As transformações dos saberes a ensinar e dos saberes para ensinar na profissão docente
The transformations of knowledge to teach and knowledge to teach in the teaching profession
Las transformaciones del saber para enseñar y del saber para enseñar en la profesión docente
Jose Alberto Azevedo Vasconcelos Correia
Universidade do Porto, Município de Porto, Porto, Portugal
correia@fpce.up.pt
Recebido em 11 de outubro de 2023
Aprovado em 31 de outubro de 2023
Publicado em 06 de fevereiro de 2025
RESUMO
Neste trabalho analisamos desafios colocados à identidade e formação de professores pelas transformações epistemológicas produzidas no campo dos saberes a ensinar e no domínio dos saberes necessarios para ensinar. Admitimos que o professor é um trabalhador cognitivo que mobiliza saberes oriundos do campo dos saberes a ensinar e no campo dos saberes para ensinar, admitindo que a sua ação não se limita a transpor estes dois tipos de saber. Assim num primeiro momento refletimos sobre as transformações da estrutura epistemológica dos saberes a ensinar tendo por base um conjunto de trabalhos que refletem sobre os desafios colocados pelas “Ciências de Ponta”. Num segundo momento propomos uma análise sucinta da evolução que se produziu nas estruturas de investigação das Ciências da Educação e da sua relação com as práticas e narrativas profissionais. Antes de sintetizarmos a nossa reflexão propomos uma deambulação sobre os saberes da ação e o seu modo discreto de existência.
Palavras-chave: Ciências da Educação; Investigação; Identidade; Formação de professores.
ABSTRACT
In this work we analyze challenges posed to the identity and formation of teachers by the epistemological transformations produced in the field of knowledge to teach and in the domain of knowledge necessary to teach. We admit that the teacher is a cognitive worker who mobilizes knowledge from the field of knowledge to teach and in the field of knowledge to teach, admitting that his action is not limited to transpose these two types of knowledge. Thus, at first, we reflect on the transformations of the epistemological structure of the knowledge to be taught based on a set of works that reflect on the challenges posed by the "Cutting-Edge Sciences". In a second moment we propose a brief analysis of the evolution that took place in the research structures of the Educational Sciences and its relationship with professional practices and narratives. Before synthesizing our reflection we propose a wandering about the knowledge of the action and its discrete mode of existence.
Keywords: Education Sciences; Research; Identity; Teacher Training.
RESUMEN
En este trabajo analizamos los desafíos planteados a la identidad y formación de docentes por las transformaciones epistemológicas producidas en el campo del conocimiento para enseñar y para el dominio de los conocimientos necesarios para enseñar. Admitimos que el docente es un trabajador cognitivo que moviliza saberes provenientes del campo de los saberes a enseñar y del campo de los saberes para enseñar, admitiendo que su acción no se limita a transponer estos dos tipos de saberes. Así, en un primer momento reflexionamos sobre las transformaciones de estructura epistemológica dos saberes a enseñar a partir de un conjunto de obras. que reflexionan sobre los desafíos que plantean las “Ciencias de Vanguardia”. En segundo lugar, proponemos un análisis sucinto de la evolución que se há producidos en las estructuras de investigación de las Ciencias de la Educación y su relación con prácticas y narrativas profesionales. Antes de resumir nuestra reflexión, proponemos un paseo po rel conocimiento de la acción y su modo discreto de existência.
Palabras clave: Ciencias de la Educación; Investigación; Identidad; Formación de profesores.
Introdução
Este texto constitui a versão escrita e formatada de a conferencia de encerramento do IV Encontro Luso-Brasileiro Trabalho Docente e Formação de Professores realizado em Lisboa no Instituto de Educação em 5 de junho de 2019. No desenvolvimento desta conferencia partimos, antes demais, de dois pressupostos básicos:
1) o reconhecimento de que o professor é fundamentalmente um trabalhador cognitivo e, portanto, lida com cognições mais ou menos estruturadas e estabelecidas e produz cognições situadas e contextualizadas;
2) o reconhecimento de que todo este trabalho cognitivo está associado um trabalho relacional que se desenvolve, em parte, num contexto institucional estabelecido, mas não se limita a reproduzir este contexto, sendo, antes, também produtor de contextos e relações inéditas.
Começo por dar uma atenção particular ao primeiro pressuposto. Este pressuposto supõe se admita que, na realização do seu trabalho cognitivo, o professor mobiliza fundamentalmente dois tipos de saberes: os saberes a ensinar e os saberes para ensinar. Ambos se produzem e produzem duas ordens cognitivas específicas e relativamente codificadas, sendo que as relações entre estas duas ordens cognitivas não são necessariamente relações de continuidade.
Na realidade, a sua articulação gera conflitos cognitivos cuja gestão não está previamente assegurada nem configurada, nem deriva diretamente de nenhuma destas ordens cognitivas. Pelo contrário, estes conflitos cognitivos são sempre objeto de uma gestão contextualizada, no âmbito de uma ação proximal, de uma ação que mobiliza cognições e procedimentos que não estão inscritos tanto no universo dos saberes a ensinar como no dos saberes para ensinar.
O professor é, portanto, um trabalhador cognitivo que não se limita a aplicar (cognitiva ou instrumentalmente) saberes produzidos em campos exteriores à sua experiência profissional sensível. Ele é também um produtor de saberes contextualizados; estes últimos saberes nem sempre estão codificados, nem são facilmente dizíveis nem dedutíveis das esferas dos saberes a ensinar e dos saberes para ensinar. Eles integram-se, por sua vez, no domínio difuso dos “truques do ofício”, não dispondo de um estatuto epistemológico reconhecido e desqualificado face aos “saberes nobres”. Os professores envolvem-se, assim, em processos complexos de cognições situadas particularmente complexas. Estas cognições não são compreensíveis nem inteligíveis por referência aos contributos e às disposições provenientes das ordens cognitivas em que se produzem os saberes e que o professor é suposto mobilizar.
Por outro lado, o reconhecimento de que as três ordens cognitivas que dão sentido ao trabalho docente – saberes a ensinar, saberes para ensinar e saberes contextualizados e situados – mantêm entre si relações tensas que oscilam sempre entre a continuidade e a disrupção, implica que, no processo de construção sempre inacabado da profissão, se abandone a ideologia do défice para se acentuar a importância dos dispositivos e disposições pertinentes à gestão sábia dos conflitos.
Os processos alternativos de produção de uma construção emancipatória da profissão sustentam-se, pois, em dispositivos e disposições pertinentes para a gestão de saberes heterogéneos, quer no que diz respeito à sua substância, quer no que concerne aos seus processos de produção. Estes processos contrastam, por isso, com lógicas que, por se apoiarem na noção de “necessidade de formação”, induzem e legitimam uma definição sombria e deficitária da profissão.
O segundo pressuposto – o pressuposto de que o trabalho cognitivo é peninsular e não insular – e de que, por isso, este trabalho se associa ao trabalho de produção relacional e organizacional, pode ter fortes implicações nas modalidades de se pensar e praticar a gestão e a administração educativa. Não me vou alongar sobre este tema, uma vez que ele não constitui a dimensão estruturante da minha reflexão. Não posso, no entanto, deixar aqui um apontamento em três notas.
