O contexto e a produção curricular em uma experiência formativa deslocadora - Pedagogia do Campo, das águas e das florestas em uma área de conservação no estado do Amazonas

 

Context and curricular production in a changing training experience - Pedagogy in the field, water and forests in a conservation area in the state of Amazonas.

 

 

El contexto y la producción curricular en una experiencia de formación itinerante - Pedagogía del Campo, aguas y bosques en un área de conservación en el estado de Amazonas.

 

Maria Edeluza Ferreira Pinto de Mourahttps://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, AM, Brasil.

edeluza@uea.edu.br

Lucinete Gadelha da Costahttps://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, AM, Brasil.

lucinetegadelha@gmail.com

 

Recebido em 11 de outubro de 2023

Aprovado em 16 de maio de 2024

Publicado em 12 de julho de 2024

 

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo, trazer reflexões sobre uma experiência curricular em construção no Curso de Licenciatura em Pedagogia do Campo da Escola Normal Superior/Universidade do  Estado do Amazonas- UEA que vem se construindo a partir do Grupo de Estudo e Pesquisa em Formação de Professores para a Educação em Ciências na Amazônia (GEPEC). Traz à tona o desafio de uma construção curricular no processo formativo com a Educação do Campo, das águas e das florestas iniciado em 2019  em uma área protegida no estado do Amazonas na parceria entre a UEA, os movimentos sociais presentes no  Fórum do Território do Médio Juruá – Fórum TMJ e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Fundamenta-se teoricamente em uma perspectiva de currículo como enunciação, operando com as ideias de Bhabha, Lopes, Frangella, Macedo e Arroyo.  Na articulação com a questão ambiente e sustentabilidade, mobiliza as deias de Diegues, Sachs e Leff.  Opera ainda com as ideias de educação Popular mobilizadas por Freire, Molina e Caldart. Nos procedimentos metodológicos do trabalho envereda-se pela abordagem qualitativa na problematização dessa  experiência curricular apontando possibilidades na formação de professores em comunidades ribeirinhas no/do interior da Amazônia, causando efeitos deslocadores para além da sua proposta curricular quebrando com a lógica da prescrição contida nos intentos prescritivos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e  Resolução nº 02 do Conselho Nacional de Educação – CNE (BNC da formação), que poderão contribuir na problematização sobre a produção curricular da região frente aos desafios desta do/no contexto amazônico.

Palavras-chave: Currículo; Formação; Amazônia

 

 

ABSTRACT

The aim of this article is to provide reflections on a curricular experience under construction in the bachelor’s degree course in Field Pedagogy at Higher Normal School / Amazonas State University (UEA), which was built from the Study and Research Group on Teacher Training for Science Teaching in Amazonia (GEPEC). It brings to light the challenge of a curricular construction in the training process with the Education of the Field, Waters and Forests initiated in 2019 in a protected area of the State of Amazonas in partnership between UEA, the social movements present in the Middle Juruá Territory Forum - TMJ Forum and the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (Capes). It is theoretically based on a perspective of curriculum as enunciation, operating with the ideas of Bhabha, Lopes, Frangella, Macedo and Arroyo.  In its articulation with the question of the environment and sustainability, it mobilizes the ideas of Diegues, Sachs and Leff.  It also works with the ideas of popular education mobilized by Freire, Molina and Caldart. In the methodological procedures of the work, a qualitative approach is adopted in the problematization of this curricular experience, indicating possibilities in the training of teachers in the riparian communities of the Amazon interior, provoking effects of displacement beyond their curricular proposal, breaking with the logic of prescription contained in the prescriptive intentions of the National Common Curricular Base (BNCC) and Resolution Nº. 02 of the National Education Council – CNE (BNC of training), which can contribute to the problematization of the curricular production of the region in the face of the challenges of the Amazonian context.

Key word: Curriculum; Training; Amazonia

 

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo traer reflexiones sobre una experiencia curricular en construcción en la Licenciatura en Pedagogía de Campo de la Escola Normal Superior/Universidade do Estado do Amazonas- UEA que se ha construido a partir del Grupo de Estudio e Investigación en Formación de Profesores para la Educación en Ciencias en la Amazonía. (GEPEC). Pone de relieve el desafío de la construcción curricular en el proceso de formación con Educación Rural, Agua y Bosque, iniciado en 2019 en un área protegida del estado de Amazonas en una alianza entre la UEA y los movimientos sociales presentes en el Foro Territorio Medio Juruá – Foro ATM y Coordinación de Perfeccionamiento del Personal de Educación Superior (Capes). Se fundamenta teóricamente en una perspectiva del currículum como enunciación, operando con las ideas de Bhabha, Lopes, Frangella, Macedo y Arroyo. En articulación con la cuestión del medio ambiente y la sostenibilidad, moviliza las ideas de Diegues, Sachs y Leff. También opera con las ideas de Educación Popular movilizadas por Freire, Molina y Caldart. En los procedimientos metodológicos del trabajo, se adopta el enfoque cualitativo para problematizar esta experiencia curricular, señalando posibilidades en la formación de docentes en comunidades ribereñas en/en el interior de la Amazonía, provocando efectos de desplazamiento más allá de su propuesta curricular, rompiendo con la lógica de prescripción contenida en las prescripciones de la Base Curricular Común Nacional (BNCC) y la Resolución N° 02 del Consejo Nacional de Educación – CNE (BNC de la formación), que pueden contribuir a problematizar la producción curricular de la región frente a sus dificultades. desafíos en/en el contexto amazónico.

Palabras clave: Currículo; Formación; Amazonia

 

Introdução

Refletir/problematizar sobre processos de formação de professores na atualidade é um ato complexo e desafiador, pois envolve várias perspectivas e tendências que precisam estar evidenciadas nas proposituras curriculares que ora delineiam e apontam caminhos, ora constroem possibilidades imprevisíveis de produção curricular, em especial em cursos de Pedagogia que têm a tarefa de trabalhar a formação de professores para atuarem na primeira etapa da educação básica.

