Re-habitar a escola no Antropoceno: contribuições da mesologia para um novo olhar sobre as condições de trabalho docente

 

Re-inhabiting the school in the Anthropocene: contributions from mesology to a new perspective on teachers' working conditions

 

Re-habitar la escuela en el Antropoceno: contribuciones de la mesologia a una nueva mirada sobre las condiciones de trabajo docente

 

 

Valérie Melin https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Université de Lille, Lille, França

valerie.melin@univ-lille.fr

 

Carolina Kondratiuk https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Gis Le Sujet dans la Cité Sorbonne Paris Nord, Brasil/França

carolinakondratiuk@hotmail.com

 

Recebido em 11 de outubro de 2023

Aprovado em 29 de março de 2024

Publicado em 13 de maio de 2024

 

 

 

RESUMO

Mais que uma nova era geológica em estudo no campo das ciências naturais, face às mudanças climáticas e impactos da atividade humana sobre o planeta, o Antropoceno tem se mostrado um fértil aporte conceitual para a produção de conhecimentos nas ciências humanas e sociais, em especial no campo educacional. Diante desse quadro, o artigo se interessa pelo Antropoceno com o duplo objetivo de identificar as questões que o conceito suscita em âmbito educacional, especialmente no que se refere às condições de trabalho docente, e propor novas ferramentas teóricas capazes de contribuir ao enfrentamento dessas questões. Para tanto, apoia-se em uma pesquisa em curso de realização de acordo com os referenciais teórico-metodológicos da pesquisa biográfica em educação, intitulada “Condições de trabalho docente e promoção da saúde global à luz do conceito de ‘permacultura humana’: análise e propostas para responder aos desafios do Antropoceno na escola como instituição do vínculo”. Após traçar brevemente as origens e debates em torno da noção de Antropoceno e constatar a necessidade de recorrer a ela para pensar a educação de novas maneiras, o artigo discute as reconfigurações do espaço na contemporaneidade, em suas incidências sobre o espaço da escola para, por fim, propor o conceito de si mesológico. Oriundo da mesologia, este revela ser uma potente ferramenta teórica para o enfrentamento da urgência de transformações profundas na relação a si mesmo, ao outro e ao mundo natural e social que se encontra no cerne dos desafios antropocênicos e de seus impactos em meio escolar, que pode ser re-habitado enquanto instituição de vínculos.

Palavras-chave: Antropoceno; condições de trabalho docente; si mesológico.

 

ABSTRACT

More than just a new geological era being studied in the field of natural sciences, given climate change and the impact of human activity on the planet, the Anthropocene has proved to be a fertile conceptual input for knowledge development in social and human sciences, especially in the field of education. Given this context, the article focuses on Anthropocene with the dual aim of identifying the issues raised by the concept in the educational field, especially with regard to teachers' working conditions; and proposing new theoretical tools capable of helping to address these issues. To this end, it is based on an ongoing research project based on the theoretical-methodological framework of biographical research in education, entitled “Teacher working conditions and the promotion of global health in the light of the concept of 'human permaculture': analysis and proposals for responding to the challenges of the Anthropocene in the school as an institution of bonding”. After briefly outlining the origins and debates surrounding the notion of the Anthropocene and recognizing the need it calls for in order to think education in new ways, the article discusses the reconfigurations of space in contemporary times, with their impact on the school space, and finally proposes the concept of the mesological self. Originating from mesology, it proves to be a powerful theoretical tool for tackling the urgent need for profound transformations in the relationship between oneself, the other and the natural and social world, which is at the heart of the anthropocenic challenges and their impact on the school environment, which can be re-inhabited as na institution of bonds.

Keywords: Anthropocene; teachers' working conditions; mesological self.

 

 

RESUMEN

Más que una nueva era geológica estudiada en el ámbito de las ciencias naturales, ante el cambio climático y los impactos de la actividad humana sobre el planeta, el Antropoceno ha demostrado ser una fértil aportación conceptual para la producción de conocimiento en las ciencias humanas y sociales, especialmente en el campo de la educación. En este contexto, el artículo se interesa por el Antropoceno con el doble objetivo de identificar las cuestiones que el concepto plantea en el ámbito educativo, especialmente en lo que respecta a las condiciones de trabajo de los docentes, y de proponer nuevas herramientas teóricas capaces de ayudar a tratar estas cuestiones. Para ello, se basa en una investigación que se está llevando a cabo de acuerdo con los referentes teórico-metodológicos de la investigación biográfica en educación, titulada “Las condiciones de trabajo docente y la promoción de la salud global a la luz del concepto de “permacultura humana”: análisis y propuestas para responder a los desafíos del Antropoceno en la escuela como institución del vínculo”. Tras esbozar brevemente los orígenes y debates en torno a la noción de antropoceno y señalar la necesidad que reclama de pensar la educación de nuevas maneras, el artículo aborda las reconfiguraciones del espacio en la contemporaneidad, con sus repercusiones en el espacio escolar, para finalmente proponer el concepto de yo mesológico. Procedente de la mesología, resulta ser una poderosa herramienta teórica para abordar la urgente demanda de profundas transformaciones en la relación con uno mismo, con los demás y con el mundo natural y social que se encuentra en el centro de los desafíos antropocénicos y de sus efectos en el medio escolar, que puede ser re-habitado como institución de vínculos.

Palabras clave: Antropoceno; condiciones de trabajo docente; yo mesológico.

