Diálogo e experiência formativa na perspectiva da hermenêutica filosófica
Dialogue and formative experience in the perspective of philosophical hermeneutics
Diálogo y experiencia formativa en la perspectiva de la hermenéutica filosófica
Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil
cdbbraun@gmail.com
Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil
eldon@upf.br
Recebido em 08 de maio de 2023
Aprovado em 26 de maio de 2023
Publicado em 29 de maio de 2024
RESUMO
Este artigo visa refletir sobre a efetividade pedagógica de uma práxis hermenêutica, tomando como referência a Hermenêutica Filosófica do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, no enfrentamento ao problema do enfraquecimento da ação dialógica na educação atual. A crescente incapacidade para o diálogo está levando a sociedade contemporânea a uma espécie de monólogo ou a um diálogo disfarçado que não cumpre as exigências do diálogo vivo, contribuindo para a desconstrução das interações humanas, dos valores sociais e do empobrecimento da experiência formativa dos indivíduos. Influenciada fortemente por uma tendência que privilegia a ação técnico-instrumental em detrimento da racionalidade dialógica, a educação atual tem interferido negativamente na formação das relações humanas, gerando o aumento da incapacidade para o desenvolvimento do “diálogo vivo” e da compreensão entre os indivíduos. Em confronto com essa tendência instrumentalizadora da racionalidade, contrapomos e defendemos a efetividade pedagógica de uma práxis hermenêutica que toma como princípio orientador o diálogo enquanto experiência formativa. A conclusão aponta que uma formação integral do ser humano exige, além do desenvolvimento da formação técnica, a formação para o diálogo e um exercício hermenêutico constante na educação.
Palavras-chave: Formação; Diálogo; Hermenêutica.
ABSTRACT
This paper aims to discuss the pedagogical effectiveness of a hermeneutic praxis, taking as reference the Philosophical Hermeneutics of the German philosopher Hans-Georg Gadamer, in facing the problem of the weakening of dialogical action in present-day education. The growing inability to dialogue is leading contemporary society to a kind of monologue or a disguised dialogue that does not meet the requirements of a living dialogue, contributing to the deconstruction of human interactions, of social values, and the impoverishment of the formative experience of individuals. Strongly influenced by a tendency that privileges technical-instrumental action over dialogical rationality, present-day education has negatively interfered in the formation of human relations, generating an increasing inability to develop a "lively dialogue" and understanding between individuals. In confrontation with this instrumentalizing tendency of rationality, we counterpose and defend the pedagogical effectiveness of a hermeneutic praxis that takes dialogue while formative experience as its guiding principle. The conclusion points out that an integral formation of the human being demands, besides the development of technical education, the formation towards dialog and a constant hermeneutic exercise in education.
Keywords: Education; Dialogue; Hermeneutics.
RESUMEN
Este artículo pretende reflexionar sobre la eficacia pedagógica de una praxis hermenéutica, tomando como referencia la Hermenéutica Filosófica del filósofo alemán Hans-Georg Gadamer, para afrontar el problema del debilitamiento de la acción dialógica en la educación en la actualidad. La creciente incapacidad para dialogar está llevando a la sociedad contemporánea a una especie de monólogo o de diálogo disfrazado que no cumple las exigencias del diálogo vivo, contribuyendo a la deconstrucción de las interacciones humanas, de los valores sociales y al empobrecimiento de la experiencia formativa de los individuos. Influenciada fuertemente por una tendencia que privilegia la acción técnico-instrumental sobre la racionalidad dialógica, la educación actual ha interferido negativamente en la formación de las relaciones humanas, generando una mayor incapacidad para desarrollar el "diálogo vivo" y la comprensión entre los individuos. Frente a esta tendencia instrumentalizadora de la racionalidad, contraponemos y defendemos la eficacia pedagógica de una praxis hermenéutica que toma como principio rector el diálogo como experiencia formativa. La conclusión señala que una formación integral del ser humano exige, además del desarrollo de la formación técnica, la formación para el diálogo y un constante ejercicio hermenéutico en la educación.
Palabras clave: Formación; Diálogo; Hermenéutica.
Introdução
A formação humana é hoje um dos temas mais desafiadores para intelectuais e educadores. A crise que se apresenta na atualidade revela uma grande dificuldade tanto na compreensão como no modo de proceder, considerando as necessidades e os desafios da formação que o mundo atual clama. De modo especial, estamos diante de novos desafios da hermenêutica ao esclarecer os processos de um mundo cada vez mais tecnológico e digital, que oferece inúmeros outros mecanismos para a definição dos sentidos da existência humana, além do texto e da tradição.
Somos herdeiros de uma concepção polissêmica de formação, que se originou de uma construção histórica que passou por diversas fases. Por isso, o que na atualidade chamamos de formação, na antiguidade grega foi compreendida por Paideia, na idade média por humanitas e na modernidade por Bildung. São concepções que mantêm nexos comuns, embora se diferenciam em seus traços e especificidades em razão dos momentos e contextos distintos em que foram desenvolvidas. Conforme analisa Rohden (2009, p.105), a paideia grega traz como herança a formação humana-intelectual e ética dos cidadãos gregos, buscando tal excelência pela reflexão e a virtude. Bombassaro (2009, p. 199), ao refletir sobre relação entre a Bildung moderna e a Paideia grega, encontra um nexo entre eles em um outro movimento importante da formação da cultura ocidental, a Humanitas latina, cuja perspectiva apontava ser possível desenvolver no ser humano o mais alto nível de excelência, já que existiria nele uma força criativa, autônoma, capaz de uma formação livre de si mesmo. A Bildung, segundo Flickinger (2009, p. 64-65), é herdeira desta tradição, acrescentando-lhe a dimensão da expressão livre da condição humana e da própria natureza na busca de sua perfectibilidade. O que parece comum entre estas três concepções de formação é a ideia da possibilidade do desenvolvimento do ser humano pela educação, especialmente pela reflexão e o diálogo, podendo atingir o mais alto nível de excelência.
Porém, com os avanços das ideias iluministas, os valores metafísicos e teológicos que até então norteavam o processo formativo passam a ser questionados e o uso da razão torna-se o recurso mais seguro para a busca da verdade e da orientação da vida humana. Com o passar do tempo, os efeitos dessa mudança paradigmática, centrada na guinada para a razão subjetiva, apresentam suas dificuldades, iniciando-se, assim, o que chamamos de a crise da razão moderna, revelando os limites da razão subjetiva e de suas certezas. A crise da racionalidade iluminista pode ser identificada nos diferentes cenários de crises e incertezas que hoje se fazem presentes. Dentre estas crises queremos destacar o problema da incapacidade para o diálogo, cada vez mais perceptível em nossa sociedade e agravada de forma considerável, no caso do Brasil, pela crise política que tem disseminando conflitos, ódio, mentira, dificultando a interação humana e o respeito mútuo.