Esse desafio e problematização aumentam quando relacionados às regiões diversas e complexas no Brasil, como a região Amazônia, que é vista por diferentes interesses geopolíticos externos e internos, algo que em muitas situações fazem com que a visão das características e marcas singulares de seu processo de colonização sejam revisitadas em uma nova roupagem sempre lembrando a subordinação que a ela foi imposta, bem como reforçam o apagamento da ideia de resistência contra uma ideologia de dominação e aculturação das populações nelas presentes.

A problematização desafiadora que tem nos motivado considera o movimento que se realiza nas margens das questões já evidenciadas e apontam para outros efeitos e deslocamentos da lógica imposta e se abre para outras possibilidades de produção cultural para/com/na formação de professores nesse espaço anfíbio, complexo e de grande potência.

  Para além dos desafios destacados, há neste artigo a problematização e crítica que fazemos diante da prescrição normativa nacional, direcionada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pela Resolução Nº 02/CNE - chamada de BNC da formação de professores que traz uma concepção pragmática, reducionista e prescritiva de formação inicial de professores em meio a projeção de um comum e identidade docente pautados em habilidades e competências aliada a ideia de ensino baseado apenas na reprodução mecânica de conteúdos, tornando o currículo também prescritivo, negando construção do humano em sua subjetividade a partir da relação com o outro que é igual, mas diverso, e, nessa negação, tenta buscar um sentido único de qualidade acabada para qualquer lugar do país, negando ainda o que nos diz Paulo Freire(2013) quando enfatiza que “ensinar exige consciência do inacabamento”.

Acrescenta-se a isso a problematização das práticas pedagógicas desenvolvidas por professores nesta região que ainda trazem características mecanicistas com a necessidade de se refletir esta formação, trazendo tal reflexão para seu contexto, em uma outra dinamicidade e argumentos, apontando sua potência de criação e organização mediante os processos culturais construídos que informam o currículo como imprevisível, com experiências que significam a formação, com produção de significações que  o contextualizam  em um movimento sem fim.

Por sua vez, questões hoje tidas como centrais na discussão sobre a formação de professores não podem mais ficar de fora em realidades como o estado do Amazonas, como é o caso da cultura, identidade, ambiente, contextualização, organização comunitária, e sustentabilidade, uma vez que estamos tratando de sujeitos ribeirinhos, povos da floresta e do campo amazônico, potenciais criadores e protagonistas desses contextos.

Diante dessa observações, o artigo está dividido em quatro partes que se entrelaçam, conectando os pontos em um movimento de ir e vir constantes que ziguezagueia na construção do argumento proposto, isto é:  problematizar a formação de professores com heranças tayloristas presentes  no Brasil e apresentar uma experiência curricular de formação em desenvolvimento , alinhada à ideia de movimento, imprevisão e produção curricular em nosso estado, por meio da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.

É em meio a essa discussão que trazemos um relato de tal experiência curricular em construção voltada para a  formação de professores no contexto amazônico com o curso de Pedagogia do Campo que visa contribuir com a formação docente contextualizada no atendimento às demandas do estado do Amazonas frente a sua diversidade e contradições.

Dessa forma, consideramos a experiência apresentada como uma das muitas potências deslocadoras de sentidos que vem se construindo no país e que vem gerando efeitos inesperados na política curricular para além do desejado na proposta de um comum nacional que defende a ideia de homogeneização curricular a partir da formação apenas por competências e habilidades para todo o Brasil.

 

Alguns enúncios na discussão

 

De início entendemos que não há como discutir a formação de professores  sem que se faça a relação com as disputas  que se dão nas políticas educacionais regidas pelas mudanças no mundo do trabalho e as relações de produção destacados como ponto essencial no  alinhamento com as ideias neoliberais, objetivando assim a inserção da lógica economicista nas políticas de formação, no alcance de um projeto universalista moderno pautado na eficiência e produtividade da escola que se dá, estrategicamente, através da formação, do controle do processo e na aprendizagem focada apenas nas questões do ensinar.

Nas discussões no campo do currículo, o universalismo ou padronização vê nas políticas curriculares um meio para alcance para tal intento.  No entanto, tal padronização nas políticas curriculares não ocorre, como bem esclarece Paiva, Frangella e Dias (2006, p.242) uma vez que:

 

Contudo, as políticas curriculares não são afetadas pelas mesmas condições da globalização, pois guardam em si marcas de sua singularidade produzidas por práticas, concepções, valores e intenções de vários sujeitos nos múltiplos espaços a que pertencem no contexto educacional e social.

 

Tal afirmativa reforça a ideia de Lopes e Macedo (2011) quando enfatizam, a partir das ideias de Hall, que não há um esgotamento ou saturação que impeçam as produções e enunciações políticas e culturais dentro dessas mesmas mudanças, pois,

 

[...]Ainda que as culturas locais passem a ser referenciadas a uma cultura global, também se ampliam as possibilidades de comunicação entre elas, possibilitando o fortalecimento de laços locais. Para o autor, se é verdade que os efeitos da globalização são sentidos em todos os cantos do planeta, é verdade também que se trata de um sistema que não afeta da mesma forma todo o mundo e nem substitui completamente as tradições forjadas pelos povos.  A própria imposição de princípios de mercado a todos os povos, com as desigualdades que cria, acaba por fazer ressurgir os traços culturais dos grupos que pretende apagar. (Hall, apud Lopes e Macedo, 2011, p. 196).

 

Alinhadas a essa discussão curricular, entendemos cultura, com a qual estamos operando, como enunciação que contraria a ideia do estático e que não permite que os sujeitos sejam visibilizados, que se desloquem e intervenham em seus contextos resistindo à lógica de uma padronização definida, como bem destaca Homi Bhabha(2013):  “[...] como uma forma de intervenção, participa de uma lógica de subversão”, construída em um processo de  produção de deslocamentos, haja visto seu caráter não fixo, mas que opera em um movimento que excede a regra e dela foge numa dinâmica sem fim que desestabiliza a lógica economicista que fundamenta o padrão.

