A inovação educacional entre o bem-estar e o mal-estar do professor: uma revisão sistemática da literatura

Educational innovation between teacher well-being and uneasiness: a systematic literature review

 

Innovación educativa entre el bien estar y el mal estar docentes: una revisión sistemática de la literatura

 

Diego Luna Delgadohttps://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Universidade de Sevilha, Sevilha, Espanha.

dluna@us.es

Maria Amália Almeida Cunha https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

amalia.fae@gmail.com

Conceição Leal da Costahttps://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Universidade de Évora, Portugal.

mclc@uevora.pt

 

 

 

Recebido em 08 de outubro de 2023

Aprovado em 31 de março de 2024

Publicado em 13 de maio de 2024

 

 

 

RESUMO

Os desafios que os novos discursos educacionais estão gerando atualmente, em especial no trabalho docente e na sala de aula, convidam-nos a rever causas e concepções do bem-estar docente e as relações estabelecidas com a inovação em educação. O objetivo deste trabalho é identificar e sistematizar as condições profissionais que hodiernamente determinam o desenvolvimento desse sentimento nas escolas, por meio de uma análise das evidências empíricas relatadas na literatura científica. A metodologia consistiu em uma revisão sistemática de artigos científicos publicados a esse respeito nos últimos cinco anos, de acordo com as indicações da Declaração PRISMA 2020 e utilizando como base de dados o Scopus. Como resultado, dos 16 artigos analisados, apenas um deles aborda essa conexão entre bem-estar docente e inovação educacional. Os dados coligidos mostram-nos a necessidade de conduzir novas pesquisas que tenham como objeto heurístico a sala de aula e as práticas dos professores, uma vez que os contextos são determinantes para aquilitar os efeitos da exigência da mudança e da inovação educacional na vida dos profesores. Somente a partir deste cenário real e concreto é que podemos compreender os desafios e as dificuldades que os profissionais do ensino enfrentam nos dias atuais.

Palavras-chave: Bem-estar/mal-estar docente; Identidade profissional docente; Inovação educacional.

 

ABSTRACT

The challenges that the new educational discourses are currently generating, especially in teaching and in the classroom, invite us to review causes and conceptions of teacher well-being and the relationships established with innovation in education. The objective of this work is to identify and systematize the professional conditions that today determine the development of this feeling in schools, through an analysis of empirical evidence reported in the scientific literature. The methodology consisted of a systematic review of scientific articles published in this regard in the last five years, in accordance with the indications of the PRISMA 2020 Declaration and using Scopus as a database. As a result, of the 16 articles analyzed, only one of them addresses this connection between teacher well-being and educational innovation. The collected data show us the need to conduct new research that has the classroom and teachers' practices as their heuristical object, since contexts are crucial in assessing the effects of the demand for change and educational innovation in teachers’ lives. Only from this real and concrete scenario we can understand the challenges and difficulties that teachers face today.

 

Keywords: Teacher well-being and uneasiness; Teacher professional identity; Educational innovation.

 

RESUMEN

Los desafíos que los nuevos discursos educativos están generando actualmente, especialmente en la enseñanza y en las aulas, invitan a revisar las causas y concepciones del bienestar docente y las relaciones que se establecen com la innovación em educación. El objetivo de este trabajo es identificar y sistematizar las condiciones profesionales que hoy determinan el desarrollo de este sentimento em las escuelas, a través de um análisis de las evidencias empíricas reportadas em la literatura científica. La metodologia consistió en una revisión sistemática de artículos científicos publicados al respecto em los últimos cinco años, de acuerdo com las indicaciones de la Declaración PRISMA 2020 y utilizando como base de datos Scopus. Como resultado, de los 16 artículos analizados, solo uno de ellos aborda la conexión entre bienestar docente e innovación educativa. Los datos recogidos nos muestran la necesidad de realizar nuevas investigaciones que tengan como objeto heurístico el aula y las prácticas docentes, ya que los contextos son determinantes para evaluar los efectos de la exigencia de cambio y de innovación educativa em la vida de los profesores. Solo a partir de este escenario real y concreto podemos compreender los desafíos y las dificultades que los profesionales de la enseñanza enfrentan em la actualidad.

 

Palabras clave: Bienestar/mal estar del docente; Identidad profesional docente; Innovación educativa.

 

Introdução

Os profesores têm um papel fundamental na implementação de inovações em sala de aula. Deles depende a aplicação de novas metodologias, a utilização de ferramentas tecnológicas ou a concepção de conteúdos educativos que se adaptem aos interesses e necessidades dos alunos. Esta grande responsabilidade exige uma abertura à aprendizagem ao longo da vida e ao desenvolvimento profissional, fundamentalmente através da participação em atividades de formação, na investigação e colaboração com outros profissionais (Arcadinho; Folque; Leal da Costa, 2019; Luna et al., 2022; Leal da Costa, 2022). Anotamos o nosso interesse e a investigação que se assume como promotora de aprendizagens em contexto de trabalho e não apenas como promotora de desenvolvimento profissional. Assim, os nossos trabalhos com narrativas têm vindo a fazer-se no sentido de, globalmente compreendermos e disseminarmos práticas bem sucedidas, experiências e relações na formação de professores, transformando sustentavelmente a educação (Leal da Costa; Passeggi; Rocha, 2020; Passeggi et al., 2022).

O bem-estar docente diante dos novos desafios educacionais

Os novos discursos educacionais ampliaram e redefiniram profundamente as funções da escola e os tradicionais papéis dos professores. Entre as múltiplas tarefas que hoje lhe são atribuídas (Aaarts; Kools; Schildwacht, 2020; Darling-Hammond;Hajisoteriou; Angelides, 2020; Hyler, 2020; Kalimullina; Tarman; Stepanova, 2020; Pedler; Yeigh; Hudson, 2020; Tvedt; Bru; Idsoe, 2021): facilitar um tipo de aprendizado de competências, mais do que conceitual; projetar experiências de aprendizagem que garantam a conexão com o mundo real e o desenvolvimento de novas habilidades; personalizar a aprendizagem para atender aos diferentes estilos, ritmos e necessidades dos alunos; promover competências socioemocionais, servindo de modelo ético e emocional e apostar em metodologias participantes, numa escola em que os espaços e os tempos teimam em manter-se balcanizados e a disciplinarização se perpetua.