 

Introdução

Acompanhando a hipótese de que estamos vivendo uma nova era da história planetária, batizada Antropoceno[1], a crescente conscientização dos impactos da ação humana sobre o sitema terrestre – que incidem não apenas no mundo natural, mas também em todas as formas de vida que o planeta abriga, incluindo as sociedades humanas – convida-nos a renovar nossa abordagem da instituição educacional. Mais que uma era geológica em estudo no campo das ciências naturais, o Antropoceno revela ser uma noção extremamente fértil para a produção de conhecimentos nas ciências humanas e sociais, em especial no campo educativo. Ele nos confronta aos sinais, já perceptíveis no presente, das transformações aceleradas das condições que, durante o Holoceno, garantiam as condições necessárias à vida no planeta; ao mesmo tempo, coloca-nos diante de profundas incertezas quanto às condições de vida das futuras gerações. Como educadores imersos nesse cenário de incertezas e de ruptura com a ilusão moderna de linearidade, somos convocados a (re)pensar o próprio papel da educação. Face às mudanças climáticas e ao conjunto das transformações resultantes da atividade humana que ameaçam as condições de vida sobre o planeta, o ensino científico de conteúdos sobre as mudanças climáticas e os programas de educação ambiental voltados ao desenvolvimento sustentável se mostram importantes, porém insuficientes. Faz-se necessária uma real transformação em nossa práticas educativas, para que acompanhem e favoreçam mudanças em nossos modos de existir e de co-habitar a Terra com os demais seres vivos.

Diante desse quadro, este artigo se interessa pelo Antropoceno com o duplo objetivo de identificar as questões que o conceito suscita em âmbito educacional, especialmente no que se refere às condições de trabalho dos professores, e propor ferramentas conceituais capazes de contribuir ao enfrentamento dessas questões. Para tanto, apoia-se em uma pesquisa em curso de realização de acordo com os referenciais teóricos e metodológicos da pesquisa biográfica em educação (DELORY-MOMBERGER, 2014). No sentido de contribuir para um novo olhar sobre as dimensões individuais e coletivas dos desafios do Antropoceno, a pesquisa em questão empreende uma reflexão ontológica com vistas à superação da visão dicotômica que concebe o sujeito em separação ao meio, cisão fundamental que nos conduziu ao ponto crítico em que nos encontramos. Para tanto, recorre à teoria da mesologia, campo da biologia que estuda as relações entre ambientes e organismos, em busca de recompreender a escola como instituição de vínculos. O desafio de habitar de novas maneiras o meio educativo exige o exame das dimensões ecológicas dos estabelecimentos escolares e a consideração das interdependências que moldam, de forma inseparável, a vulnerabilidade e o poder de ação de seus atores. Somente a partir dessas bases será possível agir no e com o meio escolar enquanto heterotopia, tecendo a escola como instituição durável atenta tanto às necessidades individuais quanto à economia do todo.

O artigo se organiza em quatro partes: na primeira, a pesquisa é apresentada em seus aspectos teóricos e metodológicos. Em seguida, após traçar brevemente as origens do conceito de Antropoceno nas ciências naturais e seus desenvolvimentos no domínio das ciências humanas e sociais, o artigo aborda as questões e aberturas que ele inaugura no campo da pesquisa educacional. Diante da necessidade de repensar a escola no Antropoceno, a terceira e a quarta parte desenvolvem reflexões teóricas acerca, primeiramente, das reconfigurações do espaço na contemporaneidade, com suas incidências sobre o espaço da escola; e, por fim, das contribuições da mesologia para a constituição de uma ontologia baseada no conceito de si mesológico. Este revela ser uma potente ferramenta teórica para o enfrentamento dos desafios que impactam as condições de trabalho dos educadores no Antropoceno. No cerne de tais desafios, como veremos, encontra-se a urgência de transformações profundas na relação a si mesmo, ao outro e ao mundo natural e social. Em resposta a eles, ressignificar a escola enquanto meio, no sentido mesológico do termo, mostra-se uma via extremamente promissora.

 

1. Aspectos teóricos e metodológicos do estudo

A pesquisa em curso faz parte do projeto internacional “Educação, Narrativa e Saúde”, integrando o conjunto de estudos agrupados sob o título abrangente “Restaurar a Polis com os seres vivos”, levados a cabo pelo GIS Le Sujet dans la Cité, grupo de pesquisas dedicado à produção de conhecimentos à luz do paradigma do biográfico (DELORY-MOMBERGER, 2017; JANNER-RAIMONDI, 2022), sediado na Universidade Sorbonne Paris Nord Campus Condorcet, França. Desenvolvida por pesquisadores do GIS Le Sujet dans la Cité Sorbonne Paris Nord-Campus Condorcet e da Universidade de Lille, França, a pesquisa dá continuidade à empreitada de “pensar em novos termos o sujeito e a Polis” (DELORY-MOMBERGER, 2022), inaugurada em dois eventos científicos: o seminário internacional “GIS Le Sujet dans la Cité Sorbonne Paris Nord-Campus Condorcet: uma rede nacional e internacional de pesquisa biográfica em educação”, ocorrido no Brasil de 05 a 09 setembro de 2022, na Universidade do Estado da Bahia, e o colóquio internacional “O paradigma do biográfico na era do Antropoceno”, realizado na França em fevereiro de 2023, na Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord.

Intitulada “Condições de trabalho docente e promoção da saúde global à luz do conceito de ‘permacultura humana’: análise e propostas para responder aos desafios do Antropoceno na escola como instituição do vínculo”, a pesquisa se propõe a revisitar a teoria da permacultura, desenvolvida por David Holmgren (2017) em relação ao ambiente natural, afim de ampliá-la para a noção de permacultura humana, como ética e forma de ver o mundo. Observando e transpondo as dinâmicas naturais da permacultura à análise da sociedade, o estudo, que se subdivide em três grandes etapas, pretende evidenciar os desafios e possibilidades, que emergem à luz do conceito de permacultura humana, quanto às condições de trabalho docente no cerne da escola.

A primeira etapa consiste na identificação dos princípios fundadores da teoria da permacultura, bem como dos conceitos operacionalizados em suas práticas, e na subsequente análise das possibilidades de sua transposição para o campo da sociedade humana e, mais especificamente, para o contexto das instituições de ensino. Uma revisão da literatura em múltiplos campos disciplinares visa, num primeiro momento, destacar as tentativas de teorização ecossistêmica das sociedades humanas e vinculá-las aos conceitos determinantes da saúde global para, em seguida, incorporar contribuições de perspectivas não ocidentais sobre as inter-relações entre natureza e sociedade, em especial oriundas das culturas indígenas da América Latina (VIVEIROS DE CASTRO, 2002; KRENAK, 2019; KRENAK, 2022). Busca-se, dessa forma, estabelecer um vínculo sensível entre o conhecimento científico e a sabedoria dos povos originários do continente americano.

