Formação continuada de professores pela institucionalidade do Pnem como possibilidade no tempo do trabalho

Continuous training of teachers through the Pnem institutionality as a possibility in working time

La formación permanente de docentes a través de la institucionalidad del Pnem como posibilidad en el tiempo de trabajo

 

Claudia Simões Mariano

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

claudiasmariano@gmail.com

Juverci Fonseca Bitencourt

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

jucabitencourt@gmail.com

Silvana Ventorim

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

silventorim@hotmail.com

Diego Davila Fernandes Oliveira

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

diego.d.oliveira@edu.ufes.br

 

Recebido em 31 de agosto de 2023

Aprovado em 18 de setembro de 2023

Publicado em 03 de fevereiro de 2025

 

RESUMO

Estudo documental que analisa 86 relatórios produzidos por coordenadores, orientadores e cursistas, entre os anos 2014 e 2015, resultante do Programa de Formação Continuada de Professores e Pedagogos, em consonância com o Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio. Objetiva compreender as apropriações da escola como espaço de formação no tempo do trabalho. Questiona a importância do Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio para articular a formação com o trabalho docente, pautada no eixo da formação humana integral, ancorados nos pressupostos teórico-metodológicos de Michel de Certeau (1994) e nos estudos de António Nóvoa (1991, 2002). Como resultados afirma-se a importância do Programa de Formação Continuada de Professores e Pedagogos por produzir percursos formativos no tempo do trabalho docente e no espaço da escola, tomando o professor como sujeito de sua própria formação e da formação de seus pares; como alternativa à racionalidade instrumental e como proposta sólida de formação aos professores e pedagogos.

Palavras-chave: Formação continuada de professores; Pacto pelo fortalecimento do ensino médio; Ensino médio.

 

ABSTRACT

It is a documentary study that aims to understand the appropriations of the school as a training space during work time. Analyzes 86 reports produced by coordinators, advisors and course participants, between 2014 and 2015, resulting from the Continuing Training Program for Teachers and Pedagogues, in line with the Pact for Strengthening Secondary Education. It questions the importance of the Pact for Strengthening Secondary Education to articulate training with teaching work, based on the axis of integral human training. It is anchored in the theoretical-methodological assumptions of Michel de Certeau (1994) and in the studies of António Nóvoa (1991, 2002). As a result, the importance of the Continuing Training Program for Teachers and Pedagogues is affirmed for producing training paths in the time of teaching work and in the school space. It also assumes the teacher as the subject of his own training and the training of his peers, as an alternative to instrumental rationality and as a solid proposal for training teachers and pedagogues.

Keywords: Continuing teacher education; Pact for the strengthening of secondary Education; High school.

 

RESUMEN

Se trata de un estudio documental que tiene como objetivo comprender las apropiaciones de la escuela como espacio de formación en el tiempo de trabajo, a través del análisis de 86 informes elaborados por coordinadores, asesores y participantes de cursos, entre los años de 2014 y 2015, resultantes del Programa de Formación Permanente de Profesores y Pedagogos, en acuerdo con el Pacto por el Fortalecimiento de la Educación Secundaria. Cuestiona la importancia del Pacto por el Fortalecimiento de la Educación Secundaria para articular la formación con el trabajo docente, a partir del eje de la formación humana integral, basados en los presupuestos teórico-metodológicos de Michel de Certeau (1994) y en los estudios de António Nóvoa (1991, 2002). Como resultado, se afirma la importancia del Programa de Formación Permanente de Profesores y Pedagogos para producir caminos formativos en el tiempo del trabajo docente y en el espacio escolar, tomando al docente como sujeto de su propia formación y de la formación de sus parejas; como alternativa a la racionalidad instrumental y como propuesta sólida para la formación de docentes y pedagogos.

Palabras clave: Formación permanente de profesores; Pacto por el fortalecimiento de la enseñanza secundaria; Enseñanza secundaria.

 

Introdução

            Este estudo analisou a formação continuada oriunda do Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio (Pnem), como proposta institucional de formação no tempo do trabalho na escola, tendo os docentes, ou seja os professores, pedagogos, coordenadores pedagógicos e diretores escolares, que foram cursistas, orientadores de estudo e formadores no Pnem do Espírito Santo, como sujeitos de seus percursos formativos e de seus pares, pautada no eixo da formação humana integral e nos pressupostos teórico-metodológicos de Michel de Certeau, com fito de reconhecermos a escola como um lugar praticado e assumi-la como espaço de formação que tem sido profundamente alterado pelas mudanças do Ensino Médio (Ferreira, 2017).

O conceito de “espaço”, conforme Certeau (1994, p. 201-202), diferencia-se do conceito de “lugar”. Para o autor, “[...] lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha, portanto, excluída a possibilidade, para duas coisas, ocuparem o mesmo lugar” (Certeau, 1994, p. 201). Já o “[...] espaço é um cruzamento de móveis [...] é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. [...] o espaço é um lugar praticado” (Certeau, 1994, p. 201).

Destacamos que a análise visa assumir que uma proposta institucional de formação continuada como a do Pnem tem por fito contrapor-se a uma formação padronizada para um currículo estandardizado, focado em língua portuguesa e matemática, e em testes padronizados pela via dos resultados, promotores da desvalorização da formação docente e pilares do aprofundamento neoliberal no campo (Ferreira, 2017).

A força de uma proposta de formação continuada como institucionalidade de projeto de sistema de ensino em rede nacional requer atenção pela sua relevância enquanto política, uma vez que envolveu todos os profissionais da educação na busca de qualificação desses profissionais. Apresentar o sucesso dos resultados nos impele a analisar, no cenário atual de formação continuada precarizada, que uma institucionalidade, conforme se constituiu o Pnem naquele tempo, deve ser uma experiência de política de formação a ser retomada e assumida como referência que se opõe à percursos formativos com fins de consolidar currículos estandardizados (Ferreira, 2017).

O programa foi um Marco na história da educação brasileira, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Dcnem) de 2012 suscitaram a assinatura do Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio (Pnem), que visava à articulação e à coordenação de ações estratégicas entre a União e os governos estaduais e distrital na formulação e implantação de políticas para elevar o padrão de qualidade dessa etapa da educação básica. Importantes ações desenvolveram-se nesse contexto: o redesenho curricular, por meio do Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI) e o Programa de Formação Continuada de Professores e Pedagogos do Ensino Médio. A rede de formação do Pnem no Espírito Santo (ES) se deu em parceria com as Secretarias Estadual de Educação, com a Universidade Federal do Espírito Santo e Instituto Federal de Educação de Vitória, ES.