A emergência de todas essas expectativas discursivas e inerentes exigências nas práticas coincidiu no tempo com o progressivo reconhecimento dado pela literatura científica à questão do bem-estar docente. Este conceito refere-se ao estado físico, mental e emocional dos professores, incluindo aspectos como a satisfação no trabalho ou o sentimento de auto-realização (Alves; Lopes; Precioso, 2021; Bermejo-Toro; Prieto-Ursúa; Hernández, 2016; Burić; Slišković; Penezić, 2019; Collie et al., 2015; Kidger et al., 2016; Spilt; Koomen; Jochem, 2011; Ying; Huang; Lv, 2018; Yin; Huang; Wang, 2016). Com este entendimento, parte-se do pressuposto de que, cuidando de seu próprio bem-estar, os profesores estarão mais aptos a oferecer um ambiente de aprendizagem adequado para seus alunos. Nesse sentido, o bem-estar docente representa também a necessidade de colaborar e investigar com os professores, promover o seu desenvolvimento profissional, dotá-los de recursos e, por fim, promover o equilíbrio entre o trabalho docente e a vida pessoal.

A pesquisa educacional tem abordado minuciosamente o bem-estar do professor desde suas causas e suas consequências, tanto para profesores quanto para alunos. De fato, diferentes modelos e quadros conceituais têm sido propostos para melhor entender a relação desse estado ou sentimento como outros fatores educacionais, bem como varias estratégias de intervenção para aumentar o bem-estar (Huang; Ying; Lv, 2019; Ross; Romer; Horner, 2012; Turner; Theilking, 2019; Vesely; Saklofske; Nordstokke, 2014; Zee; Koomen, 2016).

O mal-estar docente como sintoma do neoliberalismo educacional

Segundo a literatura, o mal-estar docente representa a vivência ou o sofrimento de um conjunto de efeitos negativos por parte dos professores, produzidos por circunstâncias de natureza muito diversa (relacionadas com o trabalho, psicológicas, sociais, culturais, etc.). Entre estas circunstâncias, Esteve (1999), em trabalho pioneiro neste campo, destacou em particular, “os problemas relacionados com a consideração social do seu trabalho, a crítica radical aos seus modelos de ensino e ao clima que envolve a instituição escolar, nomeadamente no que diz respeito às relações dos professores com os gestores”. A consequência de tudo isto corresponderia a uma verdadeira crise de identidade em que os professores questionam o sentido do seu próprio trabalho, e até de si próprios.

Após mais de duas décadas da pesquisa pioneira de Esteve (1999), observa-se que o fenômeno bem-estar/mal-estar permanece atual e instigante, além de parecer essencial para nos ajudar a compreender a forma como os professores vivenciam realmente as múltiplas e significativas mudanças educativas promovidas nos últimos tempos (Acton; Glasgow, 2015; Hascher; Waber, 2021; Puertas Molero et al., 2019). Entre tais mudanças, destacam-se:

·       aumento da carga de trabalho por múltiplos motivos (novas políticas educacionais, novos padrões e estratégias de avaliação, maior diversidade nas salas de aula, etc.);

·       intensa pressão para alcançar determinados resultados acadêmicos por meio de práticas de accountability;

·       maior insegurança e instabilidade laboral devido à predominância de contratos a tempo parcial, temporários ou de projeto;

·       a necessidade de adquirir novas competências tecnológicas e de adaptação a novas formas de ensinar e aprender;

·       aumento da diversidade cultural, linguística e social, que exige novas competências interculturais.

Neste sentido, podemos confirmar que o mal-estar docente é um claro sintoma de um modelo educativo, como o neoliberal, baseado na desconfiança e na responsabilização dos professores. As consequências desta política vão desde a perda do antigo estatuto de autoridade e capacidade de liderança dos professores até a uma profunda crise de identidade através do desaparecimento de atributos como a autonomia real (Contreras, 2002), a liberdade de cátedra, a empatía com os alunos e as famílias. Em grande parte das pesquisas sobre a temática, não é incomum perceber, no discurso dos professores, sentimentos como inutilidade, culpa, desmotivação e mesmo ilegitimidade.

Os professores se vêem cada vez mais diante de novas demandas, subsumidos a uma gestão do trabalho que os tem levado a um enorme sofrimento psíquico e, com ele, a subtração progressiva de uma série de qualidades que conduziram os professores à perda de controle e sentido sobre o próprio trabalho, ou seja, a perda de autonomia (Contreras, 2002, p.33). Junto a isso, a crise da legitimidade e a imposição de novos ritmos e tempos ao trabalho docente representam as novas configurações do trabalho que despontam como uma característica da sociedade globalizada. Nesta, o trabalho autônomo descarta as conquistas trabalhistas, que são dispendiosas para os empregadores, sobretudo o Estado (Contreras, 2002, p.18).

A lógica racionalizadora ultrapassou o âmbito da empresa e o mundo da produção, mediante a ideologia da eficácia e da neutralidade tecnológica, aproximando-se cada vez mais de uma gestão taylorizada que confunde o mundo da empresa com o mundo da escola. De maneira progressiva, os professores viraram aplicadores de programas e pacotes curriculares. Devem conhecer fórmulas presumidas para ensinar e mediar o conhecimento com alunos considerados nativos digitais. A tecnologização progressiva do ensino resultou em um trabalho alienado do professor, que se viu diante de uma divisão social do trabalho que separa cada vez mais a concepção da execução, conforme o novo espírito da racionalização tecnológica do ensino. A perda do conjunto e o controle sobre a tarefa do docente contribui paulatinamente para um sentimento de menor valia.

Para Dardot e Laval (2010), toda essa nova configuração social leva a um trabalho de internalização de um tipo de relação de si com os outros, guiada através da generalização de princípios empresariais de performance, desempenho, rentabilidade, etc. para todos os meandros da vida. De acordo com Safatle (2022, p.30), Foucault já alertava para este ideal empresarial de si como o resultado psíquico necessário da estratégia neoliberal de construir uma “formalização da sociedade com base no modelo de empresa”. É a generalização da forma-empresa no interior do corpo social.

A este modelo, junta-se outras formas de conceber o trabalho, como a sua intensificação e a perda da autonomia. O trabalho deixa de ser autogovernado para ser completamente regulamentado e cheio de tarefas. Isso provoca efeitos insidiosos sobre os professores, uma vez que favorece a rotinização do trabalho e o distanciamento de uma atividade antes reflexiva, agora subsumida à pressão do tempo. Do outro lado, facilita a atomização e o isolamento dos colegas, privados de tempo para encontros que antes eram marcados por uma espécie de colegialidade e colaboração, uma vez que muitas vezes eram nestes momentos que os professores podiam discutir e trocar experiências profissionais (Contreras, 2002, p.37).

A partir do presente estudo, considera-se essencial integrar as três dimensões acima referidas, todas elas determinantes da prática docente hoje: as novas expectativas discursivas centradas nos professores, o bem-estar docente e as atuais condições de trabalho dos professores. Admitimos então que é fundamental perseguir caminhos de construção de conhecimento com participação dos diferentes sujeitos e entender a escola como lugar aprendente, reconhecendo que assim é possível oferecer visões mais realistas e críticas sobre os reais desafios e dificuldades que os profissionais do ensino enfrentam hoje, tendo em conta vivências e acontecimentos concretos. Em última análise, dela dependerá a possibilidade de propor, a partir do campo da investigação, medidas, estratégias ou planos de formação que sejam verdadeiramente úteis para os profesores em formação inicial quanto continuada, ao mesmo tempo que poderemos trazer os contributos da narração, da reflexividade e da humanização da investigação, para uma inovação sustentável em Educação.