Após essa primeira fase teórica, atualmente em andamento, uma pesquisa de campo será realizada em instituições educacionais na França e na América Latina. Serão realizadas observações, entrevistas explicativas e entrevistas de pesquisa biográfica (DELORY-MOMBERGER, 2014) com professores e diretores, em escolas onde sejam implementados projetos educacionais com enfoque ecológico. O objetivo será analisar se e de que maneira a consciência das questões ecossistêmicas, que destacam a interdependência entre a biocenose e o biótopo, por um lado, e entre os seres vivos, por outro, pode dar origem a novas práticas relacionadas ao meio humano e social constituído pela escola. Ainda na etapa de campo, procurar-se-á identificar a existência de cursos de formação dedicados aos desafios ecossistêmicos. A identificação de tais espaços permitirá o estudo da escolha dos instrutores, do conteúdo dos cursos e do público-alvo. Serão, ainda, realizadas entrevistas com os formadores e profissionais envolvidos, afim elucidar suas motivações e expectativas, bem como os impactos da formação em sua concepção e prática da profissão docente. Enfim, a terceira e última fase da pesquisa será dedicada à sistematização dos dados para subsidiar a formulação de propostas de projetos relativos às condições de trabalho docente no Antropoceno.

Uma vez que a noção de permacultura se refere, originalmente, a práticas voltadas à criação de ambientes agrícolas sustentáveis e resilientes, sua transposição ao campo das ciências humanas demanda o desenvolvimento de uma base ontológica, que a permacultura pressupõe, mas que ela não explicita. No processo de sistematização de um quadro teórico subjacente às práticas ao mesmo tempo inovadoras e ancestrais da permacultura, a questão do espaço se apresenta como tema incontornável. Para abordá-lo, recorremos ao campo da mesologia, que traz elucidações importantes acerca da relação de constituição recíproca entre sujeito e meio. O presente artigo apresenta justamente os resultados desse estudo. Como veremos, a compreendensão da dimensão ontológica das reconfigurações do espaço, possibilitada pelo recurso à mesologia, oferece contribuições relevantes para a busca de novas formas de habitar os espaços institucionais dedicados à educação no Antropoceno.

 

2. Antropoceno: origens do conceito e seus impactos nas Ciências da Educação

Você chegou aqui e se assenhorou de tudo (...), mas ensina teus filhos a pisarem suavemente sobre a terra, ensina-os a amarem essa brisa da montanha e reconhecerem o vôo da águia, pois se vocês não aprenderem isso, um dia vão despertar imersos em seus próprios dejetos.

Líder indígena Seattle

 

O termo Antropoceno foi proposto no início dos anos 2000 pelo geoquímico Paul Crutzen, acompanhando a hipótese de que o planeta estaria entrando em uma nova era geológica. Enquanto o Holoceno havia sido caracterizado por uma relativa estabilidade da composição da atmosfera terrestre e pela estabilidade climática que permitiu aos seres humanos a sedentarizarão e o desenvolvimento da agricultura, a nova categorização do tempo planetário se apoia na identificação de uma série de fenômenos que constituem marcas da ação dos homens sobre o planeta: alterações na composição da atmosfera decorrentes de emissões humanas, desregulagem no ciclo de nitrogênio, extinção da biodiversidade, sobre-exploração dos recursos piscícolas, gestão da água (CRUTZEN, 2002). Vale notar que esta multiplicidade foi uma ruptura fundamental em relação às discussões ambientais desenvolvidas até então, centradas essencialmente na questão climática. Como toda proposta de nova categorização do tempo geológico, a noção de Antropoceno é submetida a uma longa avaliação pela Comissão Internacional de Estratigrafia. Sua aprovação depende, não apenas da constatação dos sinais perceptíveis e mensuráveis dos impactos da ação humana sobre o planeta, mas também do estabelecimento de um marco inicial cientificamente aceito. Entretanto, o potencial desestabilizante da noção excede amplamente seu mero aspecto estratigráfico, de modo que seus aportes para a compreensão do tempo presente independem do desfecho das discussões em torno da definição e aprovação da nova era geológica. Ao situar a humanidade como força geológica, a noção de Antropoceno coloca-nos diante do encontro entre a história social do homem e a história natural do planeta. Assim, borra fronteiras disciplinares e não se enquadra na grande separação entre ciências naturais e ciências humanas (BEAU, LARRERE, 2018).

No âmbito das ciências humanas e sociais, fecundas discussões questionam a narrativa unificadora contida na ideia abstrata de humanidade como agente das transformações planetárias em andamento. A partir de articulações entre local e global, leituras críticas denunciam que a ideia de humanidade como sujeito unificado de uma história mascara as responsabilidades históricas dos Estados e populações que basearam seu crescimento econômico na extração predatória de recursos naturais e humanos. Revelam, ainda, que as consequências nefastas de tais ações pesam mais, não sobre seus principais agentes, mas sobre as parcelas mais vulneráveis. Essas leituras também colocam em debate o caráter antropocêntrico da noção de Antropoceno, bem como o pretenso ineditismo que justificaria a classificação de uma nova era geológica. Se as civilizações humanas teriam desde sempre transformado seu ambiente em escala significativa, o que de novo haveria no Antropoceno? Philipe Descola (2018) oferece esclarecimentos importantes sobre este ponto quando, numa conferência proferida em 2015 no Colóquio Penser l’Anthropocène, diferencia os conceitos de antropização e Antropoceno. O primeiro, que se refere às transformações do ambiente decorrentes da ação humana, de fato acompanha toda a existência da humanidade. Porém, os efeitos sistêmicos globais dessa ação, que marcam o curso da Grande Aceleração, caracterizam um cenário sem precedentes. Situado no cruzamento entre o tempo longo da história planetária e o tempo curto das sociedades humanas, o Antropoceno é, essencialmente, um momento de desquilíbrio sistêmico e de incertezas radicais quanto às próprias condições que permitem a vida no planeta Terra – para seus habitantes humanos e não-humanos.

