Medicalização Infantil no Contexto Escolar: implicações no processo de cuidar e educar
Child Medicalization in the School Context: implications in the care and education process
Medicalización infantil en el contexto escolar: implicancias en el proceso de cuidar y educar
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
clapossamai@hotmail.com
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil
fabiobage@yahoo.com
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
larabeatrizf@gmail.com
Recebido em 13 de outubro de 2023
Aprovado em 15 de abril de 2024
Publicado em 13 de maio de 2024
RESUMO
Neste artigo são discutidos aspectos da pesquisa de doutorado, produzida por meio do método progressivo/regressivo para estudar as implicações da medicalização e patologização da criança em processos educativos na Educação Infantil no município de Criciúma/SC. Na educação formal observa-se uma tendência à medicalização, fenômeno que frequentemente transforma situações de dificuldades escolares com origem pedagógica ou social em condições patológicas. Os diagnósticos, muitas vezes, são utilizados pelos profissionais de forma inadequada para explicar estes processos. Embora o TDAH tenha sido frequentemente identificado na revisão de literatura, no campo desta pesquisa é o TEA que prevalece. Como consequência, há um crescimento do uso de medicações por crianças e estudantes em geral. Foi realizada uma revisão sistemática da literatura e demarcados materiais publicados no período de 2009 a 2019, o que permitiu reflexões sobre temas que emergem da pesquisa empírica e que indicam práticas medicalizantes, como encaminhamentos de crianças ao setor de Psicologia Escolar e o crescente número de crianças com diagnóstico de TEA. A revisão concentrou-se no Portal Periódicos da CAPES e no acervo de dissertações e teses da UFSC. Como possibilidade de superação, apresenta-se a psicologia sócio-histórica, que entende que o indivíduo se constrói em processos relacionais, e enfatiza a importância de se compreender a criança, as atividades e o ambiente escolar de forma interdisciplinar, ao invés de estigmatizar ou limitar a criança ao diagnóstico patológico.
Palavras-chave: Medicalização Infantil; Contexto Escolar; Medicação.
ABSTRACT
In this article are discussed aspects of the doctoral research produced through the progressive/regressive method to study the implications of the medicalization and pathologization of children in educational processes in early childhood education in the city of Criciúma/SC. In formal education there is a tendency towards medicalization, a phenomenon that often transforms situations of school difficulties with pedagogical or social origin into pathological conditions. Diagnoses are often used inadequately by professionals to explain these processes. Although ADHD has been frequently identified in the literature review, in the field of this research, it is the ASD that prevails. Therefore, there is an increase in the use of medications by children and students in general. Systematic literature review was accomplished and materials published in the period from 2009 to 2019 were demarcated, which allowed to reflect on themes that emerge from empirical research and that indicate medicalizing practices, such as referrals of children to the School Psychology Sector and the growing number of children with ASD diagnosis. The systematic review focused on the Portal CAPES of Periodic and on the UFSC dissertation and thesis data collection. As a possibility of overcoming, it is presented socio-historical psychology which understands the individual is constructed in relational processes and emphasizes the importance of understanding the child, the activities and the school environment in an interdisciplinary manner, instead of stigmatizing or limiting the child to a pathological diagnosis.
Keywords: Child medicalization; School context; Medication.
RESUMEN
En este artículo se abordan aspectos de la investigación doctoral producida a través del método progresivo/regresivo para estudiar las implicancias de la medicalización y patologización de los niños en los procesos educativos en la educación infantil de la ciudad de Criciúma/SC. En la educación formal hay una tendencia a la medicalización, fenómeno que muchas veces transforma situaciones de dificultades escolares de origen pedagógico o social en condiciones patológicas. Los diagnósticos muchas veces son utilizados inadecuadamente por los profesionales para explicar estos procesos. En la revisión de la literatura se ha identificado con frecuencia el TDAH, sin embargo, en el campo de esta investigación es el TEA el que prevalece. Como consecuencia, hay un aumento en el uso de medicamentos por parte de niños, niñas y estudiantes en general. Se realiza una revisión sistemática de la literatura y materiales publicados en el período de 2009 a 2019, lo que permitió reflexionar sobre temas que emergen de investigaciones empíricas que indican prácticas medicalizantes, como las derivaciones de niños y niñas al sector de Psicología Escolar, y el creciente número de diagnósticos de TEA en esta población. La revisión se centró en el Portal Periódicos de la CAPES y en la colección de disertaciones y tesis de la UFSC. Como posibilidad de superación, se presenta la psicología sociohistórica, que entiende que el individuo se construye en procesos relacionales y enfatiza la importancia de comprender a la niñez, las actividades y el ambiente escolar de manera interdisciplinaria, en lugar de estigmatizar o limitar al niño a un diagnóstico patológico.
Palabras clave: Medicalización Infantil; Contexto Escolar; Medicación.
Introdução
Este artigo discute aspectos da pesquisa de doutorado "Medicalização e Patologização na Educação Infantil: implicações no processo de cuidar e educar”. Esta tese, de abordagem qualitativo-quantitativa, realizada por meio do método progressivo/regressivo (Sartre,2002), estuda as implicações da medicalização e patologização da criança em processos educativos na Educação Infantil no município de Criciúma/SC.
O conceito de medicalização surgiu a partir da Segunda Guerra Mundial, com os avanços médicos e, consequentemente, com a descoberta de medicamentos que ajudam a controlar muitas doenças. A medicalização pode se tornar um meio de controle social para com o indivíduo, que passa, então, a ter um ‘papel de doente’, levando-o à perda de autonomia (Freitas; Amarante,2017). De acordo com Sanches e Amarante (2014), a medicalização infantil é o ato de patologizar as dificuldades que os estudantes apresentam em relação à aprendizagem, ou seja, transformá-las em doenças a serem tratadas pela medicina.
