O aprendizado da matemática e o uso e reflexões de materiais manipuláveis em uma atividade de ensino

The math learning and the use and reflections of manipulable materials in a teaching activity

El aprendizaje de matemáticas y el uso reflexionesde los materiales manipulables en una actividad docente

 

Fernanda Aparecida Caetano https://lh7-us.googleusercontent.com/h9Ojv87ptVEgwx8PXehJNWB6RbeDlpXgP9wEPNuQgEiN1MWZqOYypeCQ59qJzbAdKq2NWcCoCxu9ig7Uxj9DQGeZQd62p5GHyOeol1sBa83pp3fhKd6TWJ4p1GJxaptf9Bd5r7OgGMw4FOSfvYdyTA

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

fernan-dynha@hotmail.com

Carlos Toscano https://lh7-us.googleusercontent.com/h9Ojv87ptVEgwx8PXehJNWB6RbeDlpXgP9wEPNuQgEiN1MWZqOYypeCQ59qJzbAdKq2NWcCoCxu9ig7Uxj9DQGeZQd62p5GHyOeol1sBa83pp3fhKd6TWJ4p1GJxaptf9Bd5r7OgGMw4FOSfvYdyTA

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

ctos12@gmail.com

 

Recebido em 13 de julho de 2023

Aprovado em 17 de julho de 2023

Publicado em 13 de maio de 2024

 

RESUMO

O presente artigo é parte de um episódio que compõe os dados de  uma dissertação de mestrado intitulada “O aprendizado da matemática no ensino fundamental: um estudo com uma turma do 2º ano”, defendida em 2014 na UEL – Universidade Estadual de Londrina e focaliza o desenvolvimento de uma atividade de ensino de matemática em uma turma do 2º ano do Ensino Fundamental em uma escola pública do interior do estado de São Paulo, onde tivemos por objetivo compreender o aprendizado da matemática na apropriação dos conceitos pretendidos em uma  atividade proposta, levando em conta o uso e reflexões de materiais manipuláveis como apoio na atividade. Para o trabalho nos ancoramos nos pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural e seus colaboradores. Como aporte metodológico da pesquisa tomamos como referência a abordagem microgenética, que tem como característica o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos. Para coleta de dados fizemos se uso de observações, videogravações e um diário de campo, para posterior transcrição dos dados. Os dados foram analisados à luz da abordagem enunciativa discursiva proposta por Volochínov.  Como resultado destacamos que a presença do material manipulável não produz, por si só, o aprendizado dos alunos. Faz-se necessário uma problematização do papel deste material no processo de ensino, do seu uso intencional e colaborativo de modo que esteja articulado à atividade mental pretendida que promova avanços na apropriação de conceitos matemáticos dos alunos.

Palavras-chave: Atividade de ensino; Mediação pedagógica; Material manipulável; Aprendizado de matemática.

 

ABSTRACT

This article is part of an episode that comprises data from and a master's thesis entitled “The learning of mathematics in elementary school: a study with a 2nd year class”, defended in 2014 at UEL – Universidade Estadual de Londrina, and focuses the development of a teaching math activity in group of the Fundamental Teaching second grade in a public school of São Paulo State interior and was has for objective understand the learning of mathematics and the process of pedagogical mediation at appropriation of the concepts intended in a proposed activity, taking into account the use and reflections of manipulable materials to support the activity. For work, we´re anchored in the theoretical cultural history psychology. As methodological contribution, the search took as reference the microgenetic that has as its characteristic the oriented exam to the functioning of the focal subjects, the intersubjective relations and the social conditions of the situation, resulting in a detailed report of the events. To data colletion did the use of observations, video recordings and notes in a field daily, to posterior data transition. The data were analyzed based in the enunciative discursive approach proposed by Volochinov. As a result we stands out that the presence of manipulable materials doesn´t produce, by day only, the students teaching. It does necessary role awareness of this material in teaching process, so that your presence are articulated to activity mental intended, associated with appropriation course of math concepts by students.

Keywords: Teaching activity; Pedagogical mediation; Manipulable l materials; Math learning.

 

RESUMEN

Este artículo es parte de un episodio que comprende datos de una tesis de maestría titulada “El aprendizaje de las matemáticas en la escuela primaria: un estudio con una clase de 2º año”, defendida en 2014 en la UEL – Universidad Estadual de Londrina y
se centra en el desarrollo de una actividad de enseñanza de las matemáticas en una clase de 2º año de la enseñanza fundamental de una escuela pública del interior del estado de São Paulo, donde objetivamos comprender el aprendizaje de las matemáticas y el proceso de mediación en  apropiación pedagógica de los conceptos pretendidos en una  actividad propuesta, teniendo en cuenta el uso y reflexíon de materiales manipulativos como apoyo en la actividad. Para el trabajo, nos anclamos en los presupuestos teóricos de la psicología histórico-cultural y sus colaboradores. Como aporte metodológico a la investigación se tomó como referencia el enfoque microgenético que se caracteriza por un examen orientado al funcionamiento de los sujetos focales, las relaciones intersubjetivas y las condiciones sociales de la situación, dando como resultado un relato detallado de los acontecimientos. Para la recolección de datos se hizo uso de observaciones, grabaciones de video y un diario de campo, para la posterior transcripción de los datos. Los datos fueron analizados a la luz del enfoque enunciativo discursivo propuesto por Volochínov. En consecuencia, destacamos que la presencia de materialesmnipulativos no produce, por sí sola, aprendizajes en los estudiantes. Es necesario problematizar el papel de este material en el proceso de enseñanza, su uso intencional y colaborativo para que se articule con la actividad mental pretendida que promueva avances en la apropiación de conceptos matemáticos por parte de los estudiantes.
Palabras clave: Actividad docente; Mediación pedagógica; Materiales manipulatives; Aprendizaje de las matemáticas.

