Educação Infantil do/no Campo: um olhar sobre os posicionamentos e discussões do Movimento Interfóruns da Educação Infantil do Brasil

Early childhood education in/of the countrysid: a look at the positionings and discussions of the Inter-forums movement of early childhood education of Brazil

Educación infantil en/de el campo: un examen sobre las posiciones y debates del movimiento Interfórumes de educación infantil de Brasil

 

Fernanda Cerqueira Candido da Silva https://lh7-us.googleusercontent.com/h9Ojv87ptVEgwx8PXehJNWB6RbeDlpXgP9wEPNuQgEiN1MWZqOYypeCQ59qJzbAdKq2NWcCoCxu9ig7Uxj9DQGeZQd62p5GHyOeol1sBa83pp3fhKd6TWJ4p1GJxaptf9Bd5r7OgGMw4FOSfvYdyTA

Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA, Brasil

fernandacerqueiracs@gmail.com

Emilia Peixoto Vieira https://lh7-us.googleusercontent.com/h9Ojv87ptVEgwx8PXehJNWB6RbeDlpXgP9wEPNuQgEiN1MWZqOYypeCQ59qJzbAdKq2NWcCoCxu9ig7Uxj9DQGeZQd62p5GHyOeol1sBa83pp3fhKd6TWJ4p1GJxaptf9Bd5r7OgGMw4FOSfvYdyTA

Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA, Brasil

emilcarl28@hotmail.com

 

Recebido em 03 de agosto de 2023

Aprovado em 22 de agosto de 2023

Publicado em 14 de maio de 2024

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo evidenciar os debates e posicionamentos dos pesquisadores associados ao Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib) sobre a Educação Infantil do Campo, no período de 2008 a 2019, por meio do mapeamento de produções disponíveis no site oficial do movimento. O interesse pelo movimento se justifica por ser uma importante organização autônoma, em defesa da Educação Infantil em suas diversas dimensões. Além disso, a temática surgiu também da importância de dar visibilidade às crianças e infâncias do campo, questão que tem se destacado nos últimos anos, especialmente depois da garantia do direito à educação pela Constituição Federal de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases de 1996. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, fundamentada em uma análise crítica e dialética e com uso de entrevistas. Além disso, apoia-se nas reflexões e estudos de Antonio Gramsci sobre a sociedade civil. Como resultado, identificou-se que o site agrega debates relacionados à Educação do Campo, aos movimentos sociais e a outras questões; mas ainda são poucos os estudos e pesquisa referentes à Educação Infantil do/no Campo e, quando aparecem, encontram-se imersos em pautas gerais da Educação Infantil. Sendo assim, ainda é tímido o debate sobre a Educação Infantil do Campo, apesar do Mieib apresentar um posicionamento comprometido com as crianças e as infâncias residentes em diversos contextos.

Palavras-chave: Educação Infantil do/no Campo; Educação Infantil; Educação do Campo; Movimento Interfóruns da Educação Infantil do Brasil.

 

ABSTRACT

This text aims to highlight the debates and positions of researchers associated with the Inter-Forums Movement of Early Childhood Education of the Brazil (Mieib) on Early Childhood Education in/of the Countryside, from 2008 to 2019, through the mapping of productions available on the movement's website. The interest in that movement is justified because it is an important autonomous organization, in defense of Early Childhood Education in its various dimensions. In addition, the theme also arose from the importance of giving visibility to countryside children and childhoods, an issue that has been highlighted in recent years, especially after the guarantee of the right to education by the Federal Constitution of 1988 and the Law of Guidelines and Bases of 1996. It is a bibliographic research, based on a critical and dialectic analysis and with the use of interviews. Furthermore, it relies on Antonio Gramsci's reflections on civil society. As a result, it was identified that the site aggregates debates related to Education of the Countryside, social movements and other issues; but there are still few studies and research referring to Early Childhood Education in/of the Countryside and, when they appear, they are immersed in general guidelines for Early Childhood Education. Therefore, the debate on Early Childhood Education in/of the Countryside is still timid, even though Mieib presents a position committed to children and childhoods residing in different contexts.

Keywords: Early Childhood Education in/of the Countryside; Early Childhood Education; Education of the Countryside; Inter-Forums Movement of Early Childhood Education in Brazil.

 

RESUMEN

Este texto tiene como objetivo resaltar los debates de los estudiosos asociados al Movimiento Interfórumes de Educación Infantil del Brasil sobre la Educación Infantil en/de el Campo, de 2008 a 2019, a través del mapeo de producciones disponibles en el sitio web del movimiento. El interés por el movimiento se justifica por ser una importante organización, en defensa de la Educación Infantil en sus diversas dimensiones. Además, el tema también surgió de la importancia de dar visibilidad a los niños y las infancias del campo, cuestión que se ha puesto de relieve en los últimos años, después de la garantía del derecho a la educación por la Constitución Federal de 1988 y la Ley de Directrices y Bases de 1996. Se trata de una investigación bibliográfica, basada en un análisis crítico y dialéctico y con la utilización de entrevistas. Además, se basa en las reflexiones de Gramsci sobre la sociedad civil. Como resultado, se identificó que el sitio agrega debates relacionados con la Educación del Campo, movimientos sociales y otros temas; pero aún son pocos los estudios relacionados con la Educación Infantil en/de el Campo y, cuando aparecen, están inmersos en orientaciones generales para la Educación Infantil. Así, el debate sobre la Educación Infantil en/de el Campo es todavía tímido, a pesar de que el Mieib presenta una posición comprometida con los niños que viven en contextos diferentes.

Palabras clave: Educación Infantil en/de el Campo; Educación Infantil; Educación de el Campo; Movimiento Interfórumes de Educación Infantil de el Brasil.