Presente na atualidade, a prática de medicalização avança os espaços escolares, tornando a escola um ambiente propício, pois visa enquadrar o comportamento das crianças, e considera o mau rendimento do estudante como algo para a medicina explicar como doença. (Christofari; Freitas; Baptista, 2015).
Nesse sentido, pode-se considerar que a infância vem se tornando alvo da medicalização e, em certa medida, com seus direitos violados, o que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 17, assevera:
O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais (Brasil, 1990).
Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), em seu artigo 53, a criança tem direito à educação e às condições igualitárias de acesso e de permanência na escola, além de poder contestar os processos avaliativos e receber as devidas orientações no âmbito escolar. Porém, quando há práticas medicalizantes na escola, à criança/estudante não são assegurados integralmente os seus direitos.
Neste artigo, efetuamos uma revisão sistemática de literatura e refletimos dados preliminares sobre os processos de medicalização infantil no contexto escolar. Os estudos e pesquisas analisados permitem-nos identificar as definições de medicalização; analisar a função da indústria farmacêutica no processo de medicalização; quais diagnósticos se apresentam como mais recorrentes no contexto escolar; além de propor bases teórico-metodológicas que fundamentam uma discussão sobre medicalização da educação e possibilidades de intervenção no campo educacional.
Desse modo, o assunto abordado nesta pesquisa se faz relevante, principalmente devido ao aumento do número de crianças que estão sendo medicalizadas e diagnosticadas por problemas relacionados à aprendizagem e a comportamentos na escola. Assim, os resultados desta pesquisa possibilitarão a ampliação do conhecimento sobre a temática em questão, fundamental para que os profissionais da psicologia e da educação aprimorem seu conhecimento e, assim, possam conduzir sua prática de forma não medicalizante.
Questão de método
Em caráter exploratório, realizamos um levantamento sobre os processos de (não)medicalização do Departamento de Educação Infantil de uma instituição de Educação Infantil[1] do extremo sul catarinense, que comporta quarenta centros de Educação Infantil com aproximadamente cinco mil crianças, em sua maioria de até três anos e onze meses de idade.[2] Considerando o período de 2017 até o presente, como estratégias não medicalizantes, destacam-se (i) a realização de dois eventos com a participação de todas as professoras para discutir práticas não medicalizantes na Educação Infantil e (ii) a implementação e a realização do projeto “Educar Sem Rótulos”, mas que ainda não atende a todos os Centros de Educação Infantil. Quanto aos dados que indicam práticas medicalizantes, está em destaque o número de encaminhamentos de crianças ao setor de Psicologia Escolar, bem como de um crescente número de crianças com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista - TEA. A pesquisa está em andamento e avançou para uma etapa de estudo de algumas situações que correlacionam as entrevistas e as atividades de docentes e crianças nos Centros de Educação Infantil, o que nos permite o aprofundamento do estudo de situações de medicalização e patologização em uma perspectiva relacional. Para Charlot (2000), a relação com o saber é constituída por três dimensões –mobilização, atividade e sentido – que são indissociáveis no processo de escolarização, pois, "para haver atividade, a criança deve mobilizar-se; para que se mobilize, a situação deve apresentar um significado para ela" (Charlot, 2000, p. 54).
Esta pesquisa se utiliza igualmente de uma revisão sistemática de literatura, que, segundo Galvão e Ricarte (2020, p. 58-59),
“[...] segue protocolos específicos, e que busca entender e dar alguma logicidade a um grande corpus documental [...]. Está focada no seu caráter de reprodutibilidade por outros pesquisadores, apresentando de forma explícita as bases de dados bibliográficos que foram consultadas, estratégias de busca empregadas em cada base, o processo de seleção dos artigos científicos, os critérios de inclusão e exclusão dos artigos [...].
Os materiais foram buscados através do Portal de Periódicos da CAPES e do acervo de dissertações e teses da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Foram realizadas quatro buscas, a partir de um conjunto de palavras-chave diferentes. Selecionamos apenas as pesquisas na área da medicalização/medicação infantil, relacionadas ao contexto escolar e realizadas no período de 2009 até 2019. Na primeira busca, no acervo de dissertações e teses da UFSC, utilizamos as palavras-chave “medicalização e educação infantil”, obtendo um total de 254 materiais. Porém, selecionamos apenas duas dissertações, que tratavam especificamente sobre medicalização infantil no contexto escolar. Na segunda busca, em periódicos da Capes, foram utilizadas as seguintes palavras-chave: “Medicalização, educação e infância”, obtendo um total de 80 artigos na busca; foram utilizados sete artigos, de forma que foram selecionados apenas os materiais que versassem sobre medicalização infantil no contexto escolar. Na terceira busca, em periódicos Capes, foram utilizadas as palavras-chave “medicação, educação e infância”, obtendo um total de 141 artigos de busca, mas apenas um artigo foi selecionado, por tratar da medicação infantil relacionada a diagnósticos e problemáticas advindos do contexto escolar. Na quarta busca (periódicos Capes), foram utilizadas as seguintes palavras-chave: “medicalização, escola, infância”, retornando um total de 108 artigos, dos quais foram utilizados sete, selecionados pelo fato de falarem especificamente sobre a medicalização da infância.
Em todas as buscas foi utilizada a palavra “infância”, objetivo central desta pesquisa, que, no decorrer do texto, se apresenta por meio da palavra “criança”, remetendo ao período da infância no contexto escolar. Todavia, a partir dos resultados, sentiu-se a necessidade de utilizar “estudantes”, por estar presente em algumas pesquisas ou para substituir o termo “aluno”, quando que se fazia presente.