 

Introdução

O presente artigo é parte nossa dissertação de mestrado, defendida no ano de 2016 pela UEL – Universidade Estadual de Londrina, intitulada “O aprendizado da matemática no ensino fundamental: um estudo com uma turma do 2º ano”.

A temática escolhida justifica-se pelo fato  que a  matemática tem sido alvo de inúmeros estudos e questionamentos pelos professores, pais e até alunos, devido aos resultados tidos como insatisfatórios. Por esse motivo, o governo Federal e do Estado de São Paulo têm procurado intervir no cotidiano escolar de variadas formas, desde a produção do material didático destinado aos alunos e professores, até na forma de avaliações sistêmicas. Além disso, na época em que aconteceu a pesquisa, notamos  investimentos em programas como o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, que é um programa do governo Federal que visa alfabetizar crianças com até 8 anos de idade, além de propor formações para os docentes que atuam nos 1º, 2º, e 3º anos do Ensino Fundamental I. No ano de 2013 o foco do programa era alfabetização e letramento em Língua Portuguesa e no ano de 2014 voltou-se para a disciplina de Matemática, por entender que o amplo domínio das outras disciplinas contribui para a alfabetização na perspectiva do letramento e, no caso da matemática, denominada de “alfabetização matemática” (Brasil, 2014).

Apesar dos esforços empreendidos e do conhecimento acumulado, o ensino da matemática ainda tem se mostrado ao aprendiz como uma disciplina muito difícil de ser apreendida, visto que o relato de uma pesquisa, naquela época, nesta área já apontava  não só uma concepção negativa a respeito da matemática, como resultados assustadores: “[...] em matemática, tradicional bicho-papão dos estudantes brasileiros, só 33,3% dos alunos do 3º ano atingiram o nível de conhecimento esperado: 175 dos 250 pontos possíveis” (Maggi, 2013).

Já no ano de 2021, os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb)  que é realizado a cada dois anos pelo Inep, e tem por objetivo avaliar os níveis de proficiência de Lingua Portuguesa e Matemática de acordo com os objetivos de aprendizagem propostos, agora, pela BNCC – Base Nacional Comum Curricular, documento norteador do ensino desde o ano de 2017, no caso dos alunos dos anos iniciais, apontaram que o desempenho dos alunos dos 2º anos do ensino fundamental, na referida disciplina também caiu de 750 pontos, em 2019, para 741,6, em 2021, sendo portanto uma temática relevante a ser pesquisada.

A escolha de uma turma do 2º ano do Ensino Fundamental I se deu pelo fato de ser uma sala composta por alunos e professores com quem nunca tivemos contato, já que residimos e trabalhamos no município onde foi realizada a pesquisa e se tratar de uma série/ ano em que os alunos são avaliados por avaliações externas do Governo Estadual – Saresp – Sistema de Avaliação do Rendimento do alunos do Estado de São Paulo e Federal – Saeb – Sistema de Avaliação da Educação Básica.

Para compreender o aprendizado em termos gerais, há que se considerar os elementos que fazem parte desse processo e a atividade de ensino é um dos elementos fundamentais para que a escola cumpra sua função social de possibilitar a apropriação dos conhecimentos científicos.

Sendo assim, neste artigo vamos considerar o desenvolvimento de uma atividade de ensino de matemática, para que possamos visualizar o processo de apropriação dos conceitos pretendidos e os recursos didáticos utilizados para tal.

Apoiados no referencial teórico da psicologia histórico-cultural proposta por Vigotski[1] e seus colaboradores, referencial no qual nossos estudos estão apoiados desde 2011, por acreditarmos oferecer elementos para compreensão dos processos de ensinar e aprender, levando em conta que não é só o aluno, o professor e a disciplina que estão em jogo, a mediação pedagógica e a atividade de ensino são determinantes nesse processo.

Para tanto, vamos apresentar brevemente a função da palavra e o processo de formação de conceitos, alguns elementos sobre a atividade de ensino e o aprendizado da matemática, o uso de materiais manipuláveis como recurso didático no ensino da matemática e, as contribuições da dimensão discursiva para esse estudo.

Discorreremos sobre a metodologia utilizada, que tomou como referência a abordagem microgenética, que tem como característica o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos apresentaremos um  episódio, que conforme salientamos, fez parte de uma sequêcia didática sobre situações problemas, com sua respectiva análise, que se deu à luz da abordagem enunciativa discursiva proposta por Volochínov e, por fim, as considerações a que se chegou sobre o mesmo.

 

Referencial Teórico

O processo de formação de conceitos na Perspectiva Histórico-Cultural

 A palavra desempenha um papel imprescindível no processo de constituição humana, vez que de acordo com Luria (1967, p. 18) ela é definida como “a unidade fundamental da língua” e possui uma estrutura complexa definida pelos termos “representação material e significado”. Em termos de representação material, permite ao homem imaginar objetos mesmo estando ausente do seu campo de visão, e enquanto significado, permite analisar os objetos e relacioná-los à determinadas categorias, possibilitando uma trajetória para a formação de conceitos que vamos descrever posteriormente.

De acordo com Luria (1967), o processo de formação de conceitos ocorre na medida em que a criança avança em sua inserção cultural em contato com outra pessoa mais experiente, quando o indivíduo começa a assimilar o significado generalizado das palavras e perceber suas categorias distintas, visto que o conceito genérico de uma palavra, a princípio, pode parecer pobre, ao passo que, quando se começam a estabelecer relações, ele torna-se mais rico do que a própria representação concreta do objeto. A partir desse momento,

 

[...] ao mencionar determinada palavra, o homem não apenas reproduz certo conceito direto, mas suscita praticamente todo um sistema de ligações que vão muito além dos limites de uma situação imediatamente perceptível e têm caráter de matriz complexa de significados, situados num sistema lógico (Luria, 1967, p. 36).