No caso especificamente brasileiro, a incapacidade para o diálogo agravou-se nos últimos anos devido à ascensão de um governo de extrema direita, Jair Bolsonaro (2019-2023), fortemente marcado por ações antidemocráticas, como seu apoio a manifestações que pediram o fechamento de instituições democráticas e críticas ao sistema eleitoral, sem evidências sólidas. Essas ações minaram a estabilidade política e intensificaram a capacidade de diálogo entre os diferentes setores da sociedade. Além disso, essas tendências antidemocráticas refletiram-se em sua abordagem em relação à educação. O governo promoveu significativos cortes de verbas em diversas instituições de ensino superior, prejudicando diretamente a qualidade da educação e a pesquisa acadêmica. A imposição de uma agenda ideológica nas escolas e a falta de abertura ao debate de ideias e ao pluralismo intelectual. Esses ataques à democracia e à educação não apenas ameaçam os valores fundamentais da nação, mas também limitam a capacidade do país de progredir e enfrentar desafios complexos.
O problema da incapacidade dialógica apresenta-se na atualidade como uma questão central da formação, atingindo todas as dimensões da vida humana e toda a organização social vigente. A crise sobre o sentido da existência humana e os problemas decorrentes de uma sociedade em conflito reflete-se sobre a própria educação, sobre seus fins e seu papel social e político. A partir dessas considerações, questionamo-nos: qual é o propósito formativo que a educação atual deve contemplar? Uma educação integral[1] que prepare o homem para a vida em sociedade ou uma educação técnica, instrumental, voltada para o mundo do trabalho? Como manter a dialogicidade em um contexto em que a ciência e a técnica alcançam o patamar de agentes indutores da formação e da organização social e política?
O objetivo deste texto é, em um primeiro momento, realizar um breve diagnóstico e analisar o problema da formação, destacando o tema da incapacidade para o diálogo dos indivíduos na sociedade atual e suas implicações sobre a interação social e a convivência com os outros. Logo após, destacamos a importância da linguagem como experiência hermenêutica, sendo esta uma das dimensões essenciais da hermenêutica filosófica de Gadamer, como meio para a realização da experiência hermenêutica. E por fim, apresentamos o diálogo como experiência formativa e possibilidade de enfrentamento da incapacidade dialógica presente na sociedade atual. Para isso, centramos nossos esforços em responder à seguinte questão: Como o diálogo, do ponto de vista hermenêutico, pode ser pedagogicamente assumido como experiência formativa.
O enfraquecimento formativo do diálogo e a restrição da abertura para o outro.
No ano de 1972, em um texto denominado de A incapacidade para o diálogo, Gadamer (2011, p. 242-252) disserta sobre sua preocupação com o crescente aumento da incapacidade dialógica da sociedade, que, para o autor, é uma decorrência da predominância da racionalidade sistêmica dos avanços técnico-científicos de sua época. Vejamos a seguir algumas de suas preocupações (GADAMER, 2011, p.242-243):
A arte do diálogo está desaparecendo? Na vida social de nossa época não estamos assistindo a uma monologização crescente do comportamento humano? Será um fenômeno típico de nossa civilização que acompanha o modo de pensar técnico-científico? Ou será que experiências específicas de autoalienação e de isolamento presentes no mundo moderno é que fazem os mais jovens se calar? Ou será ainda que o que se tem chamado de incapacidade para o diálogo não é propriamente a decisão de recusar a vontade de entendimento de uma mordaz rebelião contra o pseodoentendimento dominante na vida pública?
Para fundamentar o agravamento da incapacidade dialógica apresentada pela sociedade de sua época, Gadamer utilizou o exemplo das ligações telefônicas (GADAMER, 2011, p.244): “Tornou-se tão comum mantermos longas conversas por telefone que, quase, já não nos damos conta do empobrecimento comunicativo que se dá na convivência com as pessoas que se encontram ao nosso lado [...]”. Para o autor, essas formas de comunicação artificiais, usadas em excesso, impedem uma relação de aproximação mais profunda entre as pessoas, pois prejudicam a presença de elementos importantes nas relações humanas, a relação de abertura para o outro, que, em relações presenciais, podem ser facilitadas.
Ao refletir sobre essa hipótese, apresentada há 50 anos, numa tentativa de releitura, acrescida aos novos avanços técnico-científicos no campo da comunicação, em especial, ao próprio aparelho telefônico, notamos uma ampliação considerável em suas funções e potencialidades. A comunicação como uma prática coletiva e presencial, praticamente desapareceu, tornando-se essa, na atualidade, uma prática individualizada, com autores virtuais. Para além do elemento acústico do telefone, as novas tecnologias adicionaram aos novos equipamentos a visibilidade e a interatividade. Mas será que esses novos elementos conseguiram ao menos amenizar aquilo que Gadamer denomina de diálogo superficial e artificial? Ou poderíamos dizer que esses avanços agravaram ainda mais essa superficialidade?
A internet está praticamente ao acesso de todos. Mesmo que ainda não tenha chegado a todas as casas dos nossos estudantes, ela pode ser encontrada hoje em quase todos os ambientes, na rua, nos mercados, nas lojas, nas bibliotecas, nas escolas em nossos próprios Smartphones. Todo esse aparato tecnológico contribui muito para facilitar a comunicação entre as pessoas. Contudo, segundo o próprio diagnóstico de Gadamer (2000, p. 129-141), seguido de perto pela reconstrução de Dalbosco, (2007, p. 53-78), “quanto mais nós nos desenvolvemos técnica e cientificamente, mais paradoxalmente nos tornamos incapazes para o diálogo”
A pesquisadora norte-americana Martha Nussbaum em sua obra Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades? realiza uma análise sobre a conjuntura atual, onde destaca a ausência de reflexão, ou seja, da capacidade de refletir e de argumentar ou de refletir para argumentar, que marcam os meios sociais e educacionais da atualidade. Para a autora (2015, p.3), uma tendência educacional voltada para um modelo inclusivo de cidadania está, cada vez mais, cedendo o espaço para uma educação voltada apenas para o lucro, o que a autora já considera um “câncer” em nível mundial. O maior problema que surge desta situação é a incapacidade para a reflexão e o diálogo. A crítica de Nussbaum a esta situação é sintetizada por Mühl e Kohls (2019, p. 867) com propriedade quando escrevem que:
(...) As pessoas têm se posicionado diante de situações de extrema importância para a vida política, econômica e cultural movidas pela mera “opinião”, sem apresentar argumentos e sem refletir sobre o sentido e o fundamento de sua posição. Com isso, os indivíduos tornam-se meras peças das gigantescas máquinas de produção e reprodução de uma vida alienada. Opinam sem pensar, sem refletir. Emitem julgamentos precipitados, imediatos, sem avaliar a real situação dos acontecimentos. Sustentam-se em “achismos”, geralmente revestidos de preconceitos e/ou compreensões equivocadas ou parciais. Consideram a discussão como uma oportunidade de imposição de sua opinião e de sua concepção ideológica. Falam, mas não conseguem dialogar.