Os conteúdos coletados foram analisados a partir da análise temática, que “[...] consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifique alguma coisa para o objetivo analítico visado” (Minayo, 2007, p. 316). Compõem a análise temática a pré-análise do material, a exploração (categorização) e o tratamento dos resultados. Realizamos uma leitura dos resumos para identificar os pesquisadores, ano de publicação, tema, abordagem metodológica (teórica/empírica), fundamentação teórica, aspectos fundamentais (discussão), resultados de pesquisa. Estas informações foram organizadas em quadros e, após a leitura dos artigos, buscamos sistematizar as questões mais relevantes e que se relacionavam ao tema da medicalização no contexto escolar. Este esforço analítico-sintético resultou em quatro temas, que serão abordados a seguir, correlacionando aspectos da nossa pesquisa empírica e das pesquisas e estudos realizados pelo campo.
Resultados e discussões
Apresentaremos, aqui, os resultados do levantamento sobre práticas (não)medicalizantes na educação infantil no item “Práticas (não)medicalizantes e diagnósticos na educação infantil”, fazendo uma articulação aos resultados da revisão de literatura que estão destacados em quatro temas: O primeiro é sobre medicalização no contexto escolar, que aborda definições sobre medicalização, os encaminhamentos da escola e os possíveis diagnósticos na infância. O segundo tema trata sobre Tendência Crescente: Diagnósticos Psicopatológicos no Contexto Escolar. O terceiro tema disserta sobre Farmacêuticas e a medicalização infantil, no qual se vai discorrer sobre a influência da indústria farmacêutica na medicalização infantil no contexto escolar e os medicamentos utilizados para as dificuldades apresentadas pelas crianças. E o quarto e último tema refere-se às “Perspectivas Teóricas sobre Medicalização: contribuições para práticas não medicalizantes no contexto escolar”, que apresentará as teorias que fundamentam as pesquisas sobre medicalização e quais mais se aproximam do contexto escolar como possibilidade de uma prática alternativa à medicalização.
Práticas (não) medicalizantes e diagnósticos na Educação Infantil
A instituição de Educação Infantil, campo da pesquisa empírica, conta com 40 Centros de Educação Infantil, com aproximadamente cinco mil crianças matriculadas. Em sua maioria, são crianças de até três anos e 11 meses de idade. O Departamento de Educação Infantil desta instituição conta com equipe multiprofissional, coordenadora geral, orientadoras pedagógicas, fisioterapeuta, psicóloga e nutricionista. Essa equipe atende a todos os 40 Centros de Educação Infantil – CEI.
Entre 2017 e 2019, a psicóloga escolar desta instituição, que também é uma das autoras deste artigo, contribuiu na produção dos dados para esta pesquisa, e observou que a maioria dos encaminhamentos direcionada ao setor de psicologia se referia a questões comportamentais e de socialização: a criança não interage; é muito agitada; chora muito; morde os colegas de sala; não realiza as atividades conforme o comando das professoras; não socializa etc. Nesse período, os encaminhamentos eram direcionados ao setor de psicologia diretamente pela professora de sala, após o preenchimento de uma ‘ficha’ contendo os dados do CEI e da criança, seguido do motivo do encaminhamento. Não havia um detalhamento do que já fora realizado pelo próprio CEI para estimular esta criança a alcançar suas potencialidades, visando superar a dificuldade, a situação que estava passando naquele momento.
Diante dessa situação, percebendo a necessidade de discutir sobre a medicalização da educação de forma mais direta, como prática não medicalizante, em junho de 2018, foi realizado o evento “Criança vem com bula?”. Esse evento foi realizado em parceria com o Curso de Psicologia das Faculdades Esucri. Contou com a presença de um psicólogo, uma doutora em Ciências da Saúde e um doutor em Farmacologia. A proposta era apresentar a medicalização no contexto da Educação Infantil e as consequências na vida da criança, além de diversas possibilidades para desenvolver as potencialidades das crianças. Participaram do evento todas as professoras e diretoras dos Centros de Educação Infantil, com a presença de aproximadamente 750 pessoas.
Em junho de 2019, foi realizado novamente um evento sobre a temática da medicalização da Educação Infantil, com o título “Vamos dizer não à medicalização da Educação Infantil?”. O evento foi ministrado pela psicóloga e doutora Marilda Gonçalves Dias Facci, e contou com a presença das professoras e diretoras dos Centros de Educação Infantil, com aproximadamente 750 pessoas presentes novamente.
Os dois eventos citados foram organizados no formato de palestras, pensados especificamente para envolver todas as professoras e diretoras pedagógicas, um objetivo que foi alcançado.
Portanto, visando estreitar e aprofundar o debate sobre a medicalização da educação, agora apresentando concretamente como desenvolver as potencialidades das crianças e realizar práticas não medicalizantes, foi estabelecida uma parceria com o Curso de Psicologia de uma faculdade da cidade, para que estudantes de Psicologia pudessem realizar o estágio obrigatório em Processos Educativos sob a supervisão da psicóloga escolar do referido departamento. Em 2021, foi dado início ao projeto “Educar sem rótulos”.
Atendendo à solicitação da instituição, o projeto foi realizado com as turmas que tinham, pelo menos, uma criança com diagnóstico relacionado a questões cognitivas e/ou comportamentais. Não foi possível atender a todas as turmas, pois não havia estagiários(as) de Psicologia em número suficiente para a demanda; logo, foram atendidas apenas as turmas selecionadas pela instituição, de acordo com a urgência.
As(Os) estagiárias(os) acompanhavam as atividades e rotinas das crianças junto às professoras durante oito horas semanais. Inicialmente, observavam as rotinas das crianças e, após, elaboravam e aplicavam atividades que pudessem desenvolver as potencialidades das crianças. A proposta era demonstrar que, mudando as estratégias e as atividades, era possível trabalhar com todas as crianças, e não somente com as que apresentavam algum laudo/diagnóstico.