 

Introdução

O objetivo deste artigo[i] é analisar os debates, posicionamentos e proposições dos(as) pesquisadores(as) associados ao Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil - Mieib sobre Educação Infantil do Campo (EIC), com base na análise sistemática das “Cartas do Mieib” e “Agenda”, dispostas no site[ii] oficial da entidade, publicadas entre 2008 e 2019. Para compreender o conjunto de informações e os posicionamentos da entidade acrescentamos entrevistas com duas integrantes do Movimento.

O recorte temporal escolhido, 2008 a 2019, se justifica pela inclusão da Educação Infantil no financiamento do Fundeb - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação em 2008, o que gerou expectativa no aumento de matrícula para esse nível de ensino. Segundo Santos (2019), a inclusão de toda educação básica, abrangendo desde a Educação Infantil e demais modalidades de ensino, como a educação do campo e quilombola no financiamento público, registrou um aumento de recursos dos impostos para educação de 15% para 20%, com a garantia do custo aluno qualidade e um maior comprometimento da complementação da União.

O Fundeb significou uma grande conquista da sociedade civil organizada, especialmente do Mieib, que se envolveu diretamente com o movimento “Fundeb pra valer”, inclusive na divulgação de abaixo assinado, na defesa e aprovação dessa política pública de financiamento.

O presente trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla, a qual estuda as políticas públicas educacionais municipais para a garantia de uma educação de qualidade às crianças residentes no campo[iii]. Essa investigação de maior abrangência tem como hipótese de pesquisa a invisibilidade das questões das infâncias e crianças e da Educação Infantil do e no Campo e, consequentemente, da sua identidade, o que tem incidido na flexibilização de políticas para esse nível e modalidade da educação básica, com a redução do custo da sua manutenção e precarização da sua oferta, sem o reconhecimento pleno da cidadania de crianças de até 6 anos. Ao lado dessas questões, verificamos que ainda são poucos os estudos sobre a Educação Infantil do e no Campo, principalmente para o acompanhamento e monitoramento das diversas realidades campesinas e respeito aos direitos das crianças.

Um estudo realizado em 2012, a partir de parceria estabelecida entre o Ministério da Educação - MEC e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, intitulado Pesquisa Nacional: caracterização das práticas educativas com crianças de 0 a 6 anos residentes em área rural (BRASIL, 2012), indicou expressiva desigualdade e violação de direitos das crianças devido ao baixíssimo percentual de creches presente nos territórios rurais do país, à oferta de pré-escola atrelada aos anos iniciais do Ensino Fundamental e à ausência de infraestrutura específica para atender bebês e crianças pequenas. A incorporação dos modos de vida das famílias das crianças do campo às práticas pedagógicas realizadas (BRASIL, 2009) e o acesso à Educação Infantil constituem compromisso constitucional e direito de todas as crianças brasileiras que vivem no campo, em qualquer parte do território nacional.

Devemos destacar aqui que a educação para a criança pequena possui um histórico de lutas para o seu reconhecimento como sujeito de direito e pessoa produtora de cultura, pois, por muitos anos, encontrou-se em um estado de “anonimato”, de invisibilidade da sua infância, o que lhe fez ser considerada um “adulto em miniatura”, expressão mencionada por Ariès (1986). Além disso, com o surgimento das indústrias, inicialmente no contexto europeu, as crianças foram vistas como excelente “mão de obra”, já que tinham mais agilidade por causa da baixa estatura e recebiam baixos salários, ainda que trabalhassem a mesma jornada de adultos, 14 horas diárias, e também realizassem funções insalubres.

No Brasil, quando se inicia o debate sobre e educação para essas crianças, as primeiras ações são ligadas à esfera assistencialista e não à concepção atual de cuidar e educar. “[...] preconizavam uma educação pré-escolar compensatória de ‘carências’ de populações pobres e apoiada em recursos da comunidade, visando despender poucas verbas do Estado para sua expansão” (ROSEMBERG, 2003, p.1). Desse modo, a educação em creches e pré-escolas tinham a finalidade de compensar as necessidades afetivas, culturais e sociais, especialmente às crianças pobres.

Nesta pesquisa, consideramos o contexto educacional formado a partir da promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988, por se tratar da primeira legislação que garantiu o direito de todos à educação e, inclusive, à Educação Infantil, considerada como primeira etapa da educação básica. Assim, a partir da CF de 1988, o Estado tem o dever da oferta da Educação Infantil.

Com isso, podemos dizer que o panorama da Educação Infantil mudou consideravelmente após a CF/88 e, mais ainda, depois da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996. Nesse novo cenário, a criança, inserida no campo educacional, passou a ser reconhecida como sujeito de direitos, exigindo uma formação não mais meramente assistencialista, mas que atendesse as suas demandas para seu desenvolvimento integral.

 

Art. 29 - A educação infantil, primeira etapa da educação básica tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. (BRASIL,1996, n.p.).

 

Várias normativas sucederam essas legislações e inúmeras políticas foram pensadas e implementadas para atender a educação das crianças pequenas, uma vez que as décadas de 1990 e 2000 foram compostas por muitos debates e transições para o atendimento à Educação Infantil.

Quando se trata da Educação Infantil do e no Campo as conquistas ainda são tímidas, pois as infâncias e crianças moradoras do campo ainda se encontram em situações de invisibilidade, vulnerabilidade e de negligência de direitos. Contribui para essa desigualdade, a visão distorcida e preconceituosa em relação aos sujeitos do campo, por meio da qual “o camponês brasileiro foi estereotipado pela ideologia dominante como fraco e atrasado” (FERNANDES, CERIOLI, CALDART, 2011, p. 31), ocasionando uma dicotomia entre campo – visto como sinônimo de atraso – e cidade – encarada como sinônimo de desenvolvimento.

A Educação do Campo trouxe uma nova ressignificação para o “campo”, não apenas como espaço geográfico, mas como território complexo em constante disputa. Nesse sentido, estudos demonstram que a Educação do/no Campo é distinta da Educação rural, pois a Educação do Campo surge em contraposição ao modelo educacional urbanocêntrico, com a reprodução dos currículos das cidades, sem considerar os sujeitos, as especificidades, os saberes e a cultura dos diversos indivíduos que habitam o campo.

