Sobre o gesto da escrita e outras coisas mais

On the gesture of writing and more

Sobre el gesto de escribir y oytros temas

 

Jefferson Pereira de Almeida

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Farroupilha, RS, Brasil

jefferson.almeida@farroupilha.ifrs.edu.br

Viviane Cristina Pereira dos Santos Maruju

Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, RS, Brasil

vicmaruju@gmail.com

Sônia Regina da Luz Matos

Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, RS, Brasil

srlmatos@ucs.br

 

Recebido em 07 de agosto de 2023

Aprovado em 26 de agosto de 2023

Publicado em 13 de maio de 2024

 

Na invenção que se desdobra, o caminho traça linhas diversas, elas correm paralelas, entrecruzam-se, eventualmente se sobrepõem e, ora sim, ora não, expandem-se em variadas direções. Quem sabe tudo não se pareça uma espécie de dança não coreografada. Amiúde, as ações são orientadas teleologicamente, destinadas a alguma finalidade específica, de modo que, legitimadas pelas demandas de utilidade, reiteram certa submissão muda àquilo que arrasta consigo uma possibilidade de uso imediato e, por conseguinte, de um controle acerca dessas ações. Em circunstâncias tão frequentemente estreitas, é potente imaginar a dança como conjunto de movimentos não ensaiados, em que as posições surgem espontaneamente, em que as linhas do corpo riscam o ar, sem técnica específica, sem plano prévio. Somos tentados a enxergar na experimentação da dança a possibilidade da virtualidade. Quem sabe, pudéssemos aproximar a dança ao gesto, como se algo pudesse suspender a planificação e os papéis atribuídos. A aproximação com a dança ajuda e estorva, solta e suspende, esquiva e confronta. Há atributos comuns e, nesse sentido, encostá-los serve também para compreendermos as especificidades do gesto. É no contraste que surge a relação diferencial. O gesto não é a experiência apenas de um corpo, depende de certo agenciamento. No desdobramento, embora imprevisíveis, os gestos partem de algum lugar, projetam enunciações acolhidas por inúmeras pessoas, com apropriações singulares e incontroláveis. Quando lemos Fazer a mão: por uma escrita inventiva na universidade (Lisboa: Edições do Saguão, 2019), do professor português Jorge Ramos do Ó, somos lembrados, direta e indiretamente, que a escrita não é o mero ato mecânico das mãos, ainda que delas saia o movimento que escreve o texto. Sentimos a força dessa projeção que se lança infinitamente, produzindo seus efeitos. Nem só das mãos, nem só de um corpo.   

No livro, entre tantas coisas, interessa-nos o vagar. O verbo constitui a ação, impõe o deslocamento da deriva, a despeito de todas as institucionalidades da escrita e da educação. Como substantivo, o termo indica o lento desenvolvimento de determinada matéria. É isto que sentimos ao ler o texto de Ramos do Ó: nas coisas relativas ao estudo, à pesquisa e à escrita, há o requerimento do demorado movimento. Porém, os apelos são urgentes. Não parece estranho que elogiemos o arrastado andamento como condição para a escrita inventiva e, ainda assim, possamos tratar o produto como um livro que possui pressa? Em algum lugar de sua obra, Friedrich Nietzsche (2004) falou do cuidado com a palavra, da exigência do cadenciado trabalho de ourivesaria. Sim, o livro de Jorge Ramos do Ó insinua o ritmo do processo criativo, sem o qual torna-se impossível ler, estudar, pesquisar, escrever, conversar e encontrar pessoas. Se a medida fosse a velocidade do compasso, ousaríamos dizer que a vida reclama o andamento mais lento, o adagio. Contudo, considerando o que se lê nas mais de 500 páginas, há em seus apontamentos a urgência incontornável, a julgar pelo diagnóstico que se encontra em seu interior: como em nenhuma outra época, estamos diante da necessária pressa em reverter as condições sociais que determinam um afastamento definitivo das atividades de criação. Não há paradoxo ao afirmar que Fazer a mão é o livro premente acerca da necessidade do lento andamento do estudo e da pesquisa.