Para cada criança havia um planejamento específico, conforme as necessidades de cada uma. Houve atividades que envolveram o desenvolvimento da coordenação motora fina, incluindo um lápis com alargador para a criança aprender a segurar; outras buscavam desenvolver relações socioafetivas, incluindo atividades que proporcionavam a interação entre os colegas e o conhecimento das emoções. Quanto ao levantamento do número de crianças com diagnósticos fechados ou em avaliação diagnóstica, verificamos que o tipo diagnóstico mais presente estava relacionado às questões que envolvem o desenvolvimento infantil de forma geral, como questões comportamentais, de linguagem, de interação social, que consistia no Transtorno do Espectro Autista. Ao todo, 90 crianças apresentam laudo ou atestado de acompanhamento (em avaliação) de TEA. Mais precisamente, foram 65 crianças com atestado de acompanhamento, emitido por neuropediatra, e 25 crianças com laudo fechado de TEA.
A seguir, a partir da revisão de literatura, destacaremos que esse crescente número de diagnósticos não é exclusivo desta instituição.
Medicalização no contexto escolar
Há, nos últimos anos, um debate crescente nas áreas de Saúde e da Educação sobre os processos de medicalização da vida escolar. Os processos de medicalização ocorrem ao definir que os estudantes considerados adequados ao perfil de estudante competente, diante do mau rendimento escolar, passam a ser diagnosticados ou entendidos nos ambientes escolares como “doentes”. Diante disso, o conceito de medicalização está relacionado ao processo de fazer com que questões não médicas passem a ser tratadas como questões médicas, e, assim, encontra na medicina causas e soluções para o problema de ensino-aprendizagens, comportamentos, desenvolvimento cognitivo e emocional. Tais dificuldades no processo de ensino-aprendizagem dos estudantes são causados por profissionais, os quais acabam rotulando e diagnosticando os sujeitos com doenças ou transtorno mental (Colombani; Martins, 2017; Manfré, 2018).
Segundo Colombani e Martins (2017), o fracasso escolar, antes considerado resultado de estudantes com falta de atenção, desobediência em relação às regras e aos costumes da escola, agora, esses comportamentos e atitudes passam a ter denominação e são passíveis de classificação por meio de laudos e diagnósticos.
De acordo com Signor, Berberian e Santana (2017), muitos estudantes são diagnosticados após análise com especialistas da área da saúde; dentre os diagnósticos estão: Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), Transtorno Desafiante Opositor (TOD), Transtorno Bipolar, entre outros. Estes transtornos afetam as funções cerebrais relacionadas às áreas da linguagem, da aprendizagem e da cognição.
Conforme Giusti (2016), a criança, ao entrar no âmbito educacional, precisa adaptar-se aos processos de ensino-aprendizagem, às normas impostas pela instituição, bem como estabelecer uma postura e comportamento adequados ao ambiente, que possui seus padrões de normalidade. Neste caso, a escola exerce uma função de modulação dos comportamentos para estabelecer um controle. O não cumprimento pelos estudantes leva as famílias e os professores a buscarem explicações médicas, que são legitimadas como científicas.
Associação Norte Americana de Psiquiatria através de um caminho buscou construir o DSM como um livro "a-teórico" e "científico". Para tanto, a partir do DSM-III se retirou a grande maioria dos termos e conceitos que remetiam à psicanálise. Mas por outro lado não apresenta com honestidade sua filiação a uma perspectiva teórica biológica, mas que se pode entrever em algumas partes quando expressa a esperança de "um dia encontrar seus marcadores biológicos". (Martinhago; Caponi, 2019).
Questões como essas fomentam a medicalização no contexto escolar, pois responsabilizam os estudantes por não se adequarem aos padrões exigidos pela sociedade ou pelas escolas, e, assim, frustram as expectativas da escola e dos adultos (Collares; Moysés, 2010 apud Beltrame; Gesser; Souza, 2019).
Importante destacar que as queixas dos professores normalmente se referem a estudantes que não conseguem ficar sentados por muito tempo, não possuem engajamento nas atividades e apresentam alguma dificuldade de aprendizagem. Nestes casos, geralmente os estudantes são encaminhados a profissionais da saúde (Signor; Berberian; Santana, 2017). Segundo Beltrame et al. (2019, p. 8), “a tendência em tratar o mau comportamento como doença alimenta a ideia de que os problemas escolares e a dificuldade no processo de escolarização estão localizados no estudante e sua consequência é uma doença.” De acordo com essa perspectiva, pode-se compreender que os comportamentos apresentados pelos estudantes são considerados “anormais” e que precisam ser diagnosticados como patologias.
Neste tema sobre “medicalização no contexto escolar”, pode-se verificar que, nos materiais pesquisados, há em comum a presença de práticas medicalizantes na escola, pois evidenciam que situações complexas do processo ensino-aprendizagem ou comportamentos apresentados pelos estudantes que não se enquadram no padrão esperado são percebidas pelos profissionais da escola e da saúde como patologias.
Na pesquisa realizada na instituição de Educação Infantil, verificamos que o tipo diagnóstico mais presente na educação infantil é o TEA, responsável por comprometer o desenvolvimento infantil de forma geral, como questões comportamentais, de linguagem, de interação social. Em torno de 90 crianças apresentaram laudo ou atestado de neuropediatras locais, sendo apenas 16 do sexo feminino. Há uma grande preocupação da coordenadora do departamento de Educação infantil com o número geral de crianças que recebem atestado ou laudo de TEA, especialmente porque percebe que a maioria das crianças que é atendida por alguns neuropediatras volta com atestado de acompanhamento, sob suspeita de autismo ou já com diagnóstico definido.
