A pesquisa intervenção mediando o processo de superação dos impactos da pandemia na educação básica
Intervention Research mediating the process of overcoming the pandemic impacts on basic education
Investigación intervencionista que media en el proceso de superar los impactos de la pandemia en la educación básica
Wanda Maria Junqueira de Aguiar
Universidade de Taubaté, Taubaté, SP, Brasil
luciana.magalhaes@unitau.br
Maria Vilani Cosme de Carvalho
Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil
vilacosme@ufpi.edu.br
Recebido em 22 de setembro de 2023
Aprovado em 28 de outubro de 2023
Publicado em 07 de dezembro de 2023
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo discutir pressupostos teórico-metodológicos que colaborem para a superação de contradições, dificuldades e desvios no que se refere à função da escola, decorrentes das contradições geradas na pandemia. Para tanto, destacamos a importância da criação de processos de transformação de educadores por meio da formação intencionalmente crítica. Para dar conta desse objetivo iniciamos com uma breve apresentação de aspectos do contexto pandêmico, dando ênfase aos impactos ocorridos na educação. Na sequência foram discutidos alguns pressupostos teórico-metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético, proposta metodológica entendida como base para a construção das principais categorias da Psicologia Sócio-Histórica, perspectiva que também fundamenta a proposta sistematizada neste artigo, qual seja, a da Pesquisa-Trans-Formação. A discussão realizada argumenta em favor da necessidade de se produzir conhecimentos que possam orientar o planejamento e desenvolvimento de práticas e pesquisas que tenham por finalidade colaborar na formação e transformação de educadores, sobretudo em contexto de pós-pandemia.
Palavras-chave: Formação de Professores; Pesquisa em Educação; Psicologia Sócio-Histórica.
ABSTRACT
This article aims to discuss theoretical-methodological assumptions that contribute to the overcoming of contradictions, difficulties and deviations regarding the function of the school, resulting from the contradictions generated in the pandemic. For this reason, we highlight the importance of educators transformation process creating, through intentionally critical teacher education. To accomplish this goal, we begin with a brief presentation of aspects of the pandemic context, emphasizing the impacts on education. Subsequently, some theoretical-methodological assumptions of Historical-Dialectical Materialism were discussed, a methodological proposal understood as the basis for the construction of the main categories of Socio-Historical Psychology, a perspective that also underlies the proposal systematized in this article, which is, the Trans-Formation Research. The discussion held argues in favor of the need to produce knowledge that can guide the planning and development of practices and a research that aims to collaborate in the training and transformation of educators, especially in the context of post-pandemic.
Keywords: Teacher Education; Research in Education; Socio-historical Psychology.
RESUMEN
El propósito de este artículo es debatir supuestos teórico-metodológicos que contribuyen a superar las contradicciones, dificultades y desviaciones con respecto a la función de la escuela, resultantes de las contradicciones generadas en la pandemia. Con este fin, destacamos la importancia de crear procesos de transformación para los educadores a través de una formación intencionadamente crítica. Para lograr este objetivo, comenzamos con una breve presentación de aspectos del contexto de la pandemia, haciendo hincapié en los impactos que se produjeron en la educación. A continuación, analizamos algunas suposiciones teóricas-metodológicas del Materialismo Histórico-Dialético, una propuesta metodológica que se entiende como la base para la construcción de las principales categorías de psicología sociohistórica, una perspectiva que también corrobora la propuesta sistematizada en este artículo, es decir, la de investigación-transformación. El debate celebrado aboga por la necesidad de producir conocimientos que puedan guiar la planificación y el desarrollo de prácticas e investigaciones que tengan como objetivo colaborar en la formación y transformación de educadores, especialmente en el contexto de las pospandemias.
Palabras clave: Formación del profesor; Investigación educativa; Psicología sociohistórica.
Introdução
Tendo por base o pressuposto de que os fatos e os acontecimentos da realidade social se formam e se transformam na relação dialética com o contexto social, histórico e cultural, ao qual estão imersos, os processos educativos que acontecem na escola também seguem essa dinâmica (Carvalho; Aguiar; Alfredo, 2020). Prova disso é que, tanto o contexto pandêmico quanto o pós-pandêmico têm mediado os rumos da educação, das escolas, do ensino, da aprendizagem e dos demais processos educativos, posto que gestou novas necessidades impondo desafios ao processo de ensino-aprendizagem, por exemplo, o ensino não presencial mediado pelas tecnologias digitais. Um desses desafios é investir na formação e transformação dos educadores, tendo por base pressupostos teórico-metodológicos que possibilitam apreender os aspectos históricos-sociais e político- institucionais da realidade investigada como totalidade multideterminada e desenvolver ações que tenham como norte sua transformação. (Aguiar; Carvalho; Marques, 2020).
