Produção curricular na Educação Infantil pós-BNCC: negociações possíveis? O movimento de reformulação curricular em Secretarias de Educação da Baixada Fluminense

 

Curriculum Production in Early Childhood Education post-BNCC: Possible Negotiations? The Curriculum Reform Movement in Education Departments of Baixada Fluminense.

 

 Producción Curricular en Educación Infantil post-BNCC: ¿Negociaciones Posibles? El Movimiento de Reforma Curricular en las Secretarías de Educación de Baixada Fluminense.

 

 

Rita de Cassia Prazeres Frangellahttps://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

rcfrangella@gmail.com

 

Thais Sacramento Mariano Teles da Silvahttps://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

thais.sacramento@hotmail.com

 

Recebido em 14 de outubro de 2023

Aprovado em 07 de abril de 2023

Publicado em 12 de julho de 2024

 

 

 

 

RESUMO

Este estudo desdobra-se de pesquisa que teve como objetivo analisar as possíveis negociações/articulações em Secretarias Municipais de Educação da Baixada Fluminense a partir do advento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), problematizando como se dá a produção curricular para a infância nas diferentes redes municipais. A pesquisa teve a Baixada Fluminense como lócus de investigação: quatro Secretarias de Educação de municípios que se localizam ao norte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Questiona-se: negociações possíveis? Como a produção curricular para a infância será pensada/articulada a partir desse movimento político? Em diálogo com os estudos de Homi Bhabha (2013), discute-se o currículo como processo de enunciação cultural. Parte-se do entendimento de que a produção curricular para a infância é campo de disputas/deslizamentos sobre os sentidos de currículo, infância, conhecimento e docência, na tensão entre demandas locais e proposições em torno de um comum universalizado. Infere-se a partir das análises que toda produção curricular é uma produção conflituosa e contingente, processo discursivo num jogo político que se quer inacabado, portanto, na (im)possibilidade de tais políticas projetarem um único sentido de infância. Defende-se que produções curriculares para a infância sejam concebidas na alteridade, como experiência com e na diferença. 

 

Palavras- chave: Currículo; Infância; Política curricular (BNCC).

 

ABSTRACT

This study stems from research that aimed to analyze possible negotiations/articulations in Municipal Education Departments of Baixada Fluminense following the advent of the National Common Core Curriculum (BNCC), problematizing how curricular production for early childhood occurs in different municipal networks. The research focused on Baixada Fluminense: four Education Departments of municipalities located in the northern region of the Metropolitan Region of Rio de Janeiro. The question is raised: possible negotiations? How will curricular production for early childhood be thought/articulated within this political movement? In dialogue with the studies of Homi Bhabha (2013), the curriculum is discussed as a process of cultural enunciation. It is understood that curricular production for early childhood is a field of disputes/slippages concerning the meanings of curriculum, childhood, knowledge, and teaching, in the tension between local demands and propositions around a universalized common. Inferred from the analyses is that all curricular production is a conflicting and contingent process, a discursive process in a political game that is intended to be unfinished, therefore, in the (im)possibility of such policies projecting a single sense of childhood. It is argued that curricular productions for early childhood should be conceived in alterity, as an experience with and in difference.

Keywords: Curriculum; Childhood; Curricular Policy (BNCC).

 

RESUMEN

Este estudio se deriva de una investigación cuyo objetivo fue analizar posibles negociaciones/articulaciones en las Secretarías Municipales de Educación de la Baixada Fluminense tras la aparición de la Base Nacional Común Curricular (BNCC), problematizando cómo se da la producción curricular para la primera infancia en diferentes redes municipales. La investigación se centró en la Baixada Fluminense: cuatro Secretarías de Educación de municipios ubicados en la región norte de la Región Metropolitana de Río de Janeiro. Se plantea la pregunta: ¿negociaciones posibles? ¿Cómo se pensará/articulará la producción curricular para la primera infancia dentro de este movimiento político? En diálogo con los estudios de Homi Bhabha (2013), se discute el currículo como un proceso de enunciación cultural. Se parte del entendimiento de que la producción curricular para la primera infancia es un campo de disputas/deslizamientos en relación a los significados de currículo, infancia, conocimiento y enseñanza, en la tensión entre demandas locales y proposiciones en torno a un común universalizado. Se infiere a partir de los análisis que toda producción curricular es un proceso conflictivo y contingente, un proceso discursivo en un juego político que se pretende inacabado, por lo tanto, en la (im)posibilidad de que tales políticas proyecten un único sentido de la infancia. Se argumenta que las producciones curriculares para la primera infancia deben concebirse en la alteridad, como una experiencia con y en la diferencia

 

Palabras clave: Currículo; Infancia; Política curricular (BNCC).

 

Introdução

Este estudo desdobra-se de pesquisa que teve como objetivo analisar as possíveis negociações/articulações em Secretarias Municipais de Educação da Baixada Fluminense a partir do advento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), problematizando como se dá a produção curricular para a infância em diferentes redes municipais.