 

Metodologia

Este trabalho se insere no âmbito de um projeto internacional mais amplo, financiado pelo CNPq e cujo objetivo central recomenda a compreensão profunda das condições de trabalho docente em diferentes países[1]. O objetivo específico deste artigo foi explorar o fenômeno do bem-estar docente na perspectiva das condições profissionais que atualmente determinam o seu desenvolvimento, com especial interesse pelo lugar que as práticas inovadoras ocupam. Em particular, utilizamos as indicações estabelecidas na declaração Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses (PRISMA), em sua versão 2020 (Page et al., 2021).

O PRISMA 2020 destina-se ao uso de revisões sistemáticas que incluem sumarizações (como meta-análise ou outros métodos de sumarização estatística) ou que não incluem sumarização (devido a apenas um estudo elegível ter sido identificado, por exemplo). Ao seguir as recomendações do PRISMA, acreditamos garantir que uma revisão sistemática ou meta-análise seja conduzida de forma mais abrangente e transparente. Isso pode contribuir para um entendimento mais completo e confiável de um determinado tema, uma vez que esses estudos sintetizam evidências de múltiplos estudos primários sobre o assunto em questão.

Neste documento, uma revisão sistemática é definida como aquela que usa métodos explícitos para coletar e sintetizar os resultados de estudos que abordam uma questão claramente formulada. Nesta ocasião, as questões que fundamentaram a pesquisa foram especificamente as seguintes:

1)    Que características apresentam os estudos selecionados para explicar o desenvolvimento do bem-estar docente nas escolas?

2)    Que condições facilitadoras do bem-estar do professor os estudos analisados destacam?

3)    Que tipo de relação se estabelece entre a forma atual de conceber e praticar a inovação educacional e o desenvolvimento do bem-estar docente nos estudos revisados?

O processo de busca de informações centrou-se naqueles estudos que abordaram o fenômeno do bem-estar docente em relação às atuais condições de trabalho dos professores nas escolas. Para tanto, a base de dados consultada foi a Scopus, devido ao seu prestígio internacional, à variedade de estudos educacionais a que dá acesso e aos múltiplos parâmetros de pesquisa que oferece. Para configurar a equação de busca, vários descritores foram combinados por meio de fórmulas que incluíram sempre os termos-chave da investigação, aplicando na consulta os operadores booleanos “AND”, “OR” e “AND NOT”, na querystring,da seguinte forma:

(KEY(“bem-estar do professor”) OR TITLE-ABS-KEY(“desconforto do professor”) OR TITLE-ABS-KEY(“esgotamento do professor”) OR TITLE-ABS-KEY(“estresse do professor”) AND TITLE-ABS -KEY(escola) AND NOT TITLE-ABS-KEY(covid-19) OR TITLE-ABS-KEY(pandemic)) AND ( LIMIT-TO ( OA,”all“ ) ) AND ( LIMIT-TO ( PUBYEAR,2023) OU LIMIT-TO (PUBYEAR,2022) OU LIMIT- TO (PUBYEAR,2021) OU LIMIT-TO (PUBYEAR,2020) OU LIMIT-TO (PUBYEAR,2019)) AND ( LIMIT-TO (DOCTYPE,”ar” ) ) AND ( LIMIT-TO ( SUBJAREA,”SOCI”) ) AND ( LIMIT-TO ( LANGUAGE,”English“ ) OR LIMIT-TO ( LANGUAGE,”Espanhol“ ) OR LIMIT-TO ( LANGUAGE,”Português“ ) ) AND ( LIMIT-TO ( SRCTYPE,”j“).

Como se vê, foram evitados estudos centrados exclusivamente no contexto da pandemia declarada em 2020, e não em condições mais gerais e constantes, como se pretendia.

Critérios de inclusão e exclusão

Conforme indicado pela sequência reproduzida acima, o procedimento de seleção das publicações foi realizado por meio de um rigoroso processo de triagem, com base nos seguintes critérios de inclusão e exclusão:

·       Foi selecionada como área de pesquisa “Ciências Sociais”.

·       Para obter os resultados mais atualizados entre todos os disponíveis, a busca foi temporariamente limitada aos últimos cinco anos, variando de 2019 a 2023.

·       A seleção dos registros limitou-se a artigos de periódicos que deveriam estar disponíveis em acesso aberto, com o texto completo e escritos em inglês, português ou espanhol.

Inicialmente, obteve-se um total de 901 documentos e, após a aplicação dos critérios de elegibilidade supracitados, foram selecionados 117 registros bibliográficos. Esses registros foram submetidos a um rigoroso processo de avaliação pelos três autores, a fim de verificar sua pertinência em relação aos interesses da pesquisa. Esse proceso consistiu em duas fases: 1) avaliação da relevância dos estudos por meio da revisão do título, resumo e palavras-chave; e 2) a avaliação abrangente da relevância do conteúdo para abordar especificamente as três questões de pesquisa nas quais a pesquisa se justifica. A discussão levada a cabo pelos três autores centrou-se especificamente na clareza dos objetivos e na descrição do delineamento metodológico de cada estudo, bem como no rigor científico com que os dados foram analisados, garantindo a validade interna da análise através da análise inter confiabilidade do avaliador (“inter rater reliability”). De 117 trabalhos selecionados, 46 mencionam a palavra “bem-estar”. Destes, 16 trabalhos pareceram articular de maneira mais direta as três questões norteadoras propostas neste artigo (ver Figura 1).

 

Figura 1 – Fluxograma do processo de seleção de textos do corpus.

Fonte: Elaboração própria.

 

Amostra analisada

Os 16 artigos que compõem o corpus desta pesquisa são apresentados na Tabela 2, ordenados cronológicamente em ordem descrescente. Na primeira coluna desta tabela, um código único foi atribuído a cada estudo para facilitar a análise. Na segunda coluna, os artigos são citados seguindo a norma APA 7.