A primeira nota visa salientar que a administração e a gestão educacional não podem ser pensadas como a aplicação para o campo da educação de teorias e práticas de administração gerais e mais ou menos descontextualizadas, as quais, como é sabido, devem esta descontextualização ao facto de se lhes ter reconhecido pertinência na sua aplicação em vários domínios da atividade económica. O que importa neste domínio sublinhar é que o trabalho cognitivo, como dimensão estruturante da problemática da gestão educacional, é um trabalho com exigências específicas, sendo que e os seus produtos não são objetiváveis nem se produzem no interior de um ciclo produtivo em que a ação seria suscetível de se articular diretamente com os seus produtos.
A segunda nota é para pôr em relevo a ideia de que é desejável optar que, na gestão do trabalho cognitivo, se atribua uma importância acrescida às suas dimensões comunicacionais em detrimento das suas valências instrumentais. Neste contexto, o trabalho a desenvolver na gestão e administração dos contextos educacionais é um trabalho de mediação organizacional e no qual se procura articular e facilitar a interação entre os diferentes contextos e estruturas, no pressuposto que estes últimos se transformam no decurso deste processo.
A terceira e última nota visa chamar a atenção para a importância de se pensar a gestão e organização educacional não tanto como uma organização de funcionalidades e de competências que preexistem à sua organização, mas como produtora de qualidades mais ou menos invisíveis e que nem sempre se incorporam nos “cálculos organizacionais”. Neste caso, a democracia, a interferência e a participação não constituem luxos ou “perdas de tempo” de que se poderia abdicar em nome da eficácia, da eficiência e da qualidade das decisões, antes se constituem como importantes garantes da qualidade e da apropriação e da produção das dinâmicas das organizações qualificantes.
As transformações da estrutura epistemológica dos saberes a ensinar
A existência de uma tensão entre a ciência que se faz e a ciência feita constitui o pano de fundo que pode servir de base a uma análise das transformações da ciência moderna. Sabemos que os professores são fundamentalmente chamados a lidar com os contributos da ciência feita, no pressuposto de que a apropriação de parte destes contributos irá desenvolver nos alunos o espírito crítico e científico, criando predisposições ao questionamento da realidade.
Os trabalhos de Thomas Kuhn (1998) e de Paul Feyerabend (1993), entre outros, foram particularmente eloquentes no que diz respeito ao questionamento de uma representação de uma ciência ocupada com a produção cumulativa de saberes contribuindo para um conhecimento mais aprofundado do Universo. Na obra A estrutura das revoluções científicas (2009), Thomas Khun mostra, justamente, que a ciência não se produz exclusivamente por acumulação de saberes, mas incorpora revoluções paradigmáticas, que não se produzem exclusivamente por razões cognitivas, mas que são interpretáveis recorrendo a dimensões psicossociais, sociológicas e culturais. Paul Feyerabend (1993), por seu lado, foi autor de um conjunto de estudos que assinalaram o carácter arbitrário do chamado método científico e os limites dos seus procedimentos na busca da verdade e da objetividade.
Callon (2011) e Latour (1994,1999, 2019) dão conta, por sua vez, de vários procedimentos epistemologicamente aceitáveis e úteis para a produção de verdades, sendo que estes procedimentos se desenvolvem em “fóruns híbridos” que não contemplam apenas investigadores, mas vários protagonistas competentes na produção concertada de procedimentos de objetivação.
Mas, se estes e outros autores questionam o modelo dominante de produção de conhecimentos científicos, acentuando a relativa arbitrariedade epistemológica e cognitiva dos seus procedimentos, outros, mais recentes e baseados em investigações de ponta, debruçam-se sobretudo sobre a relativa arbitrariedade dos fundamentos cognitivos da estrutura dos saberes produzidos, os quais, como é sabido, constituem o fundamento da ciência ensinável.
Os modos de existência dos saberes a ensinar
1.1. Numa obra publicada no final da década de 80 e intitulada A Nova Aliança, Prigogine e Stengers (1986) propõem uma importante reflexão sobre o significado do tempo e da temporalidade na Física e na descrição do mundo natural. Na opinião destes autores, o estudo dos sistemas instáveis e longe do equilíbrio “assinalaram a passagem do determinismo para as probabilidades, da reversibilidade para a irreversibilidade” (p.22), sendo que estas passagens já não são epifenómenos nem perturbações momentâneas, mas são atualmente aceites por um número crescente de físicos. A questão do significado do tempo e da sua irreversibilidade questiona o modelo de inteligibilidade considerado inquestionável na Dinâmica e Física clássicas.
Com efeito, desde a sua origem, “a física estava dividida pela oposição entre tempo e eternidade: entre o tempo irreversível das descrições fenomenológicas e a eternidade inteligível das leis que deveriam permitir a interpretação destas descrições fenomenológicas” (p.23), ou seja, as interpretações fenomenológicas estariam subordinadas às leis gerais e constituíram uma manifestação contextualizada dessas leis gerais. No trabalho destes dois autores, encontramos, assim, algumas referências sobre as implicações resultantes da introdução da seta do tempo na interpretação e explicação dos fenómenos físicos. Vejamos, então, algumas destas implicações, dando uma atenção particular àquelas que fragilizam os pressupostos da ciência ensinada na escola e da cultura científica que ela pretende promover.
A primeira diz respeito ao anúncio de uma nova reorganização das ciências construída no diálogo e interpelação e já não numa hierarquização epistemológica, cujo papel estruturante era atribuído às Ciências da Natureza; o estatuto do desenvolvimento das diferentes ciências era definido pelo seu grau de aproximação relativamente às Ciências da Natureza. Os autores, que já na obra a Nova Aliança tinham debatido esta questão, afirmam no trabalho Entre o Tempo e a Eternidade (1990) a importância de se reconhecer que o tempo que separa o homem da natureza exige uma reorganização e um modelo de inteligibilidade “que se abra para a ideia do tempo humano enquanto expressão exacerbada de um futuro que compartilha com o universo” (p.21), acrescentando ainda que, no diálogo que assim se estabelece, o que está em causa “não é uma “visão do mundo” que queremos partilhar, mas sim uma visão da ciência.
Assim, para os autores que seguimos, da mesma forma que a Arte e a Filosofia, a Ciência é, antes de tudo, uma experimentação criadora de questões e significados. Tal como a Filosofia, ela não poderá dizer-nos o que é o tempo, mas da mesma forma que a Filosofia, a Ciência tem como problema o tempo, a criação de uma coerência entre a nossa experiência mais íntima, que é a do tempo, e as nossas formas de descrever o mundo e nós próprios, que emergimos desse mundo.
A segunda implicação, questiona diretamente a “racionalidade científica” e o princípio de causalidade que a sustenta. A causalidade na Física tem-se legitimado pela aceitação do princípio da razão suficiente: “a equivalência entre causa e efeito, afirmada pelo princípio da razão suficiente implica (…) a reversibilidade das relações entre o que se perde e o que se cria”. (p.36). Ora, como mostram os autores, para “sistemas suficientemente instáveis (existe) um horizonte temporal além do qual não é possível associar a evolução do sistema a nenhuma trajetória determinada. (Nestes casos) só podemos falar do sistema em termos de probabilidades (…) (e podemos) definir a diferença intrínseca (…) entre as evoluções que levam o sistema para o equilíbrio e as que dele se afastam.” (p.38); ou seja, emerge “a possibilidade de definir uma diferença entre o antes e o depois”, sendo que não se pode prever com certeza o depois a partir do antes.