A pesquisa teve a Baixada Fluminense como lócus de investigação e desenvolveu análises do processo de produção curricular de quatro Secretarias de Educação de municípios que se localizam nessa área, ao norte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro: Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis e Belford Roxo. Estudar essa região como espaço/local de cultura é, sobretudo, salientar uma análise a partir da produção dos fluxos culturais em âmbito periférico que colaboram para o entendimento sobre as (res)significações advindas da produção/articulação/negociação curricular em cada município fluminense. Questiona-se: negociações possíveis? Como a produção curricular para a infância será pensada/articulada a partir desse movimento político?

O estudo em tela insere-se numa trajetória de pesquisas que vem observando como a significação para infância, currículo, docência, conhecimento vem sendo disputada nas políticas curriculares contemporâneas, num contexto de recrudescimento de políticas públicas educacionais universalizantes e homogeneizante. Assim, voltamo-nos para o contexto de produção curricular para infância que foi instituído pela promulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que tomamos como um projeto homogeneizador e impositivo que tenta fixar sentidos para a produção de sentidos com/nas políticas curriculares para infância.

Tomamos as Secretarias Municipais de Educação da Baixada Fluminense como produtoras de cultura, produtoras de currículos para infância, na riqueza dos fluxos tradutórios pela/na negociação em articular com suas Redes de Ensino o movimento que denominamos de reformulação curricular.

As análises empreendidas nesse estudo se desenvolvem a partir referenciais pós-estruturais e pós-coloniais, em especial com a obra de Homi Bhabha (2013) em sua formulação sobre a cultura como enunciação, uma produção híbrida. Dessa forma, quando tomamos a cultura como enunciação, ela passa a ser lida como produção simbólica do mundo; não há uma cultura pura, e sim fluxos culturais, de modo que não há acesso a uma verdade essencial, o processo de significação se dá como movimento nas negociações, articulações com/pela diferença.

 Assim, tomamos desse autor as noções de negociação e tradução como movimento que provoca deslocamento de sentido dada a impossível literalidade.  A significação é um processo discursivo rasurado pela diferença, que não produz uma significação apaziguadora e estabelecida de forma absoluta; ela é sempre contingente e contextual, negociada na/com as diferenças, que mobilizadas, se movem num entrelugar de produções híbridas e tornam inócuas qualquer reivindicação de origem.  Daí que, ao dialogarmos com tais referenciais, asseveramos que as políticas envolvem processos de negociação e luta nos diferentes contextos em que se estabelecem; nesse sentido, a BNCC, ainda que normativa, é uma política curricular que está em meio a esse processo de negociação. Lemos a política como produção discursiva; portanto, defendemos que as orientações nacionais dessas políticas não menosprezem os limites e as possibilidades de cada município de (res)significar tais orientações, uma vez que sentidos em embates vão sendo (res)significados ao longo do próprio processo político curricular, elas são (res)significadas como num jogo, abertas à negociação.

Discutir a produção curricular para a infância a partir da BNCC exige discutirmos os mecanismos coercitivos de um documento normativo que “tenta” estabelecer um ponto de partida fixo para a elaboração de diretrizes políticas com ações de direcionamentos curriculares também fixos que determinam o que e como fazer no trabalho com as crianças pequenas. A BNCC é uma política que disputa sentidos de infância ao estabelecer ritmos e formas para o desenvolvimento infantil a partir das ações pedagógicas/curriculares. Entendemos as proposições curriculares para infância como rastros de diversas forças para hegemonizar tais sentidos em disputa (de criança e infância). Aí reside a importância da tradução, na apropriação da proposição de Bhabha (2013): a leitura desse movimento político complexo como uma (re)escrita que se tece pela/na diferença, em que sempre haverá o resquício do intraduzível. Dessa forma, a BNCC, por essa ótica, será lida, questionada e traduzida não como uma reescritura de um texto original, mas por meio de uma (re)leitura cheia de atravessamentos de um texto que sobrevive; nas palavras de Bhabha (2013), um texto que é por sua vez traduzível e intraduzível.

Pensar pós-estruturalmente nos faz repudiar toda e qualquer vinculação desse estudo a uma perspectiva teórico-metodológica que intente o fechamento de sentidos desconsiderando que esse movimento é provisório e sempre contestado. Como sugerem Tedeschi e Pavan (2017), trata-se da compreensão metodológica que procura contextualizar, analisar, problematizar, modificar verdades singulares, de modo que o que vale como verdade torna-se objeto de disputa (p. 3). Assim, a partir de um referencial teórico-metodológico pós-estrutural, lançamo-nos no movimento de analisar como se processa a negociação entre normativas gestadas no âmbito nacional na articulação com a produção local de políticas curriculares. A pesquisa, a partir de sua feição pós-estrutural e discursiva, se volta para observar os rastros discursivos desse movimento de produção curricular, valendo-se de diferentes estratégias de pesquisa que, entrecruzadas, nos permitem analisar as disputas pela significação do currículo, um caminho complexo, que envolve diferentes contextos de produção. Nesse artigo, trazemos um recorte da pesquisa focalizando os fluxos tradutórios nas ações das Coordenadorias de Educação Infantil das Secretarias Municipais de Educação dos municípios que compõe o corpus de análise da pesquisa.