Ora buscando combater a generalização acrítica do antropos contido no nome Antropoceno, ora opondo-se ao antropocentrismo que intrinsecamente o caracteriza, neologismos alternativos têm sido propostos e debatidos. Capitaloceno explicita as origens das transformações em questão no modo de produção capitalista que, embora distribua desigualmente as riquezas oriundas da exploração de recursos, pretende distribuir igualmente entre toda a humanidade o peso da responsabilidade sobre ela. Posicionamentos divergentes tentam definir um marco de origem do Antropoceno: no século XVI, quando a empreitada colonialista europeia dizimou a quase totalidade dos indígenas originários do continente americano; ou, ainda, no século XVIII, com o início da revolução industrial. Nessa linha, o nome Angloceno enfatiza a crucialidade de um evento técnico particular: a invenção da máquina a vapor na Inglaterra. (MALM, HORNBORG, 2014). Já o termo Tanatoceno, em referência ao deus da morte na mitologia grega, evoca a potência destruidora por trás dos impactos ambientais das guerras e das invenções tecnológicas que as acompanham (BONNEUIL, FRESSOZ, 2013). Sem pretender apresentar aqui uma recensão exaustiva, é importante mencionar a contribuição prospectiva do Chthuluceno. Cunhado por Haraway (2016), o termo deriva de uma espécie de aranha e tem sua raiz semântica em ktonis. Em busca de respostas possíveis à atual urgência multi-espécies, a filósofa e zoóloga coloca os seres da terra no centro do cenário, no lugar do antropos, propondo um pensamento em rede. Para além das especificidades, o que emerge dessa variedade terminológica é o reconhecimento de que a origem do Antropoceno não está na humanidade em geral, mas num modo de vida, numa visão de mundo. Trata-se, especificamente, dos modos de existência e práticas propagados ao redor do globo a partir da Europa Ocidental. Como Descola (2018) sintetiza, estes caracterizam-se por uma relação hostil entre homem e natureza, mediada pela tecnologia, com base numa ilusão fundamental: a da natureza como fonte infinita de recursos para um crescimento infinito, por meio de aperfeiçoamento tecnológico infinito.

Em contraste com a abundante produção de conhecimentos instaurada pelo advento do Antropoceno nos campos filosófico, sociológico e antropológico, as ciências da educação ainda não parecem ter despertado para sua centralidade. Na elaboração de recomendações face aos desafios do Antropoceno, o foco recai majoritariamente sobre meios de ação políticos, econômicos, jurídicos e tecnológicos. Mas como uma transformação drástica em nossos modos de viver juntos no planeta seria possível, sem passar pela educação? Entendidos sob o enfoque interdiscliplinar da pesquisa biográfica em educação, os seres humanos são o produto de uma formação contínua, que se dá ao longo de toda a vida e em todos os espaços de sua existência. Os processos de individuação, subjetivação e socialização que os constituem, do nascimento até a morte, ocorrem a partir de suas experiências individuais e de sua história educacional, sempre vividas em contextos socioculturais. Levando isso em conta, é preciso indagar o que a demanda de uma transformarção radical em nossos modos de vida exige no plano educativo.

Wallenhorst e Pierron (2019), na vanguarda das discussões sobre as possíveis modalidades educativas do viver no Antropoceno, apostam na educação como instrumento de uma mutação antropológica. Nesse sentido, delimitam a distinção fundamental entre educar sobre o Antropoceno e educar no Antropoceno. A conscientização dos alunos sobre os impactos ambientais da atividade humana, a transposição didática dos saberes científicos sobre o Antropoceno, a educação ambiental e o ensino voltado à inovação tecnológica com vistas a um desenvolvimento sustentável constituem uma educação sobre o Antropoceno. Porém, a resposta educacional à crise civilizacional com a qual somos confrontados não pode se resumir ao ensino de conteúdos suplementares. Educar no Antropoceno supõe uma mudança  paradigmática.

No vasto campo de investigações que se abre, cruzam-se olhares sobre os fundamentos filosóficos e antropológicos das práticas educativas e emergem análises sobre as instituições educativas, numa valiosa tentativa de renovação do pensamento pedagógico que ouse ir além das discussões atuais centradas em métodos e conteúdos. Para Wallenhorst (2020), pensar de maneira realmente nova a educação no Antropoceno passa pela superação de conceitos educacionais marcados predominantemente por uma abordagem de desenvolvimento individual, alinhados ao neoliberalismo contemporâneo. Mas a empreitada se anuncia realmente desafiadora, pois, se os diagnósticos sobre a criticidade do momento são precisos, as proposições de solução que os acompanham correm o risco de perpetuar um ciclo de reprodução e continuidade. Emprestando as palavras de Arnsperger, “a humanidade contemporânea encontra-se tão perdida nos grilhões de sua própria confusão que ela não poderia 'preparar' o que quer que seja sem reproduzir uma vez mais os erros profundos de seu passado, projetando-os no futuro.” (2019, p. 110). Na perspectiva de Arnsperger, que entende o reestabelecimento de laços com as raízes ancestrais indígenas como uma via promissora para a transformação efetiva, a mudança dos modos de produção agrícola pode ser uma fecunda fonte de inspiração para a renovação do ato educativo. Nessa direção, propomos neste artigo os primeiros elementos de teorização do quadro teórico implicado na prática da permacultura, começando por considerar as transformações da relação dos sujeitos ao espaço.  

