Impactos da pandemia da covid-19 na educação básica: a questão do fracasso escolar
Covid-19 pandemic impacts on basic education: the issue of school failure
Impactos de la pandemia de Covid-19 en la educación básica: la cuestión del fracaso escolar
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
anabbock@gmail.com
Eliana de Sousa Alencar Marques
Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil
esalencar123@ufpi.edu.br
Recebido em 21 de setembro de 2023
Aprovado em 17 de novembro de 2023
Publicado em 07 de dezembro de 2023
RESUMO
Os dois primeiros anos da pandemia de Covid-19, que correspondem a 2020 e 2021, foram os mais difíceis e desafiadores para toda a sociedade, o que inclui a educação escolar, que passou a funcionar sob o regime do ensino remoto emergencial, cujas aulas, mediadas por recursos tecnológicos, poderiam ser ministradas ao vivo ou gravadas e disponibilizadas aos estudantes. Outra medida adotada por todas as esferas de governo diz respeito ao sistema de progressão automática, tendo por finalidade evitar o abandono escolar e a retenção dos estudantes, pelo baixo desempenho acadêmico nos estudos. Assim, tendo por objetivo compreender os impactos da pandemia da Covid-19 na produção do fracasso escolar na educação básica no Brasil, foi realizada uma pesquisa documental no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), com foco nos resultados de avaliação da educação básica, compreendendo o período de 2018 a 2021, isto é, os primeiros dois anos da pandemia, e dois anos antes, para efeito de comparação com a realidade pandêmica. Para complementar algumas informações, outras fontes documentais, além do Inep, também foram consultadas, a exemplo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Conselho Nacional de Educação (CNE). Os dados da pesquisa nem sempre são suficientemente claros, mas a análise articulada das várias fontes denotam impactos substanciais da pandemia na educação básica. Por fim, mesmo que indicadores de fracasso escolar, como reprovação, abandono e distorção idade-série não estejam quantitativamente definidos de forma confiável, o Inep e os demais organismos consultados apontam impactos imensuráveis na educação, o que exige urgência de planejamento, ação e políticas públicas para reverter a situação.
Palavras-chave: Reprovação; Abandono escolar; Distorção idade-série.
ABSTRACT
The first two years of the Covid-19 pandemic, which included 2020 and 2021, were the most difficult and challenging for society as a whole, which includes school education, which began operating under the regime of emergency remote teaching, whose classes, mediated by technological resources, could be taught live or made available to students. Another measure adopted by government concerns the automatic progression system, with the purpose of preventing school dropout and student retention due to poor academic performance in studies. Thus, with the objective of understanding the impacts of the pandemic on the production of school failure in basic education in Brazil, a documentary research was carried out at Inep, focusing on the evaluation results of basic education, covering the period from 2018 to 2021 , that is, the first two years of the pandemic, and two years before, for comparison with the pandemic reality. To complement some information, other documentary sources, in addition to Inep, were also consulted, such as Unicef and CNE. The survey data are not always clear enough, but an articulated analysis of the various sources reveals substantial impacts of the pandemic on basic education. Finally, even if the indicators of school failure, such as failure, abandonment and age-grade are not quantitatively defined in a reliable way, Inep and the other consulted organizations point to immeasurable impacts on education, which requires urgent planning, action and public policies to reverse the situation.
Keywords: Disapproval; School dropout; Age-grade distortion.
RESUMEN
Los dos primeros años de la pandemia de Covid-19, que corresponden a 2020 y 2021, fueron los más difíciles y desafiantes para la sociedad en su conjunto, que incluye la educación escolar, que comenzó a operar bajo el régimen de enseñanza remota de emergencia, cuyas clases, mediadas gracias a recursos tecnológicos, podrían impartirse en directo o grabarse y ponerse a disposición de los estudiantes. Otra medida adoptada por todas las esferas de gobierno es el sistema de progresión automática, con el objetivo de prevenir el abandono escolar y la retención de estudiantes por bajo rendimiento académico en los estudios. Así, con el objetivo de comprender los impactos de la pandemia de Covid-19 en la producción del fracaso escolar en la educación básica en Brasil, se realizó una investigación documental en el Inep, centrándose en los resultados de evaluación de la educación básica, abarcando el período de 2018 a 2021, es decir, los dos primeros años de la pandemia, y dos años antes, para comparar con la realidad pandémica. Para complementar alguna información, también se consultaron otras fuentes documentales, además del Inep, como Unicef y CNE. Los datos de las encuestas no siempre son lo suficientemente claros, pero el análisis articulado de las diversas fuentes denota impactos sustanciales de la pandemia en la educación básica. Finalmente, incluso si los indicadores de fracaso escolar, como el fracaso, el abandono y la distorsión de la edad y el grado no están definidos cuantitativamente de manera confiable, el Inep y los demás organismos consultados señalan impactos inconmensurables en la educación, que requieren planificación, acción y políticas públicas urgentes para revertir la situación.
Palabras clave: Desaprobación; Abandono de escuela; Distorsión del grado de edad.
Introdução
Com a pandemia da Covid-19 oficialmente reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, os mais diversos segmentos de serviços na sociedade, dentre os quais os serviços de atendimento médico-hospitalar, educação e comércio, apenas para citar alguns exemplos, foram amplamente atingidos, em escala global, pela situação de calamidade que se instalou com o surto do novo coronavírus.