Essa tendência já superou o que se poderia denominar por crise, sendo que esses tipos de políticas ideológicas atacam expressivamente as temáticas que giram em torno da democracia, do pluralismo, da liberdade, das questões de gênero, dos direitos adquiridos etc. Nussbaum evidencia sua problemática da crise silenciosa a partir da diminuição das disciplinas humanas nos currículos escolares em todos os níveis. Os defensores do modelo de desenvolvimento, baseado no crescimento econômico, consideram inúteis as disciplinas de humanas e artes e, por isso, acreditam que estas devem ser substituídas por outras que estimulem a competividade.
Assim, esse diagnóstico, amparado em Gadamer e Nussbaun, reforça a situação atual em que a educação brasileira se encontra, ou seja, além de estar fortemente ameaçada pela tendência neoliberal tecnicista e que já deixou de ser silenciosa, comprovada pelos constantes ataques do governo atual em relação, especialmente, à democracia, aos direitos adquiridos e à liberdade de expressão, encontra-se contextualizada em uma sociedade ancorada em uma dupla incapacidade, a de dialogar e refletir.
Para exemplificar esse reducionismo, tomaremos, como referência, Flickinger (2014, p. 66-67), que nos chama atenção a uma visão reducionista da linguagem que transformou a língua em um mero objeto de manipulação. Os sinais claros dessa tendência instrumentalista, segundo o autor, podem ser facilmente encontrados quando observamos a práxis educativa atual, que se caracteriza de diferentes formas. A primeira forma encontra-se vinculada ao excesso de informação que circula na atualidade e que, muitas vezes, dificulta a assimilação e diferenciação de significados, bem como a relevância das informações. Outro aspecto relevante é a falta de criticidade, tornando os sujeitos reféns dos meios de comunicação frente à manipulação de informações. Flickinger (2014, p.66) também destaca o avanço da informática que transformou os indivíduos em receptores das informações, atenuando seu potencial reflexivo-criativo. Além desses aspectos, os debates públicos transformaram-se em retóricas vazias, em que se fala simplesmente o que o povo quer ouvir e, na maioria das vezes, descompromissados com as ações práticas. Todos esses aspectos aliam-se ao desprezo pelo ouvido, o que dá origem à incapacidade de escutar o outro, sendo que se ignora totalmente a hipótese de que o outro possa estar com a razão.
Tanto Gadamer como Flickinger ajudam-nos a diagnosticar que o desenvolvimento tecnológico e a capacidade dialógica não andam lado a lado, mas parecem conduzir a lados opostos, pois quanto mais a sociedade contemporânea desenvolve-se tecnologicamente, mais incapaz torna-se ao diálogo. O aparato tecnológico que nos é oferecido na atualidade, embora tenha revolucionado a maneira como nos comunicamos, de forma cada vez mais rápida e eficiente, despreza o ato de ouvir em favor do ver (olhar), o que contribuiu para o aumento da incapacidade dialógica da sociedade atual. Portanto, há um aspecto da incapacidade de dialogar que queremos privilegiar em nosso diagnóstico e que apresenta uma repercussão pedagógico-formativa muito grande, a saber, a incapacidade de ouvir, ou seja, da escuta. Quando não se tem mais disposição para ouvir e ao tornar-se insensível e incapaz para a escuta, não há mais relação humana e nem formação humana na perspectiva ética.
Na próxima etapa, daremos atenção ao conceito da linguagem como experiência, elemento fundamental da hermenêutica filosófica de Gadamer, e que servirá de referência propositiva frente ao problema da incapacidade dialógico-reflexiva, incrustada na incapacidade humana de ouvir o outro, ou seja, de escutar.
A linguagem como experiência hermenêutica
No processo hermenêutico, o horizonte da interpretação representa a fusão de horizontes, uma vez que, durante um processo de interpretação, um texto deve falar, encontrando uma linguagem correta, não sendo uma interpretação “em si”, o que representaria um desconhecimento da tradição, pertencente a uma situação hermenêutica. “[...] compreender um texto significa sempre aplicá-lo a nós próprios” (GADAMER, 2012, p.515).
No caminho da análise gadameriana do fenômeno hermenêutico, a primazia fundamental do caráter da linguagem (Sprachlichkeit) apresenta seu aspecto universal, haja vista que: “Compreender e interpretar se subordinam de uma maneira específica à tradição da linguagem” (GADAMER, 2012, p.523). Ao reconhecer a unidade entre tradição e linguagem na experiência hermenêutica, Gadamer (2012, p.569), reconhece que a “[...] forma da linguagem e o conteúdo da tradição não podem ser separados na experiência hermenêutica”. O exercício para a realização da compreensão está na interpelação do que foi dito, sendo que isso só ocorre quando nós nos empenhamos para isso.
Gadamer (2012, p. 571) extrai da compreensão de Humboldt que a nossa concepção de mundo decorre de nossa concepção de linguagem, pois ela é humana desde o princípio. A linguagem é um atributo que caracteriza o homem no mundo, possibilitando que o ser humano tenha um mundo e possa representar seu mundo. O estar-aí no mundo decorre da linguagem. Nos termos do autor (2012, p. 572),
A originária humanidade da linguagem significa, portanto, ao mesmo tempo, o originário caráter do estar-no-mundo do homem. Precisamos seguir essa relação entre linguagem e mundo para alcançarmos um horizonte adequado para o caráter de linguagem da experiência hermenêutica.
