A dimensão ontológica do trabalho pedagógico na qualidade de atividade imaterial e improdutiva
The ontological dimension of pedagogical work as an immaterial and unproductive activity
La dimensión ontológica del trabajo pedagógico como actividad inmaterial e improductiva
Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
luziane.bim@gmail.com
Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil
tucupi@uol.com
Recebido em 25 de agosto de 2023
Aprovado em 18 de setembro de 2022
Publicado em 08 de julho de 2025
RESUMO
O artigo objetiva discutir as dimensões ontológicas do trabalho pedagógico na qualidade de atividade imaterial e improdutiva, tendo em vista os elementos constitutivos do modo de produção utilizados para estabelecer novas formas de envolvimento e captura da subjetividade humana, submetidos à lógica do capital. Constitui um recorte da revisão bibliográfica decorrente de uma pesquisa desenvolvida em nível doutoral, fundamentada no materialismo histórico dialético, que funda-se no imperativo do modo de produção social da existência. Nesse recorte, ampara o seu trajeto metodológico na pesquisa bibliográfica, por meio do aprofundamento conceitual de categorias analíticas, em que elege o trabalho como categoria central de análise, para subsidiar a investigação sobre o trabalho pedagógico no contexto contemporâneo de reestruturação produtiva, a partir dos contributos marxianos e marxistas. O resultado da análise indica que o trabalho pedagógico sofre uma reificação do capital de um modo menos desumanizado quando comparado a outros tipos de trabalho imaterial, podendo contribuir com a sua lógica de produção e reprodução societal. Com efeito, conclui-se que, diante de sua singularidade e sentido ontológico, não perde a finalidade de produzir a emancipação humana, devendo evidenciar os mecanismos de dominação ideológica da sociedade burguesa.
Palavras-chave: Trabalho; Trabalho pedagógico; Emancipação.
ABSTRACT
This article aims to discuss the ontological dimensions of pedagogical work as an immaterial and unproductive activity, considering the constitutive elements of the mode of production used to establish new forms of involvement and capture of human subjectivity, subject to the logic of capital. It constitutes an excerpt from the bibliographical review resulting from a research developed at the doctoral level, based on dialectical historical materialism, which is based on the imperative of the mode of social production of existence. In this excerpt, it supports its methodological path in bibliographical research, through the conceptual deepening of analytical categories, in which it elects work as the central category of analysis, to subsidize the investigation on pedagogical work in the contemporary context of productive restructuring, based on Marxian and Marxist contributions. The result of the analysis indicates that the pedagogical work suffers a reification of capital in a less dehumanized way when compared to other types of immaterial work, being able to contribute to its logic of production and societal reproduction. Indeed, it is concluded that, given its uniqueness and ontological meaning, it does not lose the purpose of producing human emancipation, and must highlight the mechanisms of ideological domination of bourgeois society.
Keywords: Work; Pedagogical work; Emancipation.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo discutir las dimensiones ontológicas del trabajo pedagógico como una actividad inmaterial e improductiva, considerando los elementos constitutivos del modo de producción utilizado para establecer nuevas formas de participación y captura de la subjetividad humana, sujetas a la lógica del capital. Constituye un extracto de la revisión bibliográfica resultante de una investigación desarrollada a nivel doctoral, basada en el materialismo histórico dialéctico, que se fundamenta en el imperativo del modo de producción social de la existencia. En este extracto, sustenta su trayectoria metodológica en la investigación bibliográfica, a través de la profundización conceptual de categorías analíticas, en las que elige el trabajo como categoría central de análisis, para subsidiar la investigación sobre el trabajo pedagógico en el contexto contemporáneo de reestructuración productiva, con base en los aportes marxistas y marxistas. El resultado del análisis indica que el trabajo pedagógico sufre una cosificación del capital de manera menos deshumanizada en comparación con otros tipos de trabajo inmaterial, pudiendo contribuir a su lógica de producción y reproducción social. En efecto, se concluye que, dada su singularidad y significado ontológico, no pierde el propósito de producir la emancipación humana, y debe resaltar los mecanismos de dominación ideológica de la sociedad burguesa.
Palabras clave: Trabajar; Trabajo pedagógico; Emancipación.
Introdução
A sociedade contemporânea vivencia um conjunto de transformações políticas, econômicas e culturais, decorrentes da crise estrutural experimentada pelo capital que, estrategicamente, busca resposta para o seu fortalecimento, assentada no neoliberalismo e na reestruturação produtiva de acumulação mundial, flexível e desregulamentada. Isso tem acarretado mudanças no mundo do trabalho, dada a complexa relação que assume a materialidade da produção capitalista, conduzida pela lógica destrutiva da relação entre o homem e a natureza, na busca incessante do lucro.
Com o incremento da tecnologia na reorganização do ciclo produtivo e a inserção do trabalhador polivalente, multifuncional e flexível, houve um maior índice de produtividade, com um menor contingente de força de trabalho. Como consequência, o desemprego em dimensão estrutural, a precarização do trabalho de modo ampliado e a destruição da natureza em escala globalizada tornaram-se traços constitutivos dessa nova fase produtiva, além da nefasta desregulamentação dos direitos trabalhistas, ampliação dos serviços terceirizados e enfraquecimento dos sindicatos de classe (Antunes, 2009).
Na medida em que ocorre a expansão e a reorganização da nova forma de acumulação, as atividades desenvolvidas pelo trabalho imaterial (intelectual) vão sendo incorporadas no trabalho material (manual) causando sua intensificação. Desta forma, com a introdução do trabalho imaterial na linha de produção, não só a energia do corpo é expropriada, como também, a energia psíquica, da subjetividade humana (Grisci, 2008; Gouveia, 2018). Essa tendência ajustadora de comportamento não ocorre apenas com as formas de trabalho produtivo, mas também, ainda que, em menor proporção, ao trabalho improdutivo (não produz mais valia diretamente), a exemplo do trabalho pedagógico que é o foco da nossa discussão.