Em relação ao contexto pandêmico, convém ressaltar que ele se caracteriza pelo impacto produzido pelo surto da COVID-19, doença causada pelo vírus SARS-Cov-2. Em meados do mês de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara emergência de saúde pública, o que se configura como pandemia e a necessidade de medidas legais para conter a propagação da doença. Dentre essas medidas está o distanciamento social sugerido pela OMS e adotado em quase todos os países, levando ao fechamento de quase todos os setores da sociedade, dentre eles as escolas e universidades públicas e privadas. No Brasil, o Ministério da Educação decreta em 17 de março de 2020, por meio da Portaria n.º 343, a suspensão das aulas presenciais em todas as escolas dos diferentes níveis, etapas e modalidades de ensino e a substituição por atividades não presenciais ancoradas em meios digitais, ainda que as escolas, sobretudo as da rede pública, não tivessem as condições necessárias para desenvolvimento das atividades de ensino e de aprendizagem de forma remota. Desse modo, o contexto pandêmico impôs desafios aos gestores, professores, alunos e pais, que passaram a vivenciar o modelo de ensino remoto emergencial, mediado por metodologias sustentadas obrigatoriamente pelas tecnologias digitais. Se o fechamento das escolas afetou diretamente 1,5 bilhão de estudantes em todo o mundo, sendo os alunos mais vulneráveis os mais atingidos (UNESCO, 2022), o ensino remoto emergencial impôs desafios em relação aos usos das tecnologias digitais, deixando notório ao mundo a desigualdade social, visto que grande parte dos alunos, em especial da rede pública, não tinha acesso à internet e aos recursos tecnológicos digitais necessários ao ensino remoto.
A despeito das diferenças entre ensino remoto e Educação a Distância (EAD), concordamos com a explicação de Vieira e Silva (2020, p. 1015) de que:
O êxito na educação online depende de muitos fatores que perpassam, desde o perfil do aluno e a sua motivação para a aprendizagem, o acesso à conexão à internet e aos recursos tecnológicos, a formação e competência digital dos professores para a docência nesta modalidade de ensino.
Como a realidade do ensino no Brasil contempla notadamente o modo presencial e o acesso e uso dos meios digitais são utilizados em poucos espaços educacionais, todos esses fatores estavam comprometidos e os impactos do ensino remoto no processo de ensino aprendizagem passou a ser objeto de discussão em diversos setores da sociedade e na academia de investigação científica. Assim, de 2020 a 2023 são inúmeras as pesquisas científicas que foram realizadas e publicadas, sobretudo em periódicos, sobre os impactos da pandemia do COVID-19 na Educação Básica e na Superior. Para a UNESCO (2020a) o grande impacto dessa doença na Educação em nível mundial se configura numa crise caracterizada pela exclusão e desigualdade educacional. No Brasil, estudos como os de Vieira e Silva (2020), Koslinski e Bartholo (2021), Costa (2021), Zaim-de-Melo (2022), Ribeiro Júnior et al (2022) e Matias et al. (2023), dentre outros, revelam que os impactos na Educação Básica têm natureza diversa e estão relacionados a vários aspectos. Desses aspectos, as pesquisas são unânimes em ressaltar a exclusão de grande parte dos alunos e seus pais do acesso à internet, o adoecimento ético-afetivo de professores, alunos e familiares, a sobrecarga de trabalho, os limites da formação e da prática docente para ensinar em ambientes virtuais, com destaque para as metodologias de ensino ancoradas em recursos digitais. Em relação à competência digital dos professores para o ensino online, as pesquisas apontam que esses profissionais não foram capacitados para ensinar com as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC), o que se tornou necessário e urgente a implementação de políticas públicas de formação continuada de professores voltadas para o atendimento dessa necessidade formativa, de modo a garantir a qualidade do ensinar e do aprender nas escolas da Educação Básica.
Essa reflexão sobre os impactos da pandemia da COVID-19 na Educação nos fez entender a necessidade de os governantes elaborarem estratégias para mitigar os efeitos do ensino remoto no processo de ensino aprendizagem e, assim, garantir as possibilidades de acesso e permanência escolar. Entre essas estratégias, destacamos a ampliação do acesso aos recursos da tecnologia digital, dos cuidados com a saúde mental dos professores e alunos, em especial a criação de condições de apropriação das tecnologias digitais pelos professores. Assim, hoje, um dos desafios que se impõe a todos nós, governantes, dirigentes e educadores, tanto no contexto pandêmico quanto no pós-pandêmico, é a promoção de processos de formação de professores focados, sobretudo, em novas metodologias. Com as metodologias ativas de ensino-aprendizagem é possível realizar atividades que promovam um ensino inovador e de qualidade (Figueiredo; Oliveira; Felix, 2020).
Neste período pós-pandemia, caracterizado pela diminuição, em escala global, do nível de contaminação e pelo retorno gradativo às atividades sociais e, logo, ao ensino presencial, as possibilidades de planejamento e desenvolvimento de cursos de formação continuada para os professores se intensificaram e passaram a ser realizados em diferentes âmbitos, como os centros de formação das secretarias estaduais e municipais de educação e nas universidades por meio das atividades de ensino, de pesquisa e de extensão.
Compartilhando da ideia de que a formação continuada é processo de apropriação de novos conhecimentos produzidos pela reflexão crítica sobre a educação, a escola, o ensino e a aprendizagem, o projeto de pesquisa intervenção denominado “Pandemia da COVID-19 e seus impactos na educação básica no Brasil: diagnóstico e proposições interventivas na escola”[1] visa conhecer e intervir na realidade educacional que tem sofrido os impactos da pandemia, partindo de pesquisa diagnóstica e, posteriormente, da realização de ações formativas que possam contribuir com a superação das defasagens educacionais e outros desafios da escolarização no período pós-pandemia. Uma das ações formativas propostas está voltada para a formação de professores da Educação Básica e tem sido desenvolvida por meio de pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação em educação envolvidos com o presente projeto. O tipo de pesquisa desenvolvida se propõe ao objetivo de “conhecer as necessidades formativas de docentes, decorrentes da vivência da profissão em contexto pandêmico a fim de propor processos formativos que superem tais necessidades”.