Objetivamos compreender como as equipes vão negociando a revisão de suas propostas curriculares em âmbito local a partir da BNCC em meio aos seus trabalhos cotidianos. Assumimos as Coordenadorias de Educação Infantil não como aquelas que irão orientar/instruir os trabalhos com as crianças na Educação Infantil de suas redes de ensino, mas como aquelas que têm ação em processos democráticos e agonísticos de negociação, como “uma instância relacional – dialógica – em que é possível institucionalizar, produzir, reproduzir, modificar uma posição discursiva do sujeito” (Mendes, 2016, p. 7).

Assim, trazemos as respostas ao questionário on-line que foi enviado para cada coordenadoria como uma estratégia investigativa que nos possibilitou captar os indícios discursivos desse processo de produção curricular. Como evento discursivo, o questionário perde o sentido de “totalizador” do ponto de vista de trazer uma única e absoluta verdade no contexto de análise dessa produção de currículos na Educação Infantil, pois torna-se também um integrante constitutivo desse jogo político em prol da significação da infância no contexto da reformulação curricular.

Por fim, arguimos sobre a necessidade de (re)pensar as tensões vividas nas redes investigadas, defendendo uma relação agonística em que lutas se travam pela disputa política em um espaço discursivo democrático e pluralista cujas regras são partilhadas, mas passíveis de mudanças no processo de significação, dada a impossibilidade e a incompletude de toda a cadeia discursiva.

Afinal De Que Currículo Estamos Falando?

A partir dos diálogos teóricos anunciados, pensamos as políticas curriculares como espaço de criação, de enunciação e de diferença. Assim, as políticas curriculares são enunciações que se movimentam na disputa pela significação. Não são produções para a escola, da escola, mas condições culturais que borram as fronteiras que tentam delimitar o dentro/fora, o que cabe onde. Esse terreno de produção que é o currículo é marcado pela ambivalência entre a iteração de discursos da tradição e uma dimensão performática, que rasura a tentativa de manutenção de um sentido porque se dá como diferimento.

Nessa linha argumentativa, rompemos com uma concepção fixa de currículo, salientando as negociações que tensionam e se hibridizam na formulação curricular, evidenciando a condição de processo político inacabado, em sua condição de produção cultural.

Defendemos uma perspectiva de política curricular não para, mas com a infância, que valorize a alteridade, as relações híbridas, a ambivalência na articulação com a diferença, que traga a primazia de ser criança pelo duplo movimento que, por meio de práticas pedagógicas, possibilite o enunciar das crianças, de suas ideias, desejos, narrativas, imaginação e brincadeira nas relações sociais.

Criticamos veementemente a centralização curricular nas políticas curriculares da/para em infância em curso no Brasil. Trazer ao debate a BNCC como política normativa nos faz ressaltar que a discussão que propomos não se dá na negação de produções curriculares para infância, o que refutamos é uma estrutura curricular que apaga a infância por delimitar suas narrativas, seus fazeres, suas leituras de mundo. Portanto, justamente ações como essencializar, estereotipar, universalizar – como marcas de um caráter regulatório e ao mesmo tempo excludente por não possibilitar as diferenças – tornam-se marcas da BNCC para a Educação Infantil.

A BNCC, em sua trajetória produção/promulgação, se torna uma política instituinte de currículos, uma espécie de “política catalisadora de currículos” que, por meio de um processo político discursivo, “tenta” viabilizar a ideia de “salvação” no combate à falta de qualidade na educação brasileira,  propiciando de certa maneira um encadeamento normativo no contexto nacional – como uma tentativa de regulação e controle curricular (LOPES, 2017). Para Macedo (2017), a BNCC se constitui como mais uma busca por fixação hegemônica, “uma maneira agressiva de privação para pensar a necessidade de normatividade para educação na forma de currículo” (p. 514).

A normatividade é, então, mobilizada discursivamente pelo enfoque dado ao “nacional”. Portanto, é a ideia de um denominador simbólico, de um “sujeito nacional” que faz com que a política busque suprir necessidades impostas no processo de busca pelo êxito educacional” (AFONSO; RODRIGUES; FRANGELLA, 2021, p. 11).

Ao trazermos essa concepção de normatividade, problematizamos esse movimento político como uma tentativa de estabilização educacional que, por meio do significante “qualidade”, dissemina em âmbito nacional a universalização homogeneizante de acontecimentos e experiências infantis. Recorremos a Butler (2003) na tentativa de compreender a função e o papel da normatividade nas políticas, que fragilmente se compõe como “fruto de fabricações sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos e que tende a obscurecer o próprio ideal regulador” (p. 12). Portanto, nessa perspectiva de análise, interessa-nos problematizar esse caráter inteligível presente no discurso curricular que tenta fixar sentidos para a infância por meio da ótica escolarizada. Nos termos propostos, importa-nos investigar como a política curricular da BNCC busca determinar a inteligibilidade do social, tentando fechar as fissuras tradutórias no movimento da Educação Infantil enquanto proposta de reformulação curricular para a infância. Pensar essa articulação entre normatividade e produção curricular na/para infância via BNCC como métrica normativa curricular para qualidade da Educação Infantil nos impulsiona a ressaltar a importância de uma análise que se detenha numa nas articulações dessa disposição geral com a produção em contextos locais: daí a questão: negociações possíveis?