Mesmo com a captura da subjetividade do trabalhador, a força ideológica que o trabalho produz na sociedade contemporânea para participar do processo de valorização do capital é parte intrínseca do mecanismo de produção e não se sobrepõe ao valor do trabalho, confirmando a centralidade da atividade laborativa, defendida pela corrente de pensamento marxista, em razão da ampliação, heterogeneização e complexificação da classe-que-vive-do-trabalho[1], encontrar “alternativas” em garantir a sua produção material. O trabalho produz os meios de subsistência do ser social, estando presente em todas as formas de sociabilidade humana e não altera a sua base ontológica, apenas a sua forma.
O artigo objetiva discutir as dimensões ontológicas do trabalho pedagógico na qualidade de atividade imaterial e improdutiva, tendo em vista os elementos constitutivos do modo de produção utilizados para estabelecer novas formas de envolvimento e captura da subjetividade humana, submetidos à lógica do capital.
A compreensão da dimensão ontológica do trabalho pedagógico – práticas educativas de cunho administrativo e pedagógico desenvolvidas no ambiente escolar –, como atividade que mobiliza a produção de ideias, conceitos, valores, atitudes, habilidades, que se constitui como improdutiva sob o ponto de vista do capital, torna-se potente diante de um contexto gerencialista da educação pública para afirmar a sua finalidade de formação voltada à emancipação humana.
O estudo decorre de um recorte da revisão bilbiográfica realizada em uma pesquisa em nível doutoral sustentada no materialismo histórico dialético. Esse recorte representa o aprofundamento conceitual de categorias analíticas, pertinentes à apreensão do objeto em questão. Portanto, elege o trabalho como categoria central de análise, tomando como base nos contributos marxianos e marxistas para sustentar teoricamente que o trabalho pedagógico possui na sua essência uma ontologia inegociável.
O referencial teórico metodológico utlizado com o uso da pesquisa bibliográfica em consonância com materialismo histórico dialético, funda-se no imperativo do modo de produção social da existência. Assim, “a condição para a efetivação do verdadeiro ser humano coloca-se na transformação das condições e instituições que alienam o trabalho e o trabalhador” (Martins, 2006, p.13, grifo das autoras). Por conseguinte, o trabalho pedagógico que se organiza dentro do espaço escolar público, num processo contínuo de relações determinadas pelo contexto social e histórico, poderá realizar, no movimento dialético, a ruptura e a mudança da realidade em função da sua natureza e especificidade, para a construção de uma nova sociabilidade.
Para tanto, o artigo, no primeiro momento, fundamenta a discussão sobre ontologia, singularmente humana do trabalho e a busca da preservação de suas funções vitais, seguida da forma peculiar que o trabalho assume no modo de produção capitalista, com a introdução de elementos fetichizadores e alienantes de controle social metabólico ao imperativo absoluto de expansão do capital e, no terceiro momento, aborda a dimensão ontológica do trabalho pedagógico como atividade imaterial e improdutiva, que se constitui na processualidade histórica das relações sociais capitalistas, num espaço de disputa para afirmar a sua natureza, especificidade e finalidade social.
O trabalho como atividade ontológica humana
O trabalho é o primeiro ato histórico da existência humana em que o homem realiza a produção dos meios para satisfazer suas necessidades básicas, a produção da própria vida material. Na perspectiva marxiana, o trabalho configura-se como uma categoria central e fundante, possuindo uma dimensão ontológica de criação do ser social, pois o homem ao transformar a natureza para garantir a sua sobrevivência, transforma a si próprio e torna-se humano.
Para Marx (2011), a apropriação da natureza para produzir valores de uso – produto do trabalho humano, utilizado de maneira útil para a reprodução da sua existência – é um modo natural do metabolismo entre o homem e a natureza, condição eterna da vida humana. Devido a sua essência ontológica, o trabalho estabelece um claro caráter transitório de inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, do ser meramente biológico ao ser social. Em razão de ser uma atividade fundante do ser social, o trabalho não se reduz somente à transformação da natureza, mas à transformação do próprio homem que age sobre ela para realizar o seu objetivo.
Desta forma, os homens “[…] criam os objetos que devem satisfazer as suas necessidades e igualmente os meios de produção destes objetos, dos instrumentos às máquinas mais complexas” (Leontiev, 2004, p. 286). Por sua própria ação, na produção da sua existência, o homem, com a ajuda dos meios de trabalho, transforma, medeia, regula e controla a natureza, diferentemente, das formas instintivas da ação animal.
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente (Marx, 2011, p. 188).
Diferentemente da ação animal, a atividade humana possui uma prévia ideação consciente e orientada para um fim. Ao invés de simplesmente adaptar-se à natureza, como são as operações de trabalho realizadas pela aranha e pela abelha (inconscientes), conforme a citação, mesmo sendo executadas com exímia qualidade, os homens adaptam a natureza a si. Assim, por meio do trabalho, no movimento constante de busca da produção e reprodução da vida, a consciência do ser social evolui objetiva e subjetivamente, superando a mera adaptação ao ambiente como acontece com a existência animal e passando a assumir uma atividade autogovernada.
A superação da animalidade e a elevação da consciência epifenomênica (mera adaptação ao meio ambiente) determinada de modo meramente biológico alcançam assim, com o desenvolvimento do trabalho, intensificação inexorável, uma tendência à universalidade dominante (Lukács, 2013). Esse processo, resulta de “[…] um pôr teleológico [capacidade humana de a ação visando um fim] que, previamente, o ser social tem ideado em sua consciência, fenômeno este que não está essencialmente presente no ser biológico dos animais” (Antunes, 2009, p. 138), e configura-se como referência para toda práxis social.
Na visão marxiana, o trabalho é a única forma onde se pode demonstrar, ontologicamente, um pôr teleológico como momento concreto da realidade material. Pela ação exercida exclusivamente pelo homem, por intermédio do trabalho, o ser social distingue-se de sua própria base e torna-se autônomo na contínua realização de pores teleológicos – guiados através da consciência ao estabelecer previamente um fim (Lukács, 2013).
Nos estágios societais, a posição teleológica primária (estatuto ontológico fundante do trabalho), estabelecida pela relação direta do homem com a natureza, amplia-se para outras relações estabelecidas com os seres sociais (posição teleológica secundária), numa esfera mais autônoma e desvinculada da posição anterior (sem eliminá-la), operando formas mais desenvolvidas da práxis social.