A rede de formação era composta pelos Formadores das Instituições de Ensino Superior (IES), que mediaram os estudos dos Cadernos de Formação dos Formadores Regionais que, por sua vez, foram os responsáveis pela formação dos Orientadores de Estudos, cuja função era promover com os Cursistas, os estudos, no espaço da escola, no terço do horário de trabalho destinado à formação profissional, no período de fevereiro de 2014 a outubro de 2015.

Trata-se de um estudo documental, a partir de 86 relatórios, produzidos por coordenadores, orientadores e cursistas (Coordenadores, Professores e Pedagogos), entre os anos 2014 e 2015, na formação do Pnem. Nesse sentido, busca compreender, pela ótica dos profissionais da educação que realizaram, no estado do Espírito Santo, as apropriações da escola como espaço de formação no tempo do trabalho. Para tanto, questiona a importância do Pnem para articular a formação com o trabalho docente, pautada no eixo da formação humana integral.

Para nossas análises, compomos o texto em três unidades temáticas: a) entre as expectativas espetaculares e as experiências de formação vividas pelos docentes; b) práticas de currículo e de formação de professores como direito do ensino médio e; c) escritas docentes como espaço de produção de sentidos e encontros.

Nossos pressupostos teóricos-metodológicos estão ancorados na epistemologia de Michel de Certeau (1994), cuja perspectiva de transformação do estabelecido se dá pelas práticas como táticas, criando espaço onde se estabelece o lugar fixo, estruturado. Com António Nóvoa (1991, 2002), demarcamos a importância da formação na relação com a escola entre pessoal e profissional do professor, de modo que a formação se passa na rede de partilha de experiência, assumindo escola como lócus privilegiado da formação.

 

Perspectivas teóricas

Pressupomos a escola como instituição de integração e justiça social que, nas sociedades democráticas, busca promover a dignidade humana, individual e coletiva, por meio da mediação dos conhecimentos produzidos socialmente, para o exercício do bem comum. O direito à educação como base das políticas sociais, em destaque o ensino médio, pressupõe o acesso das juventudes a percursos formativos múltiplos e diversos, referências para a constituição de identidades cidadãs e da emancipação social.

Nesse processo, a articulação entre as políticas de currículo e as de formação de professores é tomada como exigência para compreender as contradições entre o direito ao ensino médio e a função social da escola nas interfaces entre as dimensões culturais, políticas e econômicas. Essa condição pode contribuir para a perspectiva de uma coesão social frente ao recrudescimento das desigualdades sociais no Brasil, em contraposição à redução do ensino médio a uma funcionalidade restrita ao atendimento ao mercado ou aos testes padronizados de avaliação (Ferreira, Ventorim, Santos, 2017).

Nesse contexto, a identificação das apropriações que transformam práticas em função da variação do tempo, do espaço e dos grupos em que se desenvolvem, dos sujeitos que as interpretam, das condições, das possibilidades, dos modos e efeitos dessa “caça furtiva” marcam, de maneira singular, a prática social, nesse caso, a prática docente do sujeito que se forma e forma o outro (Certeau, 1994).

Compreendemos que o docente ao fazer “[...] uma reapropriação do texto do outro: ele caça ilegalmente aí, ele é transportado, ele se faz plural [...], numa terra que não é a sua” (Certeau, 1994, p. 154), incorpora, a seu modo, sentidos construídos nos espaços onde as formações se instituem, sem se colocar indiferente nem passivo diante da organização das formações que lhes são oferecidas. Em contraposição, repudia um contexto em que lhe restaria apenas o papel de consumidor das políticas e dos produtos formativos propostos pelos mais ativos e poderosos – o Ministério da Educação, a Secretaria de Estado da Educação e as Instituições de Ensino Superior (IES), que ocupam lugares de destaque, produzindo a formação docente como política pública de valorização.

Como afirma Certeau (1994), há uma distinção entre “[...] os espetáculos de estratégias globais e a opaca realidade de táticas locais” (p. 51), o que torna admissível apreender que existe uma distância plausível, entendida como parte do processo e contra os imediatismos dos resultados, entre a elaboração do programa de formação e sua materialização nas apropriações dos professores. Essa distância é a diferença estabelecida entre as expectativas espetaculares (que aparecem, sobretudo, no curto prazo de um governo) e as experiências vividas pelos docentes.  

Baseados na constatação da importância dessa distância entre a materialização do processo formativo e os seus resultados na vivência docente, ousamos tratar aqui de um processo formativo de professores e pedagogos que ocorreu nos anos de 2014 e 2015. 

Tomamos a definição de institucionalização apresentada como aquela que dá ao termo o sentido de promoção e valorização, em níveis institucionais, de espaços coletivos de formação, não se referindo à determinação, de cima para baixo, de instituições de educação, mas, conforme Mariano (2018, p. 153), na “[...] convicção de que os professores, incorporando, a seu modo, sentidos que constroem juntos nos espaços onde as formações se instituem, não são indiferentes nem passivos diante da organização de formações que lhes são oferecidas na rede pública [...]”, buscam a constituição horizontal de “lugares” formativos coletivos.

Destarte, a institucionalização da formação deve ser vista como resposta às ações docentes, no sentido de estabelecerem rupturas tanto com as formas tradicionais de ensinar e aprender como  com um “[...] contexto em que restaria a eles apenas o papel de consumidores das políticas e dos produtos formativos oferecidos pelos mais ativos e poderosos – as IES e o Estado [...]”, que em seus lugares institucionalizados, definem e produzem “[...] a formação docente como política pública de formação e de valorização” (Mariano, 2018, p. 153).

Diante das expectativas de produzir a formação nas escolas, aparecem, graças às táticas dos professores, mudanças nas práticas e nas relações docentes que se apresentam como aquelas escritas e inscritas entre os objetivos, ambas pelas apropriações que fazem dela os docentes envolvidos na formação.