Para Caldart (2005, p. 26), o “do” como representatividade refere-se a uma educação dos camponeses, feita com a sua participação e que valoriza seus saberes; já o “no” refere-se ao lugar onde vivem, a uma escola no campo, próxima à sua comunidade, pois a população do campo também tem direito a estudar no lugar onde vive, levando em consideração a sua diversidade.

Esse entendimento também deve estar presente quando nos referimos à Educação Infantil do e no Campo, a qual necessita de políticas educacionais afirmativas para uma educação de qualidade, com infraestrutura adequada, transporte escolar, formação inicial e continuada de professores para atender a realidade das infâncias e as suas especificidades. Precisamos, portanto, junto às comunidades escolares, cobrar do Estado a responsabilidade pelas demandas e garantia desses direitos. Nesse sentido, Vieira e Silva (2023, p. 4) afirmam:

 

A Educação Infantil do/no Campo está inserida nesse debate, e possui em suas raízes a expressão do movimento das lutas sociais contra as ideologias da sociedade capitalista que desvaloriza os saberes populares, desqualificando-os e os considerando como atrasados, enaltecendo a perspectiva do agronegócio e das grandes cidades.

 

As autoras discutem como a Educação Infantil do/no Campo está intrinsicamente ligada aos movimentos sociais, principalmente ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que lutam por uma contra-hegemonia que valorize seus conhecimentos e cultura, principalmente na educação, e diferente da ideologia capitalista que, como dissemos, dicotomiza o campo e a cidade. Portanto, a Educação Infantil do/no Campo simboliza a resistência de um grupo, que busca ser visibilizado e ter seus direitos assegurados.

Este texto está organizado, além desta introdução, em mais duas outras partes. Na primeira parte, apresentamos o percurso teórico-metodológico do trabalho e os procedimentos da pesquisa, a organização e análise das produções e materiais selecionados a respeito da Educação Infantil do Campo no Brasil, no site do Mieib. Na segunda parte, nos resultados e análise da produção identificada no site e das entrevistas do Mieib, apresentamos os estudos sobre a Educação do Campo e como a Educação Infantil do Campo está presente nessa temática. Após essas discussões, tecemos as considerações finais.

 

Percurso teórico-metodológico da pesquisa

Para atender aos objetivos deste trabalho, a pesquisa foi guiada por uma abordagem crítica e da totalidade da realidade, levando-nos a compreender o objeto investigado, a Educação Infantil do/no Campo, a partir de um olhar da relação entre o universal e o particular, entre o todo e a parte, da Educação Infantil para Educação Infantil do/no Campo (CURY, 1986).

Como sabemos, para compreender as múltiplas determinações do objeto de pesquisa, o pesquisador deve partir de outros estudos já realizados. Nesta investigação, portanto, utilizamos uma pesquisa de levantamento bibliográfico que, segundo Vosgerau e Romanowski (2014, p. 6), abrange “[...] a elaboração de ensaios que favorecem a contextualização, problematização e uma primeira validação do quadro teórico a ser utilizado na investigação empreendida”.

Também recorremos aos estudos de Gramsci (2001) sobre a categoria de sociedade civil, composta pela noção de Estado ampliado. Sobre essa categoria, Gramsci afirma:

 

Por enquanto, podem-se fixar dois grandes “planos” superestruturais: o que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como “privados”) e o da “sociedade política ou Estado”, planos que correspondem, respectivamente, à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”. (GRAMSCI, 2001, p. 20-21).

 

Para Gramsci (2001), o Estado ampliado agrupa a sociedade civil formada por grupos privados, que exercem também influência no contexto social e político. Esses grupos aderem ou se posicionam contra a tomada de decisões da sociedade política, como o Movimento Interfóruns da Educação Infantil do Brasil - Mieib, outro objeto de estudo dessa pesquisa. A ação das fraldas pintadas foi um dos muitos posicionamentos políticos do Mieib, em conjunto com outros movimentos sociais, enquanto sociedade civil que se contrapôs ao posicionamento do Estado, no sentido estrito, de retirada da creche do Fundeb, reivindicando e conquistando uma educação infantil pública, gratuita, democrática e de qualidade para bebês e crianças pequenas.

Outra luta que foi incorporada ao cenário da política educacional foi a pauta do corte etário de 31 de março para o ingresso das crianças no Ensino Fundamental. O Mieib distribuiu panfletos à comunidade, assim como cobrou a homologação do Conselho Nacional de Educação (CNE), efetivada com o Parecer CNE/CEB n° 2 de 13 de setembro de 2018 (BRASIL, 2018a).

Ainda, esclarecendo a referida categoria sociedade civil, Vieira e Santana (2021, p. 81) explicam:

 

[...] a sociedade civil é parte e compõe junto o Estado, vista como uma organização constituída de instituições complexas, públicas e privadas, articuladas entre si, cujo papel histórico varia por meio das lutas e das relações de grupos específicos e poderes, que se articula a partir dos consensos e da busca pela hegemonia.

 

Apoiamo-nos também nos estudos de Vosgerau e Romanowski (2014), para a análise e exploração dos materiais selecionados, ou seja, para realizar a inferência e interpretação devidas e compreender a organização dos conhecimentos de maneira sistematizada (VOSGERAU; ROMANOWSKI, 2014).

A pesquisa foi realizada no site oficial do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil – Mieib. Também realizamos entrevistas com duas integrantes do Mieib, para complementar as informações ou preencher lacunas identificadas no site do Mieib.