A noção de acontecimento, a atribuição de um estatuto cognitivo que já não o considera como em epifenómeno que perturba o estado “natural de equilíbrio”, conduz a que este já não possa ser deduzido a partir de uma lei determinista. Pelo contrário, trata-se de reconhecer de uma ou de outra maneira que o que se produziu “poderia” não se ter produzido, remetendo-nos, por conseguinte, para possibilidades que nenhum saber pode reduzir. Os acontecimentos são, assim, potencialmente portadores de sentido, na medida em que eles são suscetíveis de “modificar o sentido da evolução (…) e de produzirem novas coerências” (1990, p.61).
Neste domínio, a Física tem vindo a utilizar noções e problemáticas que, tendo sido específicas das Ciências Sociais e Humanas e consideradas como manifestações do seu atraso científico, são hoje utlizadas frequentemente nas investigações de ponta das Ciências da Natureza. Vejamos alguns exemplos.
Antes de mais, as noções de instabilidade e de incerteza; já não consideradas como recurso narrativo resultante de uma eventual falta de conhecimento, mas como intrínsecas às qualidades dos sistemas estudados. Neste campo, a postura científica valorizada já não é uma atitude de “exterioridade” do investigador relativamente aos sistemas investigados, mas é, antes, uma atitude centrada na atividade intrínseca dos sistemas, da sua relação com o meio ambiente, reconhecendo que só esta atitude gera o tipo de inteligibilidade pertinente para compreender as histórias e as peripécias da evolução dos sistemas.
Em segundo lugar, a noção de sensibilidade, considerada outrora como uma noção utilizável apenas na compreensão dos comportamentos humanos, alarga-se agora ao mundo da natureza. Como assinalam Prigogine e Stengers (1990), um “sistema físico-químico pode (…) tornar-se sensível, longe do equilíbrio, aos fatores desprezáveis perto do equilíbrio. Utilizar neste contexto um termo como o de” sensibilidade” não implica projeção antropomórfica, mas significa um enriquecimento da noção de causalidade” (1990, p.76). Compreende-se, por isso, que o princípio da objetividade se encontre fragilizado, ou seja, que ele seja problemático e já não possa constituir o princípio fundador da possibilidade de construção de verdades e conhecimentos científicos. Ou seja, dito por palavras deles: o “frente a frente entre o objeto submetido a leis intemporais e o sujeito livre, dominando o mundo, mas despido das múltiplas relações que este tece consigo, já não pode doravante dizer-se “racional” no sentido que seria racional opor o mundo” verdadeiro”, “legal” decifrado pela ciência, ao mundo confuso onde vide o cientista” (p.84).
Finalmente, considere-se a noção de bifurcação. Na obra A Nova Aliança, os autores utilizam a noção de “escolha do sistema” para realçarem que, nos sistemas, longe do equilíbrio, se torna possível existirem flutuações resultantes da atividade intrínseca a um sistema que, em determinadas circunstâncias, não são necessariamente descritas previamente, mas discerníveis por abordagens micro, e que produzem uma transformação macroscópica. O lugar onde se produz este novo estado é um ponto de bifurcação, ou seja, os “pontos de instabilidade à volta dos quais uma perturbação infinitesimal é suficiente para determinar o regime de funcionamento macroscópico de um sistema são pontos de bifurcação” (1987, p.234). O estudo da ordem por flutuação, permitindo reconstruir a historicidade das bifurcações conduz a que a se postule que a
lei universal (…) (deve ceder) lugar à exploração de estabilidades e instabilidades singulares e (ao reconhecimento de que) a oposição entre o acaso das configurações iniciais particulares e a generalidade previsível da evolução que elas determinam, (se subordine ao estudo da) coexistência de zonas de bifurcação e de zonas de estabilidade, à dialética das flutuações incontornáveis e das leis médias deterministas (1987, p. 268)
1.2. Depois desta problematização da racionalidade científica, vou agora tecer algumas considerações sobre a aparecimento da complexidade na descrição do designado “mundo natural”. Os autores e as obras que nos têm servido de referência nesta reflexão, questionam-se sobre a diferença entre o simples e o complexo. A resposta tradicional, como se sabe, assenta na noção de hierarquia. Num extremo, estariam os objetos deterministas e perfeitamente inteligíveis, pertences ao mundo natural, de que o pêndulo constituiu o exemplo mais acabado. No outro extremo estaria o mundo social, em grande parte imprevisível.
Ora, “uma das lições mais interessantes da descoberta da complexidade, é aquela que nos ensina a decifrar o mundo onde vivemos sem o submeter à ideia de uma diferença hierárquica entre níveis” (1990, p.87). Deste modo a imprevisibilidade e a complexidade, com a descoberta dos sistemas caóticos libertam-se da ideia de ignorância contingente que poderia ser ultrapassada por um conhecimento melhor, atribuindo-lhe um significado intrínseco. Salientam ainda que “a partir de agora se pode afirmar que a mensagem da entropia não tem como objeto os limites dos nossos conhecimentos ou imperativos práticos. Ela é, antes, uma mensagem que apela para a renovação do sentido e do alcance das perguntas que este mundo nos autoriza a colocar (1988, p.117). Deste modo, a partir de agora “decifrar o mundo é semelhante a resolver uma história policial: um jogo intelectual em que possuímos apenas indícios, e nunca a totalidade dos acontecimentos.” (p.127)
Intimamente associada ao aparecimento da noção de complexidade, os autores discutem o conceito de objetividade científica. O estado atual da Física conduziu à introdução de uma dimensão subjetiva e a uma eventual renúncia a uma descrição do tipo realista, ou, se quisermos, a uma nova forma de realismo. Apoiando-se em Niels Bohr-- premio Nobel da Física em 1922 -, os autores acentuam que esta nova forma de realismo deve integrar a definição do dispositivo experimental na definição dos sistemas, ou seja, integrar na observação a consciência do observador, numa dinâmica contingente não redutível com arbitrariedade. Já não é, portanto, pertinente, o modelo objetivista que se limita “a julgar o mundo dos fenómenos segundo um ideal matemático, a opor o conhecimento intelectual ao conhecimento sensível: ele confere à maioria das leis da física, o estatuto inferior de conhecimento sensível” (1990, p.206). Deste modo, encontra-se fragilizado o ideal de objetividade, oriundo da física, que dominou e hierarquizou as ciências, tendendo-se a definir
uma nova conceção de objetividade científica que procura esclarecer o carácter complementar e não contraditório das ciências experimentais, que criam e manipulam os seus objetos, e das ciências narrativas que têm como problema as histórias que constroem o seu próprio sentido (1990, p. 215)
1.3. Todas as mudanças profundas no modo de se fazer ciência –nos procedimentos de objetivação, nos princípios de causalidade e na estrutura da linguagem científica – foram acompanhadas por importantes transformações da sua organização interna, afastando-se, assim, cada vez mais a ciência que se faz daquela da ciência curricularizada e escolarizada.
Publicado há já alguns anos, o trabalho do Massachusetts Institute of Technology (doravante MIT (2010) sobre a evolução da investigação científica, com o sugestivo título “A Terceira Revolução: a convergência entre as Ciências da Vida, as Ciências físicas e a Engenharia”, debruça-se sobre a atual evolução da Ciência, realçando que se vive um contexto de uma profunda revolução científica. Na opinião dos autores, esta revolução abala mesmo os fundamentos das representações da ciência. Esta revolução resulta da convergência de vários ramos do saber, é tensa e não decorre diretamente do trabalho desenvolvido em cada um dos territórios disciplinares. Ela envolve o trabalho desenvolvido nas interfaces de diferentes territórios disciplinares e resulta da transgressão das fronteiras estabelecidas. É, portanto, uma revolução das interfaces que não origina necessariamente acréscimos de interdisciplinaridade, mas multiplica os procedimentos e os processos de “polinização dos saberes”. É, por isso, uma revolução errática, tendencialmente desestruturada e desestruturante. Esta revolução, finalmente, privilegia o trabalho criativo, a nível da definição das problemáticas e na produção dos procedimentos, apoiando-se em coletivos de trabalho cuja organização não deriva das lógicas inerentes a dinâmicas funcionais hierarquizadas, mas são coletivos tendencialmente trans-hierárquicos. Trata-se, portanto, de uma Ciência criativa que assume um sentido do risco que esteve na origem da Ciência Moderna e que esta parece ter abandonado para se transformar numa Ciência triste ocupada fundamentalmente com o cumprimento e a ritualização dos procedimentos de objetivação.