Mas não nos enganemos e façamos justiça, o livro é infinitamente mais sofisticado e complexo do que possa aparentar a descrição que realizamos. Ele esforça-se em indagar as relações existentes na sala de aula da pós-graduação, debate o seminário, trata das condições do fazer acadêmico, pensa o papel do investigador, discute a escrita, transita pela profissão universitária. Além disso, o autor tensiona o próprio modo pelo qual produzimos conhecimento. Como escrita de fôlego, pelas searas da história e da filosofia, pelo diálogo que efetua com miríade de autores, pelo manejo que faz das fontes, pelo exercício de uma genealogia que desconcerta, o texto de Jorge Ramos do Ó é provocante. A diversidade de referências traça o acolhimento da palavra do outro, a conversação como escuta, o pensar por conta do fluxo da leitura-escrita, a polêmica antiga como forma de atualização dos problemas contemporâneos da academia. Se o professor português propõe debater a escrita inventiva, ele próprio convoca o leitor a acompanhá-lo pela criativa aventura de um investigador que mistura a palavra do outro com seu desejo, como parte do enfrentamento sem fim de um tipo de pesquisa que se instaura na força da invenção da escrita acadêmica em comunidade. Por tudo isso, ainda que orientado por finalidades estabelecidas — e o subtítulo do escrito parece apontar para a destinação prevista —, entre o ponto de chegada e o ponto de partida há uma errância que leva o leitor a diversos lugares, distintos cenários, variados ambientes teóricos, múltiplas situações históricas. A matéria mistura-se ao procedimento.

Foi inevitável que o vagar atravessasse a grande questão metafísica que, sob a pena de Ramos do Ó, é incorporada à crítica genealógica, mas sobretudo ao esforço afirmativo do autor. Esta é a forma do combate. Há um apelo à coragem da escrita, que precisaria estar relacionada com o devir do mundo e do humano, uma escrita que, ao ser tecida, dirige-se para o desconhecido e para o diverso. De imediato, o leitor poderia perguntar, muito provavelmente acostumado com as normas da academia e da prática científica, como seria possível experimentar uma tal escrita no contexto de uma instituição engessada pelas grandes categorias clássicas. Estaríamos em face de um problema de natureza exclusivamente institucional ou de alguma dificuldade inerente às próprias condições do conhecimento e da ciência? Já que os motivos de tais hábitos parecem não se localizar exclusivamente na vida acadêmica, antes, estão incrustados no pensamento e no modo como nos organizamos culturalmente, parte do combate toma impulso na criação do cenário filosófico da crise da metafísica, delineando a problemática em que se insere a pergunta em torno da escrita inventiva. O processo segue com a arqueologia que evidencia os embates da escrita na antiguidade, no medievo e no humanismo renascentista, procurando destacar os diversos aspectos que já na história apontavam para a criação e a inventividade. Para Ramos do Ó, na experiência da autorreflexividade surge a oportunidade de questionar o rigor como padronização e normalização dos procedimentos e do pensamento. Seria preciso alforriar a ideia de rigor dessas pretensões formalistas, classificatórias, excludentes e esterilizantes. Doravante, o rigor exigiria algo que os formalismos não podem prometer: o tempo para a leitura, reflexão e discussão, o tempo dos encontros, o tempo dos afetos. Como se trata de um elogio dos encontros, o livro volta-se criticamente ao monólogo, à síntese, ao acordo passivo e à reprodução. Talvez um bom começo fosse escapar daquilo que está pronto e formatado e que, como tal, impõe-se como modelo. Eis que surge o imperativo de cogitar novas formas de sociabilidade no interior da universidade. Em solo familiar aos pós-estruturalistas, a crítica reivindica a passagem da conservação à afirmação, compreendida aqui como momento em que o trabalho acadêmico se lança à construção e à invenção.

No desenrolar dessa genealogia, em sua força histórica e filosófica, um dos aspectos reincidentes é a dependência da escrita, sua submissão à leitura. Com frequência, na universidade, requeremos a filiação à tradição como condição para a escrita. Em lógica distinta à recognição, Ramos do Ó propõe a diferenciação para delimitar outros problemas e outras articulações. Ao mencionar a transição da tradição em novidade, o autor fala do pertencimento e da exigência de incorporar aquilo que existe para deslocá-lo. Em outro lugar, a escrita infinita é produto de bricoleur para quem cabe escolher a herança para interpretá-la e relançá-la em termos distintos. Destituído do fetiche do novo, o pesquisador é aquele que toma algo inacabado, aberto, incompleto e sobre tal amplia sua construção. Sem desprezar a herança, o investigador é aquele que de alguma forma declara a morte daquilo que toma por legado, remixando-o a partir de suas referências.