Para atender ao desafio de investir na
formação dos educadores, tendo por base pressupostos teórico-metodológicos que
possibilitem apreender e transformar a realidade social por meio da atividade
de pesquisa, o presente artigo tem por objetivo discutir pressupostos
teórico-metodológicos para pensar e fazer pesquisas que colaborem na
transformação de educadores.
Para dar conta desse objetivo e orientar a leitura deste artigo ressaltamos que o mesmo está organizado nesta introdução e na discussão dos desafios teórico-metodológicos do processo de pesquisa, com destaque para os pressupostos teórico-metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético (MHD) e da Psicologia Sócio-Histórica (PSH) e de considerações sobre o caminho da Trans-Formação.
Desafios teórico-metodológicos do processo de pesquisa
Considerando o objetivo proposto para este artigo nesta seção discutimos, em um primeiro momento, alguns dos pressupostos teóricos e metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético e da Psicologia Sócio-Histórica que têm orientado o planejamento e desenvolvimento de pesquisas que têm a função social de colaborar na formação e transformação dos educadores e, consequentemente, da educação. Em um segundo momento, discutimos outros pressupostos para explicar o caminho da Trans-Formação.
As categorias do Materialismo Histórico-Dialético e da Psicologia Sócio-Histórica
Para iniciar nossa discussão sobre o enfrentamento de tais desafios, lançamos uma pergunta: Quando fazemos pesquisa, o que queremos apreender da realidade? A resposta imediata que surge é: depende dos objetivos da pesquisa. Sem dúvida esse é um ponto essencial, por que o pesquisador necessita de um problema de pesquisa e de objetivos. No entanto, queremos destacar que, mesmo esses pontos sendo fundamentais, eles serão guiados por algo anterior, por uma perspectiva epistemológica, ontológica, ética e metodológica. Isso por que o problema e objetivos da pesquisa não são neutros, ingênuos; ao contrário, geram caminhos, apontam posições, desdobramentos e concepções.
Löwy (1978, p. 19), ao criticar a epistemologia positivista, por desconsiderar o caráter histórico e social da ciência, afirma:
[...] toda ciência implica uma escolha, e nas ciências históricas essa escolha não é um produto do acaso, mas está em relação orgânica com uma certa perspectiva global. As visões do mundo das classes sociais condicionam, pois, não somente a última etapa da pesquisa científica social, a interpretação dos fatos, a formulação das teorias, mas a escolha mesma do objeto de estudo, a definição do que é essencial e acessório, as questões que colocamos na realidade, numa palavra, a problemática da pesquisa.
Assim, entendemos que a resposta ou as respostas ao problema de pesquisa deveriam considerar como ponto de partida a necessidade de definirmos alguns pressupostos. Com isso, afirmamos que, de outro modo, corremos o risco de cairmos em armadilhas, levando a que os objetivos não sejam alcançados, ou se tornem irrelevantes para a produção do conhecimento inovador e comprometido com seu tempo. Marx (2008) nos oferece indicativo sobre a relevância de um referencial teórico e metodológico no processo de pesquisa quando explica:
[...] a investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode descrever, adequadamente, o movimento do real. Se isso se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a priori [...] (Marx, 2008, p. 28).
Isto posto, retomamos a discussão sobre o Materialismo Histórico-Dialético (MHD)[2] para afirmar, junto com Mészáros (2004), nossa ortodoxia, aqui entendida não como guardiã das tradições, mas como forma de garantir a efetividade de tal proposta teórico metodológica. Necessitamos ser capazes de apreender a realidade para além das camadas da ideologia, da aparência enganosa, que serve de anteparo para a compreensão das mazelas e desigualdades do modo de produção capitalista. Para esse autor, enquanto a sociedade for capitalista este Método se mostra adequado.
Mas, como seguir esse caminho teórico-metodológico que nos proporciona condições de produzir um conhecimento mais profundo, mais comprometido com a crítica apontada por Mészáros (2004) que se afaste da pretensa neutralidade?
Apontamos, neste momento, a essencialidade do pensamento categorial. Como afirma Marx (2011, p. 59), as categorias se constituem como “formas de ser, determinações de existência”.
Nessa medida, o movimento empreendido por nós para produzir conhecimento, marcado pelo pensamento categorial, se dá pela compreensão de que: “O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano [....]. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde” (Kosik, 1969, p. 18). Desse modo, recorremos às categorias por elas se constituírem em constructos intelectivos teórico-metodológicos que iluminam o movimento do real, ao mesmo tempo que carregam sua materialidade.
[...] as categorias norteiam a interpretação, tanto dos fenômenos mais complexos, que têm maior abrangência e expressam um momento de maior abstração, de articulação com o todo, quanto dos menos complexos, os quais, por sua vez, podem até estar contidos em outros, mas jamais poderão ser vistos como estanques, fixos, não históricos, nem ser apreendidos na sua imediaticidade (Aguiar; Machado, 2016, p. 264).
Será esse o movimento empreendido para compreendermos a realidade em foco, no caso as significações produzidas pelos sujeitos acerca de dado objeto de estudo. Por que partir das significações?