 

Nesse sentido, Vigotski (1998, p. 104) define um conceito como “[...] um ato real e complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio de treinamento”. Sendo assim, em qualquer idade, um conceito expresso por uma palavra representa um ato de generalização, visto que quando a criança aprende uma palavra nova, primeiramente, essa palavra é uma generalização do tipo mais primitivo e, à medida que o intelecto da criança se desenvolve, é substituída por generalizações mais elevadas até formar os verdadeiros conceitos. Este processo requer o desenvolvimento de muitas funções intelectuais que não podem ser dominados apenas pela aprendizagem inicial.

O mesmo autor concebe a trajetória para a formação de conceitos como constituída de etapas básicas, subdivididas em vários estágios, com processos não lineares, nem pré-fixados pela idade, pois como já mencionamos, este acontece na medida em que a criança avança sua inserção cultural por meio do processo interativo com o outro mais experiente, portanto se trata de um processo que requer o aprendizado seja dentro ou fora da escola, como aponta o autor.

Sobre esse aspecto, o autor classifica e diferencia os conceitos espontâneos dos não espontâneos, sendo estes últimos denominados por ele de conceitos científicos ou sistematizados. Assim,

 

Os conceitos se formam e se desenvolvem sob condições internas e externas totalmente diferentes, dependendo do fato de se originarem do aprendizado em sala de aula ou da experiência pessoal da criança (Vigotski, 1998, p. 108).

 

Nesse caso, a mente da criança se defronta com problemas diferentes quando assimila conceitos na escola e esses conhecimentos propiciam uma aprendizagem que a criança nunca vivenciou, por exemplo, estudar sobre os Polos sem nunca ter ido até lá. A relação entre os conceitos espontâneos e conceitos não espontâneos ou científicos abre discussões para a relação entre aprendizado escolar e desenvolvimento mental da criança e, o papel da escola nesse processo.

 

A atividade de ensino e o aprendizado da matemática

O aprendizado escolar tem como referência e propósito desencadear o processo da formação de conceitos científicos ou sistematizados, buscando socializar o conhecimento já consolidado e, nesse processo, acrescentar algo novo no desenvolvimento do pensamento da criança, com vistas a ampliar suas referências e modos de pensar.

Para a escola cumprir sua função de possibilitar a apropriação dos conhecimentos teóricos pelos estudantes, a ação do professor precisa estar ancorada tanto no conhecimento daquilo que ela pretende ensinar como no conhecimento acumulado sobre os processos de aprender, disponibilizando condições adequadas para a produção desse ensino e relacionando a teoria à prática.

            É nesse sentido, que Mouraet al., (2010, p. 214) apontam a importância “que os professores tenham compreensão sobre seu objeto de ensino, que deverá se transformar em objeto de aprendizagem para os estudantes” e os estudantes tem que compreender que esse conteúdo é necessidade para eles.

Em resumo:

 

Num processo de apropriação do conhecimento teórico, entendido como objeto da aprendizagem, estruturam-se operações do pensamento teórico. Tais operações devem ser também o objeto da aprendizagem, tornando possível pela atividade de ensino, num movimento de análise e síntese que vai do geral ao particular, do abstrato ao concreto. Esta ao desencadear a apropriação do conhecimento teórico, favorece a estruturação de um tipo particular de pensamento, o teórico (Moura et al., 2010, p. 215).

 

Conforme já explicitamos esse ensino se faz por meio de conceitos, mediados pelo professor de forma intencional e sistematizada, para garantir a realização de ações conscientes e desenvolvimento do pensamento teórico.

Sobre esse assunto Charlot (2013) aponta que compreender a atividade do aluno dentro ou fora da escola é essencial para se entender o que acontece nela e aponta o conceito de atividade descrito por Leontiev, que são ações que tem um objetivo e para que se tenha eficácia na realização das mesmas, as operações para realização dessas ações têm que levar ao resultado esperado e, assim, o sentido da atividade vai depender da relação entre objetivo e motivo.

Com o ensino da matemática não é diferente. Ao ensiná-la os professores não ensinam apenas um conteúdo, mas um modo de aprender os conteúdos de uma área de conhecimentos específica, modo este que se configura em uma metodologia de interagir com o mundo, o que é próprio do saber pedagógico. O objeto de conhecimento a ser ensinado deve ser visto em toda sua dimensão histórica que vai desde o desenvolvimento de instrumentos para solucionar problemas até a produção de significados sociais que, segundo o autor, “podemos fazer isto colocando os sujeitos em situações problema que lhes permitem ir do conceito espontâneo ao conceito científico” (Moura, 2011, p. 54, tradução nossa, grifos do autor).

Isso nos leva a compreender que o conhecimento tem um lado que é fruto de aprendizagens e outro que depende das oportunidades que foram possibilitadas ao sujeito ao longo da vida.

Assim, o autor mostra que a combinação entre a dimensão individual e social contribui para o desenvolvimento de modo que seu motivo também é um motivo coletivo, pois o conceito matemático foi produzido com alguma utilidade, por alguém, e essa produção é carregada de significados que deverão ser compartilhados. Quando outros sujeitos vão se apropriando desses conceitos, o fazem com graus de individualidade diferentes, assim, um motivo pessoal também é social, vez que cada sujeito tem que se desenvolver enquanto indivíduo, mas carregado de desenvolvimento cultural presentes nos conceitos a que teve acesso.

Pensando desse modo, a necessidade de se ensinar matemática deve estar associada à um motivo para o indivíduo aprendê-la, como explica Moura (2011, p. 54, tradução nossa):  [...] ao colocar o aluno diante de situações problema capaz de mobilizá-lo para aprendizagem de instrumentos simbólicos que podem ampliar seu modo de apropriar-se dos bens culturais e intervir conscientemente em seu meio. Sob esse ponto de vista é que a escola vai produzir no aluno o motivo para aprender.