A linguagem alcança seu verdadeiro ser através do entendimento mútuo. Dessa forma, define o entendimento como um processo representativo da comunidade viva. Assim, a linguagem humana torna-se vital, pois o mundo manifesta-se no entendimento da linguagem. Portanto, para Gadamer, (2012, p.576), “[...] a linguagem é por sua essência a linguagem da conversação. Ela só adquire sua realidade quando se dá no entendimento mútuo”. Sobre o caráter fundamental da linguagem, o autor afirma (2012, p. 581):
O caráter de linguagem em que se dá nossa experiência de mundo precede a tudo quanto pode ser reconhecido e interpelado como ente. A relação fundamental de linguagem e mundo não significa, portanto, que o mundo se torne objeto da linguagem. Antes, aquilo que é objeto do conhecimento e do enunciado já se encontra sempre contido no horizonte global da linguagem. O caráter de linguagem da experiência humana de mundo como tal não tem em mente a objetivação do mundo. (Grifos do autor).
A linguagem é ao mesmo tempo meio e objeto da compreensão, sendo o modo de ser da tradição. Herdamos nossos preconceitos da tradição e, por conseguinte, é o que configura nosso horizonte linguístico de significados, sendo que a relação hermenêutica é uma relação especulativa. Ser especulativo quer dizer que um mesmo assunto pode chegar à linguagem com interpretações diferentes, mas corretas. Para Gadamer (2012, p.590), toda a nossa experiência do mundo, bem como nossa experiência hermenêutica versa no meio da linguagem. A linguagem é, nos termos de Gadamer (2012, p. 591), o meio em que o sentido se estabelece.
Todo falar humano é finito no sentido de que abriga em si uma infinitude de sentido a ser desenvolvida e interpretada. Por isso, também o fenômeno hermenêutico deve ser esclarecido a partir dessa constituição fundamentalmente finita do ser, cuja constituição tem suas bases plantadas na linguagem.
A afirmação de que a relação hermenêutica é uma relação especulativa pode ser exemplificada na interpretação de obras literárias. Ao ler um romance, um leitor hermenêutico considera as intenções do autor, mas também reconhece que o significado vai além do texto literal. A interpretação se torna um diálogo entre o leitor e a obra, onde as experiências prévias e a tradição cultural do leitor desempenham um papel fundamental. Nesse contexto, a especulação não é vista como uma mera suposição, mas como um processo enriquecedor que permite ao leitor mergulhar nas camadas de significado subjacente à obra, abraçando a fusão de horizontes entre o autor e o leitor. Portanto, a relação hermenêutica, à luz do pensamento de Gadamer, é uma interação especulativa enriquecedora que busca compreender a profundidade e a complexidade do texto e, ao mesmo tempo, reflete a interação dinâmica entre o leitor e a obra. Gadamer utiliza o conceito de pertença para desenvolver a importância da capacidade de aprendermos a ouvir. Todos precisamos ouvir, independentemente se estamos questionando ou se estamos sendo questionados, pois “[...] o verdadeiro acontecer só se torna possível pelo fato de a palavra que chega a nós como tradição e que devemos ouvir nos atingir realmente, como se fosse dirigida a nós e se referisse a nós mesmos” (GADAMER, 2012, p.595-596). O autor defende que o ouvir possui uma condição de primazia no fenômeno hermenêutico, visto que ele torna possível a pertença: “pertença é aquilo que é alcançado pela tradição” (GADAMER, 2012, p.597). É pela escuta compreensiva que podemos ligar o passado com o presente.
As reflexões gadamerianas apresentam a linguagem como um meio (Mitte) entre o eu e o mundo, um meio que apresenta um caráter especulativo, em que essa estrutura especulativa da linguagem não quer representar uma cópia, de modo fixo, mas em que o todo do sentido surge do vir-à-fala. Buscando fugir de uma atividade metódica, Gadamer (2012, p. 612) aproximou-se da dialética antiga. Isso nos deixa na condição de compreender que,
[...] essa cunhagem da ideia do fazer da própria coisa, do sentido que vem-à-fala, aponta para uma estrutura ontológica universal, a saber, para a constituição fundamental de tudo aquilo a que a compreensão pode-se voltar. O ser que pode ser compreendido é linguagem.
A compreensão da linguagem requer interpretação e aplicação, ou seja, hermenêutica. A compreensão ocorre dentro do círculo hermenêutico, iniciando com os preconceitos herdados. Como o modo de ser da tradição é linguagem, nossos próprios preconceitos são linguísticos, ocorrendo a compreensão dentro da linguagem. “O que se pode compreender é linguagem” (GADAMER, 2012, p.612). A linguagem não é um sistema de sinais, mas traz consigo o ser para o presente da consciência efetuada historicamente.
A pergunta principal que Gadamer apresenta em sua hermenêutica filosófica está relacionada à identificação dos preconceitos legítimos a partir dos quais podemos compreender corretamente. Baseadas na ontologia da compreensão de Heidegger, ao denominar as estruturas prévias da compreensão de preconceitos, reabilita a autoridade da tradição, colocando-a como uma fonte possível para encontrar preconceitos legítimos.
Podemos resumir assim os elementos de uma experiência hermenêutica: ao lermos um texto, devemos acreditar em sua aspiração à verdade, para, desse modo, podermos examinar nossos próprios preconceitos. Isso nos levará a expandir o nosso horizonte de significados com os apresentados pelo texto, gerando uma fusão de horizontes, que é a compreensão. Ao projetarmos o horizonte do texto, estaremos aplicando aquilo que o texto fala-nos com o nosso contexto. Quando um intérprete reconhece a verdade na experiência é porque está aberto a conhecer algo novo.
O modelo para a compreensão proposto por Gadamer é o diálogo, em que o objetivo é chegar a um acordo, caracterizado pela abertura, em que não ignoramos a reivindicação do outro, colocando-nos em uma posição de escuta, ouvindo o que ele tem a dizer para nós. O fato de escutarmos as reivindicações do outro não pode, em hipótese alguma, representar que concordamos cegamente com o outro, mas que precisamos aceitar algo. A forma usual de abertura em uma experiência é a pergunta, pois ela aponta para uma direção, para um horizonte. Uma pergunta deve ser feita de forma correta. Por outro lado, fazer uma pergunta correta não é tão fácil assim, pois não existe um método específico para isso.