A exaustiva produção de Vigotski (2001, 2004) nos contempla com duas categorias – Sentido e Significado – dialeticamente interligadas e essenciais para o entendimento do processo de constituição do pensamento humano e, desse modo, do sujeito como totalidade. Mas, antes de discutirmos estas categorias lembremos, mesmo que rapidamente, algumas proposições do autor que nos permitem a compreensão da produção de sentidos e significados. Segundo Vigotski (2004, p. 480), “[...] graças aos signos, a estrutura psicológica da personalidade transforma-se radicalmente, adquire qualitativamente um caráter novo”. E, poderíamos acrescentar, que são eles, os signos, a matéria prima para o movimento de produção do pensamento.
Dito isso, afirmamos, inspiradas em Aguiar, Alfredo e Penteado (2020), que a mediação semiótica é essencial na constituição do humano e que ela não pode ser entendida como um fenômeno exclusivo da objetividade, nem da subjetividade e que, nessa condição, viabiliza a existência das formas de ser do homem histórico e singular, assim como da realidade social.
De Vigotski (2001) também depreendemos que o pensamento fracassa; que a totalidade do pensamento, que abriga unidades de contrários, não se expressa nas palavras, mas nelas se realiza.
Mas, se assim for, como poderemos produzir compreensão das formas de ser dos sujeitos, isto é, do seu pensar, sentir e agir, ou, seguindo Vigotski (2001), compreender o pensamento emocionado e sua face oculta?
Sendo coerentes com a perspectiva teórico-metodológica, nosso entendimento é de que sentidos e significados se referem contraditoriamente a algo do mundo material/social e, por conta do processo histórico e dialético, são também constitutivos da concretude do pensamento. Também ousamos afirmar que Vigotski (2001) jamais teria concebido tais categorias sem dominar a noção, própria do MHD, de unidade de contrários.
Entendemos a categoria Significado como processo e produto, ela se refere ao processo em que os signos constituem o pensamento, assim como ao processo da objetivação humana, que se desdobra num produto, os signos sociais, portanto, dicionarizados, mais estáveis. São eles que permitem a comunicação entre os indivíduos, compondo o fluxo do discurso, assim como o fluxo do pensamento. No entanto, não esqueçamos que tais significados são produzidos na dimensão da subjetividade historicamente constituída, ou seja, pelo sujeito singular, com todas as suas idiossincrasias, peculiaridades e sua história imersa na história social. Frente a isso, nos valemos de Vigotski (2001, p. 465) ao afirmar que o termo isolado, a palavra, tem somente um significado, e “[...] este não é mais que uma potência que se realiza no discurso vivo, no qual o significado é apenas uma pedra no edifício do sentido”. Para o autor, “[...] o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variadas”.
Assim, podemos afirmar que o processo de produção dos significados é constituído pelos sentidos, únicos, individuais e históricos ao mesmo tempo. Do mesmo modo que os sentidos contêm os significados como elemento essencial.
Essa forma de entender a relação entre sentidos e significados pode gerar uma certa confusão sobre a especificidade de cada um desses conceitos. Seriam iguais? Estabelecem uma relação dicotômica ao se diferenciarem? A explicação acima apresentada, que se utilizou da unidade de contrários e, como já afirmamos, pautada no MHD, cria a possibilidade de não cairmos em dicotomias, nem tampouco na posição que iguala as categorias em questão.
As categorias em tela não podem perder seus limites, se diluírem uma na outra, pois são diferentes entre si e essa diferença é importante e deve ser compreendida. No entanto, também é preciso compreender que uma não existe sem a outra, elas se constituem mutuamente. Essa compreensão revoluciona as visões dicotomizantes, ou aquelas que igualavam processos tão distintos, mas que na verdade se auto constituem.
Considerando tais reflexões, fazemos a seguinte questão: podemos afirmar que o sujeito ao se objetivar, revela significados? Mas o sujeito se resume a essa dimensão do significado? Reiteramos que as objetivações carregam a subjetividade e assim aqueles elementos que são sui géneris, próprios do sujeito, seus afetos, emoções. Desse modo, perguntamos: No processo de apreensão dos sujeitos, buscamos seus significados, ou seus sentidos?
Entendemos que é impossível separá-los, como já afirmamos, eles compõem uma unidade de contrários. A esta específica unidade denominamos Significações, que passa a ser uma categoria que possibilita produzir inteligibilidade sobre esse processo – articulação dialética entre sentidos e significados – favorecendo compreensão do sujeito de maneira mais global e não fragmentada. Nos apoiando em Vigotski (2001) e, assim, na negação radical do pensamento dicotômico, entendemos que a dimensão do afetivo e do cognitivo compõe uma unidade, visto que, entendemos com o autor, que “[...] por trás de cada pensamento existe uma tendência afetiva e volitiva” (Vigotski, 2001, p. 479).
É compartilhando dessa ideia vigotskiana de que o pensamento é constituído por interesses, motivações, emoções e sentimentos que desenvolvemos pesquisas para apreender os sujeitos, tendo como ponto de partida as significações, entendida como nossa unidade de análise. Para tal explicação nos fundamentamos em Vigotski (2001), ao afirmar que a unidade de análise, deve ser a menor parte que contém as propriedades do todo. No nosso caso, aquela parte que contém elementos próprios dos sujeitos da pesquisa, mesmo que de modo inicial e ainda na sua aparência.