Os modos de existência dos saberes para ensinar
2.1 Feita esta alusão a uma das principais tendências que distinguem a atual ciência de ponta, importava salientar agora alguns dos seus aspetos mais relevantes, de forma a poder ser possível recontextualizar a escola e a profissão docente.
Em primeiro lugar, é inquestionável o contraste entre esta ciência que se pratica e a ciência que se trabalha na escola em nome da promoção da cultura científica, do espírito crítico e do rigor do questionamento. A inegável dissociação entre estas duas ciências coloca, desde logo, um imperativo à escola - a produção de didáticas mais permeáveis à ciência que se faz efetivamente do que àquela que se julga ter sido feita. Assim, sem se negar a relevância do património cognitivo da ciência e sem se deixar de reconhecer a sua importância na promoção da cultura e na formação do espírito cientifico, nomeadamente das componentes que contribuem para o desenvolvimento do espírito problematizador, importa também relativizar este património, sobretudo tendo em conta as tendências descritas anteriormente.
O trabalho pedagógico não pode deixar de ser indisciplinar e indisciplinado, não se ancorando apenas nos limites definidos pelas fronteiras institucionalizadas da ciência feita. Esse trabalho não é, por isso, um trabalho solitário, mas um trabalho solidário, invocando com consistência a historicidade da ciência, os seus dilemas, as suas tensões e as suas imprevisibilidades.
Uma segunda nota serve para destacar a crescente permeabilização da ciência relativamente à experiência sensível. Como já tive oportunidade de dizer, esta permeabilização parece ser inquestionável e ser responsável para admitirmos que a Ciência não pertence apenas ao mundo dos cientistas, mas ao mundo que todos habitamos e construímos. Os autores que tenho vindo a seguir, atribuem uma particular ênfase à Nova Aliança que vem regulando as relações entre as Ciências Sociais e Humanas e as Ciências da Natureza. Uma aliança que se vem construindo, quer nos procedimentos, quer nas linguagens e conceitos acionados. Dir-se-ia que, neste contexto, os saberes que desejavelmente constituiriam os saberes a ensinar se constroem numa linguagem, numa estrutura de problematização e questionamento, similar àquelas que estruturam, legitimam e valorizam as experiências sensíveis e a narratividade dos profissionais da educação.
Sabemos também que estas experiências e estas narrativas profissionais, enquanto consideradas como expressões de “subjetividades profissionais” ficam, em geral, circunscritas aos espaços privados da comunicação interprofissional, por não se lhes reconhecer uma legitimidade científica que as autorizem a habitarem os “espaços públicos” da profissão e a integrarem-se nas designadas descrições científicas da profissão e das práticas profissionais. Também sabemos, por experiência própria, que estas descrições científicas são descrições simplificadas de uma profissão que, embora parecendo simples quando vista de fora é particularmente complexa quando escutada e vivida por dentro. O desafio que neste domínio se coloca, portanto, é o de reconstruir uma cientificidade educativa comprometida com os atores educativos e que possa contribuir para a produção e legitimação de referenciais que qualifiquem o desejável debate das experiências sensíveis dos profissionais de educação, reeditando um debate que parece ter sido suspenso há vários anos entre a cientificidade educativa e as práticas profissionais dos educadores.
2.2 Para melhor explicitar as transformações no espaço onde se constrói a legitimidade dos saberes para ensinar, proponho agora uma digressão sobre a construção socio-epistemológica da cientificidade educativa, atribuindo uma ênfase acrescida à configuração dos espaços de produção destes saberes em detrimento dos seus conteúdos. Para o efeito, parece-me ser heuristicamente pertinente retomar um modelo interpretativo dos processos de produção e de circulação dos produtos da investigação educacional já proposto por mim no decurso de uma conferência, no 1º Congresso, promovido pelos Centros de investigação em educação e posteriormente publicada na revista Sísifo (Correia; Caramelo, 2010).
Este modelo heurístico propõe uma definição interativa da Investigação em Educação (doravante IE) admitindo que ela mantém relações de complementaridade e de tensão com três espaços, mais ou menos estruturados, nos quais se produzem e circulam regimes de verdade sobre a educação. Estes regimes de verdade interagem entre si e com os regimes de verdade produzidos no campo da investigação.
Admito, assim, que a mestiçagem constitui a característica mais relevante do campo epistemológico das Ciências da Educação (doravante CE). Esta mestiçagem é sempre o resultado provisório e instável da sua inserção num espaço discursivo heterogéneo, sendo que os procedimentos científicos não garantem aos discursos com pretensão à cientificidade uma superioridade cognitiva aprioristicamente assegurada; estes discursos envolvem-se em complexos processos de legitimação na interação com outros regimes de verdade produzidos noutros espaços narrativos.
Tendo em conta este contexto, é analiticamente pertinente abandonar as conceções essencialistas de Ciência – a exemplo do que se tem vindo a reconhecer no domínio dos saberes a ensinar – para valorizar, sobretudo, uma conceção mais reticular e interativa da cienticidade educativa. Só esta conceção será capaz de incorporar no campo da análise as determinantes e as lógicas das vinculações da cientificidade aos campos com ela que mantém relações privilegiadas, contribuindo simultaneamente para estruturar estes campos e ser estruturada por eles. Ou seja, a aplicação das CE ao campo educativo não é basicamente uma aplicação instrumental, nem tão pouco cognitiva, mas uma aplicação comunicacional onde aquelas constituem casos particulares desta última. Manuel Matos (2019), numa conferência recente, e pu, realça que a entrada pelo conhecimento objetivo é isomorfa dos interesses socioinstitucionais e políticos representados no Estado (WALERSTEIN, 1996). Como tal, esta entrada é
condição de produção e de regulação da ação, tanto prático-moral, como técnico-instrumental (…) constituindo o fundamento do modelo instrucionista, isto é, de um modelo para o qual o conhecimento válido é o conhecimento construído na exterioridade e na extra-territorialidade dos seus destinatários, considerados, à partida como tábua rasa, condição formal para a universalidade do conhecimento e sua aplicação incondicional, segundo o princípio do bem comum. (p. 35)
Manuel Matos (2019) associa ao modelo instrucionista uma conceção de prática que está sujeita a “um conceito cósmico de tempo, onde o movimento se mantém solidário com uma visão da vida pautada por ritmos biológicos, definidos segundo os parâmetros da natureza, nos quais a sucessão dos fenómenos não dá lugar a alterações essenciais, mas apenas a variações conjunturais e fenoménicas que era necessário corrigir para que se tornassem conformes ao modelo “natural” (biologicamente, o estado adulto; epistemologicamente, o racional e o não-contraditório; socio-politicamente, o instituído/normativo). Estamos, assim, perante um conceito de tempo que ´fortemente questionado no espaço interpretativo e explicativo de onde emergiu.