O recorte temporal de 2008 a 2019, como mencionamos anteriormente, se justifica pela vigência do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), o qual foi criado em 2008, tornou-se permanente a partir da Emenda Constitucional n° 108, de 27 de agosto de 2020 e encontra-se regulamentado pela Lei nº 14.113, de 25 de dezembro de 2020. Importante esclarecer aqui que esta pesquisa considera esse recorte temporal, mas foi realizada de agosto de 2021 a maio de 2023.

O Mieib foi criado em 1999 pela articulação de comitês estaduais, os quais já realizavam a discussão sobre “a demanda por educação infantil no país e desde então vem pautando suas ações de incidência política nos temas de maior relevância no cenário nacional, garantindo a consideração das especificidades locais a partir da intervenção dos fóruns estaduais” (MIEIB, c2023, n.p.).

A pesquisa procedeu com base na análise sistemática das “Cartas do Mieib” e “Agenda”, dispostas no site da entidade, publicadas entre 2008 e 2019. Todas as opções de pesquisa se encontram na página inicial da entidade. Nesse caso, selecionamos a opção “Biblioteca” e, depois, o subitem “Cartas do Mieib”. Dos 21 resultados encontrados, selecionamos 19 cartas, por meio da leitura inicial do título, observando a proximidade delas com a temática da pesquisa. Após a leitura desses documentos na íntegra, percebemos que das 19 cartas selecionadas, somente 15 apresentavam questões referentes à Educação Infantil em um contexto geral de garantia de direitos fundamentais, com a inclusão de questões relacionadas à Educação Infantil do Campo.

Das 15 cartas, identificamos 29 temas emergentes, havendo recorrência de alguns deles, como no caso do “Direito da criança”, que se repetiu em 10 cartas. Apesar disso, outros temas apareceram uma única vez, como “Rejeição à PEC 241”, talvez devido ao fato de ter sido marcado pontualmente pelo contexto político de sua época. No próximo item apresentamos as discussões sobre esses temas.

Na segunda etapa da pesquisa, selecionamos opção “Agenda”. Como filtragem inicial, observamos dois pontos: os títulos – próximos à Educação Infantil do Campo, como por exemplo “Educação Infantil e Diversidade”, mas descartando notícias referentes a questões mais abrangentes como Educação Inclusiva, Relações de gênero etc. – e o ano de publicação de cada notícia. Dos 94 materiais dispostos na opção “Agenda”, 32 foram selecionados para um segundo refinamento, a partir dos seguintes critérios de escolha: notícias com informações detalhadas e completas, já que algumas só traziam o cartaz do evento, com informações mínimas (horário, data, tema geral e local); notícias em que o/a palestrante fosse algum/a teórico/a específico/a da Educação do Campo e/ou da Educação Infantil do Campo.

Com esses critérios, selecionamos 13 notícias. Vale salientar que, por se tratar de “Agenda”, algumas não possuíam um detalhamento das temáticas de cada publicação. Realizamos a leitura desses 13 textos na íntegra e, ao final, selecionamos 7 que se aproximavam da temática Educação Infantil do/no Campo.

Na última etapa da pesquisa, percebemos a necessidade de um aprofundamento acerca de alguns questionamentos que surgiram no decorrer da pesquisa. Para responder a esses questionamentos, optamos pela realização de duas entrevistas semiestruturadas, com 12 questões, com integrantes do Mieib Nordeste e da Bahia. A escolha dos integrantes da referida região se deu a partir da vinculação com a pesquisa mais ampla realizada na região Sul da Bahia.

As entrevistas ocorreram remotamente, por causa do fato de as integrantes do movimento se encontrarem em outras cidades, o que dificultou o encontro presencial. As entrevistas foram gravadas, por meio do uso do Google Meet e com a autorização das entrevistadas, no mês de maio de 2022. Em respeito ao anonimato, optamos por chamá-las de “A” e “B”: “A” para a representante do Mieib do Nordeste e “B” para a integrante do Fórum do Mieib da Bahia (FEBEI).

A exploração inicial resultou em 4 temáticas emergentes: Criação e Organização; Campo; Discussões Pandêmica; Temáticas e Desafios. Após essa organização inicial, que serviu como um guia para a sistematização da escrita e de novos dados, elaboramos um resumo de cada resposta das entrevistadas para as 12 questões propostas e, por meio da comparação entre as respostas de cada uma, reorganizamos os dados em 3 temáticas emergentes: Organização Interna do MIEIB; Temáticas Emergentes; e Educação Infantil do/no Campo. No próximo item apresentamos as discussões e resultados da pesquisa de levantamento bibliográfico.                                                                           

Resultados e Discussões

Conforme mencionamos no percurso metodológico, a pesquisa sobre o Mieib foi realizada em duas etapas: a primeira ocorreu com a análise das produções – “Cartas” e “Agenda” – disponíveis no site do Mieib (c2023); e a segunda se deu a partir das entrevistas com as integrantes do movimento.

 

As Cartas do Mieib

Como dissemos, selecionamos 15 Cartas e, a partir da leitura delas na íntegra, identificamos 29 temas emergentes, os quais foram divididos em 4 áreas específicas: profissionais da Educação Infantil; políticas para Educação Infantil do/no Campo; políticas públicas educacionais; políticas públicas voltadas para programas e documentos orientadores/reguladores da Educação Infantil. 

Sobre a temática Profissionais da Educação Infantil, identificamos que as discussões estão relacionadas à formação inicial e continuada e obrigatoriedade de formação em nível superior, a leis de valorização do magistério, concurso público e ao ProInfantil para professores contratados até 2008. Os documentos referentes a essa temática apresentam em seu conteúdo preocupação com a ampliação de políticas públicas direcionadas à formação inicial de professores, conforme incentiva a LDB/1996, por haver um quantitativo considerável de professores/as com formação em nível do magistério; defendem a formação continuada de professores/as em exercício na Educação Infantil, convergindo para as especificidades das crianças e infâncias; realçam a exigência do curso de Pedagogia nos editais de concursos públicos para professores da Educação Infantil; e reivindicam a garantia da continuidade do programa de formação ProInfantil para professores que foram contratados até o ano de 2008, sem a formação mínima exigida. 