Mas, para que se tenha uma compreensão mais totalizante da categoria Significações ainda é necessário destacarmos seu caráter histórico, sem, com isso, corrermos o risco de naturalizarmos o que a história produziu. As significações, como produção humana, jamais poderiam ser compreendidas descoladas do dialético movimento histórico. Trazemos, assim, a categoria historicidade, que vem para nos explicar que a realidade é movimento, sempre contraditório. Como nos lembra Vigotski (2020), historicidade implica referirmo-nos à “dialética geral das coisas”. As significações serão apreendidas como produções que se dão ao longo do tempo histórico dos sujeitos, num percurso não linear, movido por contradições. Esse será o movimento a ser compreendido e, como afirmam Aguiar e Machado (2016, p. 265), “O que é” deixa de ser a pergunta principal para dar lugar à questão de “como surgiu”, “[...] como se movimenta e como pode se transformar”. Tal intento se efetivará, como afirma Lefevbre (1975, p. 21), pela “captação das transições, dos desenvolvimentos, da ligação interna e necessária das partes com o todo”.
Será, portanto, esse pensamento categorial que tornará possível uma compreensão do real que nos afasta do determinismo econômico, mecanicista, linear, da ideia de que as narrativas de nossos sujeitos são meras respostas imediatas a perguntas feitas pelo pesquisador. Neste ponto se torna importante destacarmos a ideia de que o humano não mantém relações imediatas com o meio social, mas se constituí por meio de múltiplas mediações. Segundo Frederico (2013, p. 90), “a dialética exige que se supere (negue) a imediatez para, assim, poder descobrir sua razão de ser-assim-como-aparece”. Daqui depreendemos uma orientação essencial presente no processo analítico: apreender o movimento constitutivo das significações, ou seja, as múltiplas mediações. Para refletirmos com mais profundidade sobre essa afirmação é fundamental apresentarmos outro movimento analítico, qual seja, a apreensão da dialética parte-todo.
Mesmo sem tempo/espaço/condições pelo próprio escopo deste artigo de aprofundarmos a categoria Totalidade, faz-se necessário trazermos alguns elementos dela, dado que corremos um grande risco de fazermos análises falhas, destorcidas se não considerarmos que:
[...] é inteiramente possível que alguém compreenda e descreva de forma correta os principais pontos de um acontecimento histórico, sem que por isso seja capaz de compreender esse mesmo acontecimento naquilo que ele realmente representa, em sua verdadeira função no interior do conjunto histórico ao qual pertence, isto é, sem compreendê-lo no interior da unidade do processo histórico (Lukács, 2003, p. 83, grifo das autoras).
Assim sendo, é essencial partirmos da proposição de que as significações produzidas pelos sujeitos estão inseridas em uma Totalidade Social, entendida, como nos ensina Lukács (2003), como complexo de complexos, de modo que as significações produzidas só poderão ser compreendidas para além de sua aparência, como partes integrantes dessa totalidade.
Em cada pesquisa é inevitável a realização de um recorte da totalidade; portanto, essa parte não é algo isolado, está em relação com outros sujeitos/fenômenos inseridos nessa totalidade. Mas faz-se necessário esclarecer que a categoria em questão não pode ser compreendida como algo abstrato, inatingível. Ela vem justamente para explicitar e explicar que no movimento de análise, no caso, das significações de algum fenômeno, um primeiro recorte é feito ao delimitarmos o objeto de estudo. No caso de nossa pesquisa, vários recortes de realidades inseridas numa totalidade social – realidades de escolas localizadas em diferentes estados de um mesmo país – são constituídos objetiva e subjetivamente por meio da forma social capitalista. Cada uma das escolas, é um complexo de relações inserido na totalidade social de seus estados, inserido na totalidade social Brasil. Todos esses complexos de complexos se movimentando por meio da contradição das relações estabelecidas; uma das principais dessas relações, consideradas em relevo em nossas pesquisas, é a contradição da Pandemia da COVID-19 e seus desdobramentos e impactos. Dessa forma, é possível visualizar, a partir de um movimento analítico interpretativo, um conjunto de mediações próprias da totalidade em que o fenômeno está inserido e que vemos como elemento constitutivo importante. Será com base nessas mediações, que se colocam como possíveis de serem apreendidas para este momento da pesquisa, que a parte será compreendida à luz da totalidade. Com isso afirmamos que as mediações explicam as conexões, as transições do processo histórico na constituição do fenômeno em tela. Elas são a expressão da totalidade que, ao constituir as significações, são reconfiguradas, transformadas em algo próprio do sujeito histórico que, ao objetivá-las, constitui outras significações e movimenta a realidade social.
Com isso, afirmamos que a totalidade é constituída de complexos interconstitutivos sempre em movimento, que se desdobram em mediações constitutivas das significações em foco.
Frente a tais considerações, criamos a possibilidade de, já no momento do primeiro contato com as narrativas dos professores, fugirmos do risco de restringirmo-nos à imediaticidade contida em tais significações, isto é, tomá-las descoladas do processo histórico e da totalidade que as constituíram. Tal postura favorece o desvelamento de explicações naturalizantes e culpabilizadoras que ocultam as contradições que o processo de produção das significações contém.
Apresentadas essas categorias, com a intenção de explicitar como compreendemos o processo de produção de conhecimento da realidade social, pensamos que explicitamos também nossa concepção de homem como ser histórico, social e individual ao mesmo tempo. Será esse sujeito, produtor das significações, nosso sujeito de pesquisa.
Dessa forma, esses sujeitos históricos, que vivenciam no âmbito da Educação Básica todos os percalços, sofrimentos, falta de condições e melindres políticos (no sentido da politicagem) são os membros da comunidade escolar, notadamente professores, que nos expõem suas ações, sua busca por transformação em meio à contradição gestada pelo contexto pandêmico e pós-pandêmico.