A coordenadora relata que a busca pelo atendimento neuropediatra pode ocorrer por encaminhamento da Psicóloga Escolar, mas também que algumas famílias vão por conta própria, muitas vezes incentivadas pelas próprias professoras, em busca de um atestado ou laudo, entendendo que permita que a criança receba um estagiário para acompanhá-la e, assim, receba uma melhor assistência no CEI. Isso nos remete à necessidade de melhor analisar o contexto em que a criança está inserida, de realizar investigações interdisciplinares acerca dos fatores envolvidos e de possibilitar reflexões sobre a medicalização infantil no ambiente escolar, pois as práticas medicalizantes, que normalmente resultam em diagnósticos, podem prejudicar em diversos aspectos na vida da criança, como a socialização e a aprendizagem no espaço escolar, além de se tornar um problema social.
Tendência Crescente: Diagnósticos Psicopatológicos no Contexto Escolar
Os artigos analisados em nossa revisão de literatura contrastam com nossos dados empíricos das unidades de Educação Infantil no município de Criciúma, pois evidenciam o TDAH como o diagnóstico mais frequente para possíveis comportamentos considerados inadequados para as crianças. A pesquisa de Santos e Vasconcelos (2010) sobre o “Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade em Crianças: Uma Revisão Interdisciplinar” relata o aumento de diagnósticos de TDAH. Este dado difere do que apontou nosso levantamento no município de Criciúma, onde o TEA foi predominante. Teria este dado uma relação com a faixa etária das crianças (0 a 6 anos); teria o município características outras que justificariam este contraste com o encontrado sobre o território nacional na literatura especializada?
Santos e Vasconcelos (2010) apontam que os diagnósticos precoces são favorecidos por vários fatores, incluindo salas de aula com grande número de estudantes, questões familiares e comunicação interpessoal. Esses cenários contribuem para o surgimento de comportamentos considerados "inadequados", resultando em um aumento nos encaminhamentos a especialistas, como neurologistas e psiquiatras.
Um ponto relevante é a crescente medicalização da infância, acompanhada pela ampliação dos principais diagnósticos encontrados no público infantil, especialmente após o lançamento da última edição do DSM, o DSM-V. Essa atualização incluiu novos transtornos relacionados a questões comportamentais (Giusti, 2016).
É importante considerar que, em um contexto sócio-histórico dentro do qual este manual é validado como científico e a especialidade médica psiquiátrica também o é, o saber pedagógico é comumente desqualificado social e politicamente, sofrendo desprestígio e, muitas vezes, violência. O que pode colaborar para que professores usem de informações de manuais médicos para explicar ou validar suas queixas em relação às dificuldades encontradas com as crianças.
A escola, devido devidos aos desafios, tem sido um espaço que fomenta o diagnóstico de TDAH, pois, quando a criança não se enquadra nas normativas da escola, a queixa vem inicialmente dos professores, principalmente se as salas de aula estiverem superlotadas e não comportando adequadamente os estudantes, o que pode acarretar um mau desempenho escolar (Lenzi; March, 2017; Manfré, 2018).
Santos e Vasconcelos (2010) sugerem que os encaminhamentos feitos pela escola também refletem as inseguranças e os receios dos professores ao lidar com os comportamentos associados ao TDAH. Dessa forma, muitos professores e familiares podem se sentir amparados pelos saberes médicos, como pode ser o caso desta incidência do TEA em nossa pesquisa, buscando o encaminhamento a profissionais da saúde como única alternativa e, assim, desistindo de buscar outras possibilidades pedagógicas e sociais que poderiam agir mais efetivamente sobre a relação das crianças com a escolaridade e os saberes.
A questão não é desconsiderar a importância dos saberes médicos no diagnóstico e no tratamento, mesmo o medicamentoso, mas de ampliar, em uma abordagem interdisciplinar, com a participação da comunidade escolar e das famílias no estudo e na intervenção nas situações de dificuldades escolares. A superação dos processos de medicalização na educação passa por este compartilhar de responsabilidades, ao mesmo tempo que se investe em melhores condições de trabalho para os professores e as crianças. Avanços relacionados às estruturas física e material das escolas, na rotina escolar, na proposta político-pedagógica, na formação profissional continuada, em uma perspectiva crítica da educação, em especial com base em referenciais teórico-metodológicos que permitam ao professor melhor conhecer seus alunos e, assim, realizar uma prática docente adequada a cada faixa etária e com toda qualidade possível.
Lima e Viera (2014) consideram que a produção do sofrimento psíquico está vinculada, também, à indústria farmacêutica, pois promete amenizar o sofrimento e o medicamento é utilizado como regulador do que é normal na contemporaneidade. A ampliação da atuação médica para além do arco normal x patológico, tanto pela noção de bem-estar social como de prevenção de riscos, é analisada por estudiosos da sociologia médica e por teóricos críticos à medicalização da vida (Amarante; Torre, 2010).
O aumento das prescrições de medicamentos para crianças, baseadas nos critérios do DSM-V, pode ser influência da indústria farmacêutica (Lima; Vieira, 2014), o que nos leva a considerar a possibilidade de esta ampliação de TEA em Criciúma estar vinculada mais às questões econômicas do que de saúde pública, com a promessa de que os medicamentos são as soluções para os problemas de ordem psíquica ou social.
Farmacêuticas e a medicalização infantil
Para Giusti (2016), o mercado farmacêutico tem responsabilidade pela medicalização infantil, beneficiando-se toda vez que as dificuldades enfrentadas pelas crianças são relacionadas a patologias. Os dados, a seguir, permitem-nos refletir sobre a fabricação de remédios pela indústria e sua relação com a produção de saberes médicos, de laudos e de diagnósticos, e seus compromissos com a sociedade, a saúde pública e coletiva, ou ainda com o mercado e o setor financeiro. Será que estamos fabricando remédios para tratar das doenças ou fabricamos doenças para o mercado dos remédios?