O Antropoceno redefine a estrutura de interpretação pela qual entendemos o lugar dos seres humanos em sua relação com a natureza, com os outros seres, inclusive não humanos, e consigo mesmos. Ele representa uma reconfiguração do espaço que acolhe os seres humanos, animais e todo o tecido das formas de vida,  lançando luz sobre a coexistência e interdependência que nos entrelaça a essa trama e sobre a finitude de tudo aquilo que a modernidade significou como recursos. Para aprender a viver num espaço com limites e a cohabitá-lo com todas as formas de vida, são necessários processos educativos capazes de acompanhar as transformações antropológicas que essa aprendizagem pressupõe (WALLENHORST, PIERRON, 2019). Diante desse quadro e visando contribuir para um olhar renovado sobre as condições de trabalho docente no Antropoceno, a presente pesquisa se dedica à análise dos desafios da relação com o espaço na escola, para que esta possa ser ressignificada como instituição de vínculos. Não se trata apenas de buscar conscientizar os atores envolvidos sobre a interdependência dos seres vivos em meio natural, desenvolvendo uma consciência ecológica, mas principalmente de despertá-los para a interdependência que caracteriza também os espaços sociais. Para tanto, é importante, em primeiro lugar, lançar luz sobre a relação entre espaço e sociedade no mundo contemporâneo, uma vez que esta revela o tipo de relação que os indivíduos tecem com o mundo exterior e com a alteridade em geral.

 

3. O espaço no mundo contemporâneo

Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de maneira tão absoluta desse organismo que é a terra...

Ailton Krenak

 

O mundo contemporâneo é caracterizado pela produção de um espaço intercambiável, chamado de “não-lugar” (AUGÉ, 1992). Augé faz uma distinção entre o “não-lugar” visto como um espaço de circulação, consumo e comunicação marcado pelo anonimato, definido acima de tudo por sua funcionalidade, que é inseparável de uma forma de padronização e desumanização, e o “lugar antropológico”, que caracteriza um espaço no qual as inscrições do vínculo social e da história coletiva podem ser lidas. Tais inscrições são, evidentemente, mais raras em espaços físicos marcados pela efemeridade e pela passagem. No entanto, embora o binômio lugar/não-lugar seja um instrumento para medir o grau de socialidade e simbolização de determinado espaço, ele não deve ser interpretado como a expressão de uma oposição entre lugares materiais, na medida em que o lugar existe acima de tudo por meio da maneira como o indivíduo investe a espacialidade. Em um não-lugar, caracterizado pelo trânsito e pela impossibilidade de habitá-lo, não existe apropriação singular do espaço, nem tampouco encontro com outros. Um lugar antropológico, por outro lado, pode ser definido como um lugar de “identidade, relacionamentos e história” (AUGÉ, 1992, p.100). O indivíduo o incorpora à sua identidade; pode encontrar nele outras pessoas com quem compartilha referências sociais ou constrói referências comuns. O conceito de não-lugar surge como parte de uma crítica a nossas sociedades globalizadas e essencialmente desenraizadas. De fato, os lugares educativos materializados em nossas escolas têm, em grande medida, a marca de uma abordagem bastante funcional do espaço e não incentivam a apropriação subjetiva. Assim, os espaços de aprendizagem constituem não-lugares na medida em que são projetados para otimizar as funções logísticas em detrimento das funções pedagógicas. Na modernidade tardia, parece ser necessário construir espaços heterotópicos para preservar o lugar antropológico. Espaços heterotópicos são definidos como

espécies de contra-lugares, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais todos os outros lugares reais que podem ser encontrados na cultura são ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis (FOUCAULT, 2004, p.15)

 

A ideia de heterotopia é relevante porque reconcilia as duas dimensões do espaço, tanto a localização quanto o movimento, a deslocalização que autoriza o deslocamento e se manifesta por meio dele. A heterotopia permite a subversão de um espaço que está congelado em um lugar e reduzido à sua dimensão funcional, autorizando deslocamentos criativos que permitem o reinvestimento do valor antropológico do lugar.

Se espaço da modernidade tardia é desumanizado, ele pode portanto ser recuperado e revitalizado, demonstrando o poder do indivíduo de agir como um ser espacial (LUSSAULT, 2017). A abordagem teórica de Lussault apresenta uma concepção da existência humana como um desafio espacial que acompanha o desafio do tempo social da aceleração. Um indivíduo é entendido pelo modo como organiza seu espaço de vida diariamente, enfrentando diferentes tipos de desafios espaciais, que combinam dimensões naturais, materiais, sociais e simbólicas. O primeiro deles é a distância. Diariamente, todo indivíduo precisa regular sua distância de outras pessoas, objetos e não humanos. O segundo desafio espacial é o do posicionamento, que exige a capacidade de jogar com diferentes contextos, inseparáveis da atribuição de status, não apenas para evitar ser reduzido a eles, mas também para preservar, na medida do possível, uma identidade coerente. O terceiro desafio espacial envolve a travessia, seja ela de limiares, barreiras ou fronteiras.

As análises de Lussault sobre a relação ao espaço na modernidade tardia também enfatizam a noção de ancoragem. Seu significado literal evoca a parada temporária de um navio cuja função é se deslocar e atravessar o alto mar, sem pontos de referência fixos (LUSSAULT, 2017). Seu uso metafórico oferece uma nova maneira de ver o habitat de um ser humano. Habitar não significa mais residir em um determinado lugar a partir do qual nos orientamos, mas sim viajar por um espaço de vida composto por uma pluralidade de lugares nos quais nos ancoramos, nos quais é possível parar porque existe um sentido de pertencimento. Em uma sociedade da mobilidade (STOCK, 2019), os indivíduos contemporâneos são multiancorados. A generalização da mobilidade como prática cotidiana nas sociedades pós-modernas não suprime o apego a lugares ou a construção de uma territorialidade, em escala individual e coletiva. É o que expressa o conceito de habitação politópica em sociedades de indivíduos móveis (STOCK, 2006): podemos habitar, ou seja, nos apropriar de vários lugares simultaneamente, apesar da mobilidade, ou melhor, graças a ela. O habitar politópico, que designa um habitar carcaterizado pela prática de lugares múltiplos, inscreve-se nos processos de alongamento das cadeias de interdependências da sociedade contemporânea descritos por Elias (1991). A prática de múltiplos lugares e as mobilidades espaciais que ela implica têm impactos sobre a relação a “si mesmo”, a “outros” e a “nós”. As identidades pessoais (identidade-eu), as alteridades e as identidades coletivas (identidade-nós) são reconstruídas na prática in situ, com os encontros e as interações imediatas que suscitam (ZASK, 2008).