 

Agora, com a voz, as secretarias municipais de educação da baixada fluminense: pelo direito de narrar

Na emergência de captar os rastros que se tecem a partir do processo discursivo provocado/imposto pela BNCC para a produção curricular para a infância argumentamos que dar voz às SEMEDs da Baixada Fluminense é uma defesa do “direito de narrar” (Bhabha, 2014). O texto intitulado O direito de narrar, de Homi Bhabha (2014), muito nos ajuda a refletir sobre a problematização acerca da normatividade impositiva que observamos na análise da BNCC e enseja o direito de vez e voz da/na periferia nesse contexto produção curricular – não como narração novelística, “drama” nas palavras de Bhabha, mas sim como processo enunciativo que autoriza a (re)contação, a (res)significação – no caso específico de nossa pesquisa, as vozes da periferia (BHABHA, 2014).

É, sobretudo, optar por uma estratégia que desconstrua o conceito de lugar periférico como aquilo que é precário, carente e desprivilegiado, que desestabilize de certo modo o consenso do lugar como bloco homogêneo. 

Ao trazermos à cena a produção de currículos nas periferias nas quais se localizam as SEMEDs da Baixada Fluminense, ressaltamos a importância de observar essa produção como processos cotidianos de produção de cultura que envolvem relações de poder em que são negociadas diferenças, em que sujeitos culturais estão ali a todo momento com seus múltiplos pertencimentos. É justamente pelos engajamentos individuais/coletivos nesses fluxos culturais que emergiram possibilidades para nossa investigação; é o que faz do “direito de narrar” (BHABHA, 2014, p. 1) muito mais que um ato linguístico, uma metáfora; é ação comunicativa, direito enunciativo e dialógico, de dirigir e ser dirigido, de significar e ser interpretado respeitosamente. 

Ao discutir a relação BNCC com contextos locais nos afastamos da ideia de “implementação”, como movimento/processo político verticalizado, em que propostas curriculares são previamente elaboradas e estruturadas por um guia. Assim, ao encaminharmos nossas proposições de análise por meio da perspectiva discursiva, argumentamos que a política necessita ser pensada como contingencialmente produzida, não se resumindo à execução de documentos oficiais previamente desenvolvidos. 

É dessa forma que a BNCC, enquanto documento normatizador, tenta fixar sentidos para a infância, ao encaminhar processos de subjetivação por meio de estratégias de “implementação predefinidas”, assentando-se na ideia de implementação.

 

Os rastros discursivos do jogo político da reformulação curricular: fluxos tradutórios nas ações das SEMEDS pelas coordenadorias de educação infantil

Pensar as políticas curriculares para infância como instância de produção de significados envoltos pela/na negociação e disputa do sentido de criança e infâncias no currículo possibilita-nos afirmar que é pela luta por poder e hegemonia que se consubstanciam as propostas referentes à reformulação curricular na/para a Educação Infantil com o advento de uma base curricular.  

Objetivando por em análise a negociação entre normativas gestadas no âmbito nacional com a produção local de políticas curriculares elegemos como foco os fluxos tradutórios nas ações das SEMEDs pelas das Coordenadorias de Educação Infantil. 

O papel da Coordenadoria de Educação Infantil no âmbito das Secretarias Municipais de Educação assume a tensão entre universal/particular na produção curricular na primeira infância e passa neste estudo a ser disparadora da discussão sobre os diferentes contextos de produção de políticas de currículo. Ressaltamos nossa compreensão da função/papel das Coordenadorias de Educação Infantil nas SEMEDs não como aquelas que irão orientar/instruir os trabalhos com as crianças na Educação Infantil de suas redes de ensino, mas como aquelas que têm ação em processos democráticos e agonísticos de negociação. Como interlocutoras da pesquisa, as Coordenadorias e seus técnicos (sujeitos da pesquisa nas SEMEDs) contribuem, com seus distintos pertencimentos, tendo nas narrativas que os constituem o sujeito técnico/docente na SEMED; portanto, neste estudo como sujeitos produtores de currículo.  

Para tanto, a pesquisa se valeu de diferentes estratégias investigativas. Nesse texto, enfatizamos as narrativas das SEMEDs a partir de questionários on-line respondidos pelas equipes técnicas que nos permite observar os rastros dos movimentos de produção curricular desenvolvidos nas diferentes redes municipais buscando compreender como as equipes vão negociando a revisão de suas propostas curriculares em âmbito local a partir da BNCC em meio aos seus trabalhos cotidianos, as articulações/negociações que aconteceram ou deixaram de acontecer, sobre o que foi sendo tensionado e deixado à mostra nesse movimento de reformulação curricular para a Educação Infantil nas SEMEDs da Baixada Fluminense a partir da BNCC.