 

Tabela 1 – Amostra analisada

CÓDIGO

REFERÊNCIA

A1

Tsuyuguchi, K. (2023). Analysis of the determinants of teacher well-being: Focusing on the causal effects of trust relationships. Teaching and Teacher Education, 132, 104240. https://doi.org/10.1016/j.tate.2023.104240

A2

Collie, R. J., Martin, A. J. (2023). Teacher well-being and sense of relatedness with students: Examining associations over one school term. Teaching and Teacher Education, 132, 104233. http://dx.doi.org/10.1016/j.tate.2023.104233

A3

Peng, W., Liu, Y., & Peng, J. E. (2023). Feeling and acting in classroom teaching: The relationships between teachers’ emotional labor, commitment, and well-being
(2023). System, 116, 103093. 
https://doi.org/10.1016/j.system.2023.103093

A4

Zhang, W., He, E., Mao, Y., Pang, S., & Tian, J. (2023). How teacher social-emotional competence affects job burnout: The chain mediation role of teacher-student relationship and well-being. Sustainability15(3), 2061. https://doi.org/10.3390/su15032061

A 5

Collie, R. J. (2023). Teacher well-being and turnover intentions: Investigating the roles of job resources and job demands. British Journal of Educational Psychologyhttps://doi.org/10.1111/bjep.12587

A6

Heffernan, A., Bright, D., Kim, M., Longmuir, F., & Magyar, B. (2022). “I cannot sustain the workload and the emotional toll”: Reasons behind Australian teachers’ intentions to leave the profession. Australian Journal of Education66(2), 196-209. https://doi.org/10.1177/00049441221086654

A7

Luna, D., Pineda-Alfonso, J. A., García-Pérez, F. F., & Leal da Costa, C. (2022). Teacher uneasiness and workplace learning in Social Sciences: Towards a critical inquiry from teachers’ voices. Education Sciences12(7), 486. https://doi.org/10.3390/educsci12070486

A8

Cacciamani, S., Cesareni, D., Fiorilli, C., &Ligorio, M. B. (2022). Teachers’ work, engagement, burnout, and interest toward ICT training: School level differences.Education Sciences12(7), 493. https://doi.org/10.3390/educsci12070493

A9

Li, P. H., Mayer, D., &Malmberg, L. E.(2022). Teacher well-being in the classroom: A micro-longitudinal studyTeaching and Teacher Education, 115, 103720. https://doi.org/10.1016/j.tate.2022.103720

A10

Neumann, M. M., &Tillott, S. (2022). Why should teachers cultivate resilience through mindfulness?Journal of Psychologists and Counsellors in Schools32(1),  3-14. https://doi.org/10.1017/jgc.2021.23

A11

Ferguson, K., James, Y., &Bourgeault, I. (2022). Teacher mental health and leaves of absences: A pilot study examining gender and careCanadian Journal of Education45(2), 315-349. https://doi.org/10.53967/cje-rce.v45i2.4485

A12

Yu, X., Sun, C., Sun, B., Yuan, X., Ding, F., & Zhang, M. (2022). The cost of caring: Compassion fatigue is a special form of teacher burnout. Sustainability14(10), 6071. https://doi.org/10.3390/su14106071

A13

Shie, E. H., & Chang, S. H. (2022). Perceived principal’s authentic leadership impact on the organizational citizenship behavior and well-being of teachersSAGE Open12(2). https://doi.org/10.1177/21582440221095003

A14

Dreer, B. (2022). Teacher well-being: Investigating the contributions of school climate and job crafting. Cogent Education9(1), 2044583. https://doi.org/10.1080/2331186X.2022.2044583

A15

Matos, M., Palmeira, L., Albuquerque, I., Cunha, M., Pedroso Lima, M., Galhardo, A., Maratos, FA, & Gilbert, P. (2022). Building compassionate schools: Pilot study of a compassionate mind training intervention to promote teachers’ well-being
Mindfulness13(1), 145-161.
https://doi.org/10.1007/s12671-022-01833-7

A16

Kaur, M., & Singh, B. (2019). Teachers’ well-being: An overlooked aspect of teacher development. Education and Self Development14(3), 25-33. http://dx.doi.org/10.26907/esd14.3.03

Fonte: Elaboração própria.

 

Todos esses artigos foram explorados por meio de uma análise de conteúdo realizada pelos três autores da pesquisa, selecionando os aspectos mais relevantes de cada um deles para responder às questões de pesquisa. Para organizar a análise de forma eficaz, foi utilizado o programa Microsoft Excel.

 

Resultados

Seguindo o objetivo de apresentar da forma mais clara possível os resultados obtidos com a análise, esses achados estão organizados a seguir, de acordo com cada uma das três questões de pesquisa colocadas.

 

Características das investigações

A tabela seguinte (Tabela 2) permite conhecer quais foram os objetivos, as abordagens metodológicas e os participantes de cada artigo.

 

Tabela 2 – Características dos artigos analisados

CÓDIGO

OBJETIVOS

ABORDAGEM METODOLÓGICA

PARTICIPANTES

A1

Este estudo pretende clarificar os determinantes do bem-estar docente, centrando-se nos efeitos causais das relações de confiança que os professores estabelecem com os colegas.

Duas pesquisas online foram realizadas com professores do ensino médio no Japão.

2.508 respondentes

A2

Examinar o bem-estar dos professores (vitalidade subjetiva, engajamento comportamental e crescimento profissional) em três momentos ao longo de um período escolar, juntamente com o senso de relacionamento dos professores com os alunos.

Modelagem bivariada da curva de crescimento latente para avaliar o relacionamento professor-aluno durante 3 momentos do período escolar.

NÃO INFORMADO

A3

Análise das três dimensões do trabalho emocional do professor realizadas no ensino em sala de aula. Das três, apenas a atuação profunda é considerada um preditivo importante para o bem-estar do professor, direta e indiretamente, por meio do comprometimento.

Os dados quantitativos foram analisados usando modelagem de equações estruturais (SEM) e complementados por dados qualitativos obtidos por meio de perguntas abertas na pesquisa

803 professores do ensino fundamental que ensinam inglês como língua estrangeira (EFL) na China.

A4

Este estudo teve como objetivo explorar o impacto da competência socioemocional do professor no esgotamento profissional, com foco nos efeitos da mediação em cadeia das relações professor-aluno e no bem-estar do professor.

Amostragem aleatória estratificada e o questionário foi preenchido por 990 professores em 14 escolas primárias em Pequim. Análise dos dados usando modelagem de equações estruturais (SEM).

990 professores em 14 escolas primárias em Pequim.

A 5

Este estudo examinou o papel de três recursos de trabalho (liderança de apoio à autonomia, relacionamento com colegas e alunos) e três demandas de trabalho (liderança que frustra a autonomia, pressão de tempo, comportamento disruptivo do aluno) em relação ao bem-estar do professor (vitalidade subjetiva, engajamento comportamental, crescimento profissional) e intenções de rotatividade

A modelagem de equações estruturais foi usada para examinar as principais associações e interações entre os fatores. As características dos professores (gênero, experiência de ensino e qualificação educacional) e fatores de personalidade serviram como controle em todas as análises.

Os participantes foram 426 professores australianos

A6

Analisar as causas das preocupações que estão aumentando sobre a atração e retenção de professores nas escolas australianas.