Antes dessa data de reconhecimento oficial da pandemia, a OMS, em 30 de janeiro de 2020, já havia declarado que o surto se configurava como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. No Brasil, a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, foi sancionada com o intuito de dispor “sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019” (BRASIL, 2020a).
Com a declaração da OMS, em 11 de março de 2020, de que a emergência sanitária causada pelo Coronavírus tinha atingido o patamar de uma pandemia, muitos outros dispositivos jurídicos foram criados, como a Portaria nº 343, de 17 de março de 2020, emitida pelo Ministério da Educação com a finalidade de dispor “sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19” (BRASIL, 2020b).
Uma situação é definida como pandemia não propriamente por conta da gravidade de uma doença, mas porque o surto de tal doença atinge uma dimensão global. Isso não quer dizer, contudo, que os diversos lugares do mundo sofrem os efeitos deletérios dela decorrentes de forma semelhante. No Brasil, os impactos da pandemia foram extremamente agressivos.
Importante estudo publicado por Araujo e Fernandes (2022, p. 2) aponta que, “in general, Brazil had an occupancy rate in intensive care units close to 100%”[1]. O ápice no número de óbitos em apenas um dia aconteceu em 08 de abril de 2021, com 4.249 mortes, alguns meses após o início da vacinação, cujo processo havia começado em 19 de abril de 2021. No início de outubro de 2021, o país alcançou o número total de 600 mil mortes por Covid-19, estando já atravessando um período de redução na quantidade de casos de óbitos. Em março de 2023, atingiu a triste marca de 700 mil mortes pela doença.
Tendo por objeto de investigação o impacto das vacinas anticovid-19 no Brasil, Araujo e Fernandes (2022) apontam que até meado de outubro de 2021, isto é, seis meses após o início do processo de vacinação, o país havia reduzido os casos de óbitos pela doença em 96,44%. Em números reais, passou de 4.249 mortes, em 08 de abril de 2021, para 130 óbitos no dia 19 de outubro de 2021. Esse número é indicador de que a população havia atingido, nesse momento, com o avanço da vacinação, uma margem relativamente segura dos riscos extremos da doença, como internação em unidade de terapia intensiva e até mesmo a letalidade.
Embora as consequências da pandemia tenham sido muito mais nefastas no campo da saúde, por conta das situações de adoecimento, morte e superlotação de hospitais, a gravidade da pandemia não isentou a educação de muitos impactos negativos. Saviani (2020, p. 7) nos faz lembrar que “uma das principais funções da educação é a socialização das crianças e jovens, o que não pode ser feito com o ensino remoto ou a distância”; socialização essa, vale registrar, que não pôde ser praticada no período do isolamento social instituído, de maneira justa, como medida de saúde pública na pandemia.
Dentre os impactos da pandemia na educação, não podemos esquecer o que diz respeito à questão do fracasso escolar, um problema histórico da nossa educação e bastante conhecido por pais, professores e praticamente toda a sociedade. Não se trata, portanto, de um problema que surge com a pandemia, mas nela se reconfigurou muito mais negativo, aprofundando-se de forma pontual entre os estudantes das classes menos favorecidas, como apontam os estudos de Cipriani, Moreira e Carius (2021), Souza (2022) e Unicef (2021a; 2021b).
Por se tratar de um problema histórico, o que parece muito grave na questão do fracasso escolar é a tendência à naturalização, porque o torna perpétuo, invisível e restrito ao indivíduo que “fracassa”, principalmente nos casos em que o indivíduo vive em situação de vulnerabilidade social. A naturalização torna opaco o problema das determinações sociais e históricas que constituem a realidade, impedindo assim que tomemos consciência dos verdadeiros nexos que explicam a produção desse fenômeno social.
Isso posto, além de não ser um fato que simplesmente acontece, como se fosse algo “natural”, o fracasso constitui-se também como um sentimento que afeta tanto o indivíduo, produzindo sofrimentos (angústia, humilhação e vergonha), quanto o mundo do qual o indivíduo faz parte, porque o estigma da incapacidade inibe a sua presença no meio, em especial o ambiente da escola, onde deveria atuar como sujeito.
Na pandemia da Covid-19, segundo estudos de Cipriani, Moreira e Carius (2021), Souza (2022) e Unicef (2021a; 2021b), dentre outros, o problema do fracasso escolar se intensificou, sobretudo no contingente de estudantes que fazem parte do segmento social mais vulnerável da sociedade, o que justifica, dentre outras medidas, a necessidade de ser pesquisado. Diante disso e da necessidade de compreender mais profundamente a relação entre a pandemia e o aumento da situação de fracasso escolar, sobretudo, entre os estudantes das camadas menos favorecidas economicamente em nosso país, o objetivo deste estudo é compreender os impactos da pandemia da Covid-19 na produção do fracasso escolar na educação básica no Brasil.
Considerações sobre o fracasso escolar no Brasil
O fracasso escolar é um problema que atravessa a história da educação brasileira. Marques (2015) alerta para o fato de que desde a década de 1970, a literatura que trata dessa problemática tem apontado diferentes explicações ou justificativas para o fracasso dos alunos. Algumas dessas explicações encontravam e encontram, até hoje, fundamentação nas teorias racistas e em algumas escolas psicológicas que atribuíam as causas do fracasso escolar aos fatores de ordem individual dos alunos, comumente identificados como incapacidade para aprender, desmotivação natural e herança genética. Outras explicações fundamentavam-se nas teorias das desigualdades sociais, que, por sua vez, atribuíam as causas do fracasso escolar às condições socioeconômicas e culturais dos alunos.