Nesse entendimento concordamos também com Lopes (2015 p. 120) quando defende “uma concepção discursiva de currículo que concebe a prática inserida na política”. A inserção política aponta para a necessidade de aproximação com o outro oprimido e marginalizado pelas práticas colonizadoras da Modernidade em suas múltiplas facetas, sobretudo na tentativa de “enquadrar” o que e quem está fora.  E nessa aproximação os tensionamentos são produzidos, assim como são produzidos os efeitos políticos deslocadores em diferentes contextos.

No entendimento de Arroyo (2014) encontramos importante destaque quando ao pensar uma reorientação curricular. Trata-se, para ele, de algo que significa incorporar novas interrogações, outras vozes; ou seja, vozes dos sujeitos invisibilizados no próprio território de vida. Como resultado, isto denota um rompimento com a lógica de colonização opressora.

Em concordância com Moura e Faria (2021, p. 171), em discussão sobre currículo e formação de professores, é nesse processo que há uma constante luta por rompimentos em ações em torno de suas construções curriculares, porque tal aspecto possibilita mudanças nas relações sociais.  Neste sentido,

Os estudos sobre políticas curriculares têm mostrado os professores em muitos, como aqueles que executam as normas estabelecidas tanto pelo contexto do macro, quanto pelo contexto do micro, mesmo o primeiro estando estreitamente imerso neste último. Ainda que favoreça ou não a implementação das políticas curriculares, os movimentos e as (des)construções estão sujeitos a tais políticas, portanto, existe uma tentativa de rompimento com uma verticalização ao se imbricarem os diferentes contextos.

 

Acrescentam ainda que nessa luta há escapes, mesmo com inúmeras formas de controle para apagá-lo. Isto é:

Por compreendermos que a prática das políticas curriculares requer pensar a realidade da escola ou do coletivo escolar a fim de atender às demandas construídas pelos sujeitos envolvidos em seus cotidianos, ficamos inquietos sobre a ideia desse movimento se transformar apenas em um pseudo movimento que tenta transformar uma realidade na mesma. Porém, a leitura de políticas curriculares pelos aportes já mencionados, leva-nos a compreender que os marcos reguladores envolvem tensões que vão deixando seus escapes pelos caminhos, e nestes, há a possibilidade de mudanças e, ainda que existam inúmeras formas de controle para apagar os borramentos e manter o ordenamento, o intento de conter o movimento de construção de sentidos se torna impossível pela presença do conflito e das estratégias de negociação presente. (Ibidem, p. 173-174).

 

Nesses escapes e com essa operação, encontramos e mobilizamos a produção curricular através das experiências dos sujeitos envolvidos no processo de formação, assumindo as Políticas Curriculares como campo de produção de sentidos e de confronto, um espaço de criação cultural que tem o sujeito da formação como um sujeito de lutas e disputas incessantes em seu contexto, transformando sua prática em ação política crítica, sobretudo diante das tentativas de padronização de uma única identidade docente.

Identidade para nós, nesta discussão, é construção constante e está imbricada em um movimento constante de posicionamento contingente que se desdobra, no contexto ao qual estamos a refletir, em diferentes formas de organização popular e comunitária que pode também ser mobilizada na relação com a educação popular na perspectiva Freireana dialógica, afetiva e crítica, como uma luta coletiva, um movimento social por um território negado, o conhecimento.

Novamente encontramos em Arroyo (2014) ênfase importante no papel dos movimentos sociais, na contestação da forma de conhecimento que é imposto à escola, haja vista que ele destaca também a importância de pensar que “a escola é mais que escola”, expressam sentidos políticos que se aliam à prática das lutas sociais dos campos, algo que no contexto amazônico implica o campo das águas e das florestas.

Com esta frase os movimentos sociais dos campos expressam o sentido político que dão às lutas por escola indígena, quilombola, ribeirinha, das florestas.  Ao colocar as lutas por escola/ universidade, conhecimento atreladas a outras lutas por espaços, terra, territórios repolitizam a escola e o direito ao conhecimento como um dos territórios negados, a serem ocupados.  A escola, as instituições do conhecimento adquirem a dimensão política de territórios/direitos de conquista, não de doação do prefeito, do coronel, ou do estado.  Fazer da escola/universidade um território de conquista as torna mais do que escola/universidade.  Adquirem outra dimensão política.  Fazer do conhecimento objeto de conquista repolitiza o conhecimento (2014, p. 230).

 

Podemos aqui relacionar tal contribuição de entendimento à formação de professores como um campo de conquista que a torna mais do que formação.  Trata-se de um movimento de produção que conecta o currículo que opera na imprevisão, o que pode refletir diretamente na potencialização da organização das comunidades de formas diferentes, a depender do movimento provocado pelas enunciações e pelas disputas, trazendo à tona o ato transgressor frente ao que é apenas prescritivo.

Em cursos de formação de professores na UEA vemos esse processo acontecer, a escola passa a questionar a sua própria dinâmica e cria, de maneira performática, contorcimentos normativos, com efeitos outros que fogem da prescrição metodológica na criação de diferentes formas de produção curricular negociadas coletivamente dentro do próprio contexto.

Nesse processo de organização das comunidades consideramos importante mobilizar uma outra questão para ser articulada à discussão que é a ideia de sustentabilidade ambiental.

Inúmeras são as ideias sobre ambiente. O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Ferreira, 2010) dá, ao vocábulo, a seguinte definição: Ambiente é tudo que rodeia ou envolve por todos os lados e constitui o meio em que se vive.

Para Dias (2003), o significado de ambiente passou a ser definido como formado pela soma dos aspectos bióticos, abiótico e a cultura do ser humano (sua tecnologia, artefatos, construção, arte, ciência, religião, valores estéticos e morais, ética, política, economia etc.).