Debater processos formativos no tempo do trabalho docente, a partir da experiência do Pnem, coloca em questão o lugar da formação de professores do ensino médio no cenário dessa etapa educacional após a contrarreforma, bem como os limites impostos pelas institucionalidades que a autorizam, pelos praticantes que a evidenciam e pela produção que a tangencia. Assim, as institucionalidades, os usos do lugar, os percursos de desenvolvimento da profissionalidade e as operações teorizantes, entrecruzam-se nas práticas de formação na escola.

Os conhecimentos revisados no campo da formação continuada de professores, ao criticarem a fragmentação e a descontinuidade de políticas na área e suas vinculações à racionalidade técnica-instrumental pelo currículo do ensino médio, indicam o valor da formação e da teoria/prática cotidiana do professor; a referência ao contexto escolar e seus saberes; a formação como coletividade e partilha de conhecimentos e experiências; o incentivo à consolidação da democracia e autonomia profissional; o espaço da escola como lócus privilegiado da formação continuada; a  formação como integração entre profissão, identidade pessoal e profissional. Apontam, ainda, a formação sustentada na pesquisa e na historicidade do conhecimento, na transformação da escola e na formação como direito do professor, sujeito das práticas de formação continuada desde a sua proposição até a sua avaliação, portanto, na melhoria do sistema público de ensino (Brzezinski, 2014; Astori, 2021; Bitencourt, 2017; 2022; Costa, 2019).

Além disso, a valorização dos professores pela formação institucionalizada, pela questão salarial, pelas condições objetivas de trabalho que envolvem insumos, espaços adequados, gestão pedagógica democrática, participação da comunidade no ambiente educativo e reconhecimento do trabalho dos professores configurou-se como uma cultura profissional que reconhece o professor e seu o trabalho com a garantia do seu direito à formação continuada no contexto do trabalho, mediante a viabilização de políticas educacionais produzidas pelo diálogo entre os profissionais da escola.

A experiência de formação do Pnem propôs uma abordagem integrada e atual do currículo e da formação, distribuindo as disciplinas em áreas do conhecimento e eixos articuladores do conhecimento, na expectativa de promover uma formação humana integral para o jovem do ensino médio, fortalecendo seu protagonismo por meio de práticas curriculares na integração entre a educação e as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura.

Nesse sentido, assumimos a perspectiva de Nóvoa (1992) quando expõe que “[...] a troca de experiências e a partilha de saberes consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de formando” (p. 13). Se for capital o diálogo, a “troca de experiências e a partilha de saberes” entre professores constituem-se, do mesmo modo, movimentos formativos transformadores de sua profissionalidade e entranhados nela, que já traz marcas pessoais de sua existência social (Bitencourt, 2017), sendo necessários à afirmação e à consolidação dos saberes próprios da profissionalidade docente e construídos na prática profissional (Nóvoa, 2009).

Como indica Nóvoa (2002), os professores precisam ter reconhecido o seu papel na articulação das dimensões pedagógica, científica e institucional para o desenvolvimento de uma nova profissionalidade docente com maior responsabilização profissional e possibilidade de uma intervenção autônoma na organização escolar. Assim, pressupomos que a formação faz parte da docência por meio de formação sistematizada e pelo movimento profissional, ou seja, é para além do profissional que se forma, é a pessoa-professor que se transforma. Essa dupla dimensão como direito do professor se deve aos percursos pessoais e coletivos da produção da profissão que tem na escola, em serviço, o campo mais favorável para o seu acontecimento. A composição da formação nessa direção considera a historicidade da profissão e da pessoa, o contexto de trabalho em suas dimensões coletivas, a partilha das experiências e a forte presença dos professores nesse processo.

Isso nos leva a refletir que a formação continuada é mais que uma exigência. É um direito do professor como prática formativa e da própria constituição da política em todos seus contextos. A formação continuada é uma das dimensões mais importantes para a consolidação de uma política de valorização para os profissionais da educação, juntamente com as favoráveis condições de trabalho, salário e carreira e, sobretudo, consolidação de uma educação ética e socialmente referenciada.

 

Aspectos metodológicos

Pela pesquisa documental, Mariano (2018) investigou os 86 relatórios mensais produzidos pelos Formadores Regionais como demarcações de sentidos construídos, propendendo sua compreensão a partir da interação com sua fonte, ou seja, as práticas de formação nas escolas de ensino médio. Em essência, esses relatórios nos possibilitaram interpretar as apropriações que os docentes fizeram dos estudos da formação do Pnem/ES. Prática que, diferente do advindo como determinante de fora da docência, limitado aos itinerários formativos, assume a forte presença dos professores como agentes da produção do processo formativo no amplo grau de coletividade, considerando a organização da escola como espaço de redes de partilha de experiências profissionais.

As escritas nos relatórios não são palavras da ordem, são “[...] o lugar onde se produz o encontro, sempre diferente, entre a palavra já escrita e os novos sentidos que os leitores lhe vão dando” (Certeau, 1994, p. 264). Os relatórios buscaram acompanhar as atividades dos grupos de estudos nas escolas a fim de compartilhá-las com os outros grupos, bem como observar as apropriações dos participantes nos encontros formativos. A composição do texto, diante da interpretação e escrituração dos dados da pesquisa, considera que a escrita é uma prática social que leva em conta as institucionalidades, as leis dos meios, o endereçamento do texto e as posições do real e os discursos acerca da formação, no quais se constituiu o campo da formação continuada direcionada aos professores.

Os relatórios têm estreita relação com o lugar que ocupou a escrita docente no processo formativo do Pnem/ES. Sobre esse lugar, Côco (2014) aponta que a escrita se apresenta como mediadora das relações entre sujeitos e discursos e, em especial, na formação continuada se desenvolve nas relações com várias dimensões da escrita na sociedade e na vida do professor. Para Certeau (1994), a escrita permite, pelos seus mortos, o não dito, a compreensão do lugar social, o contexto e uma prática.

As apropriações foram inferidas a partir de 86 relatórios mensais pelos quais os orientadores de estudo e formadores regionais produziam informações sobre as atividades da formação nas escolas. Assim, traduzimos essa produção em três unidades temáticas de análise a serem problematizadas a seguir, a saber: a) entre as expectativas espetaculares e as experiências de formação vividas pelos docentes, b) práticas de currículo e de formação de professores como direito do ensino médio e, c) escritas docentes como espaço de produção de sentidos e encontros.