 

4. Contribuições da mesologia para (re)compreender o meio educativo

Nas narrativas de mundo onde só o humano age, essa centralidade silencia todas as outras presenças.

Ailton Krenak

 

A análise apresentada até aqui destaca a necessidade de superar uma representação do espaço que tende a objetivá-lo, com vistas a pensá-lo a partir da perspectiva de sua produção subjetiva. Evidencia, ainda, a importância de examinarmos com profundidade a questão do lugar que, na modernidade tardia, assume formas plurais e leva à reconfiguração do habitar, o que pressupõe um trabalho particular de subjetividade. A relação ao espaço e ao sistema de interdependências que ele manifesta nos leva a refletir sobre os vínculos entre a interioridade subjetiva e a exterioridade com a qual ela se confronta.

O mundo exterior deu origem a numerosas definições que foram objeto de debate científico e filosófico, especialmente no contexto atual do Antropoceno, levando a um questionamento renovado sobre a relação entre os seres humanos e o mundo externo.  É sob a perspectiva da mesologia que nos propomos a pensá-lo. Essa disciplina interessa-se, menos pelo relacionamento com o ambiente natural, do que pelo contexto ontológico das condições de existência. Remete, assim, a questionamentos sobre a relação entre dentro e fora, interioridade e exterioridade, sujeito e objeto. A mesologia designa o estudo do meio, cujo significado enfatiza sua centralidade para os seres vivos. De um ponto de vista conceitual, o meio pode ser claramente diferenciado do ambiente. Enquanto o ambiente é um dado objetivo exterior ao ser vivo e independente dele, a ideia de meio se baseia na reciprocidade entre o ser vivo e seu contexto de existência. Assim, o meio não existe por si mesmo, mas pela interpretação do ser vivo que o reconhece e consitui como tal. Para determinada espécie ou cultura, o meio representa o “seu” ambiente, ou seja, uma realidade que lhe é especificamente apropriada. Uma visão abstrata, objetificante e homogênea da superfície terrestre é, portanto, substituída pela realidade concreta e múltipla dos meios, que não são universais e cuja realidade singular é constantemente construída ao longo do curso contingente da história.

A mesologia ficou inicialmente restrita à biologia, até chamar a atenção das ciências humanas e sociais graças ao trabalho do biólogo Jakob von Uexküll e do filósofo Tetsurö Watsuji[2].  Um dos principais conceitos da abordagem fenomenológica de Uexküll é o Umwelt ou “mundo próprio”, que representa o entorno sensorial próprio a uma espécie ou indivíduo. Cada espécie extrai sentido de seu meio, que é tanto físico quanto semiótico, de tal forma que, por meio de suas interações, ela o recria, forjando para si mesma um sistema de representação e de ação. De um ponto de vista fenomenológico, podemos então distinguir o meio (Umwelt) do ambiente (Umgebung). De acordo com Watsuji (2011), que propõe ir além da dicotomia entre o corpo e seu ambiente, a existência humana é estruturada pelo “acoplamento dinâmico entre o indivíduo e seu meio”, um meio necessariamente social que é ao mesmo tempo ecológico, técnico e simbólico. O homem é tanto um animal, um corpo individual, quanto um corpo “medial”, eco-técnico-simbólico, inseparável de seu meio. Ambos estão em interação dinâmica, agindo um sobre o outro por meio da “mediação”que constitui seu vínculo ontológico.  O meio é tanto a marca que testemunha o impacto do sujeito sobre ele quanto a matriz a partir da qual o sujeito se constrói. Ele não pode ser descrito de outra forma senão por uma relacionalidade que funda o homem como sujeito, ou seja, como uma manifestação singular da vida. A mesologia afirma, desse modo, não apenas a necessidade do ambiente para a sobrevivência, mas também, e principalmente, a dimensão essencial do meio que manifesta o caráter eminentemente relacional do ser humano. Nesse sentido, a realidade proposta pelo meio não é objetiva nem subjetiva, mas “trajetiva”, indicando uma forma de deslocamento que faz com que as coisas existam em função da relação que com elas se estabelece, “enquanto algo” para um indivíduo determinado que existe relativamente a elas. A “trajetividade” indica o movimento de “gênese recíproca”, um “caminho reversível” entre os termos que compõem o meio, entre sujeito e objeto. Ultrapassando a tríplice dualidade subjetivo-objetivo, natural-cultural e coletivo-individual, o ambiente participa de ambos os polos dessas díades, e “sua dimensão é a das práticas que o moldam constantemente” na estrutura temporal passado-presente-possível.

A partir dessas análises, Berque (2000) desenvolve o conceito de ecumene, que não pode ser reduzido à biosfera, pois emerge dela para formar o conjunto dos meios humanos, que se corporificam nas paisagens em particular. A ecumene reflete a lógica da coprodução do ambiente pelo sujeito e do sujeito pelo ambiente, ilustrando, assim, o princípio da reciprocidade que caracteriza o elo entre eles. Além disso, o meio enquanto ecumene, ao constituir para o indivíduo um mundo composto de usos e emoções, posturas e expressões, não é mais abordado como espaço indiferente ao afeto, que agiria por meio de uma influência causal, condicionando corpos, mentes e costumes. O novo conceito de meio não leva apenas em conta a presença humana, mas, acima de tudo, rejeita o determinismo ambiental subjacente. Trata-se de um todo sensível, prático e simbólico, que age sobre os indivíduos à medida que estes agem sobre ele, de acordo com relações que não são unívocas nem mecânicas. A ecumene reflete, portanto, a relação existencial entre os sujeitos e seus lugares de vida.