Pode-se dizer que o crescente distanciamento do homem com a natureza, alterou o entendimento de ambiente para uma nova definição, na qual o sujeito interage com o meio não somente para a sobrevivência, mas também o interesse em adquirir bens de consumo, numa espécie de círculo vicioso que leva ao interesse de dominação presentes no atual modo de produção na era moderna.

Diante às problemáticas que surgiram e continuam surgindo em virtude do aprimoramento economicista, a humanidade enfrenta nos dias atuais inúmeras contradições quando se pensa no desenvolvimento de sociedades, no intuito de atender um modelo em nível global, levando a diferentes problematizações do padrão humano de consumo estabelecido.

Nesse contexto, a relação homem e ambiente é problematizada evidenciando o distanciamento da relação homem e ambiente, sendo que tal relação vem ocorrendo também diante do avanço de um pensar comum, padronizado, imposto cada vez mais pela lógica do desenvolvimento e a qualquer custo.

Dias (2003) aponta que o estilo de vida adotado pelo homem contemporâneo já se apresenta insustentável e que o futuro do homem no planeta Terra mostra-se nebuloso, fazendo-se necessário criar outras significações e valores que estejam sintonizados com uma outra ética global que reflita e potencialize o movimento cultural plural de construções de possibilidades outras para além da lógica de desenvolvimento por dominação da natureza, porque tal aspecto tende a distanciar a relação homem e ambiente.

Nessa articulação de ideias, Enrique Leff (2004) afirma que “saber sobre o ambiente não é a realidade visível da poluição, mas o conceito de complexidade emergente onde se reencontram o pensamento e o mundo, a sociedade e a natureza, a biologia e a tecnologia, a vida e a linguagem”Entra em cena, o pensar sustentável, com a preocupação de que as futuras gerações tenham a possibilidade de relacionar-se de maneira um pouco mais proximal e possam se construir com o ambiente, pois ainda de acordo com o pensamento de Leff, o princípio de sustentabilidade surge no contexto da globalização como sinal que tenta mobilizar a necessária reorientação do processo civilizatório da humanidade.

Em Ignacy Sachs (2004, p.35) encontramos também uma ideia de desenvolvimento sustentável que se relaciona à questão da relação homem e ambiente a qual estamos tentando articular nesta discussão.  Para o autor, sustentabilidade implica em um:

[...]desenvolvimento que pretende habilitar cada ser humano a manifestar potencialidades, talentos e imaginação, na procura de auto realização e da felicidade, mediante empreendimentos individuais e coletivos, numa combinação de trabalho autonomia e heteronomia e de tempo.

 

É nessa relação da ideia de homem e ambiente em construção e na imbricação dela com desenvolvimento sustentável, de maneira relacional a ser também construído em luta nas disputas por sentidos nas políticas,  que a proposta curricular de formação destacada neste trabalho está inserida, uma vez que a lógica economicista também fetichiza tais ideias a seu favor na relação com a Amazônia, porque passa a ser também fetichizada como um desejo de consumo desconsiderando o que nela vem se construindo desde as populações em territórios tradicionais aos movimentos sociais e tecnológicos dentro deles, na busca de desenvolvimento e sobrevivência de todos que reflete também nos processos formativos de professores.

 

Um pouco das experiências curriculares de formação de professores na UEA voltadas para o contexto do/no campo amazônico.

 

As experiências da Universidade do Estado do Amazonas-UEA  com a Educação do Campo  iniciaram no período de 2004 a 2008, através de um projeto na perspectiva da Educação do Campo, intitulado:  Formação de Professores para o Ensino Fundamental em Áreas de Reforma Agrária, nos Estados de Roraima e Amazonas, o Convênio UEA/INCRA/PRONERA (2003),  firmado entre UEA, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA).  Ele teve o objetivo de  formar 200 agricultores ou filhos destes, moradores em áreas de assentamento, demanda emanada das reivindicações dos Movimentos Sociais  do Estado do Amazonas e Roraima (COSTA, 2012).

Durante o processo foi se constituindo a trajetória de pesquisas na UEA, através da Escola Normal Superior, que vem se construindo a partir do Grupo de Estudo e Pesquisa em Formação de Professores para a Educação em Ciências na Amazônia (GEPEC), com foco no currículo e na formação de professores em uma linha voltada a Educação do Campo.

O Projeto Político Pedagógico do Curso de Pedagogia do Campo, em destaque no município de Carauari,  nasce frente às demandas do estado do Amazonas, originadas nas experiências formativas da UEA no encontro com as  reivindicações de um mosaico de comunidades  tradicionais nelas existentes e, neste caso, mediadas  de forma coletiva pelo  Fórum do Território  do Médio Juruá - TMJ,  num movimento rico de  articulação entre universidade e sociedade  abrindo caminhos para um processo de construção de parcerias  institucionais que pudessem envolver outros diferentes sujeitos coletivos, até chegarmos ao Convênio  entre Universidade do Estado do Amazonas – UEA e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

O Fórum TMJ é um movimento social fruto da organização de comunidades tradicionais localizadas no município de Carauari-AM e reivindica o desenvolvimento de seu território localizado no Rio Juruá (importante rio afluente do rio amazonas), englobando uma área extensiva demarcada e protegida pela legislação federal.

De acordo com as informações do regimento do Fórum do Território do Médio Juruá (2014), este território está localizado na Mesorregião Sudoeste Amazonense e Microrregião do Juruá, composto pelos municípios de Carauari, Itamarati e Juruá, ocupando uma área de 70.752 km2 (4,5% da área total do Estado do Amazonas) e encontra-se inserido na calha do Rio Juruá, afluente da margem direita do rio Amazonas.  Para uma maior visualização da área que estamos a descrever, a figura abaixo permite ficcionar melhor a localização do município de Carauri na região norte, no estado do Amazonas e sua distância com relação a Manaus, capital do estado do Amazonas.