A adoção deste modelo não significa, contudo, que não se reconheça a autonomia da investigação relativamente às suas determinantes políticas. Esta adoção implica, porém, que tal autonomia não é um estádio, mas um processo, uma autonomia heterodeterminada, adquirindo configurações específicas em função da gestão das suas vinculações, tanto na área da militância pedagógica, como na área do político - em grande parte estruturado em torno da figura da expertise tecnocrática -, como ainda com o conjunto de dispositivos que asseguram uma difusão alargada dos seus processos e produtos. Os dois primeiros campos (campo da militância e campo político) mantêm relações tensas com a cientificidade educativa e com as cognições produzidas, enquanto os dispositivos de difusão alargada desempenham um importante papel na estruturação dos públicos-alvo da investigação, ou seja, na construção do seu espaço público, influenciando fortemente os suportes e a estrutura narrativa dos textos privilegiados.
Idealmente estes campos estruturam as suas narrativas e acionam logicas de legitimação específicas e que, parecendo não ser compatíveis entre si, não impedem o desenvolvimento de interações e de dinâmicas de contaminação recíproca. Assim, a lógica argumentativa que predomina na esfera política é a da argumentação persuasiva e normativa, sendo que esta persuasão está na origem de produções discursivas curvilíneas e marcadas pela redundância. Este regime de enunciação assegura, por outro lado, um trabalho de simplificação do educativo, atribuindo aos entes educativos e suas relações qualidades que permitam representá-los como seres geríveis.
A esfera da utopia educativa e da militância, que, como sabemos, teve em Portugal uma grande importância simbólica na década de 90 na esfera do político, elabora um regime de enunciação relacionado com a expressão das convicções, sendo que predomina aí uma lógica argumentativa que recorre frequentemente a figuras oriundas da autenticidade, do discurso cívica e eticamente autêntico. Neste regime enunciativo, o recurso à figura do exemplo representa um papel central. Na esfera cognitiva, por sua vez, privilegia -se um regime de enunciação estruturado por preocupações relacionadas com o ajustamento entre os discursos produzidos e a realidade. Ao procurar ser congruente com a realidade, a esfera cognitiva recorre frequentemente a argumentos do tipo explicativo ou interpretativo. Ambos procuram a coerência e para a difundirem procuram desenvolver uma argumentação de clarificação, o que os distingue do discurso político que, como assinalei, é marcado pela redundância.
2.3. A gestão das interações com estas três ordens narrativas, por vezes incompatíveis entre si, constitui o âmago de uma genealogia de uma cientificidade educativa, construída no registo da complexificação.
Nos últimos vinte anos, no entanto, este modo complexo de existência sofreu um processo de simplificação particularmente intenso, sem que por isso tivessem desaparecido do campo, nomeadamente na sua periferia, estes modos complexos de existência.
Neste processo de simplificação é possível identificar dois momentos. O primeiro pode ser caracterizado por um reforço das ligações entre a esfera militante e a esfera política, a que já fiz referência, e saldou-se numa transformação profunda do espaço da investigação por via da sua diluição progressiva no espaço em que se produziram as narrativas com pretensão à estabilização da definição dos critérios que definem a justiça educativa. A tendência para compatibilizar as descrições justas e as ajustadas e o reforço da sua coerência com as narrativas preocupadas com a autenticidade teve implicações importantes na estruturação do espaço cognitivo, ou seja, na definição dos destinatários privilegiados pela investigação e na estabilização da estrutura narrativa dos textos produzidos.
Este processo de simplificação foi responsável por uma diluição das dimensões críticas da investigação, pela sua transformação numa espécie da acessória técnica, pelo reforço das suas dimensões pragmáticas e instrumentais, e pela tendência para que os seus processos de legitimação se tivessem transformado em dinâmicas de avaliação e de verificação das decisões políticas. Há cerca de 50 anos Jürgen Habermas (1968, p. 123-124)., no livro Técnica e Ciência como Ideologia, caracterizava antecipadamente esta situação nos seguintes termos: “o público a quem se dirige a investigação e ao qual se dirigem as informações científicas, já não é, ou, pelo menos, já não é imediatamente, uma opinião pública que pratica a discussão, mas um cliente que está interessado no processo de investigação em virtude da sua aplicação técnica”.
O formato dos textos científicos valorizados neste contexto obedece a um estilo narrativo semelhante ao adotado pelo relatório de investigação centrado nas recomendações técnicas, sendo que este estilo coexiste com um outro estilo de texto, dirigido a um público mais amplo, materializado nalguns livros promovidos pelas editoras escolares, constituídos por uma parte teórica e uma parte prática e que sugerem que o único modo de existência da investigação educacional se define pela sua aplicação técnica, seja esta aplicação protagonizada pelos profissionais de educação ou pelos experts da decisão política. Desqualifica-se, portanto, o modelo de aplicação comunicacional, envolvendo os principais protagonistas da ação educativa no terreno, que são encarados como destinatários e não atores democraticamente organizados e intervenientes tanto nos processos de produção como de difusão da cientificidade educativa.
O fechamento do campo da investigação sobre si próprio e a produção e reprodução da ilusão de que, deste modo, se asseguraria acréscimos de cientificidade, vem sendo o traço dominante do segundo momento do processo de simplificação. Ora, estes acréscimos de cientificidade fizeram-se à custa de uma “irreverência epistemológica” fundadora da cientificidade educativa, através da adoção acrítica de um modelo importado de uma certa representação das Ciências da Natureza, num contexto em que, como vimos, este modelo já era fortemente problematizado. E fizeram-se também à custa de um certo distanciamento crítico relativamente ao poder político, na medida em que este, indiretamente, desempenha um papel estruturante no campo, através das políticas de avaliação e de financiamento da Ciência. Convém realçar, finalmente, que este processo de autonomização teve importantes efeitos do empobrecimento das relações mantidas com os atores educativos no terreno. Na realidade, o fechamento do campo sobre si próprio instrumentaliza o campo da investigação ao impor como único modelo para a sua valorização social aquele que resulta da valorização dos seus produtos num mercado da notoriedade construído exclusivamente no interior da comunidade científica. Transformada numa mercadoria que busca a sua notoriedade, através da sua circulação no espaço hierarquizado das revistas científicas, cuja reputação depende, em parte, da sua capacidade de impor estilos de escrita científica (mais ou menos homogéneos e próximos dos modelos positivistas de se pensar e praticar a ciência), a investigação, como realça André Gorz (2003, p. 85), contribui para a “destruição do sentido, para o empobrecimento das relações sociais (…) produzindo externalidades negativas”, nomeadamente o reforço da sua própria taylorização e hiperespecialização. A profissão do investigador, neste contexto, tende a tornar -se numa profissão incapacitante, numa profissão onde
a grande maioria conhece cada vez mais coisas, mas sabe e compreende cada vez menos (... ) dado que os fragmentos de conhecimentos especializados são apreendidos pelos especialistas que ignoram o contexto e o dispositivo que os produziu, como ignoram as suas potencialidades de se inscreverem em dinâmicas de produção de sentido (Gorz, 2003, p. 111).
Por outro lado, o atual modo dominante de se produzir ciência no campo educativo tem conduzido à valorização de uma opinião pública interna à ciência, na qual os peritos trocam entre si informações por meio de revistas ou congressos a que se subordinam os problemas relacionados com a produção de sentidos, pertinências e coerências no interior do campo que ela elegeu como objeto.