Esse cenário serve para evidenciar que o problema do fracasso escolar em nosso país não é novidade, nem surgiu com a pandemia, mas, não resta dúvida de que se agravou com ela. Trata-se, portanto, de um problema social e histórico, uma vez que os estudantes e o processo educacional escolar não se confundem com ilhas remotas ou perdidas no meio do oceano. A escola existe como parte da sociedade que a criou. É essa mesma sociedade que a frequenta e a mantém funcionando, por meio de impostos, bolsas de estudo ou mensalidades; além disso, ela só existe porque há currículo, projeto pedagógico e toda uma estrutura pedagógica, burocrática e ideológica que rege o seu funcionamento.
Fracasso escolar é um tema muito sensível, por estar relacionado a processos de exclusão social e sofrimento de pessoas, geralmente crianças e adolescentes que internalizaram valores de uma sociedade que, tendo por base a ideologia liberal, responsabiliza o próprio indivíduo pelo sucesso ou fracasso na construção de suas existências. Em outras palavras, a ideologia liberal naturaliza as possibilidades de desenvolvimento do indivíduo. Como pontuado por Bock (2017, p. 25), em sua crítica ao princípio do “individualismo” da perspectiva liberal, “cada indivíduo é um ser moral que possui direitos derivados de sua natureza humana”.
Para entender a relação entre fracasso escolar e exclusão social (antes da pandemia), entendendo essa relação como processo histórico forjado na sociedade capitalista, recorremos a Bauer (2021a, p. 5), que diz:
Em 2019, 2,1 milhões de estudantes foram reprovados no País, mais de 620 mil abandonaram a escola e mais de 6 milhões estavam em distorção idade-série. O perfil deles é bastante conhecido: se concentram nas regiões Norte e Nordeste, são muitas vezes crianças e adolescentes negras e indígenas ou estudantes com deficiências.
Qual a diferença dessa realidade, em 2019, para o período pandêmico, a não ser o agravamento da desigualdade? Segundo Bauer (2021a, p. 5), “com a pandemia da Covid-19, foram esses, também, os estudantes [nortistas, nordestinos, negros, indígenas e deficientes] que enfrentaram as maiores dificuldades para se manter aprendendo”. Em outras palavras, os efeitos da pandemia foram mais intensos na realidade escolar desses estudantes.
Por isso, o fracasso escolar não pode ser explicado, cientificamente, apenas pela constatação ou levantamento de alguns casos de reprovação ou abandono escolar. Como geralmente se diz, essa é apenas a ponta do iceberg. É necessário apreender as suas determinações sociais, sair da aparência desse fenômeno para conseguirmos apreender o máximo dessas determinações.
Sendo um problema tão antigo e complexo da nossa realidade, vários estudiosos, em diferentes períodos da história da educação, já se debruçaram com muito afinco sobre a produção do fracasso escolar no Brasil, e até na América Latina.
A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, uma publicação corrente do Inep, aborda o assunto desde suas primeiras publicações. No número 2 do volume 1, Barioni (1944, p. 326) aponta que “um dos mais sérios problemas de ordem pedagógica a enfrentar na América do Sul é o da deserção escolar”.
E sabendo que esse problema é também de natureza social, Barioni (1944, p. 326) chama atenção para a essência da questão, apontando que a sua causa “reside em que a criança desde idade muito tenra se converte em elemento econômico da família, por estar obrigada a abandonar a escola a fim de ajudar a adquirir recursos para a manutenção, ingressando nas oficinas ou nos labores agrícolas”.
Na década de 1970, o problema do fracasso escolar continuava persistindo no Brasil, sobretudo pelas faces da evasão e repetência. Mas o problema não era circunscrito ao nosso território. Saviani (1992) registra, com base em Tedesco (1981), que a escolarização da criança na maioria dos países latino-americanos na década de 70 do século passado foi um processo intensamente marginal e excludente. Vale lembrar que grande parte do continente nesse período, incluindo o Brasil, era governado por regime de exceção.
Publicada em 1990, “a produção do fracasso escolar”, de Maria Helena Souza Patto, foi uma das obras, ou talvez a obra, que teve um dos maiores impactos entre educadores e pesquisadores em educação nos últimos 30 anos, por continuar sendo uma referência de prestígio sobre o problema do fracasso escolar. Realizado em uma escola da periferia da cidade de São Paulo, o estudo aponta, dentre as conclusões, para a necessidade do questionamento da hegemonia teórica da educação naquele momento. Assim sendo, defendia que as explicações sobre fracasso escolar que tinham por base “teorias do déficit e da diferença cultural precisam ser revistas a partir do conhecimento dos mecanismos escolares produtores de dificuldades de aprendizagem” (PATTO, 2022, p. 540). Noutras palavras, era necessário superar as explicações da pedagogia liberal, por culpabilizar a criança pelo fracasso escolar e, nessa mesma lógica, naturaliza suas dificuldades na sociedade e na escola.
Como política de enfrentamento ao fracasso escolar no ensino fundamental, principalmente em relação ao quesito da reprovação, o regime de progressão continuada tem sido comumente adotado por redes públicas de educação, de modo facultativo, em todo o país. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9.394/1996 (BRASIL, 2022a, p. 24), conforme o artigo 32, em seu Inciso IV e § 2º, assegura que os estabelecimentos de ensino “podem adotar no ensino fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo sistema de ensino”.