Figura 01 – Localização do município de Carauari na região Norte e no estado do Amazonas

Fonte: Google Maps.  Disponívle em: https://www.google.com/maps. (Acesso em 12 Jul. 2022).

 

O Território Médio Juruá compreende, em sua grande parte, áreas consideradas prioritárias para a conservação e uso sustentável da biodiversidade, incluindo áreas que variam de importância alta a extremamente alta (TMJ, 2014). Por esse motivo tem-se no Território a existência de 03 Unidades de Conservação, 01 Floresta Nacional e 04 terras indígenas, que juntas ocupam cerca de 48% de sua área total. São elas:

Reserva Extrativista do Médio Juruá;

Reserva Extrativista do Baixo Juruá;

Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari; 

Floresta Nacional de Tefé;

Terra Indígena Rio Biá;

Terra Indígena Deni;

Terra Indígena Kumaru do Lago Ualá;

Terra Indígena Kanamari do Rio Juruá. 

 

É na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Uacari, localizada no município de Carauari, o lugar onde a proposta de formação está acontecendo desde 2019.   Na figura abaixo, pode-se verificar nas áreas em destaque o quantitativo de áreas protegidas no estado do Amazonas e dentre elas a RDS de Uacari, situada no município de Carauari.

 

Figura 02 – Localização da RDS de UACARI no estado do Amazonas

 

Fonte: Laboratório de geoprocessamento da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas – SDS, adaptado por Rosival Barros em jun. 2009.

A Reserva e suas comunidades fazem parte de um movimento popular já destacado, como: Fórum Território Médio Juruá – Fórum TMJ, que, de acordo com seu regimento:

 

O Fórum do Território do Médio Juruá – Fórum TMJ é uma iniciativa criada em 2014, por grupo de empresas e associações locais, corporações e órgãos de proteção ambiental, com o objetivo de implementar um Plano de Desenvolvimento Territorial para a região do Médio Juruá, cuja atuação limitava-se ao município de Carauari-AM, especialmente junto às 64 comunidades das áreas e entorno das unidades de conservação: Reserva Extrativista do Médio Juruá e Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari. (Regimento TMJ, 2014 p. 01).

 

Quanto a sua constituição, o Fórum, como instância coletiva e representativa das comunidades delibera, através do comitê gestor, sobre o seu objetivo, suas instâncias de governança, área de abrangência e temas prioritários de atuação. Ainda de acordo com seu regimento, o Fórum TMJ tem como objetivo fundamental: “fortalecer a cooperação e integração entre as organizações e instituições que atuam no Médio Juruá, para promover a qualidade de vida de povos e comunidades tradicionais, cadeias de valor e a conservação da biodiversidade no Médio Juruá”.

Na RDS de Uacari, de acordo com a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas SDS (2007), há um total de 29 comunidades habitando a reserva, com grande potencial extrativista (borracha, óleo de castanha da andiroba) e pesqueiro. Há também grandes populações de jacarés, configurando uma opção de manejo, assim como numerosos tabuleiros de quelônios a serem monitorados, visto o intenso uso dos bichos de casco para consumo e comercialização, ou seja, há uma diversidade específica daquela região, que é valorizada no dia a dia de seus moradores em todos os aspectos, inclusive o educacional.

O acesso a essa RDS é feito via aérea no trecho Manaus/Carauari, e depois por via fluvial até a reserva[i], onde há uma base de apoio - centro de treinamento na comunidade do Rio Bauana - onde o curso de Pedagogia do Campo está em desenvolvimento.

 

 

Entendendo melhor as áreas protegidas e sua potência de deslocamento no estudo

 

As áreas protegidas no Brasil são gerenciadas por uma lei específica (Lei nº 9.985\2000), que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), vindo a atender o artigo 225, parágrafo 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, e direcionam as ações a serem empreendidas para assegurar o direito ao meio ecologicamente equilibrado.

De acordo com o SNUC, as áreas protegidas são classificadas em Unidades de Proteção integral, com uso indireto dos recursos, e áreas de Uso Sustentável.  As áreas dentro da categoria de uso sustentável, onde se enquadram as Reservas de Desenvolvimento Sustentável – RDS, permitem que sua criação e gestão seja feita pela e com a comunidade. O parágrafo IX da Lei nº 9.985\2000, faz referência a questão: “Considerem as condições e necessidades das populações locais no desenvolvimento e adaptação de métodos e técnicas de uso sustentável dos recursos naturais”.

Diante dessa observação, convém elucidar que, na história, retornando à Europa medieval, a imagem predominante era a de um mundo ordenado pelo homem civilizado, cercado pelo mundo natural povoado por selvagens, morada de feiticeiros e bruxas. De acordo com Colchester, essas imagens estavam contidas na visão dos missionários cristãos que acreditavam ter a missão de procurar os perdidos para a conversão.

Dessa maneira, os cristãos trouxeram essa ideia para o Novo Mundo; isto é, ao se depararem com indígenas nus e de cabelos longos, consideraram os mesmos como selvagens[ii], sem cultura e desprovidos de qualquer conhecimento. Ainda hoje, essa visão existe, mesmo em terras habitadas por povos originários de diferentes etnias indígenas que, por vezes, são chamadas de áreas selvagens.

Dissidentes dessa ideia, defendiam a necessidade do homem em refugiar-se em áreas naturais contra os males da civilização para satisfazer as necessidades emocionais humanas, através da contemplação da natureza, mas não como moradia.

Após essas considerações, entende-se, ainda hoje no ocidente a concepção de áreas protegidas que nasce de um outro enfoque marcado pelos processos excludentes da lógica economicista.  De acordo com Diegues:

A concepção dessas áreas protegidas provém do século passado, tendo sido criadas primeiramente nos Estados Unidos, a fim de proteger a vida selvagem (Wilderness) ameaçada, segundo seus criadores, pela civilização urbano-industrial, destruidora da natureza. A idéia subjacente é que, mesmo que a biosfera fosse totalmente transformada, domesticada pelo homem, poderiam existir pedaços do mundo natural em seu estado primitivo, anterior à intervenção humana (2000, p.13).