 

Entre as expectativas espetaculares e as experiências de formação vividas pelos docentes

Esta unidade temática trata de aspectos da formação continuada, da formação continuada em serviço, do tempo para a formação e da profissionalidade docente e nos mostra que a formação continuada no tempo do trabalho docente encontra desafios para se instituir como referência para as políticas de formação docente no Brasil. A instituição pela lei federal nº 11.738/2008 de 1/3 da carga horária do trabalho docente para atividades de “planejamento coletivo, avaliação e formação dos profissionais do magistério”, compreende, inclusive e principalmente, na rede pública estadual de ensino capixaba, o planejamento de aulas, a elaboração e correção de avaliações, os burocráticos preenchimentos de formulários e relatórios encaminhados pela gestão escolar (planos de ensino, diários eletrônicos ou físicos de conteúdos ministrados, de avaliações dadas, de recuperações de conteúdo aplicadas, de registros de avaliação, entre outros).

Na expectativa de compor processos formativos que ampliassem as demandas de trabalho e fossem passíveis de serem executados no tempo do serviço, o percurso foi organizado de modo a não desqualificar o trabalho em sala de aula e, tampouco, a formação em curso. Todavia, foi demarcado que o tempo destinado ao planejamento é insuficiente para aprofundamentos formativos, pois foi observada uma tendência de simplificação dos registros. O excerto a seguir expressa essas questões:

 

[...] vale ressaltar que a demanda de tempo impede que muitas propostas práticas da formação sejam concretizadas. [...] A principal preocupação dos orientadores é a desistência dos cursistas. Muitos professores estão desistindo do curso e as causas, aparentemente, são: [...] e dificuldade para realização da leitura prévia dos textos. [...] gostaria de ressaltar a importância de formações em serviço para a qualificação e valorização do profissional da Educação. Estamos ainda em adaptação ao modelo de formação proposto e assim que ‘aparadas as arestas’, tenho certeza de que professores, demais profissionais da Educação, alunos e a escola pública só se beneficiaram da capacitação em serviço (Formador Regional 11) (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 - 2015).

 

Os desafios não impediram o envolvimento dos docentes que, se no início da formação titubearam quanto à dificuldade de ter tempo, no percurso, perceberam a importância e a contribuição do processo formativo na escola, participando com afinco: “[...] discutimos a construção do currículo a partir da escola, envolvendo o coletivo escolar, problematizando a própria escola, transformando-a num espaço permanente de troca, avaliação e produção de conhecimentos” (Formador Regional 16) (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 - 2015).

A questão aqui debatida confirma a garantia de participação direta dos professores na composição do percurso formativo como praticantes da profissionalidade, afirmando a sua presença forte na formação docente como rede colaborativa de trabalho, ecoando como produção coletiva do processo. Nesse sentido, ressoamos Nóvoa (2002) ao assumir a escola como espaço de formação continuada, a promoção das aprendizagens interpares como a partilha das experiências requer práticas institucionalizadas que inscrevam os princípios de coletivo e de colegialidade na cultura profissional dos professores como fundamentos para a formação por dentro da profissão (Nóvoa, 2002). Ficou demonstrado que os professores participaram da formação circulando entre movimentos instituídos e instituintes do processo.

Destarte, os participantes avaliaram que tinham muito a contribuir com a formação, exercendo o papel de formadores de seus pares e percebendo esse fazer como integrante da profissionalização do magistério (Nóvoa, 1992). Ainda que fosse reservado aos professores espaços menores, com pouco poder no “jogo da formação” que se configurou, Nóvoa (1992) considera relevante:

 

[...] a criação de redes de (auto)formação participada, que permitam compreender a globalidade do sujeito, assumindo a formação como um processo interactivo e dinâmico. A troca de experiências e a partilha de saberes consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de formando (Nóvoa, 1992, p. 14).

 

As apropriações dos participantes sobre a formação corroboram com Certeau (1994) no que diz respeito aos professores ocuparem um “lugar próprio” na formação de seus pares, no modelo da formação continuada no tempo do trabalho docente. Colocada sob a perspectiva certeauniana, a demarcação desse “lugar próprio”, ou tático, dos professores na formação docente permitir-lhes-ia “[...] capitalizar vantagens conquistadas, preparar expansões futuras e obter assim para si uma independência em relação à vulnerabilidade das circunstâncias” (Certeau, 1994, p. 99).

A formação se consolidou como percurso de formação no espaço do trabalho, em que a prática docente foi vista como prática teórica, reflexiva e crítica, pois,

 

[...] à medida em que tomam conhecimentos teóricos sobre assuntos educacionais pertinentes à formação integral dos educandos, nasce um novo perfil de docente. [...] Os principais avanços qualitativos são as reflexões acerca das atividades que estão sendo desenvolvidas, que servirão de apoio para os docentes melhorarem suas atividades pedagógicas [...] (Formador Regional 16) (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 – 2015).

 

Decerto que a metodologia dialógica, reflexiva e crítica defendida no programa e mediada pelos Cadernos de Formação e outros materiais, bem como os processos coletivos e a partilha de experiência mostraram a potência do percurso. Nessa direção, realçamos que

 

A formação continuada tem proporcionado aos orientadores um desenvolvimento crítico e autônomo, levando-os a reconhecer suas capacidades e limitações, a fim de que possam buscar novos conhecimentos e aprimorar os que são referentes à sua prática. [...] creio que tudo isso tem contribuído para o crescimento pessoal e profissional (Formador Regional 16) (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 – 2015).

 

Esse excerto sinaliza a importância dada à formação pelos atores envolvidos: pressupostos educacionais como formação integral, transformação docente, melhoria de atividades pedagógicas, educação inclusiva atenta aos processos, sem ter as avaliações em larga escala como objetivos. Soma-se a isso, a indicação de que a formação teve como pilar o desenvolvimento da autonomia e da criticidade dos profissionais, como tática “[...] para promover uma profissionalização docente mais sólida e qualificada [...]” (Formador Regional 06) (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 – 2015).

A relação entre profissionalidade e pessoalidade, comprometida com a melhoria do ensino, alerta-nos para a importância de os processos formativos irem para além do desenvolvimento de habilidades e competências ou do “formar”, no sentido estrito, para práticas esvaziadas de sentido, para a promoção do lugar da ordem em detrimento do espaço como lugar praticado, um percurso institucional que se conduz pelo movimento instituinte.