A solicitação para a participação das Coordenadorias de Educação Infantil na pesquisa foi feita seguindo as orientações disponibilizadas nos canais oficiais das prefeituras/secretarias. Foram apresentados a todas o projeto de trabalho, a carta de apresentação do Programa de Pós-Graduação em Educação e o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). O desafio de um questionário aberto nos trouxe possibilidade de (re)leitura desse jogo político em que sentidos são tecidos cotidianamente na produção curricular de cada rede. O questionário foi composto por 4 eixos temáticos:

·       eixo 1: voltado para questões macro da política nacional curricular BNCC e seus desdobramentos locais questiona como as SEMEDs (res)significam o sentido de trabalho na articulação com suas redes de ensino após o advento da Base Comum na Educação Infantil;

·        eixo 2: voltado para questões de como as Coordenadorias de Educação Infantil desenvolvem/organizam suas propostas curriculares para a Educação Infantil à luz da BNCC junto às suas Redes de Ensino;

·        eixo 3: como as Coordenadorias de Educação Infantil (res)significam o atual cenário curricular para infância no pós-BNCC;

·        questões gerais: observações que as SEMEDs, pelas óticas das suas Coordenadorias de Educação Infantil, compartilham sobre o processo da reformulação curricular na Educação Infantil do município.

Nesta seção entrecruzamos as respostas de cada Coordenadoria de Educação Infantil que compõem o corpus empírico deste estudo a partir das respostas ao questionário on-line enviadas pelas SEMEDs dos municípios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Nilópolis e Nova Iguaçu, todos pertencentes a Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro. Dos 4 municípios envolvidos na pesquisa, Nilópolis não respondeu ao questionário. Utilizaremos para representação de cada órgão gestor nas SEMEDs as letras A, B e C, mantendo o anonimato acordado no TCLE.

Assim, lançamos à procura dos rastros discursivos que nos levem ao entendimento de como as Coordenadorias de Educação Infantil (res)significam seu trabalho pela/na articulação com sua rede de ensino com a BNCC. 

Sobre o trabalho pedagógico que as Coordenadorias de Educação Infantil e como esse é ressignificado, essas nos dizem...

Coordenadoria A – É um trabalho em construção, pois muitas escolas da rede trabalham de acordo com os marcos referenciais da Educação Infantil, porém outras ainda realizam práticas pedagógicas na EI (principalmente a pré-escola) como um preparatório para o Ensino Fundamental, com práticas tradicionais. 

 

Coordenadoria B - O trabalho pedagógico na Educação Infantil é voltado para práticas pedagógicas que valorizem as crianças em sua singularidade, incentivando a autonomia e identidade de cada uma. Estimulando a socialização entre os pares. E respeitando os Direitos Básicos de Aprendizagem. 

 

Coordenadoria C - A Coordenadoria de Educação Infantil busca garantir à criança o direito à educação por meio do acompanhamento das práticas docentes que se efetivam no cotidiano das creches, dos CCAIC e das escolas municipais que atendem as crianças de 1 a 5 anos em nossa Rede Municipal de Ensino. O trabalho da equipe visa sugerir, orientar e incentivar as equipes diretivas e os professores e professoras, práticas através das quais as crianças vivenciem experiências nas dimensões histórica, científica, ambiental e cultural, com o entendimento de que elas são um sujeito ativo no meio social do qual fazem parte. 

A equipe levanta as demandas nas unidades escolares para propor os temas das formações continuadas dos profissionais que atuam na Educação Infantil, promovidos em parceria com o [órgão da estrutura da SEMED][1]; propõe políticas públicas para a Educação Infantil; realiza assessoria e acompanhamento de práticas pedagógicas que contemplam o desenvolvimento integral das crianças nos aspectos cognitivos, socioafetivo, cultural e nutricional. 

 

A função desempenhada pelas Coordenadorias, na interlocução com suas redes de ensino, é marcada pela tensão e expõe a incompletude do processo político de (re)construção dessa política curricular; o que torna relevante um acontecimento narrado na resposta da Coordenadoria A acerca “trabalho em construção”:  por mais que a BNCC “tente” organizar um currículo comum como tentativa de reprimir as possibilidades alternativas, tal processo nunca será pleno, uma vez que novas (res)significações que podem se constituir em zonas de escape daquilo que foi estabelecido. Tal situação acarreta de certa maneira a preocupação da Coordenadoria sobre tais “escapes” trazerem como (res)significação para o trabalho na Educação Infantil de sua rede por algumas escolas uma proposta como preparatório para o Ensino Fundamental com “práticas tradicionais”. 

O sentido de trabalho na Coordenadoria B é (res)significado com base na ótica legal do trabalho pedagógico (amparada nas leis e diretrizes que direcionam o trabalho na Educação Infantil), quando ele se volta para práticas pedagógicas institucionalizadas que respeitem sobretudo os Direitos Básicos de Aprendizagem. Inquirimos sobre que sentidos tem um trabalho que garanta na Educação Infantil os Direitos Básicos: uma questão de representação da política oficializada a partir dos ideiais normativos da BNCC? 

Na interseção com suas unidades escolares, a Coordenadoria C (res)significa o seu trabalho a partir das demandas provenientes do/no cotidiano da Educação Infantil, sinaliza a necessidade de futuras formações continuadas de seus profissionais, visando sobretudo uma assessoria que contemple propostas para um trabalho que propicie um desenvolvimento qualitativo das crianças e que garanta, assim, o direito à educação através do qual “as crianças vivenciem experiências nas dimensões histórica, científica, ambiental e cultural, com o entendimento de que elas são um sujeito ativo no meio social do qual fazem parte”.  