Por meio de uma análise temática dos dados qualitativos do questionário, utilizou-se a teoria da rotatividade de funcionários para permitir a compreensão dos motivos que 1.446 dos entrevistados descreveram como influenciando suas intenções de deixar a profissão.

2.444 entrevistados

A7

A partir da autoetnografia- escolhida especificamente como uma modalidade investigativa e, ao mesmo tempo, formativa- investigar como um professor do ensino médio espanhol experimenta sua própria inquietação. A análise de conteúdo empreendida indica que o fenômeno do mal-estar pode ser gerado por causas ainda despercebidas na literatura existente.

Autoetnografia

Análise de conteúdo do diário de um professor e 44 alunos ao longo de dois anos, como objeto heurístico.

A8

O envolvimento no trabalho dos professores está associado a resultados positivos em relação ao bem-estar relacionado ao trabalho. Por outro lado, o esgotamento ameaça o trabalho e as atitudes dos professores em relação ao desenvolvimento profissional.

Professores preencheram a Utrecht Work Engagement Scale, o Copenhagen Burnout Inventory e três itens ad hoc avaliando o interesse pelo treinamento em TIC entre 358 professores italianos. Para comparar os níveis escolares, foi utilizada uma ANOVA e uma análise de regressão múltipla para cada grupo correspondente a um nível escolar diferente.

358 professores

A9

Em função do alto índice de estresse e abandono entre os professores, a pesquisa procurou ampliar o conhecimento sobre experiências situacionais que contribuem para o bem-estar docente

Abordagem micro-longitudinal, utilizando modelos de equações estruturais multiníveis (MSEM).

20 professores primários de Taiwan.

A10

Este artigo explora o conceito de mindfulness como uma prática de apoio para construir resiliência em momentos de estresse em relação à redução ou prevenção do esgotamento do professor.

O objetivo é fornecer estratégias práticas para psicólogos e conselheiros nas escolas para capacitar os professores com estratégias de enfrentamento ao enfrentar o estresse. São fornecidas recomendações para psicólogos e conselheiros no apoio aos professores na prática de mindfulness e resiliência.

NÃO INFORMADO

A11

Descobrimos que o estresse vivenciado pelos professores na escola geralmente resulta da falta de apoio da administração, aumento da carga de trabalho, falta de recursos, violência e isolamento, o que afeta a vida doméstica.

Entrevistas qualitativas semi-estruturadas.

O estudo contou com (n = 67) e entrevistas de acompanhamento (n = 8).

A12

A pesquisa mostra que ao ajudar os professores a identificar a fadiga por compaixão, aprender o autocuidado, ajustar a autocognição e esclarecer os limites de sua competência profissional, a fadiga por compaixão dos professores pode ser evitada e aliviada.

Pesquisa por questionário foi realizada entre 1.558 professores de escolas primárias e secundárias de 28 regiões administrativas provinciais usando a Escala de Qualidade de Vida Profissional (Pro QOL-5)

1.558 professores

A13

Esta pesquisa demonstra como o bem-estar do professor é impactado pela capacidade de liderança da gestão escolar, que ajuda a estabelecer confiança e cooperação entre o corpo docente, é um importante assunto de pesquisa.

Professores seniores do ensino médio/profissional no centro de Taiwan foram recrutados para participar de uma pesquisa de questionário autor referido.

783 respostas válidas foram recuperadas.

A14

Este estudo examinou as contribuições do clima escolar e da elaboração do trabalho para o bem-estar dos professores.

O modelo hipotético segundo o qual o clima escolar e a criação de empregos eram preditores separados de bem-estar ajustava-se bem aos dados. Os professores que relataram as taxas mais altas de clima escolar e as pontuações mais altas em elaboração de trabalho experimentaram o maior bem-estar.

Dados de pesquisa de 564 professores alemães foram analisados.

A15

Este estudo visa testar a viabilidade do programa Compassionate Mind Training for Teachers (CMT-T), bem como explorar preliminarmente possíveis mecanismos de mudança.É crucial tornar o cultivo da compaixão um foco em ambientes educacionais, apoiando os professores no enfrentamento dos desafios do contexto escolar e promovendo seu bem-estar mental.

Usando um projeto pré-pós dentro do assunto, as mudanças foram avaliadas em sofrimento psicológico auto-relatado, esgotamento, bem-estar, compaixão e autocrítica. A análise de mediação para projetos de medidas repetidas foi usada para explorar os mecanismos de mudança.

Os participantes foram 31 professores de uma escola pública da região centro de Portugal, que realizaram o CMT-T, uma intervenção em grupo de seis módulos de Compassionate Mind Training para professores.

A16

Os professores são o fator mais crucial no sistema de ensino e são responsáveis pelo rendimento, satisfação e bem-estar dos alunos. Assim, o bem-estar do professor é de extrema importância para o sucesso da educação.

Entrevistas semi-estruturadas com professores. As questões-chave incluem 1) o que é bem-estar?) 2) quais são os vários fatores que afetam o bem-estar dos professores? e 3) como podemos melhorar o bem-estar dos professores por meio de atividades de aprendizagem profissional? O Índice de Bem-Estar (OMS-5) foi utilizado para avaliar o nível de bem-estar dos professores

50 professores do Ensino Médio selecionados aleatoriamente no diferentes escolas do norte da India.

Fonte: Elaboração própria.

 

Condições de bem-estar do professor

A definição de bem-estar dos professores presente nos 16 artigos analisados remete ao discurso sobre a necessidade da gestão psíquica do sofrimento causado por inovações no mundo do trabalho, como a perda da autonomia, a alienação decorrente de um trabalho que exige cada vez mais uma performatividade face a umacrise de legitimidade, refletida nas nossas novas formas de vida. A própria descrição do sofrimento psíquico passa a ser objeto de elaboração discursiva e reflexiva por parte dos próprios sujeitos que elas visam descrever (Safatle, 2022, p.36).

A revisão de literatura sugere um crescimento de estudos que evidenciam como os próprios profesores têm assumido para si a tarefa de buscar seu próprio bem-estar. Este último poderia ser alcançado às custas de um efeito de contexto menos conflituoso, com o exerício da compaixão e do autocuidado, a fim de mitigar estados de stress, desejo de abandono da profissão e acometimento do mal-estar.

 

Tabela 3 – Condições de bem-estar do professor de acordo com os artigos analisados

CONDIÇÕES

CÓDIGOS

Clima e confiança

A1; A2;A3; A13; A14; A16

Competência socioemocional

A4

Engajamento comportamental

A5

Expectativas sobre o professor

A7

Sentimento de abandono; esgotamento e stress

A6; A8; A9; A11

Mindfulness; resiliência; compaixão e autocuidado

A10; A12; A15

Fonte: Elaboração própria.