As assertivas dos relatos vão ao encontro daquilo que foi identificado por Bitencourt (2017) ao apontar que as publicações acerca da formação continuada de professores para educação básica sinalizavam fortes críticas às formações aligeiradas, aos programas estruturados que desconsideravam a realidade das escolas e dos profissionais, e a integração entre desenvolvimento profissional imbricado à formação da pessoalidade. Além disso, o mesmo autor destacou a centralidade da formação no ambiente escolar e a força da formação presencial. Dessa forma, Bitencourt (2017, p. 28) afirma que a natureza da profissão docente

 

[...] é a produção de movimentos na construção da profissionalidade pela qual se dá a vida desses profissionais, ampliada por elementos da profissão, tais como os políticos emancipatórios (ações que transformam a profissionalidade e se articulam com a transformação de si e dos sujeitos, intervindo na sociedade), os metodológicos-procedimentais (que dizem respeito às formas de ensinar/aprender, planejar, avaliar, ou seja, àquilo que caracteriza uma das bases da atuação docente), os epistemológicos (em que se produzem e se articulam os conhecimentos sobre a profissão e aquilo que é mediado com os sujeitos no exercício da docência) e os formativos (nos quais se conjugam percursos de formação como a pesquisa e a experiência pessoal e profissional) (Bitencourt, 2017, p. 28).

 

Nessa espiral que caracteriza a trajetória contínua da formação da profissionalidade docente mediada pela promoção de “espaços da prática reflexiva” (Nóvoa, 2002), o Pnem/ES assim se constituiu e pode ser tomado como institucionalidade que corrobora com a formação de professores no espaço da escola e no tempo do trabalho, uma vez que se fundou aberto aos espaços/tempos de planejamento coletivo nas escolas e os transformou em espaços de reflexão das práticas pedagógicas como ação tática que promove o “[...] espaço de discussão onde as práticas e as opiniões singulares adquiram visibilidade e sejam submetidas à opinião dos outros” (Nóvoa, 2002, p. 24), que não admite lugar ordenado, definição de fora para dentro da prática profissional (teoria/prática), nem mesmo a desprofissionalização docente ou um aprisionamento à Base nacional Comum Curricular (BNCC) que se revela como estratégia. 

Em contraposição, sustenta trocas de experiências que atravessam o desenvolvimento profissional de modo a afetar as dimensões epistemológicas e procedimentais do trabalho docente, as interações entre sujeitos e áreas de conhecimento, numa perspectiva de redes de colaboração que vislumbra todos os sujeitos envolvidos nos processos educacionais no ensino médio.

 

Práticas de currículo e de formação de professores como direito do ensino médio

O trabalho docente na perspectiva da formação humana integral no ensino médio pressupõe a produção da profissionalidade por práticas democráticas (teoria/práticas reflexivas e críticas) que superem a fragmentação e a hierarquia do conhecimento escolar, de modo a reposicionar os conceitos de competências e habilidades que, historicamente, estão vinculados aos processos de instrumentalização e padronização das aprendizagens no ensino médio quando, ainda, convivemos com os efeitos da histórica dualidade entre formação geral e formação técnica e profissional, aprofundados pela contrarreforma.

Consideramos que as apropriações dos participantes do Pnem/ES demonstram que os eixos Trabalho, Ciência, Cultura e Tecnologia são pilares que devem se manter integrados, pressupondo ação educativa que forme o estudante do ensino médio brasileiro para viver numa sociedade que apresenta os mais diversos desafios, como expresso na seguinte narrativa:

 

[...] há uma certa preocupação dos cursistas com as áreas de conhecimento e como sua relação com o currículo pode contribuir com a formação integral do jovem. [...] Pouco a pouco a proposta de formação humana integral está sendo compreendida, aceita e posta em prática. [...] os professores chegaram à conclusão de que para uma formação integral e humanizada do aluno, é preciso que a escola seja realmente democrática, onde todos podem participar ativamente das tomadas de decisões e que o aluno se sinta também responsável por suas ações. Não se pode pensar em formação humana, sem considerar o envolvimento de todos nesse processo, uma vez que, a escola é justamente esse lugar de formação e criação do saber consciente, mas que seja acima de tudo transparente e democrático (Formador Regional 13) (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 – 2015).

 

Nessa esteira, a perspectiva de integração curricular nas e entre áreas de conhecimento, a partir dos estudos coletivos dos Cadernos da Formação e do trabalho docente interdisciplinar intencionado, promoveu apropriações de interação entre os professores, como efeitos da interdisciplinaridade e da integração.

Dentre as  possibilidades, os relatórios apontaram diversos acontecimentos que atravessaram o processo formativo, tais como: trocas de experiências entre profissionais de distintas áreas de conhecimento; partilha das impressões acerca do desenvolvimento profissional; planejamento por áreas de conhecimentos; reflexão coletiva das práticas de trabalho docente; maior integração entre as disciplinas; encontros como movimentos táticos e estímulo à interação entre professores e alunos, com aulas mais atrativas, visando à sua formação integral. Apresentamos um excerto das narrativas dos relatórios que evidenciaram tais apropriações

 

[...] Os professores relataram sobre a necessidade de que sejam elaborados, no próximo ano, Planos de Ensino e Proposta Pedagógica já pensando nesta integração das disciplinas. [...] Os principais avanços foram em relação [...] ao trabalho desenvolvido de forma mais interdisciplinar e contextualizada, fortalecendo o trabalho de equipe e a integração dos conteúdos e, consequentemente, das disciplinas (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 – 2015).

 

Essas proposições interligam o tema da interdisciplinaridade, da integração nas e entre as áreas de conhecimento, do trabalho/estudo coletivo e da interação entre professores ao posto por Bitencourt (2017) sobre a importância da formação continuada na escola, na produção de trocas de experiências, movimentos que dinamizam e produzem saberes e integram áreas de conhecimentos nas práticas e nas relações cotidianas tecidas entre os sujeitos da escola. Também corrobora com o que Arroyo diz sobre o que é esperado da escola, que “[...] vai além do ensino profissionalizante e, até, além do domínio do saber sobre o trabalho e do saber sobre os processos e as relações de produção [...]” (Arroyo, 1999, p. 29).