Um diálogo é composto pelo ato de fazer e responder perguntas. Precisamos entrar em um diálogo com o objetivo de aprender algo novo a partir da fusão de horizontes, e não simplesmente para provarmos que estamos certos, pois, em um diálogo autêntico, ambos precisam escutar o que o outro tem a dizer, uma vez que o ato de ouvir é colocar-se no lugar do outro.
Retomando Flickinger (2014, p.82), um diálogo vivo e autêntico é caracterizado pela simetria, pois ele não se limita apenas a um jogo de poder, característica implícita na maioria dos diálogos na atualidade, diálogos assimétricos, em que os resultados da ação dialógica são premeditados e visam alcançar objetivos específicos. Um diálogo simétrico não se assemelha a um interrogatório em que, ao interrogarmos o outro, buscamos apenas comprovar nossas suspeitas e tudo aquilo que não sustenta a nossa suspeição. Na relação assimétrica, o outro acaba sendo negligenciado.
Em um diálogo autêntico, as informações não são manipuladas, nem mesmo são selecionadas as ponderações que desejamos ouvir. Uma característica importante de uma ação dialógica verdadeiramente autêntica e simétrica é não transformarmos a conversação em uma sessão de terapia em que se objetiva, de forma específica, conduzir o outro à cura. Um diálogo autêntico também não pode ser considerado uma conversação destinada a um negócio, em que a mediação tem a finalidade de obter objetivos de trocas comerciais.
Portanto, um diálogo verdadeiro procura o objetivo comum da interação, em que nenhum dos interlocutores deve submeter-se ou utilizar estratégias persuasivas, de manipulação, de violência ou medo, nem necessita adotar uma retórica rebuscada. O diálogo vivo implica a disposição de cada indivíduo a entregar-se a um processo social aberto, a reconhecer a autonomia de cada parceiro, a ouvir o outro e a perceber que somente junto com os outros poderá obter resultados construtivos e emancipadores.
Para darmos conta do percurso investigativo já sinalizado, de forma plausível e argumentativa, vinculado à ideia central de uma educação dialógica pautada em Gadamer, seguindo nossa hipótese, no próximo capítulo de nossa investigação, exploraremos o alcance dos princípios pedagógicos encontrados na hermenêutica filosófica. Para tanto, apresentaremos um contraponto crítico, apontando alguns caminhos pelos quais uma perspectiva educacional hermenêutico-dialógica deve indicar para a superação das limitações apresentadas pela pedagogia atual. Uma das grandes contribuições de Gadamer frente à incapacidade dialógica é ensinar que a linguagem é o meio para a compreensão, portanto, a base ontológica para a experiência hermenêutica, e é através dela que as conversações se realizam.
Diálogo como experiência formativa
Para que a presença crescente das tecnologias e suas influências na formação não contribuam ainda mais na destruição do diálogo vivo, os processos educacionais precisam estar pautados na disposição para o ouvir, tornando-nos novamente sensíveis, ao mesmo tempo, capazes para a escuta, fortalecendo as relações humanas e a formação na perspectiva ética. Pautar a formação na disposição do ouvir não representa renunciar aos aparatos tecnológicos à disposição da educação, pois estes são meios importantes e necessários no processo de ensino e aprendizagem. O que realmente queremos é contestar a ideia utópica de que a tecnologia é a solução para todos os problemas educacionais, pois seu uso excessivo pode contribuir para a monologização do comportamento humano, como Gadamer já havia advertido em seu texto A Incapacidade para o diálogo, de 1972 (Gadamer, 2011, p.242-252).
Os ambientes virtuais, que tanto facilitaram a vida dos profissionais da educação durante a pandemia, mostrando-se ferramentas indispensáveis à educação, possibilitando um alargamento das relações pedagógicas, ainda assim mostraram-se ineficientes para um diálogo verdadeiro e autêntico, pois não conseguem ultrapassar sua forma artificial de comunicação. As ferramentas tecnológicas podem e devem ser consideradas indispensáveis no processo de ensino e aprendizagem, mas elas não substituem as relações humanas diretas e o diálogo autêntico, frente a frente, entre professor e aluno. Um diálogo hermenêutico pressupõe uma disposição para ouvir o outro, que é uma dimensão indispensável das relações pedagógicas, pois é preciso estar disposto a entregar-se ao outro, deixando-se afetar, fundindo horizontes. Os ambientes virtuais de ensino, o ensino à distância, as redes sociais, aliadas às técnicas de instrumentalização do ensino, não desenvolvem em si o conhecimento crítico, fechando os indivíduos em si mesmos, impossibilitando a abertura de ouvir o outro.
Segundo Nixon (2017, p 55-56), vivemos em um mundo cada vez mais fragmentado e desigual, o que demonstra que o processo educativo não pode ser neutro, mas que deve preparar para enfrentarmos as escolhas difíceis, na tentativa de compreender o que não é familiar e diferente em nossa vida. O autor ajuda-nos a recordar que, para Gadamer, as humanidades exigem que adotemos uma postura hermenêutica em relação ao mundo, em que o conceito de Bildung, na perspectiva educacional, compreende a formação desde o início de nossas vidas, e que os indivíduos estão em um processo de formação constante. Para o autor, a formação educacional do indivíduo conquista-se por meio de um engajamento crítico com as artes, a cultura, a ciência e a história, desenvolvendo nossa visão de vida por meio do diálogo crítico. Bildung, portanto, além de ser um processo de formação, também é um processo de transformação. Se quisermos que a formação constitua um processo de transformação do indivíduo através do diálogo crítico, precisamos ter consciência de que a educação exige o elemento da confiança. Afirma Nixon (2017, p. 19):
Educação - que prepara gerações sucessivas para assumir a responsabilidade por seu mundo - é, portanto, com base na confiança: confiança entre professores e educandos, confiança entre os alunos, confiança na possibilidade de compreensão. O que quer que milite contra a confiança diminui a educação. Relacionamentos baseados no medo ou coerção, procedimentos de avaliação que destacam fraquezas e falhas, atividades que priorizam competição sobre colaboração: todos esses são fatores que corroem a confiança sobre a qual a educação é baseada. [2]
O elemento da confiança é necessário em todas as relações humanas, quanto mais no processo educativo, na relação professor e aluno. Para Nixon (2017, p.19), construir laços de confiança fortalece e melhora a educação, pois relações baseadas no respeito e na confiança no processo formativo incentivam o aluno e favorecem as atividades de colaboração, melhorando a experiência educacional (NIXON, 2017, p.19).