O entusiasmo pela progressão continuada no ensino fundamental, também chamada promoção automática ou aprovação automática, não tem origem propriamente na atual LDB, a Lei 9.394/1996. Esse modelo pedagógico, que ganha força nos anos 50 do século XX, é a expressão ideológica liberal e individualista de uma época que ainda hoje perdura hegemonicamente sobre a concepção de homem, escola, processo educativo e sociedade.
De acordo com Fernandes (2000, p. 77), embora o assunto já fosse abordado em décadas anteriores, “propostas de aprovação automática foram encaradas com entusiasmo e otimismo por políticos e gestores de políticas educacionais” somente nos anos 50 do século XX. Professores e pesquisadores também eram entusiastas e otimistas das propostas, mas mantinham-se cautelosos, por se tratar de um modelo pedagógico importado da Inglaterra e dos Estados Unidos.
Mesmo não sendo metodologicamente simples apreender as determinações da realidade, inclusive em relação à realidade do fracasso escolar, há situações que saltam aos olhos, como é o caso do grande contingente de jovens que ainda não sabe ler e escrever, em pleno século XXI. Segundo Oliveira (2022, p. 186), cujos estudos estão embasados em informações apreendidas no IBGE, em “2021, em todo o território nacional, quase 9,9 milhões de pessoas, a partir dos 15 anos de idade, declararam não saber ler e escrever um bilhete simples”.
Somando-se às diversas causas históricas e sociais do fracasso escolar no país, a pandemia de Covid-19 intensificou ainda mais o problema nos anos de 2020 a 2022, tornando cada vez mais complexo o processo educacional, seja na escola ou em qualquer outro espaço. Os dados apresentados por Bauer (2021b, p. 5) permitem compreender que o fracasso escolar não é um problema gestado apenas na escola.
Em novembro de 2020, mais de 5 milhões de meninas e meninos de 6 a 17 anos não tinham acesso à educação no Brasil. Desses, mais de 40% eram crianças de 6 a 10 anos, faixa etária em que a educação estava praticamente universalizada antes da pandemia.
O que se denota do fracasso escolar no contexto da pandemia de Covid-19 é o resgate de uma discussão sobre um “novo-e-velho” problema. Velho, porque, como já explicitado, atravessa toda a história da educação brasileira, ao ponto de ser conhecida como uma cultura, isto é, “cultura do fracasso escolar”. E novo, em face dos desafios que vão surgindo no decorrer do tempo, como no caso da referida pandemia, que, ao levar ao surgimento do ensino remoto emergencial agravou ainda mais a precarização da educação dos mais pobres e, consequentemente, contribuiu para o aumento dos casos de fracasso escolar.
Metodologia
Notícias publicadas pelo Inep (BRASIL, 2022b) sobre o assunto a partir de maio de 2022, davam conta de que os números do Censo Escolar 2021 apontavam “para uma redução da taxa de aprovação na rede pública em todas as etapas de ensino em comparação com o ano de 2020” (BRASIL, 2022b, p. 1).
Contudo, ainda em 2022, o Inep (BRASIL, 2022c) chamou atenção para um fato que não tinha sido ponderado pela própria instituição de pesquisa na divulgação dos resultados do Censo Escolar e do Ideb 2021: a aprovação automática, medida adotada pela maioria das escolas públicas do país, elevou artificialmente a taxa de aprovação a um patamar superior a alcançada em 2019. Segundo o Inep (BRASIL, 2022c, p. 3), apenas para citar um exemplo, “a taxa de aprovação do ensino fundamental da rede pública passou de 91,7% em 2019, para 98,4% no primeiro ano da pandemia, em 2020 (variação de 6,7 p.p.), reduzindo para 96,3% em 2021 (ainda 4,6 p.p. superior a 2019)”.
Assim sendo, “ao avaliar a variação observada entre os anos de 2019 e 2021 na aprovação e no desempenho, não foi identificada associação entre as variáveis, e quando a associação estava presente, foi negativa” (BRASIL, 2022c, p. 3). Portanto, é essa complexa variação de dados e de interpretação da realidade que se constitui como um dos motivos de pesquisar os impactos da pandemia na educação básica.
Outro motivo também relacionado ao tema se originou do contato com professores que têm vivido o desafio do enfrentamento aos impactos da pandemia de Covid-19 no processo de ensino e aprendizagem na educação básica, seja quando tiveram de atender, com recursos pedagógicos nem sempre adequados ou eficientes, as necessidades escolares e de aprendizagem dos alunos no ensino remoto, seja na retomada das aulas presenciais, quando a vacinação ainda não havia sido liberada para um grande contingente da população que constitui a comunidade escolar.
Com o intuito de cumprir o objetivo geral da pesquisa, de natureza qualitativa e documental, as informações necessárias foram levantadas no Inep (BRASIL, 2018; 2019a; 2019b; 2020a; 2020b; 2020c; 2020d; 2021a; 2021b; 2021c; 2021d; 2022b 2022c), compreendendo o período de 2018 a 2021, isto é, dois anos antes e dois anos que correspondem ao período mais intenso da pandemia no Brasil.
Ainda no intuito de complementar e aprofundar a compreensão de algumas informações, outras fontes documentais, além do Inep, também foram consultadas, a exemplo do Unicef e do CNE.