Essas tensões, que competem à atuação das Coordenadorias, retratam o sentido da política negociada via coordenação pedagógica como manifestação provisória dada à condicionalidade transitória desses movimentos de produção de sentidos na construção curricular

No que compete ao desenvolvimento/organização das Coordenadorias de fomentar, a partir da proposta de reformulação curricular na Educação Infantil demandada pela promulgação da BNCC, o seu movimento de produção curricular local, as coordenadorias relatam como se desdobrou o processo:

Coordenadoria A - No ano de 2017 as unidades escolares foram envolvidas em discussões e grupos de estudo a respeito da BNCC e sua implementação. Em 2018, esse movimento se amplia e as escolas realizam suas contribuições para a construção da proposta curricular municipal. Em 2019, o documento foi formulado e finalizado, tendo seu lançamento oficial no ano de 2020. 

Coordenadoria B - Reformulação curricular: apresentação e construção do currículo e implementação da BNCC foi feita através de assessorias com todos os gestores, supervisores e três professores por escola das unidades que ofereciam Educação Infantil em 2019. 

 

Coordenadoria C - A reestruturação curricular no município se deu em um processo participativo na rede de ensino e trouxe contribuições advindas de estudos e de discussões dos profissionais que atuam nas unidades escolares, em encontros organizados pela Secretaria Municipal de Educação.  

A matriz curricular da Educação Infantil foi organizada em um formato que respeita as especificidades e os documentos de base dessa etapa. Nele, se buscou assegurar os direitos de aprendizagem e desenvolvimento integral a todos os bebês e crianças das nossas instituições, respeitando suas singularidades, e a diversidade de realidades socioeconômicas, culturais, étnico-raciais e geográficas, no território de Duque de Caxias. 

 O documento referencia a Proposta Curricular para a Educação Infantil de Duque de Caxias (2012) e fundamenta-se no que preconiza a Constituição Federal (1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/96), o Parecer do CNE/CEB nº 20/09, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). 

A metodologia desta proposta estabelece que a criança seja o centro do planejamento curricular e aponta como eixos estruturantes das práticas pedagógicas dessa etapa da Educação Básica as interações e a brincadeira. O documento assegura também os direitos de conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer-se, expressos na BNCC como Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento na Educação Infantil. 

Observamos que as Coordenadorias assumem o protagonismo de coordenar o processo de reformulação curricular mediante processo dialógico que se amplia envolvendo “assessorias com todos gestores, supervisores e professores por unidades que ofereciam Educação Infantil em 2019” (COORDENADORIA, B); “escolas realizam suas contribuições para a construção da proposta curricular municipal” (COORDENADORIA A); “a reestruturação curricular no município se deu em um processo participativo na rede de ensino e trouxe contribuições advindas de estudos e de discussões dos profissionais que atuam nas unidades escolares, em encontros organizados pela Secretaria de Educação” (COORDENADORIA C). Há uma ênfase nesse diálogo com as redes, mas que é atravessado pela demanda de alinhamento à BNCC.

Cabe discutir a complexidade da produção política de tal movimento deflagrado pela Base e a forma como cada Coordenadoria assume esse movimento de reestruturação curricular, a partir do que chamaria “protagonismo de gestão”, que desliza para a ideia de “implementação” – um certo “controle” sobre esse processo político na produção curricular pelo movimento de “implementação” – de coordenar por meio de ações administrativas/pedagógicas o desenvolvimento da produção curricular nas escolas. 

Quando chamamos atenção sobre a ideia de “implementação” , tão presente nas falas/narrativas de nossos interlocutores observamos que tal ideia se desdobra do processo pós-promulgação da BNCC e que repercute em âmbitos locais como nas SEMEDs. Tal inferência se dá decorrente da análise de materiais que compuseram o corpus empírico de análise da pesquisa, no caso, análise documental que se dedicou a leitura, entre outros, do Guia de Implementação da Base (2018), do Programa de Apoio a Implementação da BNCC/ Pro-BNCC (Brasil, 2018) que destinou verbas e criou uma estrutura de trabalho de forma a apoiar a implementação da Base.

Buscando compreender essa formação discursiva perguntamos: “Como a equipe da Educação Infantil descreveria o atual cenário curricular para a infância após a BNCC?” 

Coordenadoria A - É complexo. A Educação Infantil é marcada, pré-BNCC, por documentos oficiais que ampliavam as propostas e experiências para as crianças, como Referenciais e as Diretrizes, por exemplo. Com o advento da Base, muitas questões se tornam alvo de reflexão nesta equipe: a questão dos direitos de aprendizagem apareceram nesse documento como uma novidade, dando a entender que os direitos não existiam antes disso; os campos de experiência são colocados como estanques, como se fossem dissociados, quando na verdade as experiências se conectam, se atravessam e constituem o sujeito, culminando no desenvolvimento integral do mesmo. A limitação etária dos objetivos de aprendizagem limita a possibilidade de o professor adequar o currículo e as características de suas crianças, universalizando-as como se fossem sujeitos homogêneos. Há muitas questões relacionadas à BNCC e principalmente à interpretação e implementação desse documento ainda a se discutir. 