            Nessa área temática, identificamos o posicionamento do Mieib em defesa do direito das crianças a uma educação de qualidade, o que exige profissionais com formação inicial em curso de licenciatura em Pedagogia, implantação da Lei do Piso Salarial – Lei nº 11.738/2008 – e posicionamento contrário às concepções do Programa Criança Feliz, implantado no governo Temer, por meio da contratação de “profissionais capacitados”, sem uma devida formação inicial de qualidade.

Em relação a Políticas para Educação Infantil do/no Campo, as discussões abordam as especificidades das infâncias e crianças moradoras do campo, como o direito delas à educação. Identificamos nas cartas questões sobre o campo, ampliação de pesquisas e suas diversidades, currículo e representação no fórum.

Nesse caso, para o Mieib (c2023), é importante investir em diagnósticos das escolas de Educação Infantil do Campo; defender a efetivação de políticas públicas da Educação Infantil em vários contextos (cidade e campo, lugar onde vivem ribeirinhos, assentados, quilombolas, caiçaras, indígenas, entre outros), com políticas de financiamento e de fiscalização; realizar a distribuição de materiais pedagógicos para Educação Infantil respeitando a qualidade e as especificidades regionais.

O posicionamento do Mieib (c2023) converge para a ideia de que todas as crianças brasileiras (do campo ou da cidade), independe de condição social/econômica/física, sejam reconhecidas como pessoa produtora de cultura, sujeito de experiência, histórico e de direitos. Nessas discussões do movimento, a garantia de direitos evidencia também a luta por um currículo que respeite as especificidades das infâncias, das crianças.

 

A principal questão que se coloca não é mais “por que” ofertar Educação Infantil para as populações do campo, mas “como” garantir o direito à creche/pré-escola para as populações rurais que o desejam, respeitando as demandas das famílias, suas formas de relação com a produção e as especificidades das crianças do campo. (SILVA; PASUCH; SILVA, 2012, p.  48). 

 

A visibilidade dessas questões, segundo o Mieib (c2023), ocorre com o posicionamento e participação em outros fóruns de representação, com o apoio das pesquisas sobre os diversos contextos em que as crianças estão inseridas, o que evidencia a diversidade de infâncias no país. 

Por meio das leituras e análises realizadas, notamos que representação do Mieib em diversos fóruns permitiu que sua atuação promovesse o debate, posicionamento e proposição de políticas sobre temas importantes para a Educação Infantil no Brasil, tais como: o financiamento e referência custo-aluno; a municipalização assistida dos entes federados; criação de currículos vinculados aos documentos legais do MEC/COEDI; a avaliação da Educação Infantil, sem configurar quantificação de conhecimento ou preparação da Pré-escola para o Ensino Fundamental; o debate sobre a data de corte etário de 31 de março para frequentar a Educação Infantil de 0 a 6 anos de idade; espaços adequados para as crianças, assim como o reconhecimento do espaço coletivo e a importância dessa educação para as crianças. 

A temática Políticas Públicas voltadas para programas e documentos orientadores/reguladores da Educação Infantil evidencia diversas discussões e posicionamento do Mieib, como o direito das crianças a uma educação de qualidade – independente de classe, etnia, gênero, moradia, credo –, além do seu reconhecimento como pessoa produtora de cultura; espaço/período na Educação Infantil; data de corte etário; ampliação de políticas públicas; acompanhamento da oferta de vagas em creches e pré-escolas; 1ª etapa da educação básica; avaliação da Educação Infantil; Currículo; representação nos fóruns; repúdio à privatização; CAQ e CAQI; entes federados; Educação Infantil como espaço coletivo; e o próprio papel do MIEIB.

Essas temáticas demonstram que o Mieib configurou a identidade da Educação Infantil, perspectivando o direito a uma Educação Infantil de qualidade (creche e pré-escola), independente da condição social, religiosa, étnico-racial etc. Com isso, o movimento posiciona-se contrário à privatização e ao uso de recursos públicos para o privado, denunciando as formas de organização de empresas privadas para convênios com o Estado; e revela ser contra também à promoção, por meio de avaliações (“provas”), das crianças da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, como forma de quantificar o conhecimento: “Uma vez admitido o ingresso de crianças com idade inferior a 6 (seis) anos, em pouco tempo, teríamos escolas oferecendo cursos de preparação para “vestibulinhos” (MIEIB, c2023, n.p.).

No que se refere a Políticas Públicas voltadas para programas orientadores/reguladores da Educação Infantil as produções apresentam discussões acerca das normatizações para institucionalização dessa primeira etapa da educação básica. Entre as discussões destacam-se as seguintes: as planilhas do Censo INEP; programas de merenda; figura de auxiliar; ProInfância; aprovação do PNE; permanência do Alvará Sanitário; BNCCEI; BNCC; e Rejeição à PEC 241 – Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 que institui o Novo Regime Fiscal (NRF), conhecido como teto dos gastos públicos, no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, com vigência por 20 anos.

Vale destacar a importância do posicionamento do Mieib a respeito das planilhas do Censo INEP, pois em suas discussões defende a importância da manutenção do censo escolar para as faixas etárias 0-6 anos e reivindica o aumento do PNAC e PNAP para atender as necessidades nutricionais das crianças, além da inclusão de um programa de alimentação escolar.

Entre os anos de 2011 e 2013, o Mieib esteve envolvido intensamente na discussão sobre a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005 de 2014. Nesse plano, demonstrou ser favorável à ampliação de políticas públicas voltadas para a Educação Infantil e à aprovação como Meta 1 do PNE o alcance de 100% das crianças de 4 e 5 anos matriculadas na pré-escola e 50% das crianças de 0 a 3 anos matriculadas em creches até o final de vigência do PNE, em 2024. O Mieib também se posicionou contrário à proposta da BNCC e reivindica a retomada da proposta discutida em 2016 da BNCCEI, por meio de uma construção democrática.