Resultados – indicadores do fracasso escolar na pandemia
Se em décadas anteriores o desafio mais complexo da escola era o enfrentamento à reprovação e evasão, atualmente, com a obrigatoriedade da educação básica, da pré-escola ao ensino médio, o desafio mudou para o problema da distorção idade-série. Com isso, a repetência, como fenômeno que espelha reprovação e abandono escolar, não deixou de existir. Conforme explicação do Inep (BRASIL, 2021a, p. 19), “as taxas de rendimento – aprovação, reprovação e abandono – impactam o atraso escolar, mensurado aqui pela taxa de distorção idade-série, e, obviamente, o tempo que os alunos permanecem na educação básica”.
Reprovação, abandono e distorção idade-série são processos intrinsecamente articulados, mediados pelas mesmas determinações históricas – as desigualdades sociais. E mesmo que a evasão não faça parte oficialmente do rol de indicadores de fracasso escolar, ela não deixou de ser um problema presente. Por isso, a quantidade de alunos matriculados no Ensino Médio é menor do que a presente na segunda etapa do Ensino Fundamental, que é menor do que na primeira etapa do Ensino Fundamental. E a Educação de Jovens e Adultos tem sido o refúgio, ou a última esperança, de muitos daqueles que tentam retomar aquilo que, mesmo sendo um direito legítimo, não passa de um desejo, que é completar a escolarização básica.
Feitas as considerações iniciais sobre os resultados, passaremos a analisar as informações que foram levantadas no Inep sobre o problema do fracasso escolar nos anos de 2020 e 2021, por corresponderem ao período mais crítico da pandemia, o que implicou ao menos em duas medidas paliativas: implantação do ensino remoto emergencial, cujas aulas, mediadas por recursos tecnológicos, poderiam ser ministradas ao vivo ou gravadas e disponibilizadas aos alunos; e a retomada do sistema de progressão automática por parte de algumas escolas, com a finalidade de evitar a retenção dos alunos, por baixo desempenho escolar.
Ao mesmo tempo, para efeito de comparação, ainda recorremos à demonstração de dados relativos aos anos de 2018 e 2019, contemplando, portanto, dois anos antes da pandemia de Covid-19. As informações levantadas abrangem as duas etapas do Ensino Fundamental e o Ensino Médio.
Assim, no intuito de contextualizar a questão do fracasso escolar na pandemia, iniciaremos a discussão pela exposição da situação de matrícula no Brasil nos quatro anos que delimitam o estudo, conforme os dados constantes nos Quadros 1 e 2.
Quadro 1 – Total de estudantes matriculados (2018 a 2021)
2018 |
2019 |
2020 |
2021 |
48.455.867 |
47.874.246 |
47.295.294 |
46.668.401 |
Fonte: Elaborado com base nos dados do Censo Escolar da Educação Básica.
Quadro 2 – Matrícula por etapa escolar (2018 a 2021)
Ano Etapa escolar |
2018 |
2019 |
2020 |
2021 |
Ensino Fundamental I |
15.176.420 |
15.018.498 |
14.790.415 |
14.533.651 |
Ensino Fundamental II |
12.007.550 |
11.905.232 |
11.928.415 |
11.981.950 |
Ensino Médio |
7.709.929 |
7.465.891 |
7.550.753 |
7.770.557 |
Fonte: Elaborado com base nos dados do Censo Escolar da Educação Básica.
Analisando os dados dos quadros 1 e 2, verificamos que a queda no número de matrículas no país já era uma realidade na educação básica, tendo sido agravada nos anos 2020 e 2021, auge da pandemia, chegando a um déficit de 1.787.466 de matrículas a menos em 2021, em comparação à 2018. Outra evidência que os números mostram é que essa diminuição no número de matrículas está concentrada no Ensino Fundamental, sobretudo nas séries iniciais que, vão do 1º ao 5º ano. Segundo dados do relatório da Unicef, publicado em 2021,
Nos últimos anos, o Brasil vinha avançando, lentamente, na garantia do acesso de cada criança e adolescente à Educação. De 2016 até 2019, o percentual de meninas e meninos de 4 a 17 anos na escola vinha crescendo no País. As desigualdades, no entanto, permaneciam. Em 2019, havia quase 1,1 milhão crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória fora da escola no Brasil. (UNICEF, 2021, p, 5)
Segundo dados do relatório, o problema da exclusão escolar afetava principalmente crianças e jovens de baixa renda em condições econômicas e sociais de extrema vulnerabilidade, sendo a maioria composta por pretas(os), pardas(o) e indígenas. Em termos regionais, o relatório aponta que a exclusão escolar está mais acentuada nas regiões Norte e Centro-Oeste, envolvendo principalmente crianças e adolescentes de famílias com renda familiar per capita de até ½ salário mínimo, comprovando que “a desigualdade social presente em nossa sociedade se reproduzia ao olhar para a exclusão escolar.” (UNICEF, 2021, p. 5). Com a pandemia, a situação de exclusão escolar se agravou de forma pontual e atingiu sobremaneira o público alvo do ensino fundamental, como indica dados do relatório.