No constante processo de complexificação da práxis social surge a necessidade de o sujeito afastar-se do objeto, diferenciando-se um do outro na criação da esfera do ser social e este distanciamento entre ambos é necessário para garantir as condições objetivas e subjetivas da afirmação de sua existência humana, cujas expressões mais elaboradas seriam a ciência, a arte e a filosofia (Pereira; Campos, 2020). Mas é no ato laborativo que se encontra a base originária de todas as determinações constitutivas da essência do ser social.
O trabalho constitui-se numa categoria central e fundante, protoforma do ser social, porque possibilita a síntese entre teleologia e causalidade, que dá origem ao ser social. O trabalho, a sociabilidade, a linguagem, constituem-se em complexos que permitem a gênese do ser social […]. No trabalho o ser se expõe como subjetividade (pelo ato teleológico, pela busca de finalidades) que cria e responde ao mundo causal (Antunes, 2009, p. 156, grifos do autor).
O trabalho, materializado no agir humano, é guiado por uma necessidade evolutivamente social, tanto na esfera da necessidade quanto da liberdade, intimamente imbricado com a sociabilidade e a linguagem, num ciclo constante de relações novas, organizadas entre os próprios homens, em complexos que transcendem a atividade laboral. O trabalho é a categoria que realiza a síntese entre teleologia e causalidade no preenchimento das incessantes necessidades do ser social de existir, mas não se resume exclusivamente a ele. O ser social origina-se do trabalho, realiza inúmeras mediações complexas, transcendendo-o.
Segundo Lukács (2013), a busca pela autorrealização individual e coletiva é uma característica genuinamente humana, voltada para o processo de sua humanização, em que utiliza a liberdade como primeira aproximação ao ato de consciência, um desejo de modificar a realidade. A liberdade, na condição de característica do homem que vive e age socialmente, encontra-se determinada, calcada em circunstância concreta, pois pelo processo de auto atividade e auto controle, o ser social produz-se a si mesmo como gênero humano.
Dessa forma, a natureza humana decorre da escolha da alternativa (liberdade) mais adequada que os próprios homens fazem por meio do trabalho em cada momento histórico (Marx, 2011) e o modo como produzem os seus meios de vida, depende das condições materiais existentes de sua produção, determinando o seu desenvolvimento, na condição de ser que vive em sociedade, sobretudo, porque “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx; Engels, 1996, p. 37). Contudo, se as circunstâncias fazem os homens na reprodução da sua existência, são os mesmos homens que fazem as circunstâncias, podendo modificá-las.
Historicamente, as mediações de primeira ordem – baseadas na preservação das funções vitais da reprodução individual ou societal –, foram sobredeterminadas pelo advento das mediações de segunda ordem – constitutivas do capital, do trabalho e do Estado –, subordinando as funções mais básicas de necessidades dos indivíduos às funções reprodutivas do valor de troca (quantidade de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria), inseparável da atividade produtiva industrial. Assim, ocorre a subsunção do trabalho ao capital, encontrando suas condições de reprodução nos seguintes elementos: a) separação e alienação entre o trabalhador e os meios de produção; b) imposição de condições objetivadas e alienadas sobre os trabalhadores, como um poder separado que exerce o mando sobre eles; c) personificação do capital como um valor egoísta; d) equivalente personificação do trabalho destinado a reduzir a identidade do trabalhador a funções produtivas fragmentadas (Antunes, 2009), tratadas analiticamente no próximo tópico.
A forma de trabalho adquirida no modo de produção capitalista
Na perspectiva de Marx (2011), o trabalho é uma atividade existente em qualquer tipo de sociabilidade, que diz respeito unicamente ao homem, no qual ganha determinação histórica e construção social. Na condição de processo destinado a satisfazer as necessidades vitais humanas, criador de valor de uso, é trabalho útil e concreto e, quando destinado à acumulação e reprodução do capital, inerente ao modo de produção capitalista, em que predomina o valor de troca e a produção da mais-valia – produto específico gerado pela troca com o trabalho produtivo, socialmente determinado com vistas à valorização do capital –, é trabalho abstrato.
O trabalho abstrato não deixa de atender às necessidades vitais do homem, mas converte-se em trabalho alienado, porque reduz a capacidade da produtividade humana a uma mercadoria a ser vendida como força de trabalho[2] em troca de um salário. A força de trabalho, quando vendida, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso, transformando-a em suporte material do valor de troca e da produção do lucro. Desta forma, “o trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria [...]” (Marx, 2008, p. 80, grifo do autor), que assume uma existência externa, aparecendo estranho a seus produtores, como se não lhes pertencesse. A propriedade das condições de produção não é do sujeito que produz a mercadoria,
elas agora pertencem a um ‘ser estranho’ reificado que confronta os produtores com suas próprias demandas e os subjuga aos imperativos materiais de sua própria constituição. Assim, a relação original entre o sujeito e o objeto da atividade produtiva é completamente subvertida, reduzindo o ser humano ao status desumanizado de uma mera ‘condição material de produção’ (Mészáros, 2011, p. 611).
A necessidade do sistema capitalista em manter o controle do processo produtivo, reduz a relação original existente entre o sujeito e o objeto à mera condição material de produção – subjugando a constituição do trabalhador –, desumanizando-o sob quaisquer circunstâncias na absorção de trabalho não pago – mais-valia (Marx, 1978, 2011). Assim, mediante a venda da força de trabalho, o seu valor de uso e o seu produto pertencem ao capitalista, que “incorpora o próprio trabalho como fermento vivo aos elementos mortos que constituem o produto” (Marx, 2011, p. 193), e sob esta condição, o trabalhador não só deixa de constituir-se como o produto do seu trabalho, como potencializa a sua própria exploração.