Ora, sendo este o modelo “natural” da estruturação do campo da investigação educacional, as racionalidades cognitivas e instrumentais também se tornam os modelos “naturais” da aplicação dos saberes. Ou seja, a única via legítima de relacionar os saberes científicos com as práticas profissionais é tornar estes saberes “insensíveis” às experiências sensíveis, reforçando-se a dissociação entre as experiências vividas e a sua descrição teórica.
Realço que, apesar de ser este o modelo legítimo e dominante, a verdade é que ainda se desenvolvem no campo dinâmicas de investigação potenciadoras do desenvolvimento de racionalidades comunicacionais e hermenêuticas. Sem serem homogéneas, estas dinâmicas partilham um conjunto de preocupações comuns. Vejamos algumas das preocupações mais importantes, já sinalizadas em outros trabalhos.
2.4. Do ponto de vista institucional e político interessava assinalar três aspetos:
2.4.1 Do ponto de vista institucional, a ênfase a atribuir a uma cientificidade ocupada com a qualificação do debate argumentado no campo educativo implica que se reconheça uma forte autonomia ao campo da investigação, sem que esta autonomia seja encarada como independência, mas antes como diversificação das dependências. Resulta daqui a necessidade de se pensar uma regulação multipolar do campo, capaz de atenuar a sua excessiva dependência face às instituições de financiamento e aos modelos dominantes de produção de saberes, de forma a acentuar-se o estabelecimento de relações cidadãs com os produtos e os processos de investigação educacional.
De uma forma sintética, importa aprofundar modelos de regulação que possibilitem coordenar as injunções heterogéneas resultantes tanto da racionalidade instrumental como da racionalidade cognitiva como da racionalidade utópica; o desenvolvimento de uma investigação cidadã não tem, no entanto, apenas implicações na definição das interfaces que o campo mantém com outros domínios da vida social.
Do ponto de vista das políticas cognitivas, importa reconhecer que os regimes de verdade comportam sempre regimes de ignorância e produzem um efeito de hierarquização dos diferentes saberes no campo. Admitindo que os modos de produção das verdades e das ignorâncias não são independentes da importância social atribuída aos diferentes sujeitos e dinâmicas sócio-educacionais, a investigação cidadã pode desempenhar um importante papel na visibilização de modos de existência ignorados pela definição política do educativo e dos processos de construção de novos sujeitos educativos que, em geral, emergem nas periferias do sistema.
Deste modo, a cientificidade educativa não é apenas um processo de conhecimento ou de reconhecimento de fenómenos que se produzem no campo, antes se inscreve decisivamente no próprio processo de produção do campo, numa dinâmica em que as determinantes cognitivas e epistemológicas da ciência se articulam com os usos sociais dos saberes produzidos.
2.4.2 Do ponto de vista das políticas científicas, estas alternativas apoiam-se no reconhecimento de que a educação se situa não no reino das coisas, mas na cidade humana, que ela se estrutura através da argumentação, mais do que da dedução ou da indução, razão pela qual os modelos de investigação privilegiados se situam num registo da temporalidade longa. Estes modelos, derivados em grande parte das características específicas do educativo, só parecem ser compatíveis com a definição de políticas de investigação a longo prazo, sendo que estas políticas se instituem mais como referenciais reguladores da investigação do que como um conjunto mais ou menos estruturado de metas a cumprir.
O desafio que neste contexto se coloca à investigação educacional incide sobre a gestão das relações tensas que se estabelecem entre os tempos curtos de realização do valor de troca dos produtos de investigação no mercado das produções científicas e as temporalidades longas que marcam a investigação no domínio das Ciências da Educação e os próprios modos de existência dos sujeitos educativos.
2.4.3 No terceiro ponto, pretendo fazer alguns apontamentos sobre as alternativas epistemológicas no campo, ou melhor sobre as dinâmicas alternativas na produção e distribuição dos saberes que mantém uma relação mais próxima com os saberes a ensinar. Em primeiro lugar, estes saberes, suscetíveis de se integrarem no património das ciências da educação, não são intrinsecamente saberes positivos e normativos, mas saberes críticos e polémicos que contribuem para estruturar uma cientificidade pluriparadigmática e controversa indutora de modalidades alternativas de definir os problemas educativos e os problemas de investigação. Eles não são congruentes com os atuais modelos dominantes de se pensar a investigação já que, ao subentenderem e postularem que as práticas de investigação devem ser antecedidas da chamada “revisão da literatura” ou “estado da arte”, naturalizam um inconsciente epistémico onde o património científico se declinaria no registo da acumulação dos saberes científicos.
Este espaço cognitivo não se compagina também com uma conceção de produção científica que, por estabelecer, regularmente, “ruturas com o senso comum” teria a ambição de construir um “senso comum esclarecido” em que, tendencialmente, as controvérsias estariam ausentes, ou seriam epifenómenos resultantes de eventuais ignorâncias sobre o campo.
2.5. Apesar dos saberes que circulam no campo da formação obedecerem a um racional que os organiza em torno de disciplinas com designações distintas e que na sua articulação configuram a grade (ou estrutura) curricular, a verdade é que a dinâmica do trabalho curricular não encarou, necessariamente, estas designações como fronteiras estabelecidas não se incompatibilizando com o desenvolvimento de um currículo integrado alternativo aos currículos de coleção dominantes. O currículo integrado supõe, por isso, o desenvolvimento de um trabalho fronteiriço, a valorização de uma epistemologia de fronteira.
Sabemos que, na Ciência como na Vida Social, a fronteira pode destinar-se a separar ou, pelo contrário, pode contribuir para articular e complexificar. Do ponto de vista do guardador de fronteiras e dos territórios estabelecidos, a fronteira separa e distingue, estabelece limites que importa preservar. O currículo integrado e a cientificidade alternativa colocam-se do ponto de vista do contrabandista, do ponto de vista daqueles que entendem a fronteira como uma linha a ser transgredida, uma linha a ser atravessada, como possibilidade de promover relações inéditas que complexificam em lugar de simplificarem. Só a epistemologia do contrabandista pode coexistir com a epistemologia da controvérsia.
Uma outra dimensão do trabalho epistemológico e formativo que queria pôr em relevo diz respeito à reconceptualização do trabalho de formação e dos saberes científicos na reestruturação da ação profissional. Trata-se de acentuar a ideia de que os saberes que circulam no campo da formação devem a sua coerência à sua capacidade de potenciar as condições ao desenvolvimento de um trabalho pedagógico e cognitivo estruturado em torno da preocupação de disponibilizar instrumentos cognitivos e metodológicos revalorizando essas experiências sociais e profissionais, requalificando-as e possibilitando a sus integração num processo de recomposição identitária.
Trata-se de um trabalho cognitivo mais centrado nas experiências do que nas carências, de um trabalho que se preocupa mais com as transformações das relações com as experiências do que com a superação de défices no desempenho profissional. Os saberes da formação não devem a sua relevância ao facto de eles se adicionarem ou substituírem aos saberes já existentes, mas às suas potencialidades na produção de uma mediação narrativa, facilitando os processos através dos quais os sujeitos se constroem narrativamente, apropriando-se da sua história e do seu projeto. Os saberes científicos terão, por isso, de conviver com os saberes profanos numa dinâmica comunicacional de miscigenação entre o puro, o aplicado e o experienciado.
Esta ênfase na construção narrativa do sujeito é particularmente relevante quando nós a situamos no domínio de uma reflexão epistemológica que debata o papel da narratividade na produção de saberes científicos no campo das ciências da educação.