Então chegou a pandemia da Covid-19. E a desigualdade e a exclusão se agravaram ainda mais. Com escolas fechadas, quem já estava excluído ficou ainda mais longe de seu direito de aprender. E aqueles que estavam matriculados, mas tinham menos condições de se manter aprendendo em casa – seja por falta de acesso à internet, pelo agravamento da situação de pobreza e outros fatores – acabaram tendo seu direito à educação negado. Em novembro de 2020, mais de 5 milhões de meninas e meninos de 6 a 17 anos não tinham acesso à educação no Brasil. Desses, mais de 40% eram crianças de 6 a 10 anos, faixa etária em que a educação estava praticamente universalizada antes da pandemia. (UNICEF, 2021, p. 5)
Mesmo que em 2020 e 2021 tenha ocorrido um aumento de matrículas na segunda etapa do ensino fundamental (0,64%) e no ensino médio (3,92%), o Relatório Unicef (2021) confirma o que os números do Inep (BRASIL, 2019a, 2020a, 2021a, 2021b) apontam em relação à redução de matrículas nas séries iniciais do ensino fundamental, que abrangem o atendimento às crianças entre 6 e 10 anos de idade. Esse dado é alarmante e nos coloca o grande desafio de encontrar alternativas viáveis no sentido de superar essa situação de negação do direito à educação a uma geração de crianças e adolescentes em nosso país.
De acordo com Pires, Santos e Neto (2020) é preciso olhar para a diminuição de matrículas ao longo dos últimos anos na educação básica atentando para os fatores internos e externos à educação como a política, a economia e as reformas curriculares. Os autores alertam que a diminuição na oferta de vagas e o agravamento das condições de precarização do ensino podem estar colaborando para o esvaziamento das escolas públicas desde 2019 e que a pandemia acabou agravando essa realidade.
Sousa e Ferreira (2021) tratam dessa questão quando alertam que, no cenário da Pandemia da COVID-19, que se iniciou no ano de 2020, a matrícula escolar ficou comprometida neste ano e no subsequente, visto a dependência de conclusão de ano escolar, o que não foi possível devido a suspensão das aulas e não cumprimento do calendário letivo. Em pesquisa sobre a diminuição de matrículas em escolas no Rio de Janeiro no contexto da pandemia, Sousa e Ferreira (2021) tiveram acesso a depoimentos de pais e mães sobre a dificuldade em matricular os filhos nas escolas públicas, concluindo que,
As dificuldades para consolidação do direito à matrícula estão relacionadas a problemas de gestão, falta de estrutura para lidar com o sistema de matrículas, organização e planejamento. Ainda, perpassa pela falta de um compromisso político com a educação e de um comprometimento com o processo de transformação social. (SOUSA; FERREIRA, 2021, p. 7).
O que podemos considerar frente ao problema da queda no número de matrículas que vem se agravando desde 2019 em nosso país é que sem a garantia do direito à matrícula muito dificilmente teremos condições de superar os problemas educacionais em nosso país, dentre eles o fracasso escolar, posto que, sem acesso à escola, crianças e jovens são privados do direito de se humanizarem, de se desenvolverem enquanto humanos. Afirmamos isso tendo como premissa a ideia de que a negação da matrícula que gera a exclusão escolar impede que crianças e adolescentes tenham acesso à riqueza cultural necessária ao seu desenvolvimento como seres humanos, ao conhecimento sistematizado que é conteúdo da escola, ao desenvolvimento de habilidades e valores necessários à vida em sociedade e à possiblidade de continuar aprendendo e se desenvolvendo.
Além do problema da matrícula, os relatórios do Inep também apresentam dados que evidenciam o índice de percentual do fracasso escolar entre os anos de 2018 e 2021. Esses dados estão dispostos no quadro 3 abaixo:
Quadro 3 – Índice percentual do fracasso escolar, por indicador (2018 a 2021)
Etapa escolar |
Ano Indicador |
2018 |
2019 |
2020 |
2021 |
Ensino Fundamental I |
Reprovação |
5,1 |
4,3 |
0,6 |
1,6 |
Abandono |
0,7 |
0,6 |
0,9 |
0,8 |
|
Distorção idade-série |
11,2 |
10,5 |
9,7 |
7,7 |
|
Ensino Fundamental II |
Reprovação |
9,5 |
8,2 |
1,1 |
2,5 |
Abandono |
2,4 |
1,9 |
1,1 |
1,8 |
|
Distorção idade-série |
24,7 |
23,4 |
22,7 |
21,0 |
|
Ensino Médio |
Reprovação |
10,5 |
9,1 |
2,7 |
4,2 |
Abandono |
6,1 |
4,8 |
2,3 |
5,0 |
|
Distorção idade-série |
28,2 |
26,2 |
26,2 |
25,3 |
Fonte: Elaborado com base nos dados do Censo Escolar da Educação Básica.
Os dados apresentados no Quadro 3 se referem a questões nucleares (indicadores) que constituem o que estamos denominando fracasso escolar. Paradoxalmente, de acordo com os dados descritos no quadro 3, o índice de percentual de fracasso escolar sofreu uma grande queda nos anos da pandemia, 2020 e 2021. Olhando para o fenômeno na sua aparência, imediatamente, teríamos razões de sobra para comemorar esses índices, no entanto, é preciso sair da aparência e procurar entender o que esses dados revelam e escondem.
As duas principais medidas adotadas pelas instâncias governamentais em todos os níveis (municipal, estadual e federal) durante a pandemia em relação à educação foram a aprovação automática e a deflagração do ensino remoto, o que significou, em relação a segunda medida, ensino mediado por tecnologia, cujas consequências relativas ao rendimento acadêmico dos alunos, independentemente dos indicadores de aprendizagem, ficaram amparados na medida anterior (aprovação automática). Diante dessa realidade, questionamos: como ficou a situação de grande parte dos estudantes de baixa renda que não dispunha de acesso à internet, computadores, tablets ou celulares com a potência necessária ao ensino mediado por tecnologia e, muito menos, o apoio de preceptores?