Vale destacar que no processo capitalista de produção, somente é produtivo, aquele trabalhador que emprega a sua força de trabalho na criação de mais-valor que o custo da produção, gerando o lucro para o capitalista; o trabalhador que não produz mais-valor não é produtivo em relação à geração imediata de lucro. A definição de trabalho produtivo e trabalho improdutivo não deriva do seu conteúdo, natureza e especialidade manual ou intelectual, mas do tipo de relação mantida entre o trabalhador e a produção capitalista. Marx demonstra que um trabalhador fora da esfera da produção material, como é o caso de um mestre-escola[3], “é um trabalhador produtivo se não se limita a trabalhar a cabeça das crianças, mas exige trabalho de si mesmo até o esgotamento, a fim de enriquecer o patrão” (Marx, 2011, p. 382).
Mediante essa lógica, o que caracteriza a relação social de produção do trabalho produtivo e improdutivo, é a produção ou não de riqueza imediata, respectivamente. Apesar de o trabalho improdutivo não gerar riqueza imediata porque não tem a propriedade de acrescentar mais valor como uma mercadoria, possui um valor social e realiza-se na satisfação das necessidades dos seus compradores, a exemplo dos serviços executados por trabalhadores não produtivos, independentemente, de ser assalariado ou não. Não obstante, os trabalhos produtivo e improdutivo são imprescindíveis para a funcionalidade organizativa do sistema capitalista.
Quando ocorre a expansão e a reorganização do capital, as atividades desenvolvidas pelo trabalho improdutivo são também incorporadas no trabalho produtivo. A crescente imbricação das duas dimensões básicas do trabalho e a consequente redução do trabalho improdutivo, desobriga o capital de arcar com uma parcela de trabalhadores que não participa diretamente da criação de valores (Antunes, 2009). O capital não elimina a totalidade do trabalho improdutivo, entretanto, reduz e realoca parcelas dessas atividades que passam a ser realizadas pelo próprio trabalhador produtivo. Essa é a tendência ocorrida no mundo do trabalho contemporâneo – a expansão da dimensão intelectual do trabalho –, com a interação do trabalho material e imaterial, tanto na indústria como no setor de serviços.
Saviani (2011), apoiado em pressupostos marxianos, define a rubrica “trabalho material” como a garantia da subsistência material humana com a consequente produção, em que os objetivos reais da ação precisam ser mentalmente antecipados, incluindo o aspecto do conhecimento do mundo, como a ciência, a ética e a arte. Esses aspectos, abrem a perspectiva de uma outra categoria de produção, traduzida pela rubrica “trabalho não material”, como a produção de ideias, conceitos, símbolos, habilidades, atitudes e valores. Na produção não material ou imaterial, o homem realiza duas distintas modalidades: uma, em que o produto se separa do produtor (havendo intervalo entre produção e consumo) e, outra, em que o produto não se separa do ato de produção – a educação.
As primeiras formas de conhecimento só surgiram em decorrência das necessidades do trabalho humano, fornecendo a base concreta para os progressivos avanços do conhecimento científico (Pereira; Campos, 2020), alterando formatos anteriores de produção da existência humana. Por essa razão, a ciência passa a cumprir uma função no trabalho e no ser social, mas na necessidade preponderante de valorizar o capital, não se constitui como a principal força produtiva (Antunes, 2009).
Como resultado da relação estabelecida entre trabalho e ciência, no início do século XX, surgem os princípios da administração científica criados por Frederick W. Taylor, com o objetivo de descrever o aumento de produtividade do trabalho a partir da decomposição de cada processo “em movimentos componentes e da organização de tarefas de trabalho fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento” (Harvey, 2008, p. 121), separando as atividades intelectuais destinadas à gerência científica, das atividades manuais, a serem executadas pelos operários.
Taylor pressupunha uma cooperação recíproca entre capital e trabalho, mediante uma aparente divisão equitativa de responsabilidades entre dois sujeitos (direção e operários) histórica e politicamente desiguais, que no interior do processo produtivo realizavam um projeto de poder, reordenando a subjetividade da classe trabalhadora (Antunes; Pinto, 2017).
Na perspectiva de desenvolver estratégias mais dinâmicas de produção a partir das táticas produtivas do taylorismo na indústria automobilística, Henry Ford desenvolveu um modelo de padronização que visava elevar os lucros e reduzir os custos de produção, com a inserção de esteiras rolantes na linha de montagem que fixava os trabalhadores nos postos de trabalho, na descrição das tarefas com tempo e modo de execução e na especialização de tarefas e produção em massa (Antunes; Pinto, 2017).
Ford reconheceu, explicitamente, que a produção em massa significava consumo em massa, inaugurando uma nova relação entre capital e trabalho, uma política nova de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia (Harvey, 2008).
O fordismo impunha uma disciplinarização do trabalhador, não somente no local de trabalho, mas fora dele, de modo a garantir a manutenção do regime de acumulação funcionando, como o consumo dos produtos gerados em massa por suas fábricas.
No período pós-guerra, a produção necessitava de condições estáveis para a lucratividade, contava com o Estado para compensar as falhas de mercado e assumir uma variedade de obrigações, como o controle dos ciclos econômicos conjugado com políticas monetárias e fiscais nas áreas de investimento público (transporte, seguridade social, assistência médica, educação, habitação, etc.) (Harvey, 2008).
Para Antunes (2009), a fusão da organização científica taylorista do trabalho na indústria automobilística com o fordismo representou a forma mais avançada da racionalização capitalista do processo de trabalho. O taylorismo-fordismo favoreceu produtividade em grande escala na indústria e, ao mesmo tempo, reduziu a ação do operário a um conjunto repetitivo de tarefas, operando “uma expropriação intensificada do operário-massa, destituído de qualquer participação na organização do processo de trabalho” (Antunes, 2009, p. 39).
Diante da incapacidade de conter as contradições inerentes ao metabolismo do capital, resultante do seu próprio movimento cíclico de acumulação, pois não advém de algo externo, como explica a ideologia neoliberal (Frigotto, 2010), esse modelo produtivo, estruturalmente comprometido, ergue sinais de crise[4] no início dos anos de 1970, dando início a um novo modelo instituído a partir do regime de acumulação flexível, sem transformar os pilares basilares do seu modo de produção. O “toyotismo[5]” apoia-se na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados, dos produtos e dos padrões de consumo. Para tanto, rompe com o mecanismo da parcelização e repetitividade do trabalho predominantes na produção fordista/taylorista, mantendo o apelo ao produtivismo e ao trabalho alienado, controlado pelo próprio trabalhador, por meio de um intenso processo de privatização de subjetividade que manipula as instâncias psíquicas do desejo e da culpa (Fávero; Bechi, 2020).