A tecitura entre prática e teoria foi fortalecida pelos estudos. As narrativas evidenciaram que os professores são estimulados pelos estudos que se desdobram em significativas implicações nas aprendizagens dos estudantes, na modalidade regular e na Educação de Jovens e Adultos (EJA). A contextualização dos saberes na realidade dos estudantes, a ruptura com o conteudismo, o desenvolvimento da cidadania, a construção de práticas dialógicas entre professores e estudantes, promovendo a transformação progressiva da prática educativa dos professores (expressas nos projetos e relatórios finais após estudos dos Cadernos de Formação), foram indicações para a compreensão dos processos de tradução das políticas de formação e seus efeitos. O sentido da relação entre formação e práticas pedagógicas vem

 

[...] fornecendo subsídios para melhorar a prática pedagógica e, assim, a qualidade do ensino. [...] a avaliação, antes usada para excluir, atualmente é uma ferramenta extremamente válida para acompanhamento no processo ensino aprendizagem. A avaliação deixa de ser um fim, para ser parte constante do processo. Esse conceito abrange tanto as avaliações internas quanto as externas (Formador Regional 01). (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 – 2015).

 

Nesse sentido, Nóvoa (2009) defende que

 

[...] as nossas propostas teóricas só fazem sentido se forem construídas dentro da profissão, se forem apropriadas a partir de uma reflexão dos professores sobre o seu próprio trabalho. Enquanto forem apenas injunções do exterior, serão bem pobres as mudanças que terão lugar no interior do campo profissional docente (Nóvoa, 2009, p. 19).

 

Esse olhar para a reflexão dos participantes sobre a prática nos mostra transformação nas práticas docentes a partir dos sentidos que construíram dos estudos propostos pelos Cadernos da Formação, na interação entre teoria e prática e na articulação dos conteúdos, conforme também destacado por Ventorim, Ferreira, Brito e Santos (2018).

Os participantes indicaram que os conteúdos trabalhados promoveram a interação entre teoria e prática ao longo da formação, e apontaram possibilidades de articulação contínua dos conteúdos da formação com as diferentes e diversas demandas do trabalho docente, ampliando a problematização de temas para além do âmbito das questões didáticas e das especificidades dos componentes curriculares. Também apontaram que os conteúdos trabalhados permitiram uma análise crítica sobre o que e como ensinar, em sua relação com questões sociais mais amplas; a ampliação e aprofundamento dos conhecimentos e experiências dos professores; a reflexão sobre as práticas pedagógicas e a pesquisa da própria prática docente; e a análise dos processos de decisões das políticas que intervêm no fazer pedagógico.

 

[...] O método de ensino é fundamental para o desenvolvimento do trabalho pedagógico integrado uma vez que possibilita compreensão de significados, de conceitos, levando ao desenvolvimento [sic] no educando. [...] aprofundando conhecimentos sobre a importância do trabalho coletivo, das especificidades características de cada jovem e principalmente do trabalho interdisciplinar como ferramenta da formação integral no Ensino Médio [...] (Formador Regional 16). (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 – 2015).

 

Uma análise dessas respostas positivas nos leva a continuar o diálogo com Certeau (1994), mais especificamente com referência ao conceito de tática indiciadas como “táticas de resistência” dos participantes, dessa vez visando à apresentação do sucesso da formação, provocando a necessidade de formulação de políticas de formação continuada no trabalho docente por proporcionarem apropriações dessas ações formativas em favor de interesses próprios, aqui, demarcados pela proposição da formação na escola, fundamentada na reflexão de suas práticas sobre os sujeitos do ensino médio e suas especificidades.

 

Escritas docentes como lugar de produção de sentidos e encontros

Em todos os Cadernos pode-se encontrar as seções “Saiba Mais”, com informações adicionais como reflexões e interações sobre determinada questão abordada no texto; “Em outras palavras”, com explicações sobre termos utilizados no texto; e “Reflexão e Ação”, com propostas de atividades a serem desenvolvidas pelos cursistas. Esses elementos apresentam-se na forma de caixas de texto coloridas. Não foram observadas ilustrações.

As propostas para o processo formativo incentivaram os cursistas a buscarem alternativas de aplicação prática para que os professores as desenvolvam diariamente na sala de aula. O exemplo disso é a criação de vídeos nas escolas. Pelo material, desenvolve-se a compreensão do contexto social dos estudantes, maiores discussões entre os professores nos momentos de planejamentos. Entretanto, foi apontado como desafio o acesso à internet para colocar em prática atividades propostas.

 

[...] O estudo do caderno 5 gerou uma provocação grande nos cursistas, principalmente os das escolas com pouca ou nenhuma abertura para participação nas decisões da escola. Isso ocorreu pelo fato de o caderno abordar quem são os atores da escola e como eles tem responsabilidade pelos rumos da escola. [...] acredito que o caderno cumpre seu objetivo de despertar, nos cursistas, a necessidade da participação de todos os atores escolares nas decisões tomadas na escola, tirando-os da posição de meros expectadores e tornando-os agentes de melhoria das ações escolares (Formador Regional 01) (Relatórios mensais dos formadores regionais do Pnem/ES, 2014 – 2015).

 

A análise dos relatos mostra que os conteúdos, textos e atividades dos Cadernos de Formação tiveram significativa aceitação pelos participantes, que os consideraram “ricos” e “enriquecedores”; com “temas interessantes que ajudam a compreender melhor a realidade do ensino médio”.

Reiteramos que se pode perceber que os temas trabalhados em cada Caderno de Formação não ficaram limitados nele. Numa aprendizagem em que cada tema é um contínuo do outro, os relatos mostram que as apropriações feitas em um estudo foram usadas em outros e que, apesar de cada Caderno parecer um “módulo”, a compreensão dos participantes não ficou separada em “caixinhas”, transcendendo os Cadernos específicos e se incorporando a outros, formando camadas de sentidos que transformaram, de fato, a escola, em espaço de formação.

Nesse processo, verificamos que os professores levantam questionamentos quanto à significação do texto para sua prática e para a formação docente; e sobre ações desenvolvidas a partir da política. Aqui nos parece pertinente utilizar o conceito de tradução, trazido por Ball e Mainardes (2011), de que a ela estaria vinculada a compreensão do texto dentro dos limites da ação, ocorrendo um processo novo de representação e reordenação sempre que uma nova prática material ou discursiva acontece. Seria um tipo de espaço entre política e prática que viabiliza criar/recriar textos institucionais. Isso é percebido pelas interações e usos que os professores fazem dos textos, alinhando-os com suas experiências e interesses diversos, atravessados pelas suas subjetividades e posicionamentos político-pedagógicos, expressados nas suas proposições.