 

No século XX, mais precisamente entre as décadas de 70 e 80, houve um avanço na criação dessas áreas por conta do movimento ambientalista.  Vários autores explicam que as  raízes do aumento de unidades de conservação no mundo, dentre eles, Ghimire (1993, apud Diegues, 2000) que destaca a rápida devastação das florestas e a perda da biodiversidade, como também a disponibilidade de fundos internacionais para a conservação de parques e a possibilidade de geração de renda pelo turismo, além da importante arma política para elites dominantes de muitos países do 3º mundo como forma de obtenção de ajuda financeira externa- debts wapt for nature (conversão de dívida externa por conservação).

O conceito de área natural selvagem, sem a presença do homem, originário dos Estados Unidos, foi influenciado pela ideia europeia de áreas selvagens.  Surgiu de um sentimento anti-social decorrente da expansão demográfica e ocasionada  pela expansão urbana e suas consequências.

No século XIX nos EUA, foi criado o primeiro parque nacional do mundo, Yellowstone, concebido como uma área habitada (Wilderness).  Nesse cenário

a ideia norte-americana de área natural que contemplava uma visão preservacionista, defendia que as mesmas fossem inabitadas, tendo somente fins de recreação.  Como resultado, nasceu em um momento de profunda mudança político-econômica no final do século XIX. Segundo Diegues:

[...] Nesse período já se consolidara o capitalismo americano, a urbanização era acelerada, e se propunha reservarem-se grandes áreas naturais, subtraindo-as a expansão agrícola e colocando-as à disposição das populações urbanas para recreação (2001, p. 24).

 

Acrescenta ele ainda que a noção reinante era de recursos naturais ilimitados, não levando em conta as ocupações indígenas e de colonos.

 

Em grande parte do século XIX, a maioria do território dos Estados Unidos era selvagem. A inesgotabilidade dos recursos era o mito americano dominante por um século depois da Independência. [...] Até as pessoas que criticavam a exploração dos recursos não podiam escapar ao sentimento que além de tudo havia muito espaço para povos e natureza no mundo. Os indígenas então estavam exasperados; grande parte do oeste era selvagem. Nesse contexto geográfico, o progresso era sinônimo de crescimento, desenvolvimento e conquista da natureza (NASH, 1989, apud DIEGUES 2001, p. 25).

 

É interessante observar que a ideia de Wilderness, traz em seu bojo uma lógica de exploração caracterizada pela colonização, uma vez que a intenção parecia ser muito pouco com a conservação e sim com a estética da imagem de poder da nação. Fato esse explicado pela desapropriação e exportação forçada de populações tradicionais que há séculos já conservavam as áreas e sobre elas tinham grandes conhecimentos passados, oralmente, de geração a geração. Não obstante foram considerados como selvagens quando, na verdade, eram apenas uma civilização diferente, com sua cultura em vários contextos.

Vemos vários tensionamentos no processo de criação, definição e visão de áreas protegidas que nos leva à compreensão de que as disputas e tensões presentes fazem da construção desses espaços e contextos, movimentos que significam uma potência de deslocamentos e contorcimentos normativos, sobretudo, com fugas e escapes para outras criações.

Nesse movimento de efeitos de deslocamentos, a população da área precisa ser considerada como sujeito ativo. É  necessário um processo de sensibilização sobre o papel deles, pois, em muitos casos, não sabem sequer o que é uma área protegida, qual sua função e finalidade, ou não se sentem parte integrante desses espaços demarcados.  Para eles não importa a demarcação, mas sim o movimento dentro e fora que atravessa os contextos.

 Quanto a gestão, mais especificamente nas RDS, precisam ter um plano de manejo e um conselho gestor, e, caso não exista, o SNUC recomenda que sejam estimuladas ações educativas que fomentem a participação da comunidade, sendo solicitado ao órgão gerenciador que conduza o processo.

Esses elementos foram levados em conta quando a elaboração da proposta curricular do curso em tela.  Esta proposta é  resultado de um processo de trabalho coletivo direcionado  pela comissão designada pela portaria 1490/2015 – GR/UEA e está fundamentada numa perspectiva teórico/prática, permeada pelo processo dialógico em diferentes  instâncias.  Destacamos o papel do Colegiado do Curso de Pedagogia, o Conselho Acadêmico da ENS – CONAENS, O Conselho Universitário da UEA – CONSUNIV,  o  Grupo de Estudo e Pesquisa em Formação de Professores para a Educação em Ciências na Amazônia (GEPEC) com foco na formação de professores   e  o Comitê Estadual da Educação do Campo do Amazonas.

Esse contexto e especificidade orientou os encaminhamentos no desenvolvimento da proposta curricular. A forma como estão distribuídas as disciplinas levam em consideração a necessidade de articulação entre as áreas do conhecimento e apresenta a pesquisa como eixo articulador entre as áreas durante todos os períodos.

A Dimensão Política do ato pedagógico proposto pretende que a formação esteja articulada ao compromisso com o contexto amazônico, no qual os sujeitos envolvidos no processo de formação -  estudantes, professores e comunidade desenvolvam sua capacidade e potencialidade, possibilitando uma leitura crítica da realidade no campo educacional.

Dessa forma, salientamos aspectos importantes a serem considerados neste caminhar, entendendo que a identidade do curso não se constitui em algo fixo, mas processual, possibilitando aos sujeitos envolvidos as significações e reflexão/ação concretas na formação de professores e, como desdobramento, a possibilidade de uma construção curricular que se faz na relação direta com as enunciações das populações no contexto amazônico.