O toyotismo, instaura uma “nova” forma de organização industrial e de relacionamento entre capital e trabalho, aparentemente mais favorável quando comparada ao taylorismo/fordismo, por possibilitar o advento de um trabalhador mais qualificado (sentido falacioso, utilitário e à disposição do capital), participativo, multifuncional, polivalente no ambiente laboral, mas, na realidade, essa participação manipula e preserva as condições do trabalho alienado e estranhado, objetivando a redução do tempo de produção (Antunes, 2009), o que intensifica o trabalho e as potencialidades do trabalhador, reduzindo ou
eliminando tanto o trabalho improdutivo, que não cria valor, quanto suas formas assemelhadas, especialmente nas atividades de manutenção, acompanhamento, e inspeção de qualidade, funções que passaram a ser diretamente incorporadas ao trabalhador produtivo (Antunes, 2009, p. 55).
Em decorrência da substituição dos rígidos padrões espaço-tempo do modelo fordista, aliado às possibilidades oriundas das novas tecnologias da informação e comunicação, somada à instalação de modos sutis de controle (Grisci, 2008), ocorre a incorporação do trabalho improdutivo na linha de produção, provocando a fusão entre trabalho material e imaterial, em que intensificam o tempo de trabalho e moldam a subjetividade humana.
Isso aumenta a dimensão ativa do trabalho porque o novo maquinário demanda maior interação com a subjetividade do trabalhador, inclusive com a transferência de parte do seu saber intelectual para as máquinas informatizadas, que se tornam mais inteligentes a ponto de realizar parte do seu trabalho (Antunes, 2009). Nesse processo, há uma exploração ampliada, que reconhece e extrai do trabalhador uma potencialidade extra, fonte de mais valor extra, a saber, sua capacidade subjetiva, seu conhecimento (Gouveia, 2018).
Essa relação contraditória entre capital e trabalho acentua-se, na contemporaneidade, com o advento da Indústria 4.0, que é mais um passo na reestruturação produtiva, com vistas à autovalorização das corporações globais. É caracterizada como Era da comunicatividade e da interconectividade, por permitir a ampliação dos processos produtivos, mais automatizados e robotizados em toda a cadeia de valor, numa logística empresarial controlada digitalmente (Antunes, 2020), de modo a invisibilizar e, ao mesmo tempo, ampliar uma parte expressiva da classe-que-vive-do-trabalho, principalmente no setor de serviços.
Com a Indústria 4.0, novos formatos laborais são criados, mediados por aplicativos e plataformas digitais, “numa aparente relação de não trabalho e, portanto, de não exploração” (Previtali; Fagiani, 2020, p. 217), desenvolvidos total ou parcialmente à distância, de forma uberizada – realizados e remunerados sob demanda e mediação de um aplicativo, sem limite de tempo e qualquer garantia de direito trabalhista. A ilusória existência de liberdade, diante da suposta ausência da figura do patrão, funciona como mecanismo de sujeição do trabalhador aos ditames de compulsão planetária do capital, naturalizando formas corrosivas de trabalho e enfraquecendo movimentos de resistência.
Diversamente das anteriores formas de exploração, Filgueiras e Cavalcante (2020) mencionam, que as empresas transformam os meios de produção e instrumentos de trabalho (veículos, instalações, computadores, etc.) em seu capital, reduzem o investimento e o capital fixo, pulverizam e transferem o risco dos negócios para o trabalhador. Com as plataformas digitais, o sonho neoliberal da redução do custo com a folha de pagamento, direito trabalhista e encargo social, torna-se realidade (Silveira, 2021).
A necessidade de autovalorização das corporações globais encontra suporte maquínico no mundo digital – sem nenhum compromisso humano-societal (Antunes, 2020). Nessa configuração laboral, chamada por Grohmann (2020), de plataformização do trabalho, proveniente da dependência que trabalhadores e consumidores possuem das plataformas digitais, os trabalhadores não são empregados e nem autônomos, são empreendedores, contraditoriamente, mais submissos às exigências mercadológicas, competindo com trabalhos temporários em escala global, gerenciados, monitorados e, minunciosamente, avaliados por algoritmos e dados.
Essa tendência danosa, materializada nos processos de trabalho, contesta o novo adeus à classe-que-vive-do-trabalho, confirmando a teoria do valor de Marx e a centralidade da categoria trabalho, pois o capital só se reproduz com alguma forma de trabalho humano, “visto que as máquinas não criam valor, mas o potencializam” (Antunes, 2020, p. 14), controversamente, numa relação desfavorável para o trabalhador. A explosão de arsenal informacional (algoritmos, inteligência artificial, internet das coisas, big data, 5 G, indústria 4.0) que poderia reduzir significativamente o tempo e a jornada de trabalho, amplia enormemente a força de trabalho sobrante, alvo de atividade que burla a legislação trabalhista e acumula riqueza para a burguesia e seus altos gestores (Antunes, 2022).
Segundo Antunes (2020), a principal consequência da Indústria 4.0 será a ampliação do trabalho morto. Como, o capital para se valorizar, necessita realizar alguma forma de interação entre trabalho vivo e trabalho morto,
ao contrário da eliminação completa do trabalho pelo maquinário informacional-digital, estamos presenciando o advento e a expansão monumental do novo proletariado da era digital [novo proletariado de serviços], cujos trabalhos, mais ou menos intermitentes, mais ou menos constantes, ganharam novo impulso com as TICs, que conectam, pelos celulares, as mais distintas modalidades de trabalho (Antunes, 2018, p. 30).
Portanto, o trabalho não deixa de existir na era digital e interage com o mundo real de trabalho, mas concretiza uma intensificação dos mecanismos de extração do sobretrabalho nas distintas modalidades laborais, realizadas por um novo segmento do proletariado da indústria de serviços que vem crescendo de maneira exponencial e, para fugir do flagelo do desemprego, sujeita-se à exploração, desprovido do controle e da gestão do seu labor.