Partindo dessa mesma premissa, complementando as ideias acima, , Moura, Sforni e Araújo (2011), apoiados em seus estudos, mostram desde os primórdios que o aprender matemática tinha um motivo, visto que a ideia matemática surgiu da necessidade de controle de variação de quantidades, ou seja, uma necessidade coletiva.

Complementam que “no momento histórico de criação do número, provavelmente o controle de quantidades era feito por meio da percepção direta” (p. 46), que nada mais era do que estabelecer diferenças nítidas entre os objetos por meio da percepção. Entretanto, em termos de grandes quantidades, a sensação numérica não era suficiente para obter a quantidade precisa de elementos, sendo criada então, a primeira forma de registro, conhecida como correspondência um a um (Moura, Sforni; Araújo, 2011).

Segundo os autrores, a ideia central dessa contagem “é o estabelecimento da correspondência entre um conjunto que conta e um conjunto contado” (p. 47). Para tanto, o homem fazia uso de diversos objetos como grãos, pedras, conchas, etc., e, aos poucos, esses objetos ganharam autonomia em relação ao que era contado e se objetivaram na atividade física e mental do homem, se tornando símbolos numéricos

Todavia, essa estratégia adotada apresentava limitações para as atividades de cálculo, “surgiu, assim, a contagem por agrupamento, que representa uma nova síntese no pensamento [...]” (Moura, Sforni; Araújo, 2011, p. 47). Esse tipo de contagem, acrescentam os autores, era feito conforme o exemplo a seguir, para contar os animais de um rebanho, um animal era representado por uma concha em um fio branco, quando completavam dez conchas no fio branco, trocava-se por uma em um fio vermelho e assim sucessivamente. Nesse sentido, esses autores consideram que a contagem por agrupamento pode ter sido a precursora do Sistema de Numeração Decimal.

Esse processo se assemelha ao aprendizado da matemática descrito por Vigotski (1931). O autor postula que o pensamento matemático passa por um processo de desenvolvimento até que se domine o cálculo mental. Na fase primitiva, considerada pelo autor como uma etapa inicial do desenvolvimento do pensamento matemático, a criança resolve suas tarefas por vias diretas de comparação de quantidades ou figuras pautadas em sua percepção visual; depois, passa para a etapa do emprego dos signos de maneira ainda inconsciente, começando a contar mesmo sem saber o que é o cálculo. Assim,

 

[...] o desenvolvimento do cálculo se dá pari passo da percepção direta da quantidade à mediada, no momento em que a criança começa a comparar as quantidades com determinados signos e a operar com tais signos (Vigostki, 1931, p. 115, tradução nossa).

 

Desse modo, podemos afirmar que o desenvolvimento do cálculo acontece no momento em que a criança deixa de comparar as quantidades por meio da percepção e começa a contar as quantidades de objetos, ou seja, não mais se utiliza da percepção para afirmar que, em determinado grupo, tem mais objetos do que em outro. Utiliza a contagem com auxílio de signos numéricos, mesmo sem ter consciência do que é cálculo, visto que sua contagem ainda é mecânica.

Após a etapa do emprego dos signos numéricos, a criança, no interior do processo de aprender pode atingir a etapa de utilização dos signos externos, cujo exemplo dado pelo autor é quando a criança utiliza os dedos para resolver determinada situação problema, separando sete dedos, tirando dois e chegando ao resultado cinco (Vigotski, 1931, p. 116). A continuidade do processo de aprender pode atingir outra etapa, que envolve a utilização de signos internos, que é quando a criança não precisa mais dos dedos para fazer a operação de 7 – 2, realizando-a mentalmente (Vigostki, 1931).

Sendo assim, caracteriza o autor que, o desenvolvimento aritmético na criança se inicia com a comparação de quantidades pautadas na percepção, para que, posteriormente, avance até chegar ao cálculo mental propriamente dito.

Ele nos chama a atenção, entretanto, que tal processo não é espontâneo. Para que de fato o aprendizado da matemática se efetive há que se considerar o conceito que será ensinado e os recursos necessários para tanto, assuntos tratados no próximo item.

 

O uso de materiais manipuláveis

No início do processo de escolarização, mas não só nele, a referência à situações passíveis de terem sido vividas pelas crianças, aliadas ao uso de materiais manipuláveis, são consideradas favorecedoras do processo de aprender. À título de exemplo tomaremos o conceito de adição.

Moretti e Souza (2015, p. 83) destacam que na adição duas ideias principais estão envolvidas, a de juntar e a de acrescentar, sendo que essas ações implicam formas de pensar bastantes distintas por parte da criança. Afirmam as autoras que a ação de juntar envolve dois conjuntos com quantidades diferentes que são agrupadas em uma só, sendo assim:

 

O raciocínio realizado na junção ou acréscimo não será feito utilizando como recurso a contagem um a um, mas será uma síntese da contagem, que permitem juntar diretamente quantidades de duas ou mais coleções (Moretti e Souza, 2015, p. 83).

 

Exemplificando a ação de juntar, ao pedir que um grupo de crianças separe 4 lápis de cor azul e outro grupo que separe 3 lápis de cor amarela e que ambos coloquem em uma mesma caixa, diante da pergunta: “quantos lápis tem ao todo?”, crianças menores que ainda não trabalham com o conceito de adição, certamente farão a contagem, um a um, da quantidade total de lápis que nela se encontra.

A ação de acrescentar envolve apenas um conjunto no qual são inseridos mais elementos, são também visualizados em situações que envolvem jogos, por exemplo, quando a criança já possui determinada quantidade de pontos em uma rodada e na próxima rodada ganha mais pontos (Moretti e Souza, 2015).