No texto La educación es educarse (2000)[3], Gadamer reafirma a importância do diálogo no processo formativo, uma vez que, de acordo com ele, só podemos aprender através do diálogo. No referido texto, chama a atenção para a importância do diálogo que, em seu entender, já deve ser fomentado no âmbito familiar, destacando de forma especial, duas formas de experiência. A primeira, que se inicia após alguns meses do nascimento, resumindo-se às tentativas de agarrar e manipular objetos, mesmo que, para isso, sejam necessárias inúmeras tentativas, mas, ao conseguirem êxito, os bebês sentem-se extremamente orgulhosos de seus feitos. Esse exemplo utilizado por Gadamer, no qual busca exemplificar as primeiras experiências realizadas pelos bebês, pode ser acrescido por outra experiência e que, muitas vezes, testam a paciência de seus pais, o ato de jogar objetos ao chão, acompanhado da expectativa de que este seja recolhido e devolvido às suas pequeninas mãos, que novamente os lançará ao solo, movimento acompanhado por um imenso sorriso e expectativa, para que essa experiência possa se repetir por inúmeras vezes. Nessas experiências, aparentemente primitivas, já podemos encontrar elementos de uma ação dialógica, ainda não linguística, mas mediada por uma fusão de horizontes, característica de uma estrutura dialógica, em que o bebê busca, ao máximo, experimentar o que lhe é proporcionado. Esses pequenos gestos, que, muitas vezes, passam despercebidos na consciência de seus pais, tornam-se ações importantes no processo de desenvolvimento dialógico humano.
Outro período intenso e surpreendente para os pais, também ligado aos primeiros anos de vida da criança, associa-se àquele linguajar próprio de quem está aprendendo a falar, numa tentativa constante de pronunciar palavras e nomes. Essa necessidade de aprendizagem de coisas novas não ocorre somente em nossa infância, mas nos acompanha ao longo de nossa vida, portanto. Pergunta Gadamer (2000, p. 15):
Quem educa aqui? Ou isso é um educar-se? É educar-se como aquele que percebo em particular na satisfação que se tem como criança e como alguém que cresce quando começa a repetir o que não entende. Ele finalmente acertou e ficou orgulhoso e radiante. Assim, talvez devamos partir destes princípios para nunca esquecermos, que nós nos educamos e o chamado educador somente participa. Por exemplo, como professor ou mãe, temos uma modesta contribuição [4].
As perguntas propostas na passagem anterior podem nos ajudar a refletir sobre nossa função, tanto como pais ou professores. Da mesma forma como os pais devem participar atentamente do processo formativo de seus filhos, nós, educadores, também devemos estar atentos a proporcionar as plenas condições de desenvolvimento para nossos alunos, com a clareza de que eles educam-se a si mesmos. Independente de nosso papel, seja no de pais ou professores, não podemos deixar de lado o papel preponderante do diálogo e da aprendizagem pela linguagem. Educar é estar atento a esse princípio, “educação é educar-se, e formação é formar-se”, um ato que exige presença e participação, seja pai ou professor.
Segundo Nixon (2017, p.53-54), Gadamer, ao centrar seu olhar de forma mais específica para as áreas profissionais, desenvolve uma hermenêutica prática, a exemplo da educação. O conceito gadameriano de educação não se limita a um mero processo de transferência de conhecimento, ou de aquisição de habilidades, mas constitui um processo de mediação entre aquilo que é estranho e o que é familiar a nós. A educação abarca um espaço em que podemos compreender as coisas em um processo comunicativo com o outro, para que, assim, possamos, de forma confiante, transformar o estranho em familiar, pois o ensino, para Gadamer, encontra-se baseado na crença de que o entendimento mútuo é uma possibilidade latente em todas as trocas humanas.
Uma postura hermenêutica na educação compreende estimular nos educandos a capacidade de ensinar os alunos a perguntarem, ou questionarem-se, pois se vive em um mundo dominado pelas tecnologias, em que os conteúdos e os significados, portanto, as verdades, já se postam de forma pronta e acabada. Frente a esse contexto de verdades definidas, o mais preocupante no mundo online é a aceitação dessas verdades como sendo absolutas, mesmo que elas se desencontram com a tradição ou os costumes.
Pensar o diálogo como experiência formativa é compreender os efeitos da história em nossa vida e na vida de nossos alunos. Para isso, tanto professores quanto alunos precisam estar abertos para aprender algo novo, pois a escuta representa o princípio fundante da relação professor e aluno. Precisamos entrar em diálogo com o aluno para que ele compreenda a importância e a necessidade do diálogo entre as pessoas no convívio social. Um diálogo somente acontece quando deixamos o outro, ou o texto, falar por si mesmo. Gadamer localizou o processo da compreensão na fusão de horizontes e na dialética da pergunta e da resposta. Somente podemos descobrir os preconceitos legítimos com o uso da linguagem que é a base ontológica de nossa compreensão, portanto, meio e objeto de uma experiência hermenêutica. Para Gadamer, as diversas interpretações de um texto são especulativas, pois cada uma apresenta seus significados. Assim sendo, somente poderemos encontrar a interpretação correta em um texto se entrarmos em diálogo com ele, visto que, no decorrer do diálogo, os preconceitos verdadeiros revelar-se-ão no modo aberto entre a pergunta e a resposta, pois “ser que pode ser compreendido é linguagem”.
Frente ao cenário da incapacidade dialógica, não podemos deixar de levar em conta que o diálogo também tem que ser político, o que envolve, portanto, o conflito e o confronto dialógico, daí a importância de adotarmos uma postura hermenêutica que, nas palavras de Nixon (2017, p.27-28), significa definir nossa trajetória de vida em princípios éticos, deliberando nossas ações em relação aos outros moralmente, da mesma forma como gostaríamos que estes se relacionassem conosco. Portanto, uma postura hermenêutica na educação deve pautar-se por princípios éticos e morais, ou seja, os processos educacionais devem estar voltados a uma formação que desenvolva agentes intérpretes e questionadores, capazes de buscarem soluções coletivas aos problemas coletivos. O papel da educação, no contexto atual da polarização política, das fake news, da disseminação do ódio, da negação do outro, deve ser definido como o lugar em que os significados tomam forma como práticas dialógicas críticas.