Para facilitar a exposição neste domínio, vou contrastar o estatuto atribuído ao testemunho e à testemunha. Esta contraposição não nos remete apenas para as questões do género. Ela situa-nos num debate epistemológico que contrasta as diferenças entre as Ciências Explicativas e as Ciências Interpretativas, ou de uma forma mais clara, as Ciências compreensivas ou hermenêuticas de que a Psicanálise Freudiana constitui o exemplo mais acabado e elaborado da revalorização da testemunha. Como sabemos, as Ciências Sociais e Humanas, em geral, e as Ciências da Educação, em particular, não podem abdicar das narrativas dos sujeitos para desenvolverem o seu trabalho de investigação. Do pondo de vista epistemológico e metodológico, estas narrativas podem ser encaradas como testemunhos de fenómenos que transcendem aquele que testemunha, sendo que este testemunho, à semelhança com o que se passa no campo jurídico, constitui uma expressão incompleta ou deformada dos fenómenos a que eles se referem.
Neste contexto cognitivo importa multiplicar os testemunhos e submetê-los a um conjunto de processos técnicos mais ou menos sofisticados para os depurar das inverdades que eles sempre transportam. A epistemologia do testemunho situa-se sempre num regime de verdade e de objetividade. A epistemologia da testemunha, pelo contrário, situa-se num registo da autenticidade, supondo que aquele que testemunha é um sujeito comunicacional que se constrói na troca de testemunhos e de testemunhas. A narrativa da testemunha não é nem mais nem menos verdadeira, mas constitui uma expressão mais ou menos deformada de um sujeito que procura narrar-se como uma história. O investigador e a cientificidade educacional são facilitadores deste processo de produção de histórias educativas, cujo trama é imprescindível para a produção de um sentido consentido para as dinâmicas e os fenómenos educativos. A controvérsia, a mestiçagem e a fronteira são, por isso, partes integrantes da epistemologia da testemunha.
2.6. Diria, de uma forma sintética, que as formulações de alternativas se fazem a contracorrente da redefinição destrutiva da Ciência que hoje estrutura o campo. Esta redefinição foi acompanhada pela produção de uma cultura científica estruturada por um ethos do predador e por um ethos da conspiração.
Este contexto de azáfama e da predação supõe a rapidez na circulação e na produção de produtos dirigidos a públicos especializados que, raramente, tem tempo para os ler e incorporar nas suas perguntas, o que faz que as ciências que adquirem poder são as ciências rápidas. Importa, por isso, neste domínio reabilitar as ciências do terreno, as ciências ecológicas, de forma a institucionalizar um verdeiro projeto político da ecologização dos saberes e da sensatez, um projeto de temporalização da investigação imprescindível à produção de um pensamento crítico e de uma ciência autorreflexiva e contemplativa.
Não cabe no âmbito desta reflexão fazer conclusões e, muito menos, recomendações para a reabilitação de uma cientificidade educativa cidadã. No entanto, para terminar, gostaria de partilhar três linhas de força.
A primeira serve para realçar a importância de pensar o futuro, no domínio da cientificidade educativa, reabilitando as memórias e o passado, nomeadamente, na mensagem que ele nos legou de pensar esta cientificidade no registo da sensatez, ou seja, num registo em que se assume a centralidade da reflexão sobre o sentido do trabalho cognitivo desenvolvido. Neste domínio, como sugeri, a inscrição da investigação na cidade humana está intimamente associada à revalorização de uma epistemologia da escuta e da testemunha.
Na segunda linha de força, gostava de realçar que, na interpretação destas memórias, importava dar uma atenção particular às modalidades de gestão sábia e prudente das instabilidades e das perturbações que elas protagonizaram, entendidas estas instabilidades como mediações entre a investigação e o seu destino social. Ou seja, torna-se relevante realçar o trabalho fronteiriço que se desenvolve nesta articulação entre a investigação e o seu destino social de forma a promover uma epistemologia onde a fronteira não separa, mas (re)articula e complexifica.
Gostaria, finalmente, de realçar a centralidade que penso ser desejável atribuir à mestiçagem ou à epistemologia da mestiçagem como modo de fazer ciência no campo educativo. Esta epistemologia da mestiçagem para além de salientar a importância do pluralismo paradigmático, acentua também que, no campo educativo, os “textos científicos” se dirigem preferencialmente para uma opinião pública que, tendencialmente, pratica o diálogo democrático, num espaço onde a ciência não se destina a pôr fim à controvérsia, mas contribui para a sua qualificação.
O modo discreto de existência dos saberes da ação
Não é minha intenção fazer aqui uma referência detalhada aos saberes contextualizados com que lidam e que produzem os professores. Como tive oportunidade de dizer, estes saberes têm um modo discreto de existência, porque são dificilmente curricularizáveis e escapam às racionalidades científicas estabelecidas.
Apesar de terem uma existência discreta, estes saberes constituem saberes que habitam o mundo privado dos professores e que não possuem um estatuto epistemológico que os autorizem a exprimir-se na esfera publica. Pode também admitir-se que seria desejável que a cientificidade educativa contribuísse para a produção de referenciais capazes de atenuar o desfasamento entre a importância simbólica e subjetiva destes e a sua irrelevância no espaço onde publicamente se constroem as narrativas profissionais cientificamente instrumentadas.
Laurent Thevenot (1994), chama a atenção para o facto de que a diferença entre a descrição pública e a vivência privada da ação não é uma diferença entre “esferas de atividade diferentes, ou entre um coletivo e os indivíduos, mas constitui a expressão da existência de uma tensão entre regimes pragmáticos distintos”. Nesta perspetiva, pode-se considerar que a reabilitação das narrativas privadas pela esfera da investigação exige que sejamos capazes de
explorar metodicamente as diferentes maneiras como os seres humanos regulam o seu ajustamento com o contexto, (…), ou seja, o desenvolvimento de uma abordagem atenta às dinâmicas de coordenação e aos referenciais onde se apoia a avaliação e o reajustamento dos atos, uma abordagem que permita esclarecer, simultaneamente, os modos de construção da realidade e as figuras de integração coletivas (Thevenot, 1994, p.89).
No campo da investigação, os desafios epistemológicos que esta abordagem comporta são, de qualquer forma, protagonizados pelas correntes periféricas da cientificidade educativa e, de uma forma relativamente consistente, pela investigação de ponta das Ciências da natureza, tal como ela é caracterizada por Prigogine e Stengers (1986; 1999). Estas precauções epistemológicas estão relativamente ausentes no atual núcleo dominante das Ciências da Educação e na representação epistemológica da Ciência feita e, por isso, na esfera dos saberes a ensinar.