A abordagem mesológica nos leva a repensar a questão da construção do sujeito individual à luz do meio que o constitui e que ele constitui. Para tanto, convém primeiramente analisar os processos de individuação/subjetivação a partir do quadro teórico da mesologia, ou seja, entender o que significa a expressão “si mesológico”, para, em seguida, determinar os critérios pelos quais a mesologia pode propor novas abordagens sobre o meio educativo. A expressão “si mesológico” é empregada para “designar um si que reinveste conscientemente seu meio como constitutivo de seu ser, capaz de reescrever com ele uma narrativa comum” (CHAKROUN, LINDER, 2018, p. 284). Em outras palavras, por meio do si mesológico, o homem se reconecta com seu corpo medial e reestabelece com ele um diálogo. 

A perspectiva mesológica torna possível religar os elos de dois pares de narrativas que a modernidade ilustrada pelo pensamento cartesiano separou artificialmente: humanidade e natureza; indivíduo e meio. Como conceitualização do sujeito, o si mesológico enfatiza, portanto, a relacionalidade que o caracteriza quando é pensado em relação a seu meio (CHAKROUN, LINDER, 2018). Desse ponto de vista, o si mesológico se alinha às teses da pesquisa biográfica em educação sobre a configuração do sujeito. No quadro teórico da pesquisa biográfica em educação, o sujeito se constitui pela imersão em um sistema de interações constantes no qual o “eu” desempenha seu papel segundo um fluxo contínuo: o sujeito é fruto de uma configuração da qual é também parte ativa. Em virtude de sua posição e pertencimento a uma cultura, dos vínculos que estabelece, ele é, de certa forma, depositário e revelador de toda a trama social. No entanto, o si mesológico enfatiza um aspecto que convém aprofundar: a questão do habitar. Ao levar em conta o vínculo vital entre o homem e seu meio, o si mesológico se caracteriza por uma maneira de estar no mundo composta por acolhimento e receptividade, renovando a relação a si e ao meio. Trata-se de uma abordagem normativa que questiona o domínio do valor e da ética. Ela propõe uma forma de dever-ser que não se refere à moral, mas a uma atitude, uma disposição baseada em uma ordem de valores relativos à vida e à sua relação com o meio. Sua dimensão normativa se manifesta na concepção de habitação que o si mesológico pressupõe, rompendo com o simples fato de ocupar um meio sobre o qual nos apoiamos sem realmente prestar-lhe atenção, sem considerá-lo como fim em si mesmo que realmente é, na medida em que nos constitui. O eu mesológico baseia-se na experiência sensível, afetiva e espiritual de habitar significativamente um espaço-tempo de múltiplas dimensões.

A relação ao mundo própria à modernidade afastou o ser humano da consciência do si mesológico, com a qual certas práticas, como a permacultura, permitem reconectar, oferecendo a possibilidade de “redescobrir um sentido do meio pelos sentidos, ou seja sentir enfim a mediação” (CHAKROUN, LINDER, 2018, p.289). O si mesológico resulta de uma experiência vivida, da experiência sensível de existir por meio de uma malha de relações com o mundo concreto e torna possível uma atividade que responde e se harmoniza com esses entre-laçamentos. Nesse contexto, habitar significa um esforço de ajustamento entre si e o meio, um processo de mediação que não pode ser determinado a priori, pois depende de sua situação. O processo de individuação/subjetivação que caracteriza o si mesológico se apoia, portanto, em uma sintonia, uma ressonância com o meio que lhe permite reinvestir seu corpo medial, trabalhando para tornar o espaço comum habitável para todos os seres vivos que o compartilham. O processo de individuação/subjetivação próprio ao si mesológico questiona o projeto, que com frequência é a ele associado, de dominação do indivíduo sobre si mesmo e sobre a natureza ou seus ambientes sociais. Na abordagem de permacultura, renunicamos a domesticar o ambiente e subjugá-lo para restaurar um elo com o meio. Tal elo permite um novo tipo de controle que, ao assumir o princípio da imprevisibilidade de seus efeitos, exprime uma transformação da relação a si por meio do reconhecimento da interdependência e da aceitação da própria vulnerabilidade. O si mesológico é inseparável do favorecimento do poder de ação do sujeito, na forma de uma adaptabilidade que se baseia na consciência das características de um meio e que manifesta a capacidade de transformar a si mesmo, de operar reorientações e deslocamentos identitários, cujos efeitos no espaço compartilhado oferecem novas possibilidades de atuação e expressão.

O si mesológico, fortemente dessubstancializado, aparece, acima de tudo, como uma abertura para o mundo, pressupondo o descentramento de si que torna possíveis as relações que o constituem. A conexão entre o sujeito e seu meio é enactada, ou seja, opera-se por meio da prática efetiva dos lugares em todas as suas dimensões materiais, corporais e simbólicas (STOCK, 2015). “Fazer o espaço e fazer com o espaço são expressões que significam as múltiplas maneiras de constituir o espaço como problema, como desafio, como recurso, tanto do ponto de vista simbólico quanto material, quaisquer que sejam as ‘técnicas corporais’ [Mauss, 1950] utilizadas” (STOCK, 2015, p.430)[3]. O conceito de re-habitar caracteriza, de modo geral, uma prática reflexiva de avaliação e reorganização material dos meios de vida, alimentada pela tomada de consciência sensível das interdependências ecológicas e sociais que os moldam. 

 

Considerações finais

Sejamos água, em matéria e espírito, em nossa movência e capacidade de mudar de rumo, ou estaremos perdidos.

Ailton Krenak

 

Há muito, a reflexão sobre o espaço em que ocorrem as aprendizagens vem acompanhando os debates em Educação. Desde a escola vista como lugar fechado, em que uma espécie de ascetismo monástico governava os horários e comportamentos, até os experimentos pedagógicos da Escola Nova, que reivindicaram sua abertura para o mundo exterior pelo reconhecimento do papel formativo dos espaços da vida cotidiana e da natureza, a questão do ambiente educacional se configura como preocupação fundamental, inspirando reformas e participando da renovação das instituições.  O próprio termo "vida escolar", presente no vocabulário contemporâneo, não apenas designa o ambiente em que acontecem as atividades educacionais, mas também evoca sua dimensão de espaço vivo. Todavia, a implementação de procedimentos que regem a expressão dos indivíduos de acordo com os objetivos educacionais ainda deixa pouco lugar para a experiência sensível, individual e coletiva, do meio escolar. Ora, o advento crítico que marca o encontro da história natural e da história social, sob a ameaça de deterioração das condições da vida no planeta, impõe a urgente necessidade de repensarmos o papel da educação das novas gerações em sua relação com o meio e a alteridade. Para tanto, a retomada das discussões sobre o espaço escolar desempenha um papel central. Como vimos, a abordagem mesológica oferece caminhos a serem explorados no sentido de pensar o ambiente educacional em novos termos. O si mesológico revela ser uma chave conceitual capaz de favorecer o movimento de re-habitar a escola como instituição de vínculos.