Sobre o uso de material didático manipulável, Nacarato (2005, apud Reys, 1971) destaca que materiais manipuláveis são objetos que os alunos podem tocar, podendo ser objetos reais ou representações de uma ideia. Entretanto, a autora destaca que muitos professores dizem que trabalham primeiro no concreto, quando na verdade estão se referindo ao uso de materiais manipuláveis.

Segundo a autora,

 

O uso de materiais manipuláveis no ensino foi destacado pela primeira vez por Pestalozzi, no século XIX, ao defender que a educação deveria começar pela percepção de objetos concretos, com a realização de ações concretas e experimentações (Nacarato, 2005, p. 1).

 

Segundo a mesma autora, no Brasil, o discurso em defesa da utilização de recursos didáticos nas aulas de matemática, surgiu na década de 1920, marcado pelo surgimento de uma tendência denominada empírico-ativista, decorrente de ideias escolanovistas que se contrapunham ao modelo tradicional de ensino, aonde o aluno era visto como ativo e só aprendia fazendo, por meio de jogos e materiais manipuláveis.

No entanto, esse discurso ganhou um destaque maior com a implantação dos livros didáticos nas escolas que, em sua maior parte, eram o único recurso que o professor tinha em mãos para desempenhar sua função e, que traziam muitas atividades com desenhos de materiais manipuláveis que precisavam ser seguidas por esses professores, de modo que “muitas vezes, incorporam um discurso a favor do ‘concreto’, sem uma reflexão do que seria o concreto em matemática” (Nacarato, 2005, p. 2), quando na verdade esses professores que dizem trabalhar no concreto estão se referindo ao uso dos materiais manipuláveis sem uma reflexão intencional e contextualização sobre o seu uso.

A autora ainda destaca que os materiais manipuláveis podem ter um resultado negativo por não ter relação com o conceito trabalhado e, muitas vezes, o adulto, professor, até percebe essas relações, mas o mesmo não é percebido pelos alunos.

Portanto, concordamos com a autora quando diz que,

 

O uso inadequado ou pouco exploratório de qualquer material manipulável pouco ou nada contribuirá para a aprendizagem matemática o problema não está na utilização desses materiais, mas na maneira como utilizá-los (Nacarato, 2005, p.4).

 

Na linha do que comenta a autora, a depender da maneira com que esse tipo de material é utilizado pode-se ocasionar o que ela denomina como “inversão didática”, que é quando o material passa a ter uma finalidade em si mesmo e não contribui para a apropriação dos conceitos pretendidos (Nacarato, 2005). Assim os materiais manipuláveis podem tanto facilitar como dificultar o aprendizado do aluno.

 

A dimensão discursiva no aprendizado escolar

Tendo em vista que no processo de ensinar e aprender a palavra ocupa um lugar primordial por meio do diálogo estabelecido entre professor e aluno, os estudos de Volochínov (2013) trazem grandes contribuições.

Segundo esse autor a linguagem humana se constitui por meio de uma enunciação que envolve quem fala e quem ouve, destacando que em cada enunciação, a linguagem que visa a comunicação social é constituída por uma parte verbal e outra não verbal. A parte verbal é composta de palavras e a parte não verbal é composta de gestos e expressões. A enunciação é constituída de conteúdo e significado e, nesse sentido, o autor menciona três elementos para construir uma enunciação significativa: o som expressivo da palavra (entonação), a seleção das palavras e a sua disposição no interior da enunciação (Volochínov, 2013). São esses aspectos que vão possibilitar a compreensão do que se fala.

Partindo desse pressuposto, a compreensão é fundamental nas relações de aprendizado, visto que esse processo consiste em entrar em diálogo e, para compreendermos a enunciação do outro, nossas concepções e significações também estão inter-relacionadas nesse processo. Toda palavra se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva entre o falante e o ouvinte e, a significação por sua vez, é o efeito da interação entre quem fala e quem ouve, através de um material de determinado complexo sonoro. O sentido e o significado pertencem à corrente da comunicação verbal, que é o elo de uma enunciação a outra, que nos permite compreender minuciosamente os acontecimentos da sala aula.

 

A Metodologia da Pesquisa

Nesta pesquisa de cunho qualitativo partimos do contexto da sala de aula no âmbito da disciplina de matemática, para compreensão daquela realidade e definição dos pontos de análise de acordo com os objetivos propostos e, nos pautamos metodologicamente na perspectiva microgenética que, segundo Góes (2000, p. 9) é “[...] o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos”. A escolha dessa metodologia se deu porque atende os objetivos da pesquisa e dialoga com a perspectiva histórico-cultural.

Para análise dos dados optamos pela perspectiva discursiva ou enunciativa que, segundo Rojo (1997, apud Góes, 2000 p. 16), “[...] privilegia a dimensão dialógica e relaciona interação, discurso e conhecimento”, possibilitando-nos entender os processos do ponto de vista das enunciações que envolvem os dizeres, gestos e expressões que compõem os acontecimentos.

A pesquisa foi realizada em uma escola do interior do estado de São Paulo, com início no dia 09/09/2014 e térmimo no dia 28/11/2014 com uma turma composta por 21 alunos matriculados e frequentes no 2º ano do período vespertino e, ocorreu nos dias em que estava previsto o ensino de Matemática. Fizemos observação, gravação e transcrição das aulas, atendendo todos os preceitos postos pelo comitê de ética da instituição.

  As aulas eram ministradas por uma professora polivalente, formada em pedagogia, com mestrado em educação. A pesquisa ocorreu por um período de três meses e, para a composição desse artigo, selecionamos um dos episódios que fizeram parte da nossa dissertação de mestrado.

