi além do corpo. O jogo do sexo é marcado pela presença do homem e ausência da mulher, regulando o corpo desta com o monitoramento da gravidez, no tratamento da histeria etc. Há o deslocamento do sexo-morte para sexualidade-vida. Criou-se uma teoria geral sobre o sexo e a sexualidade como um dispositivo histórico, concebido não somente como objeto de sensação ou prazer. Foi construído como fonte de verdade útil, perigosa e essencial, e essa verdade provoca medos.

A psicanálise descobriu que a sexualidade se esconde do próprio sujeito. Essa ciência, por meio da confissão, interroga-o, fazendo emergir o segredo, diferente da confissão eclesiástica, em que o sujeito era consciente. A verdade confessada precisaria de interpretação, não estando pronta na fala do próprio sujeito. A fala e a escuta, permeadas pela interpretação do psicanalista, são mecanismos que a ciência efetivou para a ciência sexual. Incompleta no que fala, completando-se no que escuta. O que escuta não será o dono do perdão, como o era outrora, mas o dono da verdade, tendo uma função hermenêutica (Foucault, 2011).

Toda essa discussão em torno da confissão como caminho para a busca pela verdade em torno do sexo configura a sociedade confessional. O sujeito que fala é o sujeito do enunciado, que se confessa a alguém que pune, vigia, analisa, oferece redenção, por isso a confissão é uma relação de poder. A enunciação da confissão produz modificação em quem anuncia, pois salva e purifica. Foi essa verdade do sexo que vigorou durante séculos, porémnão relacionada ao sexo nem ao ensino (pois a educação sexual se deteve a apontar práticas saudáveis), por isso caminhou na contramão da ars erótica (sexo como fonte de prazer), destaca o filósofo.

As verdades confessadas se distanciaram dos sábios ensinamentos da arte erótica. O discurso da confissão vem de baixo, da palavra requisitada, não de cima, do mestre, como na arte erótica. Dessa forma, a verdade é garantida pela teia de relações envolta do discurso entre aquele que fala e o que escuta. “Em compensação, a instância de dominação não se encontra do lado do que fala (pois é ele o pressionado) mas do lado de quem escuta e cala; não do lado do quem sabe e responde, mas do que interroga e suspostamente ignora” (Foucault, 2011, p. 71).  Assim, a nossa sociedade não se debruçou na transmissão do segredo, mas na confissão. A confissão ainda é a matriz de verdade sobre o sexo, apesar das transformações.

Foucault (2011) continua destacando que todo o interesse em torno do sexo é justificado pelos perigos que ele suscita, portanto é preciso controlá-lo, compreendê-lo. O discurso da ciência ainda causa controvérsia nos dias atuais. Embora a transexualidade/travestilidade não seja mais considerada uma doença, ainda é forte o movimento patológico por parte de muitos grupos.

Apesar de tê-lo discutido massivamente, classificado, validando novas categorias ao dissecá-lo a cada instante, a partir de múltiplas óticas epistêmicas, Foucault (2011) aponta que, na verdade, procurou-se mascarar o sexo, com um discurso-tela, dispersão-esquivança. A partir de uma visão purificada e neutra, a ciência era incapaz de falar do próprio sexo, buscando-se o caminho das práticas clandestinas, falando-se dos desvios, das aberrações e das extravagâncias, uma vez que a ciência moderna tinha um forte sedimento moral.


 

O biopoder, vigilância e controle

De acordo com Foucault (2011), a partir do século XVIII, o poder político passa a gerir o poder sobre a vida. Antes, o poder do soberano, do rei, assegurava-lhe o direito de morte, de matar em benefício próprio, assegurando-lhe a própria vida. Nas sociedades modernas, o poder de morte cede lugar ao poder de vida, embora algumas guerras tenham matado grande número de pessoas. Porém, o arsenal bélico, capaz de destruir toda a humanidade, é construído com a pretensão de preservar a vida da nação, de toda a população, e não mais somente a figura do soberano.