O Brasil é considerado o maior consumidor do mundo do fármaco metilfenidato, conhecido popularmente como Ritalina®, que é um medicamento utilizado para controlar e “solucionar” questões relacionadas a comportamentos, dificuldades de atenção e afins, que as crianças apresentam principalmente no âmbito escolar, pois é na escola que geralmente se desempenham tarefas que envolvem maior esforço intelectual dentro de uma lógica de tempo para conclusão, e com um padrão de desempenho e de resultados esperados. Porém, estas chamadas “dificuldades” precisam ser investigadas antes da conclusão de um diagnóstico, pois se compreende como um fator complexo que precisa ser pautado em explicações mais plausíveis do que apenas a presença de comportamentos considerados inadequados para o ambiente escolar (Idum, 2012 apud Lima; Vieira, 2014).
Conforme Brant e Carvalho (2012 apud Oliveira et al. 2017), no Brasil e no mundo, há um aumento exacerbado do consumo de medicamentos com prescrições psiquiátricas para se poderem tratar transtornos e, assim, a prática da medicalização, seguida de medicamento, é considerada uma forma de proporcionar bem-estar às pessoas.
Diante do aumento exacerbado de diagnósticos, em especial do TDAH no público infantil, a prescrição do medicamento metilfenidato (Ritalina®), aumentou cerca de 73,5% entre os anos de 2009 a 2011, entre as faixas etárias de 06 a 16 anos de idade; e já nos últimos 10 anos, entre os anos de 2005 e 2015, cerca de 75%, um número bastante significativo sobre o exagero das prescrições medicamentosas no Brasil (Brasil, 2015; SNGPC, 2012 apud Lenzi; March, 2017).
Bassani e Bleidão (2015 apud Manfré, 2018) conduziram um estudo em escolas públicas de Vitória/ES em 2014, revelando uma alta demanda por encaminhamentos para atendimentos psiquiátricos. Dos 48.164 estudantes, aproximadamente 2.000 foram encaminhados e medicados com Metilfenidato (Ritalina®). Oliveira et al. (2017) apontam um aumento significativo na prescrição de medicamentos como o metilfenidato para o TDAH, levando a ANVISA a emitir alertas, em 2016 e 2017, sobre o excesso de prescrições e uso desses medicamentos.
Lenzi e March (2017) destacam que o aumento do uso de metilfenidato e a medicalização infantil levaram o Ministério da Saúde a adotar medidas preventivas, incluindo protocolos para orientar as redes municipais e estaduais sobre a dispensação desses medicamentos. De acordo com Freese et al. (2012 apud Oliveira et al., 2017), apesar do uso crescente do metilfenidato no Brasil, este medicamento é controlado e só pode ser utilizado com prescrição médica, devido ao seu risco de dependência. Além disso, não há evidências de que esse medicamento promova melhoras no desempenho cognitivo, mas, ainda assim, o número de prescrições medicamentosas aumenta significativamente.
O uso de medicamentos provoca inúmeros efeitos colaterais, os quais só podem ser combatidos com mais medicamentos. O sujeito faz seu tratamento com medicamentos para reduzir sua disfunção neuronal e, por fim, acaba desenvolvendo outros sintomas por conta da medicação. E com isso é preciso fazer uso de mais medicamentos (Giusti, 2016).
Como pode ser observado, as discussões presentes nos artigos demonstram o aumento significativo do número de crianças e estudantes em geral que está submetido à medicalização e à medicação. Isso ocorre, principalmente, porque os diagnósticos são realizados a partir de um saber médico, em que prevalece a noção da medicalização, ou seja, as dificuldades em relação aos comportamentos e à aprendizagem apresentados pelas crianças são caracterizados como algo patológico, e o tratamento principal é medicamentoso, mesmo que os encaminhamentos das crianças e estudantes em geral sejam por demandas de ordem social ou pedagógica.
Considerando o agravante da medicalização no espaço escolar, foi fundamental verificar, nos artigos pesquisados, qual base teórica se fazia presente nessas reflexões e que colaborava para o desenvolvimento de práticas não medicalizantes na escola.
Perspectivas teóricas sobre medicalização: contribuições para práticas não medicalizantes no contexto escolar
As teorias que fundamentam as pesquisadas sobre medicalização que estudamos em nossa revisão têm sua ampla maioria como base a Psicanálise; a teoria Genealógica de Michel Foucault, por meio da Biopolítica; a Sociologia da Infância e a psicologia sócio-histórica, de Vygotsky. Neste tópico, daremos ênfase às contribuições desta última, por já ser um referencial teórico presente nas diretrizes escolares da Educação, e por trazer aportes importantes para a não medicalização da Educação. Essas contribuições são apresentadas a partir das pesquisas realizadas por Beltrame (2019) e Signor, Berberian e Santana (2017).
De acordo com a Psicologia sócio-histórica, a medicalização é a transformação de situações cotidianas, de origem política e social, em questões biológicas, sendo deslocadas para os saberes médicos (Meira, 2012 apud Beltrame, 2019). Segundo Meira (2012 apud Beltrame, 2019), esta concepção compreende que o sujeito é biológico e social, ou seja, existe uma interação entre biológico e social, com as pessoas se constituindo nas relações e, portanto, considera que os processos de aprendizagem precisam considerar esta complexidade emanada de um sujeito relacional. Neste caso, para se compreender como o sujeito/criança aprende, devemos estudar a atividade da criança em um contexto em que as mediações contribuem para que estas aprendizagens se efetivem, ou não, e de diferentes formas. Nesta perspectiva, não haveria espaço para a medicalização no contexto escolar, o que, por si só, já é uma prática não medicalizante.