Concomitante a esse processo contínuo de precarização e subordinação do trabalho, vem ocorrendo em nível mundial, nas últimas décadas, o descontentamento e a organização dos trabalhadores do novo proletariado de serviços da Era digital (em especial do setor de fast-food e do transporte uberizado), na busca de proteção que ampare a atividade laboral e denuncie o caráter ainda mais destrutivo do sistema de metabolismo antissocial do capital atual, intensificado com a eclosão da pandemia[6] da Covid-19, em 2020, que ampliou os níveis anteriores de desigualdade e miserabilidade social.
Para Previtali e Fagiani (2020), não existe controle sobre o processo destrutivo de ordem do capital sem resistência, devendo ser construída pelo próprio trabalhador, que segundo Antunes (2010, 2020), diante do processo de precarização, deve resgatar os sentidos do trabalho e da vida, em um sistema de metabolismo social, capaz de criar um modo de produção coerente com uma atividade autodeterminada, voltada para as reais necessidades humano-societais. Neste desafio, o trabalho educativo, na qualidade de atividade imaterial e improdutiva, diante de sua peculiaridade e função social, apresenta-se potente.
O trabalho pedagógico como atividade imaterial e improdutiva
A natureza humana é produzida pelo próprio homem. Assim, “ao produzir os meios de reprodução da sua vida como um ser da natureza, que dela se diferencia pela capacidade de conceber, idear e modificar os instrumentos e meios de sua produção e reprodução” (Frigotto, 2017, p. 513), ontologicamente, o ato de educar está implicado no ato humano de criar a si mesmo pelo trabalho.
O processo educativo, intrinsecamente vinculado à produção humana, é constitutivo de uma natureza singular: a impossibilidade de separar o produto do ato de sua produção, por não existir intervalo entre o ato de produção e o ato de consumo, como acontece no ato de dar aula, que é produzido pelo professor e ao mesmo tempo consumido pelos alunos. Portanto, sua produção, natureza, objeto, objetivo e produto apresenta uma especificidade que diverge de outros processos de produção de bens materiais (Paro, 2011, 2015).
Esse processo educativo coincidia com o próprio ato de viver – prevalecia o modo de produção comunal em que os homens se apropriavam coletivamente dos meios de produção da existência e se educavam –, sofrendo modificações progressivamente até o surgimento da escola (Saviani, 2007, 2019). A cisão na unidade entre trabalho e educação ocorreu quando houve a divisão dos homens em classes sociais, a partir do escravismo antigo grego, passando a ter duas modalidades: uma, centrada em atividades intelectuais (deu origem à escola) e outra, assimilada pelo processo de trabalho (Saviani, 2019).
Conceitualmente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta ou indiretamente, em cada indivíduo singular, a humanidade produzida coletiva e historicamente pelo conjunto de homens (Saviani, 2011). Assim, a educação, situa-se no âmbito do trabalho imaterial (produção de conhecimentos, ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades) com vistas à humanização. Segundo Saviani (2011), o objeto da educação, relaciona-se à identificação dos elementos culturais, distinguindo o essencial do acidental, que precisam ser assimilados pelos indivíduos para tornar-se humanos e, concomitantemente, à descoberta das maneiras mais adequadas, como conteúdo, espaço, tempo e procedimentos, organizadas através de um conjunto de atividades nucleares a serem desenvolvidas para atingir esse objetivo.
Na condição de ambiente intencionalmente constituído para a produção de comportamentos e interação, a escola é um espaço privilegiado de apropriação do conhecimento sistematizado e produzido historicamente pelas gerações. Como uma invenção histórica e social, participa da construção da sociedade industrial, inevitavelmente, refletindo as contradições inerentes ao sistema capitalista. Com efeito, a escola, além da transmissão de conhecimentos, estabelece a correspondência entre educação e interesses econômicos.
Saviani e Duarte (2012) afirmam existir uma contradição que historicamente marca a educação escolar na sociedade capitalista, evidenciada pela negação da socialização do conhecimento, parte constitutiva dos meios de produção, capturados pelo capital como se fosse legítimo de sua propriedade. Em razão disso, os trabalhadores deveriam receber apenas o mínimo de instrução necessária para produzir, porque se possuísse algum tipo de saber, se tornaria “dono de força produtiva e no capitalismo os meios de produção são propriedade privada!” (Saviani, 2011, p. 67). A desqualificação da escola ofertada aos filhos da classe trabalhadora, simbolizada pela ausência de condições objetivas e materiais para o seu funcionamento com qualidade, passa por mecanismos (teorias educativas) inscritos no interior da organização escolar e do sistema educacional que orientam determinadas políticas educacionais (Frigotto, 2010).
Canário (2005) questiona o modelo de instância educativa que se tornou hegemônica – nova forma de conceber a aprendizagem, correspondente a modos específicos de organizar espaços, tempos, modalidades e agrupamentos de alunos que funcionam como fábrica de cidadãos –, reconhece a especificidade e a complexidade dos fenômenos educativos e, diante das mutações sofridas pela escola nos dois últimos séculos, visualiza um processo de mudanças nesse espaço, onde se aprenda não para o trabalho, mas pelo trabalho; desenvolva e estimule o gosto pelo ato intelectual do aprender; estimule o gosto pela política, pensado a partir de um projeto de sociedade. Segundo o autor, a questão central para pensar a escola, passa pela construção do sentido às aprendizagens.
Paro (2011), na mesma direção, critica a persistência no modelo hierarquizado da estrutura e da organização escolar em desacordo com a especificidade do seu trabalho e denuncia uma prática educativa que não realiza seu objetivo de formação de personalidades humana, histórica e cultural. Na visão do autor, a assunção de um modelo estruturado com base na empresa privada, produtora de bens e serviços que, na sociedade capitalista, possui objetivos antagônicos ao do empreendimento educacional, consiste no grande equívoco das organizações escolares.