Na perspectiva do método que nos orienta, consideramos esses sujeitos participantes ativos na pesquisa, pois, trazendo aqui Trabalho, como outra categoria que nos embasa, entendemos que os educadores e educadoras representam os trabalhadores da educação, que lutaram e lutam por transformações em seu meio de atuação. Na pandemia da COVID-19 estiveram entre tantos que adoeceram, entre tantos que não resistiram às pressões produtivistas impostas por um governo que não se considerava coveiro para contar mortos.
Partimos da apreensão das significações desses trabalhadores que representam, na luta de classes, a parte dos despossuídos, deserdados, trabalhadores assalariados na ativa ou do exército industrial de reserva. A pandemia fez acirrar essa desigualdade, e por meio da análise empreendida na pesquisa, sob a lente das categorias aqui discutidas, a intencionalidade maior reside em ir para além da apreensão das significações, colaborativamente construindo estratégias junto aos grupos participantes, possibilitadas por discussões e formações pautadas em processos críticos de conscientização, mediadas pela dialética teoria-prática, no caminho da práxis transformadora. Como nos orienta Marx e Engels (1979, p. 14): “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.
O caminho da Trans-Formação
Para falarmos sobre a pesquisa como constituidora de práxis, iniciamos com uma provocação de Frigotto (2022), originada por outra provocação, a de Florestan Fernandes:
Para Fernandes, el desafío educacional es tan o más importante que el hambre, porque si los/as oprimidos/as y excluidos/as no perciben las fuerzas sociales que los oprimen, no podrán organizarse para luchar contra esas mismas fuerzas para salir de su condición [...]
[...] Y esa consciencia, nacida del trabajo productivo y de la lucha política de los trabajadores y de los excluidos, no depende de una educación que obedezca solamente a la fórmula abstracta de la ‘educación para un mundo en cambio’, pero sí de la educación como medio de autoemancipación colectiva de los oprimidos y de conquista del poder por los trabajadores (Frigotto, 2022, p. 20)
Partimos das significações advindas das falas dos participantes da pesquisa. No entanto, para sermos coerentes com a abordagem adotada, resta-nos a tarefa de engendrar processos de transformação na realidade social, sendo que, pela posição de pesquisadores/pesquisadoras na área da Educação, optamos por focar a realidade educacional, especialmente a formação de educadores, ou melhor, as possibilidades de Trans-Formação de educadores. Tal processo acontece quando criamos, na dialética do formar-pesquisar-transformar, as possibilidades de gestação de mediações importantes que vão nos preparando para transformações sociais radicais. Reportamo-nos a Rosa Luxemburgo (1970, p. 96), quando em seu célebre “Discurso sobre a Tática”, conclama trabalhadores à “[...] compreensão da relação entre nosso objetivo final e a luta cotidiana”. Também a Marx (2010, p. 44) para nos explicar sobre a radicalidade de nossas ações, pois, “ser radical significa agarrar a questão pela raiz. Mas a raiz é, para o ser humano, o próprio ser humano”.
Nesse caminho, precisamos lançar mão de ações que provoquem (evoquem à ação) os participantes da pesquisa, entendendo a pesquisa, corroborando Vigotski (2010, p.69), “ao mesmo tempo, pré-requisito e produto, o instrumento e o resultado do estudo”. Trocando em miúdos, podemos depreender o método da pesquisa como instrumento metodológico que, ao mesmo tempo, faz parte do resultado do estudo. A própria pesquisa se transforma, modifica suas estratégias dialeticamente, no embate com a realidade pesquisada.
A pesquisa não é estática, a realidade não é estática, então, como pesquisadoras no âmbito da dialética, temos que colocar nosso pensamento em movimento para dar conta das transições históricas do fenômeno, contemplando historicamente o que a realidade é-foi-será. Pois, em concordância com Lefebvre (1991, p.119), “[...] analisar uma realidade complexa e atingir seus elementos reais é o mesmo que descobrir seus momentos”.
Dessarte, falamos aqui da constituição de um devir que se afasta de concepções utopistas sobre “o que virá” ou “o destino”: um devir que vai se constituindo nas mediações que nos preparam para as transformações radicais, conforme mencionadas por Rosa Luxemburgo e Marx. O processo de formação crítica engendrada a partir de uma pesquisa nessa intencionalidade constitui-se em uma das mediações “que deve preceder a qualquer sociedade futura” (Luxemburgo, 1970, p. 97). Acreditamos nessa função social da pesquisa, que se constitui como luta, como práxis na realidade estudada.
Mais uma vez Frigotto (2022, p. 20) nos lembra que “en ‘La Sagrada Familia’”, junto a Engels, (Marx) afirma: “Las ideas no pueden absolutamente nada. Para la ejecución de las ideas son necesarios hombres que pongan en acción una fuerza práctica”.
Eis nossa tarefa histórica, nossa dívida com a sociedade, nosso compromisso com a transformação social: colaborar para que as massas se apoderem da teoria, para que essa se transforme em poder material (Marx, 2010, p. 44). Comecemos pelas escolas, nosso lócus de pesquisa, o local que, historicamente se posiciona estruturalmente como um braço da burocracia, priorizando processos educacionais produtivistas que se curvam à lógica das ideias hegemônicas. Processos excludentes, perversos da humanização, empreendedorismos de si, individualizantes, biologizantes, resilientes à opressão cotidiana. “A Escola cada vez mais assume sua função de ‘aparelho ideológico’ que inculca maneiras de pensar, sentir e agir das classes dominantes como sendo ‘sociedade’ global” (Tragtenberg, 1980, p. 54).