Coordenadoria B - Estamos caminhando em uma perspectiva de valorização da infância. Nossos profissionais são orientados pela Semed para trabalhar práticas pedagógicas voltadas para a interação e brincadeiras. Sempre utilizando propostas lúdicas e proporcionando um ambiente alfabetizador. Todo trabalho é fundamentado na BNCC e em seus cinco campos de experiência. 

Coordenadoria C - Entendemos que ainda há um caminho a ser percorrido para que o trabalho na Educação Infantil seja compreendido como um processo educativo que tenha a criança em sua centralidade, que a considere sujeito ativo na construção de saberes e que se afaste de uma prática pautada em conhecimentos sistematizados. Nesse sentido, consideramos que os direitos de aprendizagem expressos na BNCC são uma importante contribuição do documento na organização de um trabalho pedagógico que respeite as crianças pequenas em suas especificidades, garantindo seu direito de brincar, de se expressar por meio de diferentes linguagens, de estabelecer interações com outras crianças e adultos e dessa forma vivenciar, no espaço de Educação Infantil, experiências significativas que possibilitem seu pleno desenvolvimento. 

Porém, a não compreensão dos campos de experiência como um caminho de ampliação das possibilidades de interação das crianças com diferentes saberes, de forma integrada, e a organização de objetivos de aprendizagem específicos por faixa etária, tal qual se apresentam na BNCC, podem levar a uma fragmentação do trabalho nessa etapa da Educação Básica. 

A resposta da Coordenadoria A sintetiza a questão: “É complexo”. Discutir a complexidade da produção política curricular na qual as Coordenadorias de Educação Infantil estão imersas é no mínimo desafiador, tensão entre os acordos e ajustes de uma política que visa fixar sentidos e a busca por uma política negociada com e pelas redes de ensino em que se inserem. 

Tais demandas e tensões são veiculadas pela narrativa citada, sobretudo num contexto em que produções documentais orientam e vinculam propostas para produção curricular que permitem vislumbrarmos, pela resposta, a divisão de uma concepção de criança e infância como num pré e no pós-BNCC. Tal assertiva se consubstancia na resposta da Coordenadoria A como se houvesse um sentido de criança e suas infâncias antes da Base e depois dela. 

Por essa prerrogativa, há questões que trazem à tona a tensão envolta nessa “nova” organização curricular.  “Com o advento da Base, muitas questões se tornam alvo de reflexão nesta equipe” (Coordenadoria A), no caso, os Campos de Experiência e os Direitos de Aprendizagem, são destacados e problematizados:

Coordenadoria A: Os campos de experiência são colocados como estanques, como se fossem dissociados, quando na verdade as experiências se conectam, se atravessam e constituem o sujeito, culminando no desenvolvimento integral do mesmo. A limitação etária dos objetivos de aprendizagem limita a possibilidade de o professor adequar o currículo e as características de suas crianças, universalizando-as como se fossem sujeitos homogêneos. Há muitas questões relacionadas à BNCC e principalmente à interpretação e implementação desse documento ainda a se discutir.

Coordenadoria C: Nesse sentido que os direitos de aprendizagem expressos na BNCC são uma importante contribuição do documento na organização de um trabalho pedagógico que respeite as crianças pequenas em suas especificidades [...]. Porém a não compreensão dos campos de experiência como um caminho de ampliação das possibilidades de interação das crianças com diferentes saberes de forma integrada e a organização de objetivos de aprendizagem específicos por faixa etária, tal se apresentam na BNCC, podem levar a uma fragmentação do trabalho nessa etapa de Educação Básica.

Os questionamentos feitos permitem observar que se, por um lado, a BNCC aqui compreendida como política instituinte de currículo, assume nesse cenário curricular “pretenso controle” e regulação das produções curriculares em processos de reformulação alinhadas às suas determinações, no trabalho das Coordenadorias, ela foi (res)significada a partir do sentido de trabalho pedagógico de seus sujeitos para articular não apenas no âmbito da Coordenadoria, mas também com suas redes, demandas locais, saberes e experiências curriculares nesse contexto politico.

Um processo marcado pela ambivalência. O que cada Coordenadoria de Educação Infantil compartilha como observação sobre o processo de reformulação curricular se consubstancia nos sentidos em embate, que oscila entra institucionalização da Base e resistência muitas vezes em forma de escapes de sua rede de ensino à política curricular em voga

Coordenadoria B: Nossos profissionais são orientados pela Semed para trabalharem práticas pedagógicas voltadas para a interação e brincadeiras, sempre utilizando propostas lúdicas e proporcionando um ambiente alfabetizador. Todo trabalho é fundamentado na BNCC e em seus cinco campos de experiência

Ao relatarem o processo de reformulação curricular na Educação Infantil em seus municípios, as equipes da SEMED nos contam:

Coordenadoria A: O currículo é vivo, portanto precisa ser reformulado com frequência. Nessa perspectiva, em nosso entendimento, a rede encontra-se em processo de construção da identidade da Educação Infantil […], através de projetos de formação continuada que culminarão numa reformulação curricular pensando nas especificidades das crianças de cidade. 