Canário (2005) e Paro (2011) criticam a naturalização da dimensão organizacional que determina o modo do trabalho escolar, tornando-o desinteressante e pouco estimulante para a aprendizagem, ainda presente nos ambientes escolares. Assim, destacam a necessidade de o educando assumir a condição de sujeito, para que o processo pedagógico possa ser prazeroso e desejável, de forma a realizar-se plenamente, pelo aluno. Diante desta constatação, “deve partir todo esforço de mediação para a realização do aprendizado, porque educar, em última instância, é propiciar condições para que o educando queira educar-se” (Paro, 2011, p. 81, grifo do autor).
A negação desse princípio, além de desconsiderar a natureza intencional da organização escolar e desarmar os educadores de uma perspectiva de compreensão crítica do modo como exercem a sua atividade, não favorece a formação integral do educando, podendo ser compreendida como resultante da redução organizacional do trabalho pedagógico a uma questão técnica, esvaziada de conteúdo político (Canário, 2005; Paro, 2011)). Em razão da necessidade de motivar a vontade de estudar do educando, que não acontece de modo natural, Paro (2011) considera ser uma atribuição de toda a escola e propõe a reformulação curricular numa perspectiva de articular os conhecimentos com a cultura no sentido amplo. Para tanto, a relação pedagógica entre os sujeitos exige uma forma democrática de relacionamento.
Ainda que a organização do trabalho escolar carregue uma contradição do projeto societário capitalista, reproduzindo modelos de organização semelhantes ao modo de produção, possui uma maneira particular de trabalho, estabelecidas entre sujeito e objeto que se dão na integração humana, necessitando ser concretizadas a partir de vivências democratizadoras, com vista à emancipação da classe trabalhadora, diversamente da produção mercadológica, que se concretiza a partir das relações de dominação estabelecidas com esta classe, na busca incessante da produção de mais-valia.
O trabalho realizado pelo conjunto de profissionais da educação nas escolas públicas não se configura como trabalho produtivo porque não acrescenta mais valor como uma mercadoria, mas possui um valor social para a funcionalidade da sociedade capitalista e, constitui-se como immaterial, pela sua natureza e especificidade, consumido como útil, sobretudo, para a formação humana. É um trabalho, que o processo de sua produção coincide com o seu consumo, numa relação de subjetividade estabelecida entre sujeito (homem) e objeto (homem).
Nesses termos, a subjetividade é manifestada na produção do ato educativo que produz valor de uso socialmente relevante sem, necessariamente, concretizar valor de troca, porque é autodeterminada, não diretamente aprisionada pelo sistema metabólico do capital, mesmo que efetivada numa arena de constante tensão entre os ideais humanistas da educação e os ideais mercadológicos, próprios de uma sociedade dividida em classes sociais e marcada pela desigualdade.
Com o surgimento de paradigmas econômicos mais flexíveis, a captura da subjetividade operada pela lógica do capital sofre alteração, estando intrínseca à própria subsunção do trabalho ao capital, na qual adquire seu pleno desenvolvimento no toyotismo, um desenvolvimento real e não apenas formal, maximizando a força física e a intelectual do trabalho (Antunes; Alves, 2009). Esta tendência, claramente manifestada nos processos de reestruturação produtiva e de gestão do trabalho, extrapola a esfera produtiva, demandando o ajustamento de indivíduos, dotados de comportamentos flexíveis, como trabalhadores e como cidadãos, às condições de uma sociedade subjugada à “mão invisível do mercado” (Saviani, 2013).
Para tanto, o empenho em propagar a ideia de que a escola pode aumentar a qualidade dos seus serviços sem maiores investimentos financeiros, funcionando como uma empresa. Na tentativa de responder às novas configurações assumidas pela economia mundial, que toma como referência os pressupostos neoliberais, os processos pedagógicos vêm sutilmente assumindo uma nova dinâmica. Assim, constata-se a exacerbação de ideários pedagógicos alinhados às demandas contínuas da estruturação e da reestruturação do capital: neoprodutivismo, neoescolanovismo, neoconstrutivismo (individualização da aprendizagem); neotecnicismo (princípios da administração e gestão da escola às normativas empresariais), baseados na sociabilidade equidistante dos critérios sociais éticos e humanos (Saviani, 2013).
Nesse contexto, observa-se a flexibilização do processo educacional – abandono do ensino centrado nas disciplinas de conhecimentos para o ensino baseado em competências de determinadas situações – e o controle decisivo deslocado para os resultados. É pela avaliação dos resultados que se busca maximizar a eficiência, tornando os indivíduos mais produtivos tanto no processo de trabalho como em sua participação na vida em sociedade (Saviani, 2013). Para o autor, a avaliação converte-se no papel principal a ser exercido pelo Estado, mediado pelas agências reguladoras.
As investidas do capital para garantir o controle da gestão, do financiamento, do currículo, sobretudo no tocante a uma formação flexível, compatível com as formas de reestruturação produtiva, é estratégica e associada à política de desempenho, responsabilização, prestação de contas e auditoria, reguladas externamente. Essa dinâmica conduzida mediante desígnio gerencial produz um sentimento de culpabilização entre os profissionais da educação que, mesmo em desacordo, acabam assumindo dentro do espaço de trabalho, responsabilidades que são reservadas ao Estado.
A flexibilidade é requerida para responder aos mercados e não para satisfazer as necessidades humanas daqueles que trabalham (Anderson, 2017). Os processos de regulação, desestabilização, desinvestimento e mercantilização impactam os docentes e gestores escolares nas suas relações de trabalho (Anderson, 2017; Oliveira, 2018). O novo profissionalismo surgido no contexto da Nova Gestão Pública (NGP) engloba um conjunto de dispositivos de controle e práticas que afetam o comportamento dos profissionais, geralmente aumentando a competitividade e causando uma intensificação do trabalho.
A nova profissionalização acentua a valorização de atitudes empreendedoras, como a capacidade de tomar a iniciativa, ser criativos e reflexivos, garantir a aprendizagem dos alunos, independentemente das condições necessárias, dentre outras, apelando para o espírito da colaboração e da colegiabilidade, estrategicamente definidas para cobrir as falhas do Estado (Oliveira, 2018). Essa mudança de valores profissionais para gerenciais, promove, aparentemente, um certo empoderamento no profissional diante de maior liberdade para agir na busca da solução mais adequada, na nova relação que se estabelece entre produção e consumo, mas vem acompanhada de medida responsiva, intrinsicamente subsumida ao capital.