No entanto, é a partir dessa contradição intrínseca que podemos pensar em formatos inversos, avessos, contrários à corrente dominante e de dominação. Institucionalmente podemos fazer valer da negação, não de forma simplista, mas da negação dialética, que nos dá motilidade revolucionária. “Para tal é necessário contrapor uma educação crítica. Na educação o mesmo movimento que produz a pedagogia burocrática, cria condições para emergência de uma pedagogia antiburocrática [...]” (Tragtenberg, 1980, p. 57).
A Pesquisa-Trans-Formação é pensada junto a modalidades de pesquisas-ação, pesquisas-formação, pesquisas colaborativas, dentre outras que pressupõem a participação ativa da pessoa que pesquisa e atua no campo estudado, colocando-nos em um patamar para além da descrição dos fenômenos, “[...] mas também como elemento do processo de sua transformação” (Vázquez, 2007, p. 28).
Para isso lançamos mão de um tipo de pesquisa que possibilite formações que sejam cognitivas e operacionais. Isso quer dizer que não buscamos soluções pragmáticas e ferramentais, respostas definitivas ou receitas. No movimento próprio de apreensão das informações sobre o questionamento que fazemos a esta realidade buscamos formas de superação deste status quo real – muitas vezes fossilizado – apostando, acreditando e atuando na prática de transformação do real (Magalhães, 2021, p. 268).
Para cumprir com os objetivos propostos no supracitado projeto de pesquisa CAPES do qual participamos, buscamos a produção de informações e não a mera coleta de dados, pois os participantes não podem ser reduzidos a tão somente informantes da realidade que vivenciam. E pesquisadores, muito menos, a descritores e denunciantes de iniquidades. Para além dessa denúncia, como nos alerta Paulo Freire, queremos anunciar novas possibilidades, pois:
Ai daqueles e daquelas que, em lugar de visitar de vez em quando o amanhã, o futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora, ai daqueles que em lugar desta viagem constante ao amanhã, se atrelem a um passado de exploração e de rotina (Freire, 1988, p. 101).
Nessa esteira, a dialética que sustenta a intenção de pesquisar e ao mesmo tempo formar na perspectiva da transformação social, deve se atentar para processos de formação que desenvolvam estratégias voltadas para a realidade específica estudada e que contemplem os horizontes da pesquisa. Ou seja, falamos de processos que contemplem o devir.
Importante trazer alguns pontos que fundamentam e dão suporte a essas estratégias. Em primeiro lugar, o clima estabelecido junto ao grupo deve ser de colaboração, para que participantes se sintam realmente partícipes das ações e não meros objetos de pesquisa. Esse clima vai se estabelecendo na necessária abertura ao processo dialógico, em que todos contribuem, pois todos são detentores de diferentes saberes e vivências.
Segundo Tragtenberg (1980, p. 53), "o capitalismo, no seu processo de desenvolvimento, separou da vida produtiva a criação e a transmissão da cultura, sequestrou o corpo de conhecimentos, cuja origem é social [...]”. Assim, nesse diálogo é nosso dever fazer circular novamente essas possibilidades de criação, reapropriando conhecimentos que historicamente foram expropriados dos docentes. Nesse reengajamento emocional-crítico, podemos conhecer as determinações neoliberais que povoam nosso fazer docente, impulsionando a criação de práticas outras.
Pegando esse gancho, é importante deixar claro, em segundo lugar, que nesse método dialético de pesquisa, não dicotomizamos nenhuma de suas partes, ou melhor, utilizamos a todo momento de um complexo dialético que vai sendo formado na práxis - é também nesse movimento que “[...] a práxis vai indicando os recursos, caminhos, técnicas, teoria, método, os momentos de retorno à teoria, de revisão das categorias utilizadas, de novas técnicas” (Magalhães, 2021, p. 327).
Um terceiro ponto a ser destacado, fruto desse caminho dialético, é o acordo que se estabelece coletivamente para decidir quais textos serão discutidos, quais temáticas serão abordadas. Cada conteúdo acordado deve ser compreendido como meio e nunca como finalidade da formação – como meio/mediação que contribui para a formação crítica, tendo sempre no horizonte a transformação social.
Concordantes com a histórica precarização da formação docente continuada, os conteúdos desenvolvidos nas formações realizadas nesta pesquisa foram construídos coletivamente e tiveram a intencionalidade da emergência do novo– e entendamos aqui o novo como a consciência crítica que deve superar a consciência ingênua. (Magalhães, 2021, p. 330).
Sobre o conteúdo das formações, esses devem ter caráter cognitivo-afetivo, ou seja, que contribuam com conhecimento importante ao tema determinado, mas que em sua forma tenha o condão de afetar emocionalmente os participantes, condição que possibilita transformações qualitativas individuais no coletivo. As formações devem ter caráter didático-pedagógico, nunca prescritivas, trazendo caminhos de atuação na realidade e não receitas prontas (algo que não existe, mas sempre esperado, como se fosse um tutorial educacional). E é por esse motivo que as formações desse projeto abarcam uma concepção sócio-histórica de humano e de educação: os temas são situados historicamente, favorecendo a que os partícipes apreendam de que forma esse conteúdo se imbrica socialmente na história de cada um – sujeitos da produção de conhecimentos – ao mesmo tempo que se interliga na dialética geral da produção de conhecimento da humanidade. Por último, essa formação se dá numa práxis estabelecida por parcerias que visam a colaboração entre todos os envolvidos: em nosso caso, entendemos que há a necessidade da aproximação entre universidade e escola, possibilitando a criação de caminhos para uma práxis científica.