Nessa preservação da vida, o cuidado com o corpo aparece como uma das preocupações centrais. Foucault (2011) aponta dois polos dessa preocupação e cuidado: o corpo como máquina, o qual deveria ser adestrado e ter potencializadas suas aptidões, utilização de sua força e integração dos dispositivos e sistemas de controle, poder e econômico, o que o filósofo chamou de anátomo-política do corpo humano, relacionado à disciplina.  No outro polo, o corpo-espécie, relacionado aos processos biológicos de procriação, saúde e longevidade, seguindo-se por controles reguladores, trata-se da biopolítica da população. Essas duas dimensões do cuidado com o corpo podem ser traduzidas em disciplinas do corpo e regulações da população, as quais organizam o poder sobre a vida, o anatômico e o biológico.

A sujeição dos corpos caracteriza o biopoder. Do lado das disciplinas dos corpos estão instituições como o exército e a escola. Na regulação da população, a demografia. A efetivação do biopoder foi fundamental para consolidação do sistema capitalista, “[...] que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos” (Foucault, 2011, p. 153).

Dessa forma, tanto o desenvolvimento do capitalismo quanto da economia dependeu do biopoder. Com a diminuição das ameaças de morte, o desejo de vida passa a tomar o seu lugar e, pela primeira vez na história, a questão biológica se reflete na política.  Era a consolidação do poder da ciência. Em linhas gerais, o ser humano aprende a ter um corpo, a bio-história, a biopolítica. O biológico e o histórico se unem, fazendo surgirem suscitações sobre como os corpos se investiram dessa materialidade, de vida. Conforme Bertolini (2018, p. 87), de uma forma geral, o biopoder é uma maneira de governar a vida, “[...] refere-se a uma técnica de poder que busca criar um estado de vida em determinada população para produzir corpos economicamente ativos e politicamente dóceis”.

A noção de biopoder tratada por Foucault (2011) diz respeito ao controle das pessoas, controle biológico, permeando as relações entre saúde e poder, um poder de causar a vida ou devolver a morte. O biopoder não está relacionado ao poder de morte, como em outrora, mas à vida: controle de doenças, longevidade, natalidade, higiene pública, sexualidade, vacinação etc. O Estado, dessa forma, incumbe-se de assegurar a manutenção da vida, intervindo junto aos sujeitos. Várias ciências vão se debruçar sobre o corpo saudável (medicina, psicologia, pediatria, psicanálise etc.). Assim, um corpo saudável vive mais, produz mais.

De certa forma, nesse contexto, um padrão de corpo saudável é propagado ao longo do século XX, e as pessoas passam a ir em busca, sempre inalcançável, desse padrão, o qual vai mudando, lentamente, ao longo dos anos. Daí a noção de estereótipos: magreza, músculos, cor e tipo de cabelos, olhos, barriga definida etc. Os procedimentos estéticos e as cirurgias plásticas ganham força total nesse cenário. São descobertas curas para doenças mortais, outras enfermidades sem cura vão surgindo, a exemplo da AIDS.

A pandemia da covid-19, por exemplo, ilustra bem o biopoder. Repentinamente, o mundo teve que fechar as suas portas e as pessoas tiveram que ficar reclusas em suas casas por um longo período durante os anos de 2020 e 2021. O mundo parou. De uma forma geral, a população contemporânea não tinha imaginado que uma doença, uma gripe, pudesse afetar o mundo inteiro, repercutindo em diversos setores, como a economia, a educação e a saúde. Novas formas de se relacionar com as tecnologias, que já vinham em curso, consolidaram-se nesse período, que está em um continuum atualmente.

Diversas nações do planeta criaram mecanismos para vigiar e controlar as pessoas, seus passos, em um monitoramento que visava manter o isolamento social. Até mesmo aqueles que ousavam burlar as medidas sanitárias em prol da contenção do vírus eram interditos pelo poder de política do Estado, seja com prisões ou pagamento de multas. Através de aplicativos nos smartphones, o governo monitorou a população, seu tipo sanguíneo, se havia contraído a covid-19. Aos poucos, as medidas de isolamento social foram sendo flexibilizadas, mas alguns sujeitos ainda eram alvos desse monitoramento constante, a exemplo das pessoas que compunham o chamado grupo de risco.