Vygotsky, precursor da Psicologia sócio-histórica, compreende que o cérebro é concebido como um órgão plástico, flexível, dinâmico, e as diferenças cerebrais podem estar relacionadas a esse aspecto (Vygotsky, 2004 apud Signor; Berberian; Santana, 2017). Ou seja, estas diferenças advêm da plasticidade do cérebro, que ocorre a partir das interações e dos eventos sociais vivenciados pelas crianças. O indivíduo constitui-se a partir da inserção ao contexto social, apropriando-se da cultura existente, que faz parte de um processo histórico. Esta compreensão tem como base o Materialismo Histórico-dialético, uma perspectiva epistemológica que nos permite compreender os fatores envolvidos nos processos educativos de forma não medicalizante (Beltrame, 2019). De acordo com Vygotsky (1991 apud Beltrame, 2019), as funções de ordem psíquica superior, compreendidas também por funções psicológicas complexas do indivíduo, são intercedidas acerca das influências socioculturais, fazendo-se, assim, com que as relações intrapsíquicas e interpessoais se desenvolvam.
As funções psicológicas superiores (FPS), tais como a atenção, memória, imaginação, pensamento e linguagem são organizadas em sistemas funcionais, cuja finalidade é organizar adequadamente a vida mental de um indivíduo em seu meio. (Veronezi; Damasceno; Fernandes, 2005, p. 538).
No que concerne à atenção, é importante ressaltar a capacidade dos seres humanos em selecionar estímulos mais importantes, ocorrendo a partir das mediações realizadas pelos meios sociais com a criança, nos âmbitos familiares, escolares, entre outros (Eidt; Tuleski, 2007 apud Beltrame, 2019). Esta perspectiva se aproxima dos estudos que Jean-Paul Sartre realizou sobre personalidade, emoções e imaginário (Sartre, 1938, 1940, 1988), como também sua teoria de grupos, conhecimentos que foram tomados por David Cooper e Ronald Laing (1982), representantes da anti-psiquiatria para o campo da psiquiatria, com o objetivo de fornecerem outros fundamentos epistemológicos e filosóficos para a compreensão das psicopatologias.
Segundo Vygotsky (2004 apud Signor; Berberian; Santana, 2017), a constituição da cognição infantil decorre das relações com os outros, na forma de olhar atento ou desatento, ativo ou hiperativo, sintomas que podem ser produzidos dependendo do contexto em que estão ineridos. Neste caso, é importante que a criança estabeleça relações sociais, pois serão significativas para o avanço de sua aprendizagem. Sartre (1943, 1988), em seus estudos sobre a personalidade, como algo que ocorre no mundo, nas relações, detalhará como os saberes, as emoções e as características vão se estabelecendo para a criança como um projeto e desejo-de-ser. Essas perspectivas indicam a necessidade do estudo dos sujeitos “em carne e osso”, desde uma perspectiva relacional, das ações e atividades, dos sujeitos em movimento no mundo e em relação com um campo de possibilidades. Assim, muitas situações de dificuldades escolares podem ser resolvidas quando os profissionais abordam o fenômeno de forma atenta e interdisciplinar, demarcando aspectos do social, da cultura e do movimento concreto de cada criança na sua relação com colegas e professores, familiares e irmãos, entre outros.
Na realização do projeto “Educar sem rótulos”, foi possível evidenciar que, mudando as estratégias e as atividades, seria possível desenvolver e trabalhar com todas as crianças. Que o diagnóstico seria apenas uma informação sobre as diferentes possibilidades de se desenvolverem, mas não algo limitante. A maioria das crianças que participou deste projeto tinha como diagnóstico o TEA. Os resultados do projeto foram satisfatórios, pois as professoras relataram que ocorreram mudanças significativas, relacionadas ao desenvolvimento psicomotor, ao comportamento, às relações socioafetivas ou à aprendizagem.
Portanto, como possibilidade de superação das práticas medicalizantes no contexto da Educação Infantil, especialmente na instituição onde realizamos essa pesquisa, sugerem-se considerar as contribuições da Teoria Histórico-Cultural de Vygotsky para o fazer pedagógico, desde recursos como o brincar não medicalizante, como conhecimento para pensar estratégias que considerem a diversidade cultural e, consequentemente, do desenvolvimento das crianças.
Este referencial teórico, articulado à noção de Relação com o Saber, de Bernard Charlot (2000), colabora para o estudo e a reflexão sobre a implicação das práticas (não) medicalizantes na educação infantil. São referenciais que nos proporcionam conhecimento para ações práticas interdisciplinares e não medicalizantes. Além disso, se faz necessário conhecer o que são processos de medicalização e promover reflexões críticas a respeito disso, evidenciando como interferem no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças. Isso não significa que desconsideraremos a existência de diagnósticos, mas,
[...] se vamos nos valer do diagnóstico para compreender as diferentes formas de desenvolvimento humano, criarmos possibilidades para formar pessoas autenticamente reflexivas e críticas, ou seja, para o autodesenvolvimento, a ciência deve servir de apoio nos nossos caminhos e escolhas. Nesse caso, o desenvolvimento humano não pode estar no campo do previsível e do controlável. Quem pensa que sim, aniquila o outro com seu olhar determinista, baseando-se, sem dúvida, numa visão biologizante. Por isso, para estas pessoas, as tarefas que são de cunho social, cultural e histórico, ou seja, do campo pedagógico, podem ser magicamente resolvidas via medicalização, abrindo mão das responsabilidades pedagógicas para lançar mão de soluções que apresentem “resultados” rápidos e atendam às demandas de um sistema preocupado em quantificar tudo (Prestes, 201, p. 51, grifo nosso).