Um ponto fundamental para que as formações aconteçam com o necessário engajamento e produtividade é a criação de técnicas de pesquisa. Segundo Magalhães (2021, p. 335), a “criatividade na materialidade”. Cada vez mais próximos da realidade estudada, entendemos a necessidade de criação de diferentes estratégias didático-pedagógicas como instrumento de formação no movimento da pesquisa. A intenção é a de incrementar os instrumentos convencionais, criando formatos que possibilitem cada vez mais a saturação das determinações que buscamos apreender. Dessa forma, por exemplo, uma entrevista pode adquirir formas mais ampliadas e reflexivas de participação; um grupo de discussão pode ter estratégias intencionalmente provocativas, que tragam à tona, por meio da fala dos participantes, a contradição que existe na realidade. Ao fim, a ideia é retirar as pessoas de zonas de conforto, fazendo-as confrontarem-se com suas próprias concepções, pensar em alternativas, formas diferentes de refletir criticamente sobre a própria prática.
A partir desse processo, que se pretende, como destaca Vygotski (1995), “revolucionário” (Vygotski , 1995, p. 156), que se dá por meio de “relações de índole dialética” (Vygotski , 1995, p. 157), nosso entendimento é de que se configure um processo transformador das funções psíquicas. Teremos, desse modo, um conjunto de significações qualitativamente expressivo das formas de sentir, agir e pensar dos participantes da pesquisa. E, aqui, voltamos à questão da coerência da proposta em tela, a de fazer pesquisa e trans-formar a realidade ao mesmo tempo.
Assim, resta-nos apresentar, mesmo de modo breve, nossa proposta de análise com vista à produção de um conhecimento. Essa proposta é consoante às perspectivas do Materialismo Histórico-dialético e da Psicologia Sócio-histórica tal como todo o complexo teórico-metodológico que orienta o desenvolvimento dos trabalhos de pesquisa, bem como cada uma de suas imbricadas partes.
O essencial a relatar é que não podemos abandonar, em momento algum do processo, as categorias do método que nos orienta, o MHD. Afirmamos, com isso, que precisamos de uma técnica de análise de informações que seja coerente com esse processo que vem sendo produzido ao longo da pesquisa. Assim, o procedimento analítico adotado, Núcleos de Significação (Aguiar; Ozella, 2006, 2013; Aguiar; Soares; Machado, 2015; Aguiar; Aranha; Soares, 2021), nos permite realizar análise das significações que ultrapasse a pseudo-concreticidade, apreendendo a historicidade, suas contradições e mediações. A proposta dos Núcleos de Significação implica momentos de apreensão do empírico e de sua superação, aprofundando, como já anunciado, as articulações parte-todo, produzindo explicações cada vez mais profundas, entendidas por nós como aquelas que apreendem o processo histórico constitutivo dos sujeitos.
Considerações Finais
Na perspectiva do Materialismo Histórico-dialético e da Psicologia Sócio-histórica não é possível descolar a pandemia de COVID-19 pela qual passamos – suas consequências sociais, educacionais, políticas, econômicas – do sistema político-econômico sob o qual vivemos, o capitalismo, e a episteme burguesa forjada pela ideologia liberal, neoliberal, ultraliberal que testemunhamos incontrolavelmente exacerbada em muitas instâncias do governo, do parlamento, do judiciário, do empresariado, do comércio, do sistema financeiro. Considerar essa configuração ampla e estrutural é fundamental para podermos compreender a conjuntura construída pelo Estado e pela sociedade civil no período pandêmico: somente sob e sobre esse quadro, por um lado, geral, mas, por outro, específico – face a todas as situações inusitadas ressurtidas hodiernamente – podemos empreender as estratégias de pesquisa que deem conta de prospectar informações para o projeto de pesquisa do qual participamos e produzir conhecimentos sobre essa esdrúxula situação em que todas as escolas do país foram expostas nesse período trágico de nossa história.
Além disso, com a intencionalidade de contribuir para a formação e transformação docente, é necessário considerar também que o capitalismo pós-pandemia é outro, distinto daquele que se apresentava até 2019. Ele estava já se metamorfoseando quando veio a pandemia: esta o modificou em alguns aspectos, mas não o abateu, pois seus mecanismos de sobrevivência se aproveitaram do momento para acelerar modificações econômicas em que os mais ricos pudessem se apropriar de mais riquezas em detrimento da pauperização de parte considerável da população do planeta. Os números que expressam esse movimento são indecentes, abomináveis: aqui não é o espaço para nos aprofundarmos nessa seara, mas é incontornável que a destaquemos, pois é nessa realidade e nos fenômenos que a constituem, que é gestada a contradição a ser desvelada num incessante processo de análise materialista histórica e dialética, sob a égide de processos de trans-formação.
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Notas
[1] Projeto de pesquisa financiado pela Capes por meio do Edital de Seleção Emergencial IV CAPES - Impactos da Pandemia, cadastrado com o número (informação ocultada para a avaliação às cegas).
[2] Embora não seja usual essa sigla na Academia, pedimos licença ao leitor para usá-la neste texto para evitar a repetição em excesso da expressão Materialismo Histórico-Dialético
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