Nessa esteira, consideramos que os participantes do Pnem exerceram um papel ativo no processo de interpretação e reinterpretação da política de formação, produzindo implicações no processo de sua implementação, enquanto Orientadores de Estudo traduziram as apropriações dos cursistas a partir de suas próprias perspectivas, num jogo de “táticas e estratégias”.

As produções acadêmicas de artigos científicos, trabalho de conclusão de curso de graduação e dissertações de mestrado associados ao Pnem se destacam como importante mecanismo de articulação entre pesquisa e extensão universitária com a educação básica. Destacamos o livro produzido com as diversas categorias de participantes do Programa, sobretudo, com os professores das escolas participantes, intitulado Escritas de Formação Docente: Experiências do Programa de Formação de Professores e Pedagogos do Ensino Médio (Pnem) no Espírito Santo, publicado em 2018 pela Editora Appri.

Quando Nóvoa (2002) elenca aspectos necessários à pesquisa sobre o trabalho pedagógico, encontramos características bem próximas daquelas que encontramos na estrutura da formação do Pnem/ES. Como desdobramento, assumiu-se que

 

[...] é preciso sublinhar que a pesquisa sobre o trabalho pedagógico: (i) não é uma prática “individualizada”, mas sim um processo de escuta, de observação e de análise, que se desenvolve no seio de grupos e de equipas de trabalho; (ii) exige tempo e condições que, muitas vezes, não existem nas escolas; (iii) sugere uma relação forte entre as escolas e o mundo universitário, por razões teóricas e metodológicas, mas também por razões de prestígio e de credibilidade; (iv) implica formas de divulgação pública dos resultados (Nóvoa, 2002, p. 24).

 

Criar condições de reconhecimento da produção do ambiente escolar para além da escola é garantir a interferência na comunidade acadêmica pela escola de educação básica; é uma tática que coloca o docente como protagonista na ampliação da qualidade da educação básica e sua produção como ativo no reconhecimento do status da sua profissionalidade.

 

Considerações finais

Neste estudo, constatamos que a formação continuada em tela cumpriu seus objetivos ao propiciar os subsídios teóricos que nortearam discussões e debates sobre a educação dos jovens capixabas, sujeitos da última etapa da educação básica, o ensino médio, para atender a expectativa de uma abordagem curricular que pretende uma educação integral baseada nos eixos Trabalho, Ciência, Cultura e Tecnologia.

Nessa esteira, os estudos do Pnem retiraram a autonomia da escola do campo do discurso e a colocaram no campo das reflexões para, em seguida, inseri-la no campo da prática, articulando-a com a comunidade acadêmica, desdobrando-se em comunicação científica produzida pelos docentes no percurso da formação, demonstrando a relevância da formação continuada de professores no tempo de trabalho docente e no espaço da escola, constituídos e vividos pela coletividade.

Ter como lócus da formação continuada a sua própria escola, no tempo do trabalho docente, e os professores e pedagogos da rede pública de ensino como sujeitos de sua própria formação e da formação de seus pares pressupõe que esses participantes tenham construído sentidos diversos sobrepostos ou justapostos ao processo de compartilhamento de experiências, e promovido apropriações que transformaram a escola em espaços de formação docente institucionalizada, da sua profissionalidade e da sua pessoalidade, o que afirma a relevância da formação continuada de professores no tempo de trabalho docente e no espaço da escolar, constituídos e vividos pela coletividade.

Sobre as apropriações daquilo que propôs a formação e que a compôs, destacamos que a formação continuada institucionalizada no tempo do trabalho docente constituiu-se uma potencialidade, apontada pelos participantes nos resultados das questões sobre a formação em serviço “ter valido a pena” e na avaliação positiva, em sua grande maioria, do tempo destinado à formação, ainda que o tenham apontado também como uma das dificuldades encontradas para o estudo, o que pode ser entendido como uma “tática” certeauniana para, jogando “com o terreno que lhe é imposto”, num movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, buscar a reflexão dos gestores para a expansão desse tempo destinado à formação no tempo do trabalho docente.

Das apropriações que conseguimos depreender, é possível confirmar nossa hipótese inicial de que os estudos do Pnem, no Espírito Santo, transformaram a prática discursiva em prática reflexiva, possibilitando sua materialização em práticas formativas e contribuindo, dessa forma, para a autonomia do coletivo da escola, supondo que suas apropriações sejam, de fato, a inserção dessa autonomia no campo da prática docente.

Pelo aspecto que considera que o Pnem tenha incorporado em seu rol de ações o fortalecimento da profissionalidade docente, prevendo a formação com professores na função de Formadores Regionais e de Orientadores de Estudos, auxiliados pelos Formadores das IES, o Programa atuou no protagonismo desses profissionais, dando a eles autonomia para buscarem a formação continuada, conciliando o espaço-tempo de trabalho com o espaço-tempo de formação.

Nesse sentido, ainda que o Estado, na busca da melhoria da educação pública e como garantidor do direito à educação, especialmente no que se refere às etapas da educação básica, tenha descontinuado as formações no modelo do Pnem, apontando para um esvaziamento do papel do professor nas políticas de formação docente, esses profissionais buscam produzir modos de fazer os cotidianos das escolas com vistas a assegurar, como ação central, a formação integral e a elevação da escolaridade na forma integrada, afirmando o direito à educação de qualidade de nossas juventudes.

Dessa forma, reiteramos que a efetivação desse direito carece de ações sistêmicas e perenes por parte do Estado, o que passa pela defesa do fortalecimento da escola pública, de forma que as políticas de Estado se sobreponham às políticas de Governo, não permitindo que a qualificação de seus profissionais fique refém das mudanças de governo.

Com o Novo Ensino Médio em curso, perguntamos qual o legado do Programa de Formação Continuada de Professores e Pedagogos do Ensino Médio do Estado do Espírito Santo? Certamente, os dados aqui apresentados não nos permitem aferir, em definitivo, os efeitos de um programa tão amplo e abrangente na formação desses profissionais e todas as apropriações que se fizeram possíveis por eles, e nem era essa a nossa intenção.