As cartas analisadas demonstram como o Mieib tem sido ativo e propositivo nas discussões relacionadas à Educação Infantil e a Educação Infantil do Campo esteve presente, ainda que timidamente, nessas discussões e debates. 

 

A Agenda do Mieib

As notícias dispostas na opção “Agenda”, caracterizadas como organização de eventos, discutem questões que reforçam a importância da Educação Infantil e do Mieib como espaço de lutas e de resistência, como por exemplo a temática trazida em um dos eventos, o “Fórum de Educação Infantil: espaço de resistência: por nenhum direito à menos”.

Sobre a Educação Infantil do Campo, muitos eventos organizados para essa abordagem contaram com a participação de especialistas da área, como Jaqueline Pasuch, Rosa Batista, Fernanda Leal, Roseli Caldart e Léa Tiriba. Alguns eventos, em 2017, promoveram uma discussão exclusivamente sobre a Educação Infantil do Campo, como o “VI Seminário de Educação Infantil do Campo” e o “I Encontro Nacional de Educação Infantil indígena e quilombola”. A presença do MST em alguns eventos também foi de fundamental importância e de interlocução com o Mieib, já que ele está diretamente ligado à história da criação da Educação do Campo como espaço político, de valores e saberes próprios. Os anos de 2017 a 2019 foram de destaque no Mieib devido ao envolvimento com a discussão sobre Educação Infantil do e no Campo. 

Ao final das análises das Cartas e da Agenda do Mieib, percebemos a necessidade de aprofundamento acerca de alguns questionamentos que apareceram no decorrer da pesquisa bibliográfica, como organização e tomadas de decisões. Para responder a esses questionamentos optamos pela realização de duas entrevistas semiestruturadas, com roteiro prévio, mas também com espaço para as questões demandadas durante a entrevista.

 

As entrevistas

Conforme mencionamos no percurso metodológico da pesquisa, realizamos a entrevistas com duas integrantes do Mieib, identificadas como “A” – para a integrante do Mieib Nordeste – e “B” – para a integrante do Fórum do Mieib da Bahia (FEBEI). As entrevistadas são mulheres, professoras com experiência na educação e na Educação Infantil e estão em período de formação continuada, pois uma cursa doutorado e a outra, mestrado. O Quadro 1 mostra a organização de suas respostas.

 

Quadro 1 - Temáticas Emergentes das entrevistas das integrantes do Mieib

Temáticas

Conteúdo

Subcategorias

 

Organização interna do Mieib

Criação e organização

- Conjuntura;

- Organização;

- Encontros;

- Integrar o Fórum.

Temáticas Emergentes

Discussões e Temáticas do Mieib

- Discussões pandêmicas;

- Discussões gerais e desafios.

Educação Infantil do Campo

Fórum e discussões

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Fonte: elaborado pelas autoras com base nos dados da pesquisa (2022).

 

Como podemos ver no Quadro 1, as entrevistas foram organizadas em três categorias: Organização interna do Mieib; Temáticas Emergentes; Educação do Campo.  Quanto à Organização interna do Mieib, as questões agrupadas referem-se à conjuntura de criação do movimento, à sua organização em encontros e como integrar o Mieib.

Segundo as entrevistadas, o Mieib foi criado em movimento de resistência, na década de 1990, com pequenos grupos que se articularam naquele momento para a criação de fóruns estaduais, contribuindo para a formulação de diversos documentos legais e implementação de políticas públicas, enfim, para o reconhecimento da Educação Infantil como primeira etapa da educação básica. Os trechos das entrevistas citados a seguir confirmam essa discussão.

 

Eu acho que a gente tem que resgatar um pouco para falar dessa conjuntura, resgatar a própria década de 90, que a gente diz que foi né, o período da redemocratização... o que move também o movimento da sua criação, e, é até hoje também a luta pra [sic] você é... pela especificidade da educação infantil, pela identidade da educação infantil, que tem uma especificidade própria. (A, 2022).

 

Primeiro surge o fórum para depois surgir o Mieib... então ele surge em uma conjuntura onde [sic] a necessidade de ter um olhar atento para a criança como um grupo que pudesse pesquisar, estudar e discutir questões específicas da educação infantil e naquela época ainda estava mais pro [sic] campo da assistência né, e não do campo da educação, da secretaria de educação. (B, 2022).

 

Sobre a organização do movimento, as entrevistadas informaram que é organizado por regiões (Norte, Nordeste, Sul, Centro-Oeste e Sudeste), as quais se dividem em fóruns estaduais e estes, por sua vez, se subdividem em fóruns municipais, para conseguir atender a todas as discussões e especificidades. Cada fórum tem autonomia para se organizar da forma que melhor lhe convém, mas todos têm em comum a Carta de Princípios como documento norteador. Em relação às reuniões: “Os encontros nacionais [ocorrem] uma vez por ano... Os encontros estaduais se estabelecem dentro das agendas de cada um organizar” (B, 2022).

De acordo com as entrevistadas, para fazer parte do Mieib, integrar o movimento, é preciso fazer parte de um fórum estadual e/ou municipal e ter interesse nas pautas do Mieib, defender os direitos das crianças à educação. Além disso, não necessariamente tem que ser professor, mas tem que estar ligado à Educação Infantil e fazer parte da sociedade civil organizada. Para fazer parte do Comitê Diretivo do Mieib é necessário passar por um comitê eleitoral através da recomendação dos fóruns, em que há uma votação coletiva para escolher quem fará parte do comitê.

 

[...] é estar comprometido né, com a luta da educação infantil e você localizar no seu Estado esse fórum, se tem essa atuação, se tem essa visibilidade pra [sic] você se aproximar e contribuir. (A, 2022).