Diante dessa questão, precisamos olhar com muto cuidado esses dados apresentados nos relatórios do Inep tendo em vista que inúmeras pesquisas (DERING, (2021); CUNHA; SARAIVA; VIEIRA, (2020); MALHEIROS, CARVALHO; GONÇALVES (2022); CUNHA; SILVA; SILVA (2020); CARDOSO; FERREIRA; BARBOSA (2020); STEVANIM (2020); MARQUES (2022)) realizadas entre os anos de 2020 e 2022 dão conta de denunciar o grave quadro de precarização dos processos de ensino e aprendizagem, o agravamento da desigualdade educacional e o aumento da exclusão escolar de crianças e jovens durante a pandemia.
Não faltaram no país reportagens veiculadas por grandes telejornais revelando as péssimas ou inexistentes condições de estudo de boa parte das crianças de baixa renda. Famílias inteiras dependendo de um único aparelho celular com internet paga para conseguir garantir que seus filhos se mantivessem conectados durante as aulas, residências precárias sem nenhuma infraestrutura que garantisse boas condições de estudo. Esse conjunto de fatores pode ter colaborado com o aumento nos casos de abandono escolar e ainda mais a precarização das condições de aprendizagem dos estudantes.
Ao lado do ensino remoto, o sistema de progressão automática adotado oficialmente no país enquanto durou a pandemia é um fator que oculta a realidade apresentada em números no Quadro 3. No resumo técnico do censo escolar de 2021 do Inep (BRASIL, 2022b), há uma advertência em relação ao aumento na taxa de aprovados para todas as etapas de ensino entre 2019 e 2020.
Porém, é importante destacar que a melhora significativa da taxa de aprovação foi influenciada pela adoção de ajustes no planejamento curricular das escolas perante a pandemia de covid-19 e está alinhada às recomendações do Conselho Nacional de Educação (CNE) e de organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). (BRASIL, 2022b, p. 21)
Em relação aos ajustes a que se refere o texto do resumo, destacamos a resolução publicada em dezembro de 2020 (RESOLUÇÃO CNE/CP nº 2/2020) que, dentre outras recomendações, sugeriu um conjunto de medidas a serem adotadas pelos sistemas de ensino a fim de evitar mais prejuízos aos estudantes e assim reduzir os impactos da pandemia em seus processos educativos,
Avaliações e exames de conclusão do ano letivo de 2020 das escolas deveriam levar em conta os conteúdos curriculares efetivamente oferecidos aos estudantes, com revisão dos critérios adotados nos processos de avaliação com o objetivo de evitar o aumento da reprovação e do abandono escolar, que acabaria impondo uma nova penalidade aos estudantes para além da própria pandemia. O documento apresenta ainda diversas recomendações que visavam orientar as redes de ensino no enfrentamento das dificuldades, de modo a reduzir os impactos da suspensão das atividades presenciais ocasionada pela crise sanitária global. (BRASIL, 2022b, p. 21).
Isso nos autoriza a supor que a queda no percentual dos índices de fracasso escolar na educação básica entre 2020 e 2021 informados no quadro 3 acima, nada mais é do que o reflexo desse conjunto de ajustes sugeridos pelo CNE aos processos de avaliação como forma de minimizar os impactos da pandemia na vida dos estudantes, sobretudo, para minimizar os casos de fracasso escolar. Essa compreensão precisa ser muito bem consolidada uma vez que sem o conhecimento acerca da situação de fracasso e sucesso escolar, dificilmente teremos condições de enfrentar tal problema.
Mesmo reconhecendo que tais medidas orientadas pelo CNE e adotadas pelos sistemas de ensino eram necessárias tendo em vista dirimir os impactos da pandemia na vida escolar dos estudantes e assim garantir o mínimo de prejuízos possíveis, ainda sim, precisamos cobrar das autoridades a responsabilidade em esclarecer para a população brasileira a real situação em que se encontra a educação em nosso país. Isso significa pensar em instrumentos de pesquisa que sirvam ao propósito de revelar as reais condições objetivas em que os processos educativos se desenvolveram em nosso país e os impactos disso nos desempenho educacional dos nossos estudantes.
Segundo nota oficial do próprio Inep (BRASIL, 2022b), a aprovação automática na pandemia distorce os resultados do Ideb em 2021, mascarando a real situação da qualidade da educação brasileira. O que esses dados escondem é que com a aprovação automática dos estudantes e a queda no número de participantes no Saeb, os resultados acabaram distorcidos, não representando os reais impactos da pandemia no aprendizado. O quadro 4 apresenta esses resultados em termos de avaliação institucional:
Quadro 4 – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (2019 e 2021)
Ano Escolar
Resultado |
Anos Iniciais do Ensino Fundamental |
Anos Finais do Ensino Fundamental |
Ensino Médio |
|||
2019 |
2021 |
2019 |
2021 |
2019 |
2021 |
|
Meta projetada |
5,7 |
6,0 |
5,2 |
5,5 |
5,0 |
5,2 |
Índice alcançado |
5,9 |
5,8 |
4,9 |
5,1 |
4,2 |
4,2 |
Fonte: Elaborado com base nos dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.