Vale a pena destacar que entendemos por episódio um acontecimento circunstanciado e detalhado dentro de cada aula e, para a escolha, levamos em consideração alguns critérios, como: a proposta da atividade, a forma como foi desenvolvida, os resultados ou impasses que visualizamos nas falas e os aprendizados (ou falta deles) que nos levassem a compreender as seguintes indagações: Como se deu a mediação pedagógica na sala de aula no que se refere ao aprendizado da matemática? O que estava sendo proposto aos alunos? Quais são as dificuldades encontradas nesta disciplina? O episódio escolhido para compor esse artigo traz o desenvolvimento de uma atividade de ensino proposta pelo material apostilado adotado pelo município. São apresentados os dizeres na íntegra dos sujeitos e, para fins de identificação, estão sob a forma de turnos numerados e transcritos. Para atender aos critérios éticos e manter o sigilo, os alunos estão identificados com letras do alfabeto e a professora está identificada como tal, isto é, pelo lugar social que ocupa. Em determinados momentos, inserimos informações do contexto, que permitem ao leitor maior compreensão dos acontecimentos, fazendo uso do personagem narrador. Para serem identificadas, não usamos itálico nestas inserções e as colocamos entre colchetes.

 

O episódio: A manipulação de materiais facilita o aprendizado?

Este episódio selecionado fez parte de uma sequência didática sobre situações problemas e ocorreu no dia 09/09/2014, aconteceu no primeiro dia de observação e teve como conteúdo a adição por decomposição. A atividade proposta fazia parte do sistema apostilado utilizado pela escola, cujo título é “Adicionando”. Seu conteúdo envolvia efetuar adições de “um jeito diferente”, ou seja, por meio da decomposição dos números.

Na apostila, o termo decompor foi substituído por “desmontar”, embora o pano de fundo dessa atividade seja o conceito de decomposição entrelaçado ao conceito de adição. A seguir, apresentamos a atividade proposta na íntegra:

 

Figura 1- Atividade “Adicionando”

Fonte: NAME (2014, p.65).

 

De acordo com os autores desta proposição, cada personagem da atividade desmontou um dos números para efetuar o cálculo, sempre com foco na base 10. Marcos desmontou o número menor de modo que, ao somar com o outro número, obteve resultado 10 para somar novamente com o número que estava faltando até chegar ao resultado final. Teresa, por sua vez, embora tenha utilizado os mesmos procedimentos, “desmontou” o número maior.

A professora iniciou a aula, dizendo que, no dia anterior, estavam fazendo estes mesmos exercícios, entretanto, devido ao excesso de conversa entre os alunos, eles tiveram muitas dificuldades.

 

(1)        Profa.: Lembra que estávamos fazendo ontem os exercícios da página sessenta e cinco? Eu percebi que muiiitaaa gente teve dificuldade e, no meio de toda essa conversa, não deu para entender nada. Aí, eu pensei em uma maneira diferente, não é D.? Diferente de explicar para vocês. E essa maneira diferente a Prô vai ajudar vocês a fazer em dupla.

 

Em seguida, a professora organizou os alunos em dupla, solicitou que guardassem as apostilas e entregou 10 palitos de sorvete para cada dupla. Anunciou que, primeiro, iriam resolver com os palitos e, depois, fariam na apostila com o intuito de facilitar a compreensão dos alunos.

A professora retomou a situação proposta na referida atividade e dirigindo-se para a lousa, afirmou:

 

(2) Profa.: Muito bem! Então... Th., eu vou pegar a sua apostila, tá? Ontem, quando a Professora começou a explicar para vocês na apostila, estava trabalhando, né K., a adição. Só que era uma adição de um jeito diferente. Estava dizendo que o Marcos e a Teresa, quando eles adicionavam, né Gi., eles desmontavam alguns números, porque eles achavam que ficava mais fácil. Oito mais cinco é igual... ele pegava o oito e deixava igualzinho e o cinco ele separava em um pedacinho de dois, porque ele sabia que oito mais dois dava dez. E, depois, colocava mais três, que era o outro pedacinho do número cinco. E, aí, a conta dele ficava assim: oito mais dois...?

(3) Alunos: Dez!

(4) Profa.: Dez! Muito bem! Acabou a conta dele?

(5) Alunos: Não!

(6) Profa.: Quem faltou?

(7) Alunos: Três!

(8) Profa.: Mais três que é igual a...?

(9) Alunos: Três... Quatro... [Alguns alunos respondem que era três e outros que era quatro o resultado].

(10) Profa.: A Teresa... Eu vou tomar essa garrafinha. [Professora se dirige ao aluno J. P.]

(11) Profa.: A Teresa, ela também desmontava – J., Gu. –, mas ela desmontava o número de uma maneira diferente. Para fazer a mesma conta do Marcos – P. L.–, ela pegava então oito mais cinco e, aí, ao invés dela desmontar o número cinco, ela desmontava o número oito. Porque ela sabia que se ela pegasse o cinco e juntasse mais quanto ia dar dez?

(12) Al.: Com mais cinco.

(13) Profa.: Com mais cinco. Então ela fazia assim: desmontando o cinco [A professora se enganou, porque o correto seria desmontando o oito], ficava com um pedacinho de três mais um pedacinho de cinco e este outro número cinco que já tinha aqui. E para resolver esta continha ela repetia o número três e ia para a parte que ela achava mais fácil, que era o cinco com mais cinco que dá quanto?

(14) Alunos: Dez!

(15) Profa.: Dez! E três mais dez, quanto é?

(16) Alunos: Treze!

(17) Profa.: O resultado aqui é igual ou diferente daqui? [Professora mostra, na lousa, as duas formas de se fazer a conta]

(18) Alunos: Igual... Diferente... [Alguns alunos respondem que era igual e outros que era diferente].

(19) Profa.: Ah, é igual, não é J. P.?

(20) J. P.: É diferente.

(21) Profa.: É diferente?

(22) Alunos. É igual.

(23) Profa.: Então, qual é o resultado aqui?

(24) Alunos. Treze.