 

Bem-estar do professor e inovação educacional

A tabela a seguir (Tabela 4) reflete a importância que os artigos atribuem à inovação educacional como um possível determinante do bem-estar dos professores. A frequência do lexema innov refere-se à quantidade de vezes que algum termo relacionado à inovação aparece escrito no texto principal (excluindo a seção de referências). Estes resultados foram confirmados por meio da busca por combinações de palavras que incluíam o termo new (“new roles”, “new methodologies”, “new technologies”,etc.). Apenas são considerados os artigos nos quais a inovação aparece pelo menos uma vez (5/16).

 

Tabela 4 – A inovação educativa nos artigos analisados

CÓDIGO

FREQUÊNCIA DO LEXEMA INNOV

relação entreINOVAÇÃO E bem-estar docente

A7

21

Estabelece-se uma relação direta entre a inovação, o mal-estar docente e as condições laborais do corpo docente. A forma atual de conceber e praticar a inovação é situada no contexto do neoliberalismo educativo. Através da autoetnografia de um docente-investigador, comprova-se empiricamente que a atual inovação pode se tornar uma imposição alheia às reais necessidades educacionais que emergem dentro de uma sala de aula. Isso pode gerar numerosas dificuldades e contradições na prática docente, representando um novo motivo de frustração e desmotivação que altera a identidade profissional do docente.

A8

2

Não explicada. Concepção acrítica da inovação, exclusivamente ligada às novas tecnologias.

A13

1

Não explicada. Existe apenas uma menção anedótica à inovação no início da introdução para contextualizar o tema da pesquisa.

A14

5

Não explicada. A inovação é simplesmente aludida, sem qualquer tipo de definição ou reflexão, como uma dimensão que, juntamente com outras, determina o ambiente escolar. Isso é levado em consideração nos questionários que são utilizados.

A16

1

Não explicada. Há uma única menção à inovação ao caracterizar as responsabilidades do docente (“updatingwith new knowledge and innovations…”).

Fonte: Elaboração própria.

 

Discussão

Os 16 artigos selecionados assumem uma série de objetivos diversos, embora todos compartilhem uma atenção especial à dimensão emocional dos professores e às relações estabelecidas entre o corpo docente e os alunos. Dentro desses parâmetros gerais, os objetivos também incluem um interesse específico em compreender a distribuição da liderança pedagógica ou a eficácia de práticas em voga, como o mindfulness. Em todos os casos, prevalece um tom positivo e construtivo, alheio, paradoxalmente, às dificuldades enfrentadas pelos profesores em seus ambientes de trabalho. Nesse sentido, a cooperação entre os professores é uma das principais estratégias defendidas para melhorar o bem-estar docente.

Conforme demonstrado pela análise da literatura realizada, o estudo do bem-estar docente nas escolas pode ser abordado por uma variedade de abordagens metodológicas. As pesquisas quantitativas utilizam questionários e escalas validadas para medir aspectos-chave do bem-estar, como esgotamento e satisfação no trabalho. Além disso, a análise estatística auxilia na identificação de correlações entre fatores como carga de trabalho e bem-estar. Por outro lado, as metodologias qualitativas, como entrevistas em profundidade e grupos focais, permitem explorar as experiências e percepções individuais dos professores. Isso pode oferecer uma compreensão mais rica das causas subjacentes do bem-estar ou mal-estar, bem como as estratégias de enfrentamento utilizadas.

As abordagens mistas de alguns artigos, que combinam dados quantitativos e qualitativos, proporcionam uma visão holística do bem-estar docente. Observações em sala de aula e a análise de documentos internos de escolas fornecem informações contextuais valiosas. Além disso, é importante destacar o uso de ferramentas de medição validadas e abordagens multimétodo em alguns estudos, pois todas contribuem para uma compreensão mais completa e precisa do bem-estar docente nas escolas. Além disso, as poucas pesquisas longitudinais encontradas ajudam a entender como o bem-estar docente evolui ao longo do tempo e como está relacionado a eventos-chave, como mudanças em políticas educacionais ou rotinas escolares. Além dos estudos de caso desenvolvidos ao longo de vários anos, também são escassas as perspectivas críticas, especialmente aquelas centradas nos discursos ou conjuntos de significados que influenciam os sentimentos de bem-estar ou mal-estar nos professores.

Respondendo à segunda pergunta de pesquisa, certos elementos desempenham um papel fundamental na criação de condições facilitadoras do bem-estar entre os professores. O clima de confiança e apoio mútuo em uma instituição escolar promovem um ambiente propício para o florescimento dos educadores. A competência socioemocional, que inclui habilidades interpessoais e autogestão emocional, contribui para uma interação saudável entre os professores e os alunos. O engajamento comportamental, onde os professores se sentem conectados e investidos em sua prática, desempenha um papel vital no bem-estar. Expectativas realistas sobre o papel do profesor ajudam a alinhar as perspectivas e reduzir o sentimento de abandono. Estratégias de mindfulness, resiliência e autocuidado são ferramentas essenciais para enfrentar o esgotamento e o estresse decorrentes das demandas do ensino.

Segundo alguns artigos, a promoção da compaixão não apenas para os alunos, mas também para si próprio, é crucial. Um ambiente que valoriza a compaixão e o apoio mútuo entre os educadores cria uma cultura de suporte. Além disso, o incentivo a práticas de autocuidado e ações proativas de gestão do estresse fortalece a resiliência. Em resumo, a literatura recente aponta que a construção do bem-estar docente depende de um clima de confiança, competência socioemocional, engajamento, expectativas realistas e estratégias de gerenciamento de estresse. Através do mindfulness, resiliência e compaixão, os educadores podem nutrir sua saúde mental e emocional, capacitando-os a enfrentar os desafios da profissão de maneira mais saudável e eficaz.

 

Por outro lado, é preciso manter-se vigilante ao discurso do bem-estar docente. Muito da discussão presente nos artigos selecionados faz referencia aos afetos, ao clima, às expectativas, ao ambiente socioemocional como objeto de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de uma espécie de inteligencia emocional e otimização de suas competências afetivas. É o que Dardot e Laval (2010, p.440) chamaram de “racionalização empresarial do desejo”, fundamento normativo para a internalização de um trabalho de vigilância e controle baseado na autoavaliação constante de si a partir de criterios derivados do mundo da administração de empresas (Safatle, 2022, p.31).

O discurso do mindfulness como associado ao bem-estar docente não deixa de ser o reflexo da tentativa de humanização da empresa capitalista, em que técnicas de gestão racionais e cada vez mais burocratizadas devem coexistir com regimes de intervenção terapeûtica, com um vocabulario que evoca o regime colaborativo, a compaixão, o clima no interior do mundo do trabalho que levou à fusão progressiva dos repertórios do mercado de trabalho com as linguagens do eu. Assim, as relações de trabalho podem ser cada vez mais psicologizadas e, como consequência, os liames entre a responsabilização do indivíduo e o gerenciamento de suas atividades restam cada vez mais tênues.