Conforme o Projeto Político- Pedagógico do curso (2018), os sujeitos que moram nos diversos contextos rurais da Amazônia são penalizados pela ausência das políticas públicas e estabelecem uma estreita dependência com a sede do município, sobretudo no atendimento de suas necessidades básicas. Podemos evidenciar essa lógica no ritmo de vida de pessoas em que a distância torna-se um fator de destaque nesse espaço, pois é a partir dela que se estabelece maior ou menor relação com a sede municipal, com as comunidades vizinhas, com o acesso à educação e com o acesso ao atendimento médico, dentre outras situações na ligação com outros grupos comunitários.

A partir dos apontamentos de Jesus (2009), podemos dizer que o cotidiano rural amazônico se constrói em ritmos e lógicas diferentes dos centros urbanas, trazendo particularidades sociais e econômicas que precisam ser levadas em consideração ao se pensar na educação como direito de todos.

Acrescenta-se ainda, a distância entre as comunidades, o tempo dedicado ao ato de locomover-se, os riscos do transporte fluvial, o limitado acesso aos serviços públicos de saúde e as características culturais das populações de várzea e de terra firme como desafios presentes no cotidiano rural, traços esses bem valorizados pelos sujeitos nesses espaços, que mesmo em meio a tantas adversidades que não são consideradas, eles veem na educação escolar o senso de integração e valorização da sua comunidade.

Neste sentido, entende-se que a ausência de uma compreensão desse contexto, no que diz respeito às suas singularidades locais e seus movimentos contextuais, dificulta, tensiona e desloca a projeção de propostas voltadas apenas para o ensino que primam apenas por habilidades e competências.

A potência do deslocamento ou efeitos de deslocamento destacados, referem-se à produção imprevisível do currículo.  Não há como prever os acontecimentos que dão sentido ao currículo em meio a tantas variantes. 

Em outras palavras, é em meio a tais variantes que surge a preocupação com a questão educacional e os direcionamentos de um olhar atento com relação à formação de professores nos diversos contextos rurais do estado do Amazonas, na tentativa de construir um caminho em que as populações locais possam participar e viver um processo educativo em consonância com suas singularidades subjetivas locais.

No estado do Amazonas, assim como nos demais estados brasileiros, é perceptível  uma forte trama na educação em trabalhar para legitimar a lógica economicista por meio da submissão das pessoas às contradições dessa lógica e seus engendramentos.   A escola tem sido considerada como um instrumento de reprodução das ações conservadoras, organizando seus processos educativos para a manutenção do status quo.  No entanto, essa relação com os trabalhadores rurais está impregnada pelas contradições que marcam as lutas pela terra e pelo trabalho, através dos movimentos sociais.

E como afirma Roseli Caldart (2009) os movimentos sociais educam para a organização da classe que vive do trabalho com/da terra.  Nesse cenário, a Educação do Campo se constrói como um contraponto a esse modelo de educação, porque seus processos formativos possibilitam que as pessoas que trabalham no campo se encontrem e se organizem e assumam a condição de sujeitos na/da direção do seu destino.

A referência ao campo na Amazônia é distinta das realidades encontradas em outras regiões do país, como as áreas de assentamento no Sudeste e Nordeste.  Este campo é caracterizado aqui pelos movimentos dos povos que habitam por entre as águas e   florestas, com suas construções e significações que apontam para o trabalho com elemento teórico e prático que ajudam esses sujeitos a refletirem acerca da sua realidade e das contradições, no intuito da busca de um bem viver em sociedade, em que eles próprios construam  a sua autonomia de pensar e de agir, diante de inúmeros articulações que vão se tecendo, como é o caso  do curso de Pedagogia do Campo na formação dos educadores na área protegida aqui descrita e caracterizada.

 

 O curso de pedagogia do Campo como demanda de povos da floresta

 

          A proposta curricular do curso de Pedagogia do Campo pode ser entendida como resposta a uma demanda do TMJ. Iniciou em julho de 2019, com vestibular específico para moradores das comunidades que se integram na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Uacari, localizada no município de Carauari.  A turma é composta por 50 estudantes, moradores de 14 comunidades ribeirinhas.  Eles são oriundos de famílias que vivem da agricultura e da pesca e em suas atividades desenvolvem ações voltadas ao manejo de quelônios, pesca – em especial o manejo do peixe “pirarucu” -  entre outros.

          Diante das especificidades do contexto da demanda e de acordo com a proposta pedagógica, o curso tem como objetivo:

Promover uma formação teórico-prática respaldada nos princípios filosóficos e pedagógicos da Educação do Campo aos futuros pedagogos que irão atuar na docência  da educação básica na Educação Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental e em processos de gestão em espaços escolares e não escolares no contexto do campo. (PPC- Curso de Pedagogia do Campo, Carauari, 2018, p.47).

 

A partir desse objetivo, com base nas normativas para a formação de professores para a educação básica, a proposta foi pensada em 04 eixos que se articulam nos 04 anos de formação. Cada eixo tem a duração de um ano e é composto por 02 temas geradores em que é trabalhado a cada semestre em um sentido articulador, através das disciplinas e atividades de pesquisa, com o objetivo do eixo a que faz parte.

Ao final de cada semestre com seu tema gerador, realiza-se  um seminário integrador que permite aos estudantes socializarem as significações do conhecimento construído em cada etapa, articulando o tema gerador durante as disciplinas.  Esse processo compõe de forma processual a perspectiva de pesquisa no decorrer do curso, na relação com os saberes das/nas comunidades.

O curso é desenvolvido no formato modular, presencial, com sua carga horária dividida em 80% de aulas presenciais e 20% com atividades mediadas no laboratório tecnológico situado dentro da reserva onde o curso ocorre, em um sistema de alternância entre comunidade e universidade.

Os estudantes passam quatro meses estudando em um espaço não formal no meio do que podemos chamar de Amazônia profunda, em um centro de treinamento da reserva que conta com uma estrutura de pesquisa, com laboratório de informática, biblioteca e demais laboratórios de vida.

Por sua vez, os professores formadores são selecionados via edital, considerando  sua formação com o enfoque às questões ambientais e sustentabilidade no contexto amazônico e participam da imersão curricular junto com os discentes no mesmo período.