 

A professora explicou o exemplo que dava início à atividade e, em seguida, passou para os itens “A, B, C, D e E” nos quais era solicitado que se fizessem as mesmas operações: decomposição seguida da adição das parcelas. Orientou os alunos a resolverem de duas maneiras diferentes, conforme o exemplo e com o apoio dos palitos. A professora começou a explicação da primeira alternativa, entretanto os alunos começaram a brigar e a brincar por conta dos palitos, já que a professora não havia explicado ainda como iriam utilizá-los na atividade.

 

(25) Profa.; [...] O palito é da dupla [Professora chamando a atenção das alunas C. e T.] Segura para a Professora os oito palitinhos que eu separei mostrando para o pessoal. Olha, aqui tem os oito palitos que a Professora separou. Se o problema for os palitos eu separo de novo e ninguém pega.

 

A professora iniciou a explicação e resolução do item “A” da atividade (8 + 4), mostrando como os palitos seriam utilizados, para que, posteriormente, os alunos resolvessem as demais alternativas. Separou 8 palitos para explicar o jeito do Marcos resolver a adição, depois separou 4 palitos para que os alunos identificassem qual era o número maior e resolveu na lousa.

Os alunos começaram a produzir respostas às questões propostas pela professora que não correspondiam ao esperado, entretanto, a professora prosseguiu a explicação da alternativa “A” (8 + 4), só que, desta vez, segundo a maneira que a Teresa resolveu a adição.

 

(26) Profa.: Pessoal, então aqui, a Teresa, ela desmontou o oito. Ficou assim olha: um grupinho de... [Professora fazendo cara de inconformada com a resposta errada de alguns alunos].

(27) Alguns alunos: Dois!

(28) Alguns alunos: Quatro!

(29) Profa.: De dois, que está na minha mão. Mais um grupinho de quatro que ficou nesta mão [Professora mostra para a sala os palitinhos na mão da aluna Sa.] e um grupinho de seis, que ficou na outra. Olha, é igual. O dois, ela precisa juntar aqui para formar dez? [Mostra o exercício na lousa].

(30) Alunos: Não!

(31) Profa.: Não? Ela precisa juntar o que, quatro mais...? [Aponta para a lousa].

(32) Alguns alunos: Dois!

(33) Outros: Seis!

(34) Profa.: Seis, que é igual a...?

(35) Alguns alunos: Dois!

(36) Outros: Seis!

(37) Outros: Dez!

 

Quando a professora solicitou aos alunos que resolvessem as demais alternativas “B, C, D, e E”, a conversa se estendeu e, na tentativa de acalmar, esta chamou a atenção dos alunos e, alterando o encaminhamento indicado, começou a resolver a alternativa B na lousa.

E assim se deu a resolução de todos os itens: a professora fazia na lousa, contava utilizando os palitos, evocava a participação dos alunos, porém suas respostas continuavam não correspondendo ao esperado. A aula era interrompida a todo o momento para chamar a atenção dos alunos que se dispersavam, ora conversando entre si, ora brincando com os palitos e, diante desse cenário, a professora se mostrava muito preocupada pelo fato de os alunos não estarem compreendendo os exercícios e ficarem conversando. Isso se refletia nos seus dizeres e expressões, tais como:

 

(42) Profa.: Pessoal... [Levanta as mãos para pedir atenção] eu estou pedindo silêncio porque eu quero falar. [Ela acena com a mão]. Dá para ouvir? Olha... [Fica parada na frente da sala de aula] nas duplas... Olha para mim e me ouve, por favor!

[...]

(46) Profa.: Finalmente, a letra “E”, porque já está ficando difícil!

 

No início da aula (turno 1), a professora destacou: “eu percebi que muiiitaaa gente teve dificuldade e no meio de toda essa conversa não deu para entender nada”, frisando a palavra “muita”, para se referir à maior parte dos alunos que não estavam entendendo os exercícios e se encontravam em conversas paralelas. No entanto, no decorrer da aula, percebemos que a dispersão foi ocasionada pelo não entendimento da atividade proposta e, por este motivo, a professora retomou o conteúdo que havia sido objeto de estudo na aula anterior.

Charlot (2013) nos chama a atenção para o fato de que, em uma atividade, entram em jogo a eficácia e o sentido.

 

Ela é eficaz quando as operações permitem chegar ao resultado visado. O sentido da atividade, segundo Leontiev, depende da relação entre motivo e objetivo. Quando ambos coincidem, é mesmo uma atividade; senão, é apenas uma ação (Charlot, 2013, p. 144).

 

Neste episódio, a atividade não teve eficácia visto que os alunos apenas copiaram as respostas da lousa, porque não apresentavam sentido, justamente pela desconexão entre motivo e objetivo, ocasionando a dispersão dos alunos, visto que “[...] ninguém faz algo sem nenhum motivo” (Charlot, 2013, p. 145).

O objetivo da aula era resolver situações de adição, envolvendo a ação de decomposição de um número em duas parcelas, seguida da adição das três. Nesse complexo contexto na qual as tentativas de esclarecimento não surtiram o efeito esperado, nem a decomposição nem a adição conseguiram ser trabalhadas pela professora, e também não foram percebidas pelos alunos.

Ao que parece, os alunos ainda não tinham o domínio necessário destes dois conceitos para construírem a relação entre eles nas situações propostas.

De acordo com Vigotski (1998) um conceito,

 

[...] é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio de treinamento, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já tiver atingido um nível necessário (Vigotski,1998, p. 104).

 

A visualização da decomposição das quantidades não ficou evidenciada para as crianças durante a resolução dos exercícios, o mesmo ocorreu com o processo de sua conceituação.