Acreditamos que este fenômeno requer uma hermenêutica que interprete as vozes daqueles que têm enfrentado as pressões das inovações educacionais a fim de que não se corra o risco do fenômeno bem-estar/mal-estar ser instrumentalizado como um discurso gerencialista implementado por uma política econômica e de Estado.

A interpretação das muitas vozes que relatam o mal-estar docente é o compromisso de pesquisadores e cientistas que nos convidam a uma revisão completa dos paradigmas políticos e, em especial, do paradigma educacional que, em seu modelo atual, tem levado os professores a uma crise de identidade profissional.

Os fatores contextuais, considerados por Esteve (1999) como fatores secundários do mal-estar docente, aparecem nesta revisão de liteturatura como não menos importante do que os fatores primários, ou seja, aqueles que incidem diretamente sobre a ação do profesor em sala de aula. Ao contrário, para o autor, o sentimento de desânimo que domina muitos professores tem suas bases muito mais nesses fatores contextuais do que na situação real da sala de aula, com todas as suas dificuldades (Esteve, 1999, p.47). No levantamento realizado para este artigo, os fatores contextuais são aqueles que mais nos chamaram a atenção.

Finalmente, a revisão da literatura realizada demonstra uma completa falta de atenção à inovação como fator que impacta o bem-estar ou o mal-estar do corpo docente atualmente. Dos 16 artigos analisados, apenas um deles, precisamente elaborado por alguns dos autores deste artigo, aborda essa conexão. Isso nos obriga a reivindicar a necessidade de conduzir novas pesquisas de dentro das salas de aula e ao longo de períodos prolongados.

 

Compreender os efeitos da inovação educacional coloca-se como uma reflexão incontornável para se analisar o fenômeno do bem-estar/mal-estar docente na modernidade tardia. Isto porque a inovação educacional deve ser compreendida a partir de uma dupla dimensão: subjetiva e objetiva. Subjetivamente, devemos estar atentos aos sintomas de crise, depressão, burnout e fadiga, presentes em uma configuração da micropolítica do mal-estar docente. Toda essa sensação de mal-estar reflete a pressão a que os professores estão subsumidos atualmente, seja em razão do aumento de expectativa diante da polissemia de papéis que os envolvem, seja em função do discurso da responsabilização, através de novas métricas impostas por uma política de avaliação. No plano objetivo, um dos efeitos deletérios deste fenômeno encontra-se na precarização do seu trabalho que é convertida, dentre outras coisas, em salários e condições de trabalho cada vez menos atrativos diante de funções cada vez mais exigentes.

 

Considerações finais

Acreditamos que a política neoliberal em curso já há algumas décadas tem tentado esvaziar a própria idéia do que representa um “serviço público de educação” às custas de uma idealização da Empresa. Neste sentido, o discurso sobre a identidade do professor tem o aproximado de uma cultura do capital humano e da cultura corporativa, transformando-o em objeto e sujeito performativo da eficácia econômica que deve prevalecer sobre a emancipação humana (Laval e Vergne, 2023).

          Dos 16 artigos analisados de maneira mais refinada, apenas um deles empregou como método de pesquisa a autoetnografia (A7). Não por acaso, este artigo é aquele que melhor se posiciona críticamente a respeito do discurso corrente sobre o bem-estar docente e combina a vivência e a experiencia da narradora ao sentido oposto do bem-estar, ou seja, o mal-estar docente como corolário de uma gestão neoliberal do ensino e da educação.

          O binomio bem-estar/mal-estar docente reflete, pois, o sofrimento que recai sobre o professor e que tem como resultado uma certa despolitização da questão da escola e uma tecnização dos problemas e das “soluções”, por isso deve ser melhor investigado por meio de estudos e pesquisas que valorizem as narrativas dos próprios professores.

Pesquisas sobre os sentidos da docência e do magistério na voz daqueles que têm sofrido de perto os contrangimentos e sofrimentos de uma nova regulação do trabalho são importantes para dirimir o risco do discurso neoliberal, sempre iminente, de atribuir ao professor a tarefa de recuperar por si mesmo o sentido do seu trabalho, de sua autonomia, da gestão do seu tempo e de suas tarefas. Este fenômeno (bem-estar/mal-estar) tem certamente aspectos técnicos e metodológicos, assim como contextuais que são importantes, mas revela, antes de tudo, que se trata de um fenômeno que deve também ser estudado como como uma questão social e política.

Por fim, consideramos que esta revisão sistemática da literatura aponta para uma  premente necessidade de modelos de formação de professores que valorizem a agência e a autoria na construção de conhecimento profissional e científico. Recomenda, igualmente, um amplo investimento na pesquisa participante, com efetiva construção de conhecimento e de mudança sustentável com os professores e não apenas sobre eles e para eles cuja tendência se mostra perpetuar condições de trabalho que não valorizam a docência nem uma identidade profissional construída no seio da profissão.

 

Referências

 

ACTON, Renae; GLASGOW, Patti (2015) “Teacher Wellbeing in Neoliberal Contexts: A Review of the Literature,” Australian Journal of Teacher Education: Vol. 40 :Iss. 8 , Article 6, 2015. https://doi.org/10.14221/ajte.2015v40n8.6

ALVES, Regina, LOPES, Teresa; PRECIOSO, José.  “Teachers’ well-being in times of Covid-19 pandemic: factors that explain professional well-being”. IJERI: International Journal of Educational Research and Innovation, (15), 203–217, 2020.https://doi.org/10.46661/ijeri.5120

ARCADINHO, Ana; FOLQUE, Maria Assunção; LEAL DA COSTA, Conceição. “Dimensão investigativa, docência e formação inicial dos professores: umarevisão sistemática da literatura”. Revista de Estudo e Pesquisa em Educação, 22(2), 5-23. http://dx.doi.org/10.34019/1984-5499.2020.v22.29173

ASHLEY K. Vesely, SAKLOSFKE, Donald H.; NORDSTOKKE, David W. “EI training and pre-serviceteacherwellbeing”. Personality and Individual Differences, 65, 81-85, 2014. https://doi.org/10.1016/j.paid.2014.01.052.

COLLIE, Rebecca J.; SHAPKA, Jennifer D., PERRY, N. E.;MARTIN, Andrew J.  “Teacher Well-Being: Exploring Its Components and a Practice-Oriented Scale”. Journal of Psychoeducational Assessment, 33(8), 744–756, 2015. https://doi.org/10.1177/0734282915587990

CONTRERAS, José. A autonomia dos professores. São Paulo: Cortez, 2002.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. La nouvelle raison du monde: essai sur la societé néoliberale. Paris: La Découverte, 2010.