Após a etapa das disciplinas há o tempo comunidade em que os discentes desenvolvem suas produções, criam e fazem relação com o conhecimento construído, sempre articulando e contextualizando suas compreensões e produzindo novos sentidos.

Na condução do curso de Pedagogia do Campo, desenvolvemos estratégias de formação com os professores formadores, buscando um movimento que se fundamenta em relações dialógicas, no exercício de práticas democráticas, na construção da discussão dos objetivos e princípios da proposta do curso, no conhecimento da localidade e do entendimento da RDS, não apenas como uma demarcação, mas um movimento que se constrói para além das marcações, ou no dizer de Bhabha(2011) em um movimento de enunciação e negociações que ocorre nos interstícios (entre-lugares) onde as experiências intersubjetivas e coletivas macro (nação) e o valor cultural (micro) são negociados de forma ambivalente em um processo sempre conflitivo e em um deslocamento instável, pois sempre há algo que escapa.

Entendemos que vários são os desafios quando se busca construir uma proposta pedagógica  curricular que leve em conta as características acima mencionadas, com ênfase em um currículo que se movimenta e articula várias questões como cultura, enunciação, sustentabilidade, formação crítica, organização comunitária, políticas públicas, inclusão e a relação entre família e escola ou entre escola e comunidade, caminhando e produzindo juntos as experiências que vão significando todo o processo, como bem destaca Hadocklobo (2013) a respeito das experiências enfatizando que a experiência produz uma voz, uma voz singular que tensiona, cria e contextualiza as ações políticas, escapando da ideia do eficientismo.

 

[...]portanto, não se trata de uma crítica no sentido restritivo do termo [experiência], mas sim de uma tentativa de, ao mostrá-lo ou ao retratá-lo sob rasura, alargar o próprio conceito de experiência, a fim de que, talvez, não mais acenado a um acesso às coisas mesmas, ele possa apontar à estrutura de não presença das coisas, a um movimento do que poderia talvez chamar de realidade. Nesse sentido, outro rastro aparece (sem aparecer) não como um conceito, mas como esta estrutura sob rasura das coisas, e a experiência entre aspas, ou experiência do rastro, não é a experiência de algo, nem de nada, mas um certo rastro de experiência, que é, por sua vez, a estrutura de toda experiência possível (p. 265, grifo do autor).

 

De igual maneira, confirmamos, a partir do dizer de Borges e Lopes (2015), que tal entendimento gera ações políticas dentro da política, tornando o projeto de formação como algo não pleno, mas impossível quando destacam que:

 

Afirmar a impossibilidade do projeto de formação docente significa afirmar a impossibilidade de plenitude, a impossibilidade de identidades plenas, a impossibilidade de previsão do cálculo sobre a formação. Remete à contingência que torna os eventos possíveis, mas não necessários e obrigatórios. Remete à imprevisibilidade, à ausência de certezas, à diferença, à plástica dos processos de interpretação. (2015, p. 498).

 

Neste sentido,  estamos diante do desafio da  construção de um processo contínuo de formação  profissional e de vida das pessoas ou poderíamos dizer, do bem viver para  o grupo e para si; mas acima de tudo, construindo possibilidades a partir de um processo de reflexão e formação coletiva, em que estudantes, professores e demais sujeitos envolvidos  possam ser partícipes de um processo de gestão democrática  e, em  especial, criem ou fortaleçam  o sentimento de pertença em um espaço construído na relação com o outro e que, de direito, a eles cabem a organização através de suas decisões e atos políticos.

 

Algumas considerações

 

Consideramos que esse movimento de construção curricular implica olhar a formação do(a) professor(a) como possibilidade concreta na construção de uma Escola Pública Popular e aponta para o fato de como são importantes e urgentes as discussões em torno da produção curricular e a função social da escola.

Portanto, a partir dessa problematização, destacamos que pensar a Formação de Professores na Educação Básica no Brasil, diante  a atual conjuntura vinculada a proposições neoliberais e neoconservadoras, exige fortalecer o processo de resistência dos grupos sociais minoritários, a partir de aspectos teóricos-metodológicos cujos pilares são o conhecimento, prática e engajamento, que façam a articulação dos sujeitos com o outro, com a vida e com o trabalho.

Acreditamos ainda que, com uma perspectiva de formação pautada em um currículo contextualizado, construído no próprio processo de formação, dando abertura para as criações e significações nas experiências cotidianas, é possível resistir e lutar sempre por uma formação que enuncie outras possibilidades e operações possíveis por dentro de normativas que trazem a lógica de um comum, contorcendo-a e desarticulando a ideia desse comum que não existe em lugar nenhum, e em especial no campo amazônico que para nós se configura um campo de movimentos incomuns por entre rios e florestas.

Assim sendo, entende-se que problematizar a política curricular de formação, por meio da defesa das experiências formativas no curso de Pedagogia do Campo desenvolvido pela UEA em Carauari, requer operar no fluxo dessa política e isso, para nós, implica por fim em desemaranhar e perturbar o sentido de uma identidade docente fixada.  Além disso, requer dar visibilidade aos processos enunciativos e contextuais dessa formação, às negociações presentes no diálogo com o contexto amazônico e seus efeitos deslocadores nos contextos de formação em que as diferenças de pensamentos, subjetividades e saberes são tidas como obstáculos ao modelo de currículo apenas prescritivo. 

 

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[i] O acesso a Reserva A RDS Uacari, distante 634 km de Manaus, também pode ser feito somente por barco, a viagem dura o equivalente a três dias partindo da capital amazonense. Fonte: https://fas-amazonas.org/

 

[ii] A palavra “sauvage” em francês e “selvaje” em espanhol significa literalmente habitante da floresta, seu sentido pejorativo tem origem numa clara discriminação contra esse povo. In: COLCHESTER, 2000, p. 226 (Nota de Rodapé).

 

Desenho de rosto

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