Tanto os trabalhadores produtivos sofrem a influência do novo profissionalismo no comprometimento efetivo com a produtividade, quanto os trabalhadores improdutivos, ainda que de uma forma mais tênue. Estudos demonstram que a flexibilidade crescente nas organizações está reconstruindo as identidades profissionais e reestruturando, inclusive, o trabalho dos profissionais da educação, que direcionam a sua preocupação para os resultados das aprendizagens (Anderson, 2017; Oliveira, 2018).
Desta forma, o estranhamento na subjetividade permanece e se complexifica nas atividades de ponta do sistema produtivo, não existindo independência do trabalho imaterial mediante o domínio capitalista, no entanto, “no polo mais intelectualizado da classe trabalhadora, que exerce seu trabalho intelectual abstrato, as formas de reificação têm uma concretude particularizada, mais complexificadas (mais ‘humanizada’ em sua essência desumanizadora) […]” (Antunes, 2009, p. 218). Nesses termos, a vida cotidiana se mostra como espaço de disputa entre a alienação e a desalienação, mesmo ocorrendo a subsunção do trabalho ao capital, porque “ele é um elemento vivo, em permanente medição de forças, gerando conflitos e oposições […]” (Antunes; Alves, 2009, p. 350).
Em razão disso, o trabalho pedagógico, na condição de atividade inserida na rubrica imaterial, com finalidade improdutiva sob a ótica da não criação de mais valor e produto, que diverge da produção de qualquer outra mercadoria, pois objetiva a formação humana voltada para a sua emancipação, assume um papel fundamental para subsidiar a luta entre as classes sociais na sociedade capitalista.
A compreensão do fundamento ontológico do trabalho pedagógico na qualidade de atividade intelectual abstrata contribui como antídoto na luta contra a lógica de produção e reprodução societal do capital. Com efeito, é preciso refutar os princípios e mecanismos utilizados em empresas tipicamente capitalistas, pois não se aplicam aos objetivos da escola, que deve ser democrática nos seus processos organizativos e ações pedagógicas.
Considerações finais
Entendemos a centralidade da categoria trabalho presente na atualidade, constituindo-se como uma eterna necessidade de a classe-que-vive-do-trabalho garantir a produção da sua existência, mas que assume no modo de produção capitalista, a forma de trabalho abstrato, alienado, estranhado. A reificação e intensificação da exploração ocorre tanto no trabalho material quanto no trabalho imaterial, diferenciando-se pela forma de captura em que ocorre a subjetividade, manifestada em cada processo organizativo de trabalho. Assim, com a ampliação do trabalho imaterial em interação com o material, ocorre uma dupla exploração, a da força física e a da intelectual.
Acreditamos que discutir as dimensões ontológicas do trabalho pedagógico na qualidade de atividade imaterial e improdutiva, que reflete as características e as contradições do capital na contemporaneidade, requer um aprofundamento da categoria trabalho com base nos pressupostos teóricos desenvolvidos por Marx, para a compreensão das novas formas de envolvimento e captura da subjetividade do trabalho na relação com o processo produtivo, uma vez que a manifestação da educação vai corresponder à variação sofrida pelo modo de produção.
O entendimento crítico do funcionamento organizacional capitalista é o ponto de partida para o reconhecimento de que a educação escolar pública, mesmo indiretamente, pode contribuir para a valorização do capital sendo improdutiva, não criadora imediata de mais-valia, mas também, não necessariamente deve estar aprisionada pelo sistema metabólico do capital, porque possui sua natureza e fim específico antagônicos a qualquer processo de produção de mercadoria. No entanto, por surgir por meio de valores burgueses e produzir uma força ideológica útil na sociedade, reflete a constante tensão de traduzir ideais humanistas e ideais mercadológicos.
Desta forma, o trabalho pedagógico sofre uma reificação do capital de um modo menos desumanizado quando comparado a outros tipos de trabalho imaterial, podendo contribuir com a sua lógica de produção e reprodução societal, todavia, diante de sua singularidade e sentido ontológico, não perde a finalidade de produzir a emancipação humana, devendo evidenciar os mecanismos de dominação e justificativa ideológica da sociedade burguesa, em razão de uma prática que propicie a formação ampla aos pertencentes da classe-que-vive-do-trabalho.
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Notas
[1] Noção ampliada da categoria de trabalhadores, cunhada por Antunes (2009) para atribuir validade contemporânea ao conceito marxiano de classe trabalhadora.
[2] Complexo das capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo (Marx, 2011, p. 178).
[3] Trabalhador produtivo do ponto de vista do capipal, mas se contratado para trabalhar com crianças na residência do capitalista, é um trabalhador improdutivo porque produz de valores de uso sem realizar o valor de troca.
[4] Os traços mais evidentes foram: a queda da taxa de lucro, pelo aumento do preço da força de trabalho e a intensificação das lutas sociais pelo controle social da produção, dentre outros; o esgotamento do padrão de produção taylorismo-fordismo, dada a retração do consumo em resposta ao desemprego estrutural; a hipertrofia da esfera financeira/especulação; a maior concentração de capitais com fusão de empresas; a crise do Welfare State ou Estado de bem-estar social; a privatização, tendência à desregulamentação e flexibilização (Antunes, 2009).
[5] Expressão representativa do modo japonês de acumulação flexível idealizado por Eiji Toyota.
[6] Impactou a vida de toda a humanidade, em especial daqueles que vivem do trabalho à margem do direito protetivo, que não puderam seguir o período no isolamento social, para manter a sua sobrevivência, mesmo correndo o risco de vida. Situação que deflagrou um cenário caótico diante das mazelas do capitalismo pandêmico – destrutivo, belicista e letal – que provocou a letalidade preconceituosa e seletiva de classe, gênero, raça e etnia, entre a população mais pobre, negros, indígenas, imigrantes, refugiados, moradores da periferia e, vítimas da informalidade e do desemprego (Antunes, 2022).