Coordenadoria B: Estamos investindo em formações pedagógicas, guias mensais com temas e troca de experiências em visitas, pois entendemos que existe uma resistência cultural muito grande em relação ao currículo novo. 

Coordenadoria C: Temos agora o grande desafio da implementação da proposta curricular em nossa rede municipal de ensino, considerando que através do diálogo com os profissionais que atuam nas unidades será possível o estudo e o aprofundamento das concepções que regem o documento, assim como a efetivação da matriz curricular no trabalho pedagógico desenvolvido no cotidiano das escolas, creches e CCAIC, possibilitando que meninos e meninas da Educação Infantil vivenciem, por meio de projetos de trabalho construídos com eles e para eles, experiências que os atravessem e sejam marcantes em suas vidas. 

Consideramos que esse desafio será possível por meio do envolvimento dos profissionais que atuam na Educação Infantil em ciclos formativos e de assessoramento propostos pela Secretaria Municipal de Educação e pelas unidades de ensino. 

É justamente  essa indagação que nos permite problematizar como o processo de produção curricular é singular, marcado pela diferença. Uma forma de falar da diferença é a preocupação das Coordenadorias sinalizarem não somente as ações orquestradas por elas nesse cenário com a BNCC, mas de também apontar o como (res)siginificam o currículo por meio dos projetos de formação continuada e até mesmo de sinalizar a resistência por grande parte de sua rede ao currículo novo.  

Assim, o próprio entendimento de currículo e função da coordenadoria de Educação Infantil sofre constantes traduções e interpretações, especificamente na tensão entre o que precisa ser feito como ação de articulação nessa dada produção pós-Base quanto à necessidade de negociar essa produção curricular mediante resistências, demandas locais, trajetórias curriculares dos próprios municípios. Para Derrida (2001), não há texto ou discurso original, mas sim significações constantes por meio das traduções. Portanto, ao lermos as respostas a partir dessa perspectiva, pensamos as experiências das/nas coordenadorias como práticas tradutórias.

Considerações ainda que contingenciais 

Assim, nesta trajetória de produção curricular a partir das SEMEDs como contextos locais de produção, compreendemos a leitura/significação da política como impossível de acessar um dado sentido original; a própria política é aqui compreendida como tradução. O que se apresenta aqui são resultados (sempre parciais e contingentes) de um estudo que, orientado por uma perspectiva que articula política, cultura e currículo, busca problematizar a ideia de padronização de políticas curriculares e do fechamento dos sentidos em embates, como ameaça à produção infantil, significada não como menoridade, mas alteridade e diferença.

Retomamos a pergunta que impulsionou o estudo: “Discutindo as políticas curriculares na primeira infância: o que é negociável com a chegada da BNCC nas SEMEDs da Baixada Fluminense?”

Ao nos debruçarmos na análise dos processo deflagrado pela promulgação da BNCC de produção de propostas curriculares alinhadas a BNCC, tomamos as Coordenadorias de Educação Infantil nas SEMEDs de quatro municípios da Baixada Fluminense e nesse encontro observamos como essas instâncias assumem um papel mediador no processo de reformulação das propostas curriculares, num cenário político que investe numa perspectiva de centralização, via controle do processo de organização curricular operado pela BNCC. O intento de centralização curricular, de produções “comuns” operam como força coercitiva nos contextos locais e tentativa de bloquear a produção de alternativas curriculares gestadas em contextos locais. Isso não significa, em nossa argumentação, o investimento em binarismos e polarizações, mas enfatiza a defesa que fazemos acerca do entendimento de que a produção curricular se dá por meio de negociações. As respostas dadas pelas equipes de Educação Infantil ao questionário proposto evidenciam como essas negociações são constantes, ainda que haja estratégias de contenção dessas.  As equipes das SEMED são instadas a (res)significar seus trabalhos a partir de lutas e resistências; umas, mais evidentes que outras, utilizam as possibilidades dos caminhos e os (res)significam a partir de rotas de fugas como escapes nessa produção curricular. 

Há, entretanto, um aspecto importante a ser considerado e que talvez esteja sendo subsumido neste debate: precisamos compreender a importância de currículos, da produção curricular que invista na infância como fato social. Precisamos de currículos para/na infância como forma de expressão das diferenças, que desloquem binarismos entre crianças x adultos, ensino x aprendizagem, que atentem aos papéis sociais que vão muito além de especificar, com determinações prévias que estipulam de forma clara e precisa o que é essencial a todos. Defendemos produções curriculares com as infâncias – plurais em suas singularidades.

Ter essa compreensão de produção curricular com/na/para a infância como espaço de enunciação é legitimar que essa produção não está dada, mas que se (re)constrói a partir das múltiplas rotas/trajetos tanto de professores da Educação Infantil quanto dos demais profissionais a partir de seus saberes tecidos constantemente pela/na práxis cotidiana, das mais variadas formas e situações (contingenciais) nas quais as crianças em sua condição alteritária. Portanto, se faz urgente uma produção curricular que parta de uma concepção que não subjugue professores/escolas/redes de ensino como apenas “implementadores” e as crianças como um vir a ser que a destitui de sua autoridade.

 

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[1] Usamos essa expressão suprimindo a referência explícita que identificaria o município