ESTEVE, José M. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

HAJISOTERIOU, Christina, &PANAYIOTIS, Angelides. “Efficiency versus social justice? Teachers’ roles in the epoch of globalization”. Education, Citizenship and Social Justice15(3), 274–289, 2020. https://doi.org/10.1177/1746197919852564

BURIC, Irena;SLISKOVICS, Ana; PENESIC, Zvjezdan. “Understanding teacher well-being: a cross-lagged analysis of burnout, negative student-related emotions, psychopathological symptoms, and resilience”. Educational Psychology, 39:9, 1136-1155, 2019. https://doi.org/10.1080/01443410.2019.1577952

KIDGER, Judi;BROCKMAN, Rowan;TILLING, Kate;CAMPBELL, Rona; FORD, Tamsin;ARAYA, Ricardo;KING, Michael;GUNNELL, David Gunnell. “Teachers' wellbeing and depressive symptoms, and associated risk factors: A large cross sectional study in English secondary schools”. Journal of Affective Disorders, 192, 76-82, 2016.https://doi.org/10.1016/j.jad.2015.11.054

KALIMULINA, Olga; TARMAN, Bulent; STEPANOVA, Irina. “Education in the Context of Digitalization and Culture: Evolution of the Teacher’s Role, Pre-pandemic Overview”. Journal of Ethnic and Cultural Studies8(1), 226–238, 2020. https://doi.org/10.29333/ejecs/629

BERMEJO-TORO, Laura;PRIETO-URSÚA, María; HERNÁNDEZ, Vicente. “Towards a model of teacher well-being: personal and job resources involved in teacher burnout and engagement”. Educational Psychology, 36:3, 481-501, 2020.https://doi.org/10.1080/01443410.2015.1005006

LAVAL, Christian; VERGNE, Francis. Educação democrática: a revolução escolar iminente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

LEAL DA COSTA, Conceição; PASSEGGI, Maria da Conceição; DA ROCHA, Maria Simone. “Por uma escuta sensível de crianças com doenças crônicas”. Educação, 45(1), e16/ 1–24. https://doi.org/10.5902/1984644440240

DARLING-HAMOOND, Linda;HYLER, Maria E. “Preparing educators for the time of COVID … and beyond”. European Journal of Teacher Education, 43:4, 457-465, 2020. https://doi.org/10.1080/02619768.2020.1816961

LUNA, Diego et al. “Teacher training, research and professional development in a neoliberal school: A transformative experience in Social Sciences”. Social Sciences,11(8), 349, 2022. https://doi.org/10.3390/socsci11080349

TVEDT, Maren Stabe;BRU, Edvin;IDSOE, Thormod. “Perceived Teacher Support and Intentions to Quit Upper Secondary School: Direct, and Indirect Associations via Emotional Engagement and Boredom”. Scandinavian Journal of Educational Research, 65:1, 101-122, 2010.https://doi.org/10.1080/00313831.2019.1659401

PAGE, MJ, et al. A declaração PRISMA 2020: uma diretriz atualizada para relatar revisões sistemáticas. BMJ; 372:n 71, 2021. https://doi.org/10.1136/bmj.n71

PEDLER, Megan; YEIGH, Tony; HUDSON, Susan. “The Teachers’ Role in Student Engagement: A Review,” Australian Journal of Teacher Education: Vol. 45 :Iss. 3, Article 4, 2020.https://doi.org/10.14221/ajte.2020v45n3.4

PUERTAS MOLERO, Pilar, et al. “Influence of Emotional Intelligence and Burnout Syndrome on Teachers Well-Being: A Systematic Review” Social Sciences 8, no. 6: 185, 2019. https://doi.org/10.3390/socsci8060185

RIAN,Aarts;KOOLS, Quinta;SCHILDWACHT, Rita. “Providing a good start. Concerns of beginning secondary school teachers and support provided”. European Journal of Teacher Education, 43:2, 277-295, 2020.https://doi.org/10.1080/02619768.2019.1693992

ROSS, S. W.; ROMER, N.; HORNER, R. H. “Teacher Well-Being and the Implementation of School-Wide Positive Behavior Interventions and Supports”. Journal of Positive Behavior Interventions, 14(2), 118–128, 2012 https://doi.org/10.1177/1098300711413820

SAFATLE, Vladimir. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e neoliberalismo como economia moral. SAFATLE, V.; SILVA JÚNIOR, N.; DUNKER, C. (Orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2022.

SHENGHUA, Huang, HONGBIAO, Yin; LIJE,Lv. “Job characteristics and teacher well-being: the mediation of teacher self-monitoring and teacher self-efficacy”. Educational Psychology, 39:3, 313-331, 2019https://doi.org/10.1080/01443410.2018.1543855

SPILT, J.L.; KOOMEN, H.M.Y.; THIJS, J.T. “Teacher Wellbeing: The Importance of Teacher–Student Relationships”. Educ Psychol Rev 23, 457–477, 2011. https://doi.org/10.1007/s10648-011-9170-y

HASCHER, Tina; WABER, Jennifer.“Teacher well-being: A systematic review of the research literature from the year 2000–2019”, Educational Research Review, Volume 34, 100411, 2021.https://doi.org/10.1016/j.edurev.2021.100411

TURNER, K.; THIELKING, M.; MEYER, D. “Teacher wellbeing, teaching practice and student learning” Educational Research, 31(4), 1293-1311, 2021.http://www.iier.org.au/iier31/turner.pdf

Yin H.; Huang, S.; Lv, L. A Multilevel Analysis of Job Characteristics, Emotion Regulation, and Teacher Well-Being: A Job Demands-Resources Model. Front. Psychol. 9:2395, 2018.https://doi.org/10.3389%2Ffpsyg.2018.02395

YIN, Hongabio;HUANG, Shenshua; WANG, Wenlan. “Work Environment Characteristics and Teacher Well-Being: The Mediation of Emotion Regulation Strategies” International Journal of Environmental Research and Public Health 13, no. 9: 90, 2016. https://doi.org/10.3390/ijerph13090907

ZEE, M.; KOOMEN, H. M. Y. “Teacher Self-Efficacy and Its Effects on Classroom Processes, Student Academic Adjustment, and Teacher Well-Being: A Synthesis of 40 Years of Research”. Review of Educational Research, 86(4), 981–1015, 2016. https://doi.org/10.3102/0034654315626801

 

 

 

 

Notas



[1]Este trabalho é o resultado da colaboração de uma equipe internacional,financiado com recursos nacionais da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDB/04312/2020, e integra igualmente o Projecto Educação, narrativa e saúde: direito à vida e à educação em tempos de refigurações, ref. MCTI/CNPq nº 420371/2022-2, Chamada nº 40/2022 - Linha 3B - Projectos em Rede - Políticas públicas para o desenvolvimento humano e social (Pró-humanidades CNPq-Brasil).

 

 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)