Quando nos colocamos no horizonte da compreensão, tornamos o mundo menos estranho e desconhecido. Seguindo o pensamento gadameriano, para não sucumbirmos a nossa finitude, precisamos abrir-nos aos outros, ouvir o tu que está diante de nós, pois o impulso ético para a autorrealização relaciona-se com a questão moral sobre como tratamos o outro. Escreve Nixon (2017, p. 38):
Gadamer procurou mostrar que somos todos colegas intérpretes cujo tarefa compartilhada é construir um mundo baseado na compreensão mútua: uma tarefa com a qual a educação tem uma preocupação central e por meio da qual persegue seu propósito primordial. Nossas vidas são, na melhor das hipóteses, uma constante "fusão de horizontes", um processo infinito de pergunta e resposta; um processo que envolve uma longa, imensa e fundamentada atenção às particularidades da diferença [5].
Acreditamos que o diálogo que interessa à educação, bem como à práxis pedagógica, e que precisamos recuperar, é o diálogo vivo, um diálogo autêntico, aquele que encontramos na estrutura análoga ao conceito de jogo. Um diálogo constituído pela regra, mas que ao mesmo tempo não interfere na liberdade e na criatividade dos alunos, em que o professor não o tome como um recurso ameaçador, punitivo que desperte em seus alunos o medo, gerando uma espécie de submissão. O professor, segundo Flickinger (2014, p.83), precisa desenvolver a capacidade dialógica em seus educandos, refletindo-se no ato de brincar, que possibilita o entrosamento social, sem causar medo. Como já vimos, ao final da segunda parte desta investigação, o diálogo para ser autêntico, a fim de impedir o jogo de poder, deve ser simétrico, deve despertar a disposição de seus interlocutores a fim de entregar-se a um processo social aberto, reconhecendo mutuamente a autonomia de seu parceiro de diálogo, além da “[...] capacidade de ouvir um ao outro; sua interdependência no sentido de aceitarem que somente juntos chegarão a um resultado construtivo; e a renúncia de quaisquer verdades últimas” (FLICKINGER, 2014, p.83). Mesmo que o autor reconheça a dificuldade da realização dessa forma de diálogo, acreditamos que podemos ao menos tomá-la como referência, um critério para o diálogo pedagógico.
Pautar a práxis pedagógica no diálogo, na atualidade, é uma missão desafiadora, especialmente à frente de uma tendência instrumentalista, pois ela exige reconhecimento da palavra do outro, o reconhecimento da pergunta do outro. Buscar a compreensão do outro demanda respeito mútuo e disposição para ouvir. O ouvir é o meio privilegiado de acesso à verdade, que inicia pela pergunta do outro.
Uma pedagogia hermenêutica, baseada na recuperação do ouvido, busca retomar formas de aprendizagem esquecidas no tempo, fundamentais para a formação dialógica da humanidade. Mas a recuperação do ouvir, da capacidade de escutar, nem sempre é avaliada como interessante diante da primazia atual do ver e do fazer. A imagem e a escrita dominam a comunicação atual e isso impede a realização de ricas experiências que só o ouvir possibilita. Flickinger (2014, p. 88) descreve com precisão a situação que, muitas vezes, surge quando o professor tenta privilegiar o diálogo vivo:
Em sala de aula, um diálogo vivo não tem conjuntura, porque exige a disposição de atentar ao outro, sobretudo de ouvi-lo. As consequências são lamentáveis, pois o desprezo do ouvido “salva” os alunos da obrigação de acompanhar o pensamento “em processo” do educador, com todos os seus desvios e suas dificuldades de encontrar a palavra certa.
Flickinger destaca, na sequência de sua análise (2014, p.89-90), que a indisposição dos alunos para o diálogo vivo no campo pedagógico impede que se desenvolva uma lógica reflexiva e a elaboração dialógica dos conceitos, destruindo a vivacidade do processo de conhecer e agir pela palavra falada. Mesmo que a experiência do diálogo se caracteriza pela negatividade, quando não encontramos os resultados esperados, podemos encontrar uma estrutura reflexiva capaz de contrapor nossos preconceitos. Um diálogo verdadeiro é aquele que sempre busca um sentido, mesmo provisório, pois o que interessa não é encontrar uma verdade qualquer de forma definitiva. Precisamos ter consciência da fragilidade dos resultados, conforme alerta de Flickinger (2014, p. 90):
A base de uma postura que pressupõe o respeito mútuo e a seriedade das ponderações, é o vaivém de argumentos que possibilita a aprendizagem do novo. E isso é algo que nenhum dos parceiros pode prever de intensão. Exige-se, portanto, a paciência de ouvir e ponderar, deixando de lado a doutrinação.
Ainda que não se consiga o consenso, é preciso manter o diálogo vivo, pois o evento da verdade leva tempo, requer linguagem e é o resultado da mediação. A linguagem não é simplesmente um instrumento ou uma ferramenta, mas é através dela que nos tornamos nós mesmos, pois ela é o meio pela qual nos relacionamos com o mundo, um mundo carregado de significados prévios que moldam nossa consciência, mas que também permitem um universo de novas compreensões. Frente a esse mundo de possibilidades aberto pela linguagem, a educação deve preparar o aluno para que não seja apenas um simples receptor passivo de informação, mas que seja afetado em sua consciência histórica como agente ativo em sua formação continuada. Do ponto de vista da ética, a educação precisa nos preparar para que saibamos viver bem, sendo que viver bem é muito mais do que ter nossos desejos satisfeitos, mas levar ao nosso florescimento pessoal. Já do ponto de vista da moral, a educação deve contribuir para que saibamos tratar bem os outros, pensando a educação como um bem público.
Conclusão
Podemos definir a hermenêutica como a arte da compreensão que se revela no diálogo entre as pessoas e com o mundo. Uma prática educativa como experiência dialógico-hermenêutica pode ser pedagogicamente assumida quando se coloca o diálogo como prática dos debates, uma experiência de verdade não reduzida a um método, mas que leve em conta a dinâmica do tempo, da historicidade, da tradição. Precisamos compreender a tradição como uma linguagem que fala por si mesma como se fosse outro sujeito.