Compreendemos que não será apenas através da escola que os problemas da medicalização, ou a própria medicalização, deixarão de existir, mas entendemos que a escola assume um papel importante para a sociedade na transmissão dos conteúdos sistematizados produzidos historicamente e, portanto, se torna um espaço potente (reconhecendo seus limites) para a luta coletiva contra as práticas medicalizantes. Assim sendo, de acordo com a questão apresentada, se a criança não aprende, se faz necessário avaliar o conjunto destas relações e atividades que estão sendo desenvolvidas, ao invés de primeiramente ir em busca de um diagnóstico que justifique sua dificuldade como algo puramente biológico. Desse modo, se a Psicologia sócio-histórica, ou inteligibilidade semelhante como a produzida por Jean-Paul Sartre, fosse compreendida e aplicada no âmbito escolar, possivelmente contribuiria para a redução da medicalização, promovendo novas formas de enfrentamento às situações cotidianas relacionadas à aprendizagem e/ou aos comportamentos das crianças e estudantes em geral.
Considerações finais
Esta pesquisa demonstrou o quanto os processos de medicalização no contexto escolar estão relacionados a um saber médico-higienista. Dos resultados, foi identificado que o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH , é o principal diagnóstico presente no espaço escolar em nossa revisão de literatura. Contrasta, todavia, com o verificado por nossa pesquisa, em que a TEA apareceu neste período pós-pandêmico e no contexto da Educação Infantil.
A indústria farmacêutica assume papel fundamental nesse processo de medicalização infantil, por estar alinhada ao saber médico e por fomentar a prática de prescrições medicamentosas como forma de normalização das dificuldades apresentadas pelas crianças e estudantes em geral, no âmbito escolar e na Educação Infantil. Contudo, estes ambientes não são os únicos responsáveis ou iniciantes desses processos medicalizantes e, sim, se constituem como parte integrante de uma sociedade medicalizada, com forte influência da indústria farmacêutica e sob um saber médico-higienista, que ganha força diante da fragilidade e dos desafios cotidianos no contexto de educação formal, que variam entre dificuldades em relação às condições de trabalho, à remuneração dos professores, à formação continuada, à falta de profissionais, ao projeto pedagógico, entre outros.
Entretanto, é possível pensar a respeito de um trabalho conjunto entre a área da Educação e da Saúde, que, conduzido a partir da compreensão da diversidade cultural, de sujeitos e dos diferentes saberes e modos de aprender, abre as possibilidades de novas alternativas, fortalecendo práticas não medicalizantes. Desse modo, é importante que ambas as áreas se concentrem menos na falta e mais nas estratégias e possibilidades para compreender o sujeito como singular/universal, ou seja, permeados por um conjunto de relações que eles estabelecem com o universo que os rodeia, para além das suas condições sociais e culturais. Para isso, é necessária a crítica epistemológica a este saber médico medicalizante, bem como a compreensão e a intervenção interdisciplinar sobre esses aspectos da realidade humana e sobre as condições de possibilidades dos padecimentos psicológicos e psicopatológicos, como vimos anteriormente.
Considerando as teorias identificadas nesta pesquisa, a Psicologia Sócio-histórica destaca-se para a desconstrução das práticas medicalizantes. Esta abordagem concebe o ser humano não como uma entidade individualizada, mas como um produto intrínseco das relações sociais que o circundam. Ao se deparar com a questão da medicalização, especialmente no contexto infantil, é impossível não questionar até que ponto a sociedade tem optado por soluções simplistas e imediatistas, com ênfase em questões econômicas do interesse do mercado farmacêutico, para fenômenos que são multidimensionais e que afetam a saúde pública.
Quando uma criança demonstra comportamentos, emoções, dificuldades de aprendizagens ou cognitivas que desviam da norma estabelecida, a tendência em buscar soluções médicas, em vez de investigar as raízes sócio-históricas dessas manifestações, pode ser tanto um reflexo da pressão social para conformidade quanto uma resistência em abraçar a diversidade humana, o que leva a refletir: quais são os custos de uma abordagem medicalizante, que muitas vezes silenciam as vozes e as experiências individuais?
A discussão sobre esta temática não tem a pretensão de se esgotar aqui e enfrenta certa limitação, especialmente considerando que as palavras-chave selecionadas podem não abranger a totalidade das pesquisas relacionadas ao assunto, ou ainda que o estudo empírico envolve outras estratégias para melhor compreender e intervir sobre o fenômeno. Contudo, espera-se que as evidências expostas neste trabalho sobre o aumento da medicalização infantil instiguem reflexões mais profundas sobre práticas medicalizantes. É essencial que tanto os profissionais da Psicologia quanto os da Educação se engajem neste debate, buscando promover experiências interdisciplinares e colaborativas no contexto escolar.
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Notas
[1] A escolha desta instituição se deu por ser a maior instituição de educação infantil do extremo sul catarinense e porque a pesquisadora já atuou como psicóloga escolar nesta instituição e ainda presta serviços de psicologia à instituição.
[2] Aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa da UFSC, sob o parecer n.º 5.556.390. Esta pesquisa ocorreu no município de Criciúma, a sétima cidade mais populosa de Santa Catarina e mais populosa do sul do estado, com 219.393 habitantes. Durante muitos anos, Criciúma contou com um hospital psiquiátrico - “Casa de Saúde Rio Maina” - fundado em 1968; atendia a população de toda a região sul e de outras regiões e estados. A existência desse hospital se estendeu durante 51 anos na cidade, e até 2001 era a “única” estratégia de tratamento a transtornos mentais, retirando os sujeitos do convívio social e medicalizando a sociedade, indicativo da presença do saber medicalizante na cultura do munícipio.
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