 

Em relação aos Temas Emergentes da subcategoria Discussões gerais e desafios, destacam-se os debates que emergiram no Mieib, nos últimos anos. No total, identificamos 10 temáticas emergentes das falas das entrevistadas. Ambas enfatizaram a preocupação com a formação de professor(a) e como essa temática tem sido uma questão de debates e proposição dentro do movimento, a valorização e formação inicial e continuada, a remuneração adequada e a oferta de uma educação de qualidade para as crianças.

 

Então, assim, seria o que mobilizou nesses últimos anos: financiamento, a pauta também de formação de professores... avaliações... (A, 2022).

 

[...] existe uma demanda decorrente que é formação de professor, então essa é uma demanda recorrente, a outra tem a ver com a oferta de qualidade. (B, 2022).

 

A infraestrutura adequada, o uso de material didático e currículo que respeite a diversidade e saberes da comunidade e das crianças também se revelaram assuntos de destaque; pois, de acordo com os Parâmetros Nacionais de Qualidade da Educação Infantil, “[...] a garantia da qualidade depende das ações constantes de planejamento, avaliação, monitoramento e manutenção das estruturas físicas das Instituições de Educação Infantil” (BRASIL, 2018b, p. 68).

Além disso, podemos notar a preocupação do movimento em relação à avaliação, mas como forma de monitorar as demandas e não no sentido de classificar, quantificar os conhecimentos das crianças.

 

[...] porque avaliar a educação infantil é avaliar se a oferta atende à demanda, se os espaços são adequados, se os profissionais são classificados e outras coisas mais para educação infantil. (A, 2022).

 

A oferta da educação pelos municípios e não pelas instituições privadas também se sobressaiu na discussão, reforçando a responsabilidade do Estado em relação a isso. A entrevistada B afirma: “[...] a gente discute espaço adequado, é ... municipalização mesmo, deixar de ser privada ou do terceiro setor, mas estar como a legislação oferta pelo município assumindo a educação infantil” (B, 2022).

O financiamento também emergiu como preocupação para o atendimento às infâncias, com a necessidade de se ampliar políticas de financiamento para a primeira etapa da educação básica. Também foi citada a falta de financiamento do próprio movimento. “Então, dinheiro é uma questão que é problema, porque pra [sic] gente se envolver com as ações a gente bota do bolso” (B, 2022) para se deslocar para eventos, congressos.

O último tema emergente foi referente ao posicionamento do Mieib em relação à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), sobre a qual houve muita discussão dentro do movimento e gerou uma dualidade de opinião por parte dos integrantes. Houve grupos que se colocaram contrários à BNCC, enquanto outros se posicionaram a favor. Ademais, as entrevistadas falaram brevemente sobre os especialistas que auxiliaram a construção da base e que também participaram da construção das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI), como Paulo Fochi e Maria Carmen Barbosa, e sobre como a conjuntura política influenciou o documento com a lógica mercantilista neoliberal do governo de Michel Temer.

 

[...] veja, a gente na educação infantil não tem conteúdo pra [sic] padronizar... Então o que a gente tem são campos de experiência. (A, 2022).

 

Qual é o olhar atento que tem que ter a BNCC na educação infantil? Não seguir as caixinhas, as caixinhas que eu digo são... as habilidades e competências, aquilo dali já foi a mão do MEC. (B, 2022).

 

As entrevistadas destacaram críticas à BNCC ao se referirem às habilidades e competências como “caixinhas” (B, 2022), pois defenderam uma leitura crítica e a autonomia para se trabalhar com os campos de experiência que propiciam um olhar ampliado sobre os temas desenvolvidos com as crianças.

Os temas emergentes sobre discussões gerais e desafios têm demandado do Mieib um esforço e luta para a garantia de uma educação de qualidade para as crianças de 0 a 6 anos, para assegurar o direito dessas crianças como sujeitos históricos.

Sobre a temática Educação Infantil do Campo, embora as entrevistadas sejam integrantes do Mieib, não estão diretamente envolvidas com essa modalidade da educação básica, pois ambas atuam na área urbana. Entretanto, apresentaram um cuidado com a questão.

 

Qual o trabalho efetivo que o Mieib faz em relação à educação infantil do campo? A gente teria que ter fóruns que tivessem uma pauta muito próxima dessas especificidades. De uma forma geral a gente tem sempre um cuidado quando a gente fala da questão do acesso, da qualidade... (A, 2022).

 

No Quadro 2, destacamos os conteúdos que emergiram da entrevista sobre o Fórum e Discussões.

 

Quadro 2 - Educação Infantil do/no Campo

Educação infantil do/no Campo

Entrevistada A

Entrevistada B

Fórum

Fórum Paraibano do Agreste do Cariri – Paraíba

Fórum de Educação Infantil do Território de Identidade de Irecê (FEITII)

Discussões

- Encontros/Eventos com a temática do Campo (quilombo, indígenas, MST, etc.);

- Invisibilidade das infâncias do Campo – Fernanda Leal;

- Transporte escolar;

- Escolas multisseriadas.

- Não é uma temática que faz parte das discussões permanentes;

- Pautas: padronização dos tempos dos campos (plantação e colheita);

- Deslocamento;

- Currículo (saberes do campo) - Jaqueline Pasuch (já fez parte da coordenação do fórum).

Fonte: elaborado pelas autoras com base nos dados da pesquisa (2022).

 

Os fóruns estaduais são de suma importância para a condução das ações e pautas do Mieib, nas temáticas gerais e específicas de cada região. Nesse sentido, para as entrevistadas, os fóruns estaduais e municipais auxiliam a entidade em pautas específicas, a partir de suas demandas, como é o caso da questão do campo, que corresponde a uma pauta geral da entidade. Isso significa dizer, de acordo com as entrevistadas, que os fóruns municipais e estaduais, por causa das necessidades de suas realidades, auxiliam os debates e as pautas nacionais.