O procedimento hermenêutico, que visa identificar os preconceitos ilegítimos, para que, a partir de então, possamos compreender corretamente as coisas, torna-se uma práxis essencial na vida dos estudantes. Para isso, precisamos mostrar para nossos alunos a importância da tradição como autoridade frente aos preconceitos disseminados pelas redes sociais, para que possamos identificar os legítimos e eliminar os ilegítimos. O modelo proposto por Gadamer é o diálogo, cujo objetivo é chegar a um acordo. Caracterizado pela abertura, em um diálogo, não ignoramos a reivindicação do outro, pois nos colocamos em uma posição de escuta, para ouvir o que ele tem a nos dizer. Portanto, ao lermos uma mensagem posta nas redes, colocamo-nos em uma posição de escuta, mas isso não pode significar de modo algum que concordamos cegamente com essas informações, mas que podemos aceitar algo. Do ponto de vista metodológico, a abertura para a experiência configura-se na pergunta, pois é ela que irá nos apontar para uma direção, para um horizonte. Dessa forma, além de mostrarmos a importância da escuta, nós, educadores, precisamos ensinar nossos alunos a fazerem as perguntas corretas, o que não é tão simples assim, pois não existe um método específico para isso.
O entendimento mútuo somente pode ocorrer em um diálogo, composto por perguntas e respostas. Quando uma pergunta é feita de forma correta, ela gera o interesse do interpelado, ocorrendo então uma espécie de mistura de perguntas, entre a pergunta inicial que nos é colocada pela tradição e o significado que ela gera em nós, levando a uma fusão de horizontes, em que cada experiência gera uma nova experiência. É por isso que Gadamer afirma que “educar é educar-se”, e formar é formar-se, o que significa que apreciamos a posição do outro, reconhecendo que o processo de educação é vulnerável, em uma situação em que o educar pressupõe a exposição ao risco, já que ele também aprende a partir de suas próprias falhas. Conforme esclarece Herman (2002, p. 86),
A experiência educativa, enquanto hermenêutica, exige a exposição ao risco, às situações abertas e inesperadas, coincidindo com a impossibilidade de assegurar a tais práticas educativas uma estrutura estável, que garanta o êxito da ação interpretativa
A compreensão define-se por um movimento que não se restringe a uma síntese determinante, mas a uma abertura de novas possibilidades de compreensão, com o auxílio de outras pessoas, de outros tempos e de outros lugares. O jogo, portanto, é o método, o modo que nos permite guiar a compreensão. Assim, o jogo como modelo estrutural da hermenêutica filosófica constitui o modelo pedagógico de um modo de conhecer e saber, não excludente, mas como um projeto ético-político que possibilita um equilíbrio certo entre as tensões existentes entre o eu e o tu, portanto, para o nós.
Ainda que seja difícil alcançarmos o consenso, precisamos manter o diálogo vivo, mesmo que o acontecimento da verdade demande tempo. A linguagem não pode ser considerada simplesmente um instrumento ou uma ferramenta, mas o médium para a compreensão, pois por meio dela é que nos relacionamos com o mundo, um mundo carregado de significados prévios que moldam nossa consciência, mas que também permite um universo de novas compreensões.
Referências
BOMBASSARO, Luiz Carlos. Paidéia e humanitas enquanto raízes do projeto formativo iluminista. In: CENCI, A.C.; DALBOSCO, C.A., MÜHL, E.H. (org.). Sobre filosofia e educação: racionalidade, diversidade e formação pedagógica. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009. p. 191-204.
DALBOSCO, C. A. Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo. São Paulo: Paulinas, 2007.
FLICKINGER, Hans-Geor. A dinâmica do conceito de formação (Bildung) na atualidade. In: CENCI, Ângelo Vitório; DALBOSCO, Claudio Almir; MÜHL, Eldon Henrique (org.). Sobre filosofia e educação: racionalidade, diversidade e formação pedagógica. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009, p. 64-80.
FLICKINGER, Hans-Georg. Gadamer & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
GADAMER, Hans-Georg. La educación es educarse. Barcelona: Paidós, 2000.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: complementos e índice. Trad. Ênio Paulo Giachini. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
HERMANN, Nadja. Hermenêutica e educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
MÜHL, E. H; KOHLS, R.S. O sentido de uma vida examinada: a importância da pedagogia socrática na educação contemporânea. Revista Diálogo e Educação, Curitiba-PR, v.19, n. 61, p. 862-881, abr/jun., 2019.
NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
NIXON, Jon. Hans-Georg Gadamer: The Hermeneutical Imagination. London: SpringerBriefs in Education, 2017 (eBook Kindle).
ROHDEN, L. Hermenêutica Filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2019.
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Notas
[1] Por educação integral compreendemos a promoção do desenvolvimento unilateral do indivíduo, envolvendo todas as suas dimensões, ou seja, o desenvolvimento intelectual, físico, emocional, social, econômico e cultural. Ela implica que se leve em consideração a complexidade de cada momento histórico e a particularidade da vida de cada ser humano, de sua individualidade, mas sem desconsiderar o patrimônio já produzido pela humanidade com seu potencial emancipador e humanizador, no presente e no futuro.
[2] Versão original: “Education—which prepares successive generations to take responsibility for their world—is therefore premised on trust: trust between teachers and taught, trust between learners, trust in the possibility of understanding. Whatever militates against trust diminishes education. Relationships based on fear or coercion, assessment procedures that highlight weakness and failure, activities that prioritise competition over collaboration: these are all factors that erode the trust upon which education is based”. (NIXON, 2017, p.19).
[3] La educación es educarse (título em espanhol), é uma conferência realizada por Gadamer no ciclo de discussões sobre o tema “A educação em crise: uma oportunidade para o futuro”, realizada no dia 19 de maio de 1999, no Dietrich-Bonhoeffer- Gymnasium, na cidade de Eppelheim, na Alemanha. Na conferência o autor apresenta uma espécie de balanço em seus esforços educacionais. Falando de suas experiências pessoais destaca as influências e acontecimentos externos e que podem afetar a personalidade de uma pessoa.
[4] Versão original:¿Quién educa aqui? ¿O es esto um educarse? Es um educarse como el que percebo em particular em la satisfacción que uno tiene de niño y como alguien que va creciendo quando empieza a repetir lo que no entiende. Por fin lo há dicho bien, y entonces está orgulloso y radiante. Asi, debemos partir quizá de estos inicios para no olvidar jamás que nos educamos a nosotros mismos, que uno se educa y que el llamado educador participa sólo, por ejemplo como maestro o como madre, com uma modesta contribuiçión. (GADAMER, 2000, p.15).
[5] Versão original: “Gadamer sought to show that we are all fellow-interpreters whose shared task is to build a world based on mutual understanding: a task with which education is centrally concerned and through which it pursues its prime purpose. Our lives are, at best, a constant ‘fusion of horizons’, an endless process of question-and-answer; a process that involves a long, immense and reasoned attentiveness to the particularities of difference.” (NIXON, 2017, p.38)