Da maneira como Ramos do Ó apresenta o processo de escrita, não há como relacioná-lo apenas ao manejo de alguma técnica que supostamente conferiria a habilidade da criação. Diversamente, a atividade seria decorrente de importantes transformações na sensibilidade, na imaginação e no pensamento, operações com as quais se alcançaria uma nova arte de existir. Compreendemos que a peculiar forma da escrita inventiva não é propriamente uma técnica da mão, tampouco uma novidade a ser seguida, mas um procedimento ético, portanto, indissociável do corpo que, incapaz de se reconhecer na identidade da autoconsciência, realiza a experiência de si, sempre com o outro. Com Ramos do Ó trilhamos as veredas estéticas e éticas da escrita e não nos furtamos ao seu funcionamento político. É preciso que se diga que Fazer a mão retoma recomendações já bastante desbotadas pelo senso comum, requerimentos insistentemente defendidos pela pedagogia e desgastados pelo uso pouco cuidadoso. Há, entretanto, a singularidade da expressão que se encontra exatamente no ambiente desse atravessamento de referências, na indicação de atributos importantes, na apresentação de traços que, a despeito de certa obviedade teórica, não estão garantidos do ponto de vista prático. Se o senso comum da pedagogia coloca as palavras de ordem como promessa, sempre adiada e, ao fim e ao cabo, inalcançável, Jorge Ramos do Ó fertiliza o solo em que pode germinar a coragem individual e coletiva de pesquisadores em direção ao pensamento e à escrita do impossível. Uma vez que o autor posiciona o problema em campo aberto, em que a individualidade solitária é vulnerável, a contrapartida que potencializa as forças é a proposição do enfrentamento micropolítico. A virtualidade da produção científica é introduzida na efetividade e no cotidiano, apropriada pelo combate que se opera no varejo do pesquisador em sua comunidade. Cada um é convocado a apoderar-se do conhecimento, relacioná-lo com seus interesses, articulá-lo com seu objeto de pesquisa. A luta micropolítica dá-se na pesquisa e pela pesquisa, no apontamento das peculiaridades inventivas de uma escrita que encontra o outro e transborda os limites já citados.

Nenhum dos desejáveis predicados do fazer docente, da atividade investigativa e da escrita sobrevive sem a assunção da liberdade intelectual que desafie as verdades estabelecidas e que pense o impensável. Mesmo ciente do quão problemático pode ser o idealismo que cerca o conceito moderno de liberdade, e suas apropriações ideológicas, ainda assim, urge articular o desafio na prática universitária, sobretudo em um país que eventualmente reconhece na universidade um inimigo. Pensando naquilo que nos cabe, como exercício de autocrítica, restaria indagar se o demasiado peso da institucionalidade, seus fluxos e processos, sua compulsão pelo controle e registro, se tudo isto não seria o eficiente impedimento da criação. A universidade tem permanecido na burocracia, acomodada em seus múltiplos interesses privados, insensível e esgotada em sua capacidade autorreflexiva. O ambiente acadêmico e de pesquisa encontra-se de joelhos diante das normatizações, dos procedimentos avaliativos, do produtivismo, das réguas que alegadamente determinam o que é bom, dos índices e das quantidades que julgam o trabalho científico e a qualidade do pesquisador. Uma transvaloração do trabalho acadêmico e investigativo, pautado na criação, na inventividade, no compartilhamento e no andamento mais compassado e reflexivo, tudo reunido, poderia oferecer a contrapartida dessa visão de mundo tão fortemente questionada por Ramos do Ó? Ela seria suficiente para revertermos os sintomas nos espaços internos de nossa vida profissional? Toda instituição formativa cumpre expectativas sociais. Sem que enfrentemos tais expectativas, diretamente na totalidade da vida, pensamos ser difícil extrair as eventuais transformações em solo acadêmico. De todo o modo, são tentativas como a de Jorge Ramos do Ó que nos enchem de força e de potência e nos lançam mais uma vez ao combate micropolítico, ainda que tenhamos sofrido tão duras derrotas.


 

Referências

NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 

Ó, Jorge Ramos do. Fazer a mão: por uma escrita inventiva na universidade. Lisboa: Edições do Saguão, 2019.

 

Indicações de fomento:

Jefferson Pereira de Almeida é docente contemplado com fomento interno/afastamento do IFRS para qualificação em programa de pós-graduação.

Viviane Cristina Pereira dos Santos Maruju é bolsista Prosup/Capes, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, código de financiamento 001.

 

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