O Fórum Paraibano do Agreste do Cariri, na Paraíba, por exemplo, em relação à questão da Educação Infantil do Campo, conquistou, a partir de sua organização e militância, a criação de uma licenciatura para a formação direcionada à questão indígena no Centro Acadêmico do Agreste - CAA, além da orientação para “discutir questões do campo no campo” (B, 2022). Além disso, cita a entrevistada, há o papel do Fórum de Educação Infantil do Território de Identidade de Irecê (FEITII), que tem feito várias discussões sobre a Educação Infantil do Campo.

Ainda sobre as discussões acerca da Educação Infantil do Campo, as entrevistadas destacaram os eventos que aconteceram no Mieib e que trouxeram questões específicas do campo, como MST e particularidades de quilombolas e indígenas, assim como a presença de representantes que discutem a Educação Infantil nesses espaços, como as professoras e pesquisadoras Fernanda Leal e Jaqueline Pasuch. Estas, não por acaso, foram bastante citadas nas cartas, agendas, pautas e pelas entrevistadas, uma vez que atuam e pesquisam sobre o campo, dando visibilidade às infâncias do campo.

 

No Mieib a gente sempre tem esse discurso também que essa era a oportunidade da [sic] gente dar visibilidade a essas crianças do campo... tirar esses bebês, essas crianças da invisibilidade. (A, 2022).

 

O transporte, o deslocamento das crianças do campo, com longas distâncias, sem fiscalização dos ônibus e da estrada, também são preocupações levantadas pela entrevistada B:

 

[...] dos deslocamentos do campo, uma preocupação nossa é ... essas crianças transportadas, todas amontoadas nos veículos, as vezes a largas distâncias como estradas ruins, então é uma preocupação nossa que haja construções mais próximas daqueles povoados, mesmo entendendo que é um custo alto para os municípios. (B, 2022).

 

A preocupação com as escolas multisseriadas, o currículo que respeite as especificidades – diferenciando-se, portanto, do mesmo currículo utilizado nas escolas das cidades – e a padronização dos tempos do campo – como os períodos de plantação e colheita, que são muito significativos para os camponeses – também se fizeram presentes nas falas das entrevistadas.

 

E o que a gente traz muito como dificuldade é querer padronizar os tempos dos campos com os mesmos tempos das cidades, não cabe, sabe a questão da plantação, da colheita e o tanto que isso impacta na rotina dos sujeitos. (B, 2022).

 

As entrevistadas trouxeram a preocupação ainda de atender e se discutir as especificidades que o campo apresenta, refletindo, a partir de seu amplo conhecimento e vasta cultura, sobre “[...] a questão quilombola, de povos ciganos, dependendo da região, ribeirinha...” (A, 2022).

 

As diferentes infâncias, não é uma infância, cada infância é diferente da outra, cada criança é um ser social totalmente diferente do outro, são essas especificidades. (A, 2022).

 

As respostas das entrevistadas deixaram em evidência que o campo, como espaço social, político, cultural e educativo, possui sua especificidade se comparado à educação, currículo e organização do calendário das cidades.

 

Considerações Finais

O Mieib é um movimento importante da organização da sociedade civil, em defesa da Educação Infantil em suas diversas dimensões, trazendo temas fundamentais para a construção da identidade dessa etapa inicial da educação básica.

Das análises dos materiais disponíveis no site do Mieib, pudemos identificar algumas das bandeiras defendidas pelo movimento, como a garantia da data de corte-etário para a Educação Infantil e Ensino Fundamental, a reafirmação da Educação Infantil como primeira etapa da educação básica, a garantia de acesso das crianças de 0 a 6 anos incompletos à educação pública de qualidade, entre outras.

Com base nas leituras e análises realizadas, destacamos a importância dos fóruns em cada região, no âmbito estadual e municipal, para alcançar as especificidades das infâncias de cada localidade e sua articulação em nível nacional. Os conteúdos do site e as entrevistas demonstram o compromisso do Fórum com a garantia dos direitos das crianças e a visibilidade das diversas infâncias do país.

Quanto à Educação Infantil do e no Campo, as discussões contemplam algumas pautas, como a preocupação com o transporte escolar e as distâncias percorridas pelas crianças para chegarem às escolas. Outra pauta muito debatida refere-se aos currículos e tempos escolares, como o tempo de plantio e colheita que deve ser considerado na organização do calendário das escolas do campo, respeitando as suas especificidades.

Além disso, enfatizamos que, nessas discussões, os organizadores do evento do Mieib têm a preocupação de ter a presença de teóricos que discutem a temática do campo. Contudo, observamos que ainda é tímido o debate sobre a Educação Infantil do e no Campo, apesar de o Mieib apresentar um posicionamento cuidadoso e comprometido com as crianças do campo, das águas e das florestas. 

O Mieib, como sociedade civil organizada, tem um papel importante no país em defesa das infâncias e crianças, a ponto de influenciar o debate e a proposição de elaboração de políticas públicas. Sua importância no cenário educacional é requisitada, nesse sentido, para também construir uma pauta nacional em defesa das infâncias e crianças moradoras do campo.

 

REFERÊNCIAS

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Desenho de rosto

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Notas



[i] Este trabalho é resultado de pesquisa de Iniciação Científica financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e está inserido na pesquisa intitulada “A Educação Infantil do/no campo: da gestão à organização do trabalho pedagógico nas redes municipais de educação situadas na região Sul da Bahia”, desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa Políticas Públicas e Gestão Educacional (PPeGE) vinculado ao Departamento de Ciências da Educação da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), com 26 municípios do Sul da Bahia.

[ii] Disponível em: http://www.mieib.org.br. Acesso em: 10 jan. 2022.

[iii] Compreendemos nesta pesquisa que, ao tratar da Educação Infantil do Campo, estamos nos referindo sobre as crianças do campo, das águas e das florestas.