Nosso objetivo é contribuir para os estudos no campo da formação continuada de professores, pois, ainda que haja diversos modelos formativos, a formação do Pnem compilou características que lhe garantem certa peculiaridade, ao menos no que se refere à política estadual de formação de professores do Brasil e, em especial, do Espírito Santo, seja a formação que assume o professor como sujeito partícipe de sua própria formação e da formação de seus pares, seja a formação no tempo do trabalho docente, com a escola como espaço com “[...] operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. “[...] o espaço é um lugar praticado” (Certeau, 1994, p. 201).

Destacamos também a importância de a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) estar envolvida nesse processo, juntamente com o Ministério da Educação e a Secretaria Estadual de Educação, uma vez que é ela a principal agência de formação inicial dos profissionais da educação básica capixaba. A relevância dessa participação se amplia quando consideramos o valor das pesquisas acadêmicas e a contribuição que a pós-graduação pode dar na sistematização dos dados de programas de formação de professores do Espírito Santo e do Brasil.

Frente à análise dos dados, desvelam-se, apesar da descontinuidade do Pnem e da não implementação de nenhuma outra política pública de formação de professores e pedagogos do ensino médio em meio à turbulenta reforma dessa etapa da educação básica (Lei nº 13.415/2017), apropriações dos participantes da formação do Pnem no Espírito Santo, enquanto política de formação continuada de professores, na perspectiva da formação no tempo do trabalho docente, tendo a escola como espaço de formação docente e os professores no papel de formadores de seus pares e de si mesmos. A confirmação empírica dos resultados

 

[...] poderá vir a ser demonstrada em pesquisas que adentrem os espaços praticados pelos participantes do Pnem/ES, apontando ações promovidas a partir das reflexões e dos usos e apropriações feitos nessa formação, depois de seu encerramento, pelos usos que delas fizeram em suas práticas pedagógicas, na perspectiva de uma formação que se faz contínua no diálogo com o trabalho docente (Mariano, 2018, p. 186).

 

Afirmamos que formações continuadas que trazem, em sua estrutura, características como as do Pnem podem contribuir com a qualificação de professores, fornecendo subsídios para deflagrar políticas públicas de valorização do magistério, dentre as quais as políticas de formação continuada de professores, sobretudo na articulação das dimensões da formação na escola, no tempo do trabalho docente e do professor que se forma e forma seus pares, como política de formação e valorização desses profissionais.

 

Referências

ARROYO, M. G. As relações na escola e a formação do trabalhador. In: FERRETTI, C. J.; SILVA, J. R.; OLIVEIRA, N. S. Trabalho formação e currículo: para onde vai a escola? São Paulo: Xamã, 1999.

 

ASTORI, F. B. S. Apropriações epistemológicas praticadas nos trabalhos da ANPEd sobre formação continuada de professores (2008 – 2019). 2021. 448 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2021.

 

BALL, S.; MAINARDES, J. Introdução. In: BALL, S.; MAINARDES, J. (orgs.).  Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2011, p.11-18.

 

BITTENCOURT, J. F. A formação continuada de professores na educação infantil: diálogos entre a produção acadêmico-científica e a pesquisa-formação. 2017. 384 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017.

 

BRZEZINSKI, I. Formação de profissionais da educação (2003-2010). Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2014.

 

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. de Ephraim Ferreira Alves. Nova edição, estabelecida e apresentada por Luce Giard. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

 

CÔCO, V. A dimensão formadora das práticas de escrita de professores. 1 ed. Curitiba, PR: CRV, 2014.

 

COSTA, L. S. Formação continuada de professores na produção acadêmica dos Endipes e as práticas de formação na escola: contextos em diálogos. 2019. 231 f. Dissertação (mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019.

 

FERREIRA, E. B. A contrarreforma do ensino médio no contexto da nova ordem e progresso. Educ. Soc., Campinas, v. 38, n. 139, p. 293-308, abr.-jun., 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/cLyHwCQFR8r97gxFCJtcGHM/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 20 ago. 2022.

 

FERREIRA, E. B.; VENTORIM, S.; SANTOS, W. Políticas em disputa no ensino médio: um consenso excludente? Poiésis - Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação (Unisul), v. 10, p. 148-166, 2016. Disponível em: http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Poiesis/article/view/3880. Acesso em: 27 jul. 2022.

 

MARIANO, C. S. A escola como espaço de formação docente: experiências do Pnem no Espírito Santo. 2018. 223 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação, Vitória, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufes.br/handle/10/10401. Acesso em: 30 ago. 2022.

 

NÓVOA, A. Concepções e práticas de formação contínua de professores. In: NÓVOA, A. Formação Contínua de Professores: realidades e perspectivas. Aveiro: Universidade de Aveiro, 1991. p. 15-38.

 

NÓVOA, A. Formação de professores e formação docente. In: NÓVOA, Antônio. Os professores e a sua formação. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992.

 

NÓVOA, A. Para uma formação de professores construída dentro da profissão. Revista de Educación, v. 350, p. 203-218, 2009. Disponível em: http://www.revistaeducaci on.educacion.es/re350/re350_09por.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.

 

NÓVOA, A. O espaço público da educação: imagens, narrativas e dilemas. In: Espaços de educação, tempos de formação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. pp. 237-263. Disponível em: http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/4797/1/9723109 565_1 _30.pdf. Acesso em: 20 ago. 2022.

 

RELATÓRIOS MENSAIS DOS FORMADORES REGIONAIS DO PNEM/ES. Dispõem sobre as atividades da formação continuada do Pnem/ES no espaço das escolas públicas estaduais do Espírito Santo, 2014 – 2015 (Não publicados).

 

VENTORIM, S.; FERREIRA, E. B.; BRITO, R. S.; SANTOS, W. Programa de Formação Continuada de Professores e Pedagogos do Ensino Médio no Espírito Santo: trajetórias e conquistas para uma formação humana integral. In: VENTORIM, S.; FERREIRA, E. B.; SANTOS, W. (Orgs.). Escritas de Formação Docente: Experiências do Programa de Formação de Professores e Pedagogos do Ensino Médio (Pnem) no Espírito Santo. Curitiba: Appris, 2018.

 

CC.png 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)