Do ponto de vista praxeológico, e tendo em vista a sua contribuição para a emancipação profissional, os desafios que se colocam envolvem dinâmicas mais participativas na esfera da produção de saberes (a exemplo dos fóruns híbridos a que já aludi), e simultaneamente, o desenvolvimento de dispositivos e disposições para se atenuar a distância entre a produção de saberes e a sua aplicação, valorizando-se sobretudo a sua aplicação hermenêutica e comunicacional. Para além dos fóruns híbridos, importa também dar uma atenção particular aos contributos da Psicanálise Freudiana, nomeadamente a reabilitação da clínica como espaço de produção e aplicação dos saberes que Habermas (1976; p.245), considera um dos indícios mais emblemáticos da possibilidade de produção de uma Ciência emancipatória “interessada” na produção de uma profissão emancipada. Como diz o autor, a “psicanálise é (…) significativa como o modelo tangível de uma ciência que recorre metodicamente à autorreflexão”. Uma autorreflexão inter-subjetivamente partilhada entre o analista e o analisado, em que a validade dos conhecimentos produzidos depende essencialmente do facto de eles poderem ser aceites pelo próprio analisado como conhecimento de si próprio; neste lógica, a solidez empírica dos saberes “não depende de uma observação controlada seguida de uma comunicação entre investigadores, mas unicamente da realização da autorreflexão seguida de uma comunicação entre o investigador e o seu objeto” (p. 292). Na Ciência Emancipatória, conforme Habermas “o sujeito não pode adquirir um conhecimento do objeto sem que este tenha tornado conhecimento para o objeto e sem que, por isso, o objeto se tenha tornado sujeito” (p. 293)
Sintetizando
Enquanto preparava esta minha comunicação confrontei-me regularmente com uma canção de Sérgio Godinho cantada a várias vozes. Diz o cantor, poeta e cidadão:
“Eu vi quatro quadras soltas
À solta lá numa herdade
amarrei-as com uma corda
e carreguei-as p'rá cidade
Cheguei com elas a um largo
e logo ao largo se puseram
foram ter com a família
e com os amigos que ainda o eram
Viram fados, viram viras
viram canções de revolta
e encontraram bons amigos
em mais que uma quadra solta
Uma viu um livro chamado
'Este livro que vos deixo'
e reviu velhas amizades
eram quadras do Aleixo”.
Nesta minha reflexão, também vislumbrei algumas quadras soltas (ou seja, versos de poesia popular que servem de base a canções) e procurei articulá-las e transferi-las para a cidade, para este espaço de reflexão que gostaria de ser partilhado com vocês. Procurei respeitar a sua liberdade e pô-las à conversa com os amigos que ainda são e que ainda habitavam mais que uma quadra solta.
A primeira quadra solta é narrada por Prigogine e Stengers (1987; 1990) e tem por autores um conjunto crescente de investigadores no domínio das Ciências da Natureza; eles têm por hábito debater os problemas com que se confrontam estas Ciências. Não aceitam, por isso, os dogmas estabelecidos e dão uma importância crucial às dinâmicas que são ocultadas por estes dogmas. São, portanto, cientistas que afirmam o estatuto de cidadão no interior do campo científico, cientistas irreverentes.
Trata-se de uma quadra que se soltou de uma descrição normativa dos modos de se fazer e de narrar a ciência. Esta quadra não se cansa de questionar alguns dos princípios normativos da Ciência. Vejamos, de forma resumida, aqueles que são mais relevantes para questionar a ciência a ensinar.
Em primeiro lugar, estes autores problematizam uma hierarquização dos discursos científicos cujo vértice superior da pirâmide seria ocupado pelas ciências da Natureza. Em segundo lugar, a noção de racionalidade científica ocupada no estabelecimento de relações entre causas e efeitos, coexiste com uma outra em que se procura produzir coerências e produzir significados. Em terceiro lugar, a “exterioridade da observação”, como disposição inquestionável na descrição objetiva da natureza, coexiste com uma outra descrição realista em que se integra o sistema de observação na interioridade do objeto observado. Finalmente, para não me alongar, a noção de lei geral da ciência que constituiria o referencial interpretativo e explicativo das observações fenomenológicas, em que estas seriam uma miniaturização daquela, tende a ser, no estudo de determinados fenómenos, invertida, admitindo-se que as leis e observações gerais são casos particulares de dinâmicas contextualizadas.
A segunda quadra solta goza de uma liberdade negativa relativamente à Ciência que se faz. Ela soltou-se da Ciência que se faz para realçar as dimensões normativas da Ciência e ao escolarizar-se fá-lo em nome dos princípios praticados da ciência que se faz: o espírito critico, a curiosidade científica e a promoção de competências para formular perguntas pertinentes. Ela estabelece uma relação de tensão, tanto com algumas dinâmicas produzidas no campo de onde emerge, como estabelece ainda uma outra relação de tensão com os cotidianos escolares, dada a sua incapacidade em mobilizar incondicionalmente tanto os estudantes como os professores. A “Ciência Feita” também não contribui para a superação positiva da crise dos saberes escolares para cuja consolidação ela tinha contribuído. Segundo Manuel Matos, na conferência a que aludi lá atrás, enquanto “a objetividade pôde ser pensada como uma propriedade constitutiva da realidade social, por assimilação do que era atribuído ao mundo da natureza, “natural”, a evolução da prática social no mundo escolar, dada a sua referencialização à vida institucional, tutelada por uma relação política naturalizada no poder do Estado, não tinha dificuldade em submeter-se ao princípio da identidade” e o modelo instrucionista que a sustenta. Como assinala o mesmo autor, atualmente
este princípio está radicalmente posto em causa pela presença maciça do “outro”, do estranho que tende a ocupar agora todo o espaço escolar e que representa o imprevisível e o impensado na lógica da escola. Esta é a contradição com que a escola tem de se confrontar. O princípio da identidade terá de se conjugar com o princípio da contradição, algo que se traduz na sua questionabilidade permanente e sujeita a profissionalidade docente à condição de precariedade perpétua (Matos, 2019, p. 37).
A terceira quadra solta é a da cientificidade educativa. Parece ter-se soltado das suas interdeterminações com outros espaços onde se produzem narrativas legítimas sobre e na educação. Esta “libertação” conduziu à sua dependência relativamente às políticas de investigação e de financiamento, bem como à sua dependência relativamente ao mercado das publicações e ao abandono da problemática da construção do sentido e da sua pertinência social. Nas suas periferias, vivem também soltas outras quadras tendencialmente silenciadas que se referenciam aos princípios da Ciência que se faz e que recriam e reatualizam as “memórias” das Ciências da Educação e o sentido do risco que elas tinham praticado abundantemente.
A quarta e última quadra solta envolve a ação educativa tal como ela é praticada e narrada pelos professores. Trata-se de uma quadra solta que mantém relações de amizade e diálogo imaginado com a primeira quadra solta; nesta última pululam saberes contextualizados, emoções, razões e invenção de engenhos úteis na resolução de problemas e desafios que seriam irresolúveis quando observados de fora. Trata-se de uma quadra solta desqualificada e que, raramente, habita a cidade e o espaço público, mas é no seu interior que se combate pela justiça e pelo reconhecimento profissional. Como assinalam Christian Lazzeri e Alain Caillé (2014, p. 35):
os princípios da justiça desempenham um papel essencial na distribuição e reprodução do reconhecimento e do respeito. Para que os agentes continuem a realizar os seus interesses e os interesses superiores é necessário que eles preservem o respeito por si próprios (e é necessário) que se estabeleça uma relação de complementaridade entre o reconhecimento social e o reconhecimento informal,
sendo que esta complementaridade só pode ser gerida no respeito por uma ética comunicacional baseada nas trocas inter-subjectivas.
Parafraseando Habermas, afirmo, para finalizar, que na produção emancipada da profissão a intersubjectividade e a cooperação são incontornáveis: é importante que os professores cooperem, como já o fazem, na ação, mas também na explicitação dos referenciais desta ação. Trata-se de viver a profissão com honra e felicidade, não referenciando apenas a ação profissional aos grandes princípios sociais e educativos, mas assegurando também a coordenação da ação dos profissionais da educação. Uma coordenação que não é imposta do exterior, mas que poderá contar com a sua colaboração, se este exterior se afirmar não como um observador objetivo, mas como um parceiro.
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