Chegou-se a um ponto em que todos monitoravam todos, sob as regras do Estado (uso de máscaras, higienização das mãos, não frequentar ambientes com sintomas de gripe etc.). Um simples espirro, que anos antes era muito comum nas ruas e diversos ambientes, passou a ser motivo de maus olhares, perseguição e, até mesmo, exclusão. Conhecemos o trabalho remoto, a partir do qual foi possível trabalhar dentro de casa. 

Criou-se o passaporte de vacina, um documento atestando que o sujeito está vacinado. Só se tinha acesso a determinados lugares quem apresentasse esse documento. Algumas pessoas passaram pela experiência de ser barradas ao tentarem entrar em estabelecimentos por não terem tomado a vacina. Atualmente, embora no Brasil haja vacina suficiente para todas as pessoas, muitas se recusam a tomá-la. Vacinar-se virou, também, uma ação política. Nunca a atual população do mundo vivenciou de forma tão nítida o emaranhado entre política, saúde e economia, o biopoder sem disfarces. O caso da política brasileira mostra que o biopoder transcende o Poder Executivo, é como se fosse parte de uma engrenagem meio que independente. Outros setores, além da política, também o executam. A economia depende do biopoder.

Quando a Organização Mundial de Saúde (OMS), por exemplo, durante um longo período considerou que a homossexualidade (até 1990) e a transexualidade (até 2018) eram patologias, que os sujeitos investidos de tais identidades eram doentes, o que causou violência, discriminação, incompreensão e dificuldade de acesso a direitos, o biopoder também esteve presente, atuando. Em resumo, os tentáculos do biopoder estão por toda a parte, e alguns grupos são mais afetados que outros, a exemplo das pessoas de etnia não branca, LGBTQIA+ e mulheres.

 

Considerações finais

O intuito desta discussão foi apresentar uma análise em perspectiva genealógica, foucaultiana, com movimentos de idas e vindas, muitas vezes contraditórios, mas que nos ajudam a suscitar reflexões acerca desse furacão, não para nos proteger dele, tampouco controlá-lo, mas para compreender que a sua força motriz provém de múltiplas questões, dispersas e irreconciliáveis, que se unem, ao mesmo tempo em que se friccionam a cada instante, mas que são a condição sinequa non de sua existência.

Ao mesmo tempo em que, a partir da Modernidade, falou-se cada vez mais sobre sexualidade, ampliando a compreensão, fazendo surgirem novas categorias/espécies (Foucault, 2011), segregou-se ao apontar práticas saudáveis, portanto mais aceitas. Na contemporaneidade, ocorre um movimento parecido: ao mesmo tempo em que há a estandardização da cultura LGBTQIA+, da mulher trans, do homem trans, das travestis, das famílias LGBTQIA+, há a recusa, a difamação, o fortalecimento, via redes sociais, dos discursos de ódio, da nostalgia da família clássica burguesa. A cultura LGBTQIA+ é aponta como algoz da família e dos bons costumes, concepção essa que vem ganhando, cada vez mais, força política, econômica, religiosa e, até mesmo, científica.

 

Referências

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Notas



[1] Título da tese: Professores e professoras transexuais e travestis na escola: diálogos sobre formação docente e a inclusão LGBTQIA+. Pesquisa desenvolvida durante o Curso de Doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará (PPGE/UFC). Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/68442/3/2022_tese_jlmedeiros.pdf. Acesso em: 30 jun. 2024.

[2]Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/furacoes-tufoes-ciclones-que-mais-arrasaram-mundo-nos-ultimos-90-anos-19622259. Acesso em: 10 abr. 2023.

[3]Disponível em: https://www.delas.pt/por-que-razao-a-maioria-dos-furacoes-tem-nome-de-mulher/atualidade/267012/. Acesso em: 26 out. 2023.

[4] Disponível em: http://educacao.globo.com/artigo/el-nino-e-la-nina.html. Acesso em: 10 abr. 2023.