Olhando para os resultados do IDEB durante o ano de 2021 temos a falsa ideia de que a pandemia não promoveu impactos negativos na vida da grande maioria dos estudantes brasileiros. É um dado que esconde o que a pesquisa de Stevanim (2020) revela, isto é, que,
4,8 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, entre 9 e 17 anos, não têm acesso à internet em casa. 58% dos jovens acessam à internet exclusivamente pelo celular — o que pode dificultar a execução de tarefas relacionadas a aulas remotas emergenciais durante a pandemia. (STEVANIM, 2020, p. 11).
Essa exclusão digital dificultou a garantia do direito à educação, aprofundou a desigualdade educacional e se tornou um obstáculo à continuidade nos estudos durante a pandemia. Ao mesmo tempo, o sistema de progressão automático, dispositivo este previsto na LDB (Lei 9.394/1996), foi utilizado sem amparo de qualquer projeto pedagógico, o que contribuiu para aumentar o fosso da desigualdade no processo educacional. Portanto, os Resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica 2021 não revelam as reais condições em que se encontra o nível de qualidade da educação em nosso país, muito menos, ajudam a traçar políticas que efetivamente venham a se constituir em possibilidade para solução dos problemas estruturais como é o caso dos altos índices de fracasso escolar.
Em síntese, reconhecemos que, enquanto nação, temos, no mínimo, dois grandes desafios pela frente. O primeiro deles é encontrar alternativas que visem à inclusão escolar de todos os alunos e alunas que em decorrência da desigualdade social, econômica e regional foram impedidos de dar continuidade aos estudos durante a pandemia da Covid-19. O segundo, é encontrar alternativas de garantir àqueles que, mesmo tendo continuado os estudos, não tiveram o aproveitamento necessário, devido às péssimas condições de ensino e aprendizagem decorrentes do ensino remoto emergencial, corroborando assim com o aumento dos casos de evasão, não aprendizagem, abandono, exclusão escolar, enfim, situações que caracterizam situações de fracasso escolar.
Entretanto, qualquer ação ou estratégia que vise a superação de todos os problemas educacionais decorrentes da pandemia, exige que o poder público assuma a reponsabilidade de pensar em estratégias de avaliação que de fato revelem a real situação na qual se encontra a educação básica. Este, portanto, é outro desafio que precisa ser assumido, tendo em vista a necessidade do planejamento de políticas educacionais que visem minimizar os impactos que a pandemia da covid-19 promoveu na vida de professores e alunos, com comprometimentos ainda difícil de serem mensurados na sua totalidade.
Considerações finais
Não é demais repetir que a pandemia da Covid-19 foi um evento que provocou inúmeros desafios à sociedade, de modo que novas necessidades de existência foram se constituindo no conjunto das relações sociais, sobretudo na esfera do trabalho, o que inclui, como já se sabe, o campo da educação.
Tendo a educação como campo de estudo, o objeto de nossas análises é mais delimitado, por tratar especificamente dos impactos da pandemia da Covid-19 na produção do fracasso escolar na educação básica. Nenhuma análise permite compreender o fenômeno em sua complexidade, se não for metodologicamente considerada a sua totalidade real, isto é, as determinações sociais e históricas que estão para além da aparência, como nos ensinam Marx (1978) e Vigotski (2004).
Assim, ao estudarmos pandemia e fracasso escolar, não nos contentamos em apenas analisar os dois fenômenos “em-si”, pois consideramos que ambos se constituem dialeticamente. Por isso, como já ressaltado e discutido, os achados (indicadores) da pesquisa evidenciam que os impactos da pandemia não se restringem ao processo do adoecimento físico. Além do efeito biológico da pandemia, questões sociais e históricas marcadamente excludentes tornaram a realidade muito mais desafiadora para grande contingente de pessoas, especialmente aquelas que constituem os grupos sociais mais vulneráveis.
Com isso, queremos ressaltar que, além do adoecimento físico, o fenômeno da desigualdade social foi também responsável por impactos deletérios da pandemia na sociedade, inclusive na educação. E sobretudo para estudantes de baixa renda, por não poderem contar com suportes pedagógicos que seriam fundamentais para o seu processo de aprendizagem, como acesso a ferramentas digitais básicas (desde internet e aparelho de telefone ou computador), além do apoio de preceptoria, haja vista a importância do auxílio de alguém mais experiente no processo de ensino e aprendizagem, como forma de impulsionar o desenvolvimento do estudante. No caso da preceptoria, não estamos tratando de um luxo, ou algo superficial, mas uma demanda pedagógica fundamental para quem é estudante da educação básica.
Por fim, vale enfatizar que os indicadores (reprovação, abandono e distorção idade-série) de fracasso escolar não são fatores isolados entre si e muito menos descolados da realidade. Mesmo que os dados do Inep sejam passíveis de questionamentos, não podemos perder de vista a orientação metodológica de que um fator constitui dialeticamente o outro.
Assim, tanto o abandono escolar (por deixar de frequentar as aulas antes do encerramento do ano letivo) quanto a reprovação (geralmente decorrente de problemas relacionados ao rendimento escolar) são processos que levam ao problema da distorção idade-série, e vice-versa; isso quando não declina para o problema da evasão. Porém, nenhum desses fatores poder ser realmente apreendido, como evidenciado na análise, se não forem consideradas as determinações sociais e históricas da pandemia, como as medidas paliativas e excludentes do ensino remoto e da promoção automática, no processo de escolarização de crianças e adolescentes.
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[1] “De modo geral, o Brasil apresentou uma taxa de ocupação em unidades de terapia intensiva próxima a 100%” – tradução nossa.