No enfretamento dos desafios implicados na importante tarefa de educar no Antropoceno, repensar o ambiente escolar à luz da mesologia mostra-se como via promissora, cujas bases conceituais fundamentais este artigo procurou delinear. Enquanto a mesologia nos permite compreender em novos termos o que é um meio, a permacultura (HOLMGREN, 2017; MOLLISON, SLAY, 1991) estuda as condições necessárias para que ele se desenvolva de forma sustentável e resiliente, bem como os métodos e princípios capazes de garantir sua manutenção. Baseia-se numa compreensão profunda das características e dos comportamentos do meio para, gradualmente, introduzir mudanças que criarão novas relações entre seus elementos e os integrarão harmoniosamente para que se apoiem mutuamente. Na permacultura, os ecossistemas são concebidos como capazes de autorregulação e auto-organização, embora sempre instáveis devido à variedade e à heterogeneidade de seus componentes. Transpondo a teoria e a prática da permacultura para o contexto da vida social, a permacultura humana enfatiza o princípio da auto-organização e da autorregulação possíveis no contexto da vida coletiva. A permacultura se opõe fundamentalmente à abordagem da agricultura que entende sua relação com o meio ambiente como uma luta contra tudo aquilo que se opõe a seu propósito produtivista. A permacultura se esforça "para trabalhar com a natureza, não contra ela. Isso envolve observação prolongada e consciente, em vez de trabalho prolongado e inconsciente; envolve olhar para as plantas e os animais em todas as suas funções, em vez de tratar um local como um único sistema de produção" (MOLLISON, 1993, p. 1). Esse ponto de vista pode ser transposto às instituições educacionais que, ao se preocuparem principalmente com a eficácia do ensino e da aprendizagem, limitam a percepção dos fenômenos que ocorrem em seus espaços. A continuidade dessa reflexão à luz da abordagem da permacultura permitirá pensar criativamente novas formas de re-habitar a escola.  

Diante das incertezas e rupturas do Antropoceno, re-habitar os espaços educativos para reconstituir a escola como lugar antropológico mostra-se um desafio central no que concerne as condições de trabalho docente na atualidade. Tal movimento requer a consideração das interdependências que compõem inextricavelmente a vulnerabilidade e o poder de agir de todos os atores que vivem e fazem viver a instituição educativa. Requer, ainda, a renovação de sua capacidade de reescrever, junto com o meio, uma narrativa comum, superando a cisão sujeito/meio que tornou os seres humanos insensíveis aos espaços e formas de vida nos quais, pelos quais e com os quais existem. Como re-criar a escola enquanto mundo de vida? Como reinvestir de subjetividade um espaço escolar erguido como não-lugar? De que maneiras o si mesológico pode favorecer a ressignificação dos ambientes institucionais dedicados à aprendizagem? Como o educador pode ser recompreendido como sujeito em ressonância com o meio educativo – sujeito no duplo sentido de sua sujeição às condições do entorno, mas também de seu poder de ação e subjetivação? Em que consiste o si mesológico de educadores e educandos? Sem pretender esgotar tais perguntas, o presente artigo indica caminhos por meio das ferramentas teóricas que sistematiza, configurando um convite à continuidade de sua exploração.

O espaço escolar pode ser reinvestido como heterotopia; porém, como vimos, ressignificar a escola como instituição de vínculos demanda profundas transformações antropológicas. Em seu alcance ontológico, tais transformações não se limitam à esfera cognitiva, de modo que a aprendizagem científica, embora tenha seu lugar, mostra-se amplamente insuficiente para fornecer respostas à altura do problema. Trata-se, em realidade, de sensibilizar os atores da instituição educativa a habitar a escola como meio, não no sentido ecológico, mas mesológico, equanto seres engajados na redescoberta de seu ambiente através dos sentidos, capazes de ser tocados pela experiência sensível de existir no mundo como malha de relações. Trata-se, ainda, de engajar o conjunto desses atores na visão sistêmica e na ética do cuidado que se encontram no cerne da abordagem permacultural.  Entretanto, nunca é demasiado ressaltar que pensar e teorizar sobre tal consciência é diferente de senti-la, vivê-la e incarná-la. Se os modos de existir e dar sentido à existência humana propagados a partir da Europa Ocidental desde a modernidade alienaram o ser humano da consciência mesológica de si e do saber-fazer que permitia habitar um meio sem esgotar as condições de vida por ele propiciadas, a redescoberta experiencial e sensível dessa consciência é uma das formas que pode assumir o movimento de resgate que, como ensina a sabedoria tradicional indígena, é condição inexorável à continuidade da vida humana. Nesse sentido, podemos considerar, com Krenak (2022), que o futuro possível é ancestral.

 

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[1] Neste artigo, a expressão “era do Antropoceno” designa o nome da era planetária, enquanto o termo  Antropoceno denota o conceito teorizado nas ciências humanas, independentemente de qualquer oficialização no âmbito da Geologia, em referência às transformacoes sistêmicas da Terra colocadas em marcha pela atividade humana.

[2] O termo português mesologia, nesse novo contexto disciplinar, remete ao alemão Umweltlehre e ao japonês fûdogaku 風土学.

[3] É preciso ter em mente que essa perspectiva correlaciona “fazer-se” e “fazer-se com”. A mesologia mostra que, filogenética e ontogeneticamente, “fazer” nosso meio e “fazer” a nós mesmos são um único e mesmo processo.