Vigotski (1998) acrescenta que o desenvolvimento de conceitos se inicia com uma generalização mais primitiva e evolui para um tipo de generalização mais elevada, o que requer o desenvolvimento de muitas funções intelectuais, remetendo à importância do papel do outro, no caso, a professora. Sua explicação enfatizou o aspecto operacional, ancorada em um pequeno “truque”, decomposição de números maiores ou menores; isso não foi suficiente para as crianças entenderem e se apropriarem dos conceitos envolvidos numa situação que exigia várias etapas e correlação entre elas.

Diante dos impasses e das tentativas infrutíferas de ensinar a adição fazendo uso da decomposição, a professora optou por fazer os exercícios na lousa, e não mais com os alunos, mas reintroduzindo o caminho já muitas vezes trilhado, que quase sempre resultara em incompreensão e distanciamento, como se observou nos turnos (32) a (39).

Outro aspecto que vale a pena ressaltar neste episódio é o uso dos palitos, material manipulável, entendido como meio de facilitar e garantir o aprendizado dos alunos. A professora justifica seu uso como “uma maneira diferente de explicar para os alunos”, acrescentando: “agora, eu vou tentar usar os palitinhos que a prô pediu para trazer”.

Na justificativa apresentada pela professora, podemos inferir que a ideia de utilizar o material manipulável, em princípio e por si só, facilitaria o aprendizado dos alunos por ser uma estratégia diferente. Observamos, entretanto, que esta tentativa não produziu o efeito desejado, reproduzindo, por assim dizer, o mesmo resultado obtido na aula anterior. Ou seja, a presença dos palitos não alterou o modo de visualização da situação proposta e, por isso, acabou contribuindo para a dispersão dos alunos.

Neste sentido, os estudos de Pires (2012, p. 60) esclarecem que [...] ainda prevalece um discurso genérico e inconsistente de que o uso de “materiais concretos” resolve problemas de aprendizagem, de que eles são motivadores, bons aliados nas aulas de matemática.

Tal compreensão precisa ser questionada porque, como alerta a autora, não se pode generalizar essa afirmação para todos os tipos de recursos utilizados nas aulas, porém, é preciso investigar melhor algumas orientações postas para o ensino da matemática, visto que neste episódio, a manipulação dos palitos não favoreceu o aprendizado dos alunos, se tornou apenas uma inversão didática, quando o material passa a ter uma finalidade em si mesmo e não contribui para a apropriação dos conceitos pretendidos (Nacarato, 2005).

Quando a professora finalizou a aula, ficou perceptível certo alívio de sua parte, no turno (46), ao exclamar: “finalmente a letra “e”, porque já estava ficando difícil!” Seu desabafo nos fornece indícios de que ela também percebia o que estava ocorrendo, contudo, naquele momento, o melhor seria finalizar a atividade.

Neste episódio, em termos gerais, percebemos que a tentativa de introduzir um objeto conhecido pelos alunos (os palitos) como material auxiliar para se compreender a decomposição de uma quantidade, não adquiriu o sentido de esclarecer as diferentes possibilidades que podiam ser exploradas num primeiro momento. Por exemplo, o “8” do item “A” poderia, com a ajuda dos 8 palitos, poderia ser “decomposto” em diferentes possibilidades separando em quantidades de palitos em cada uma das mãos (4 palitos em cada mão; 3 palitos na mão direita e 5 na esquerda, etc.). Esse seria o primeiro passo: vivenciar diferentes modos de separar a mesma quantidade - 8 palitos - em cada uma das mãos. O segundo poderia ser vivenciar o mesmo processo com outras quantidades de palitos e a palavra decomposição seria apresentada aos alunos como o nome daquilo que estava sendo feito, isto é, a quantidade 8 palitos pode ser resultado da adição de várias combinações. Um terceiro momento poderia ser a apresentação de situações que envolvessem a decomposição de quantidades em situações reais na qual ela se apresentaria como necessária para que o sentido dessa ação fosse percebido.

Conforme salientou Vigotski, o processo de formação de um conceito é um processo longo, sinuoso que resulta de como foram significadas as experiências vivenciadas e que podem ser ressignificadas à luz de uma mudança de olhar ou de perspectiva.

 

Conclusão

Diante dos dados pudemos perceber que muito há que se pensar sobre o aprendizado da matemática e a proposição de atividade de ensino e o uso de materiais manipuláveis. A presença de atividades em materiais instrucionais como o livro didático, material apostilado que nesse caso, o município addquriu como apoio ao docente , precisam ser objeto de análise e reflexão tendo em vista a qualidade, coerência interna, objetivos e pertinência em um contexto concreto de uma sala de aula composta de pessoas reais com uma história pessoal.

Notamos a necessidade de estudos na área da matemática que de um lado possam analisar atividades de ensino propostas em materiais destinados às escolas (livros, apostilas, etc.) para que se possam estabelecer relações entre os conteúdos e conceitos propostos e, de outro lado, vê-se a necessidade de estudos que, a partir dessas análises, possibilitem formações para que o professor tenha um norte, uma metodologia que considere tanto o aspecto teórico, quanto o prático, pois quando se compreende a teoria, a prática se torna mais significativa para o professor que poderá ministrar suas aulas de maneira mais significativa para o aluno.

As questões que suscitam os acontecimentos ocorridos em sala de aula retratam as tentativas de ensinar e aprender aqui narradas e analisadas, assim como os resultados obtidos com a tentativa de proposição de uma atividade de ensino de atemática no início do processo de escolarização, os quais revelam aspectos de uma problemática que necessita ser objeto de preocupação gerando outros estudos no campo da pedagogia do ensino da matemática, assim como dos conceitos que são selecionados.

Acreditamos que a partir dos impasses produzidos nos momentos em que as tentativas de ensino são registradas e analisadas pode-se refletir sobre o que e como estas estão sendo realizadas, de modo que o conhecimento que venha a ser gerado se construa em parte integrante do processo formativo dos professores.

 

Referências

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Desenho de rosto

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Notas



[1] Utilizaremos a grafia Vigotski para o nome do autor.