As mulheres na UFFS de Erechim: estudantes que trabalham ou trabalhadoras que estudam?

The women at UFFS of Erechim: students who work or workers who study?

Las mujeres en la UFFS de Erechim: ¿estudiantes que trabajan o trabajadoras que estudian?

Naira Estela Roesler Mohr

Universidade Federal da Fronteira Sul, Erechim, RS, Brasil

nairamohr@uffs.edu.br

Ana Maria Lima dos Santos

Universidade Federal da Fronteira Sul, Erechim, RS, Brasil

anamaria80@gmail.com

 

Recebido em 28 de junho de 2023

Aprovado em 05 de dezembro de 2023

Publicado em 21 de fevereiro de 2025

 

RESUMO

Este artigo é decorrente de pesquisa realizada com graduandas da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS. O estudo está ligado ao reconhecimento prévio de que existe um aumento da representação feminina em cursos de nível superior, assim como em alguns espaços do trabalho produtivo, resultante das lutas feministas. Entretanto, pressupõe-se que, para além dos aspectos positivos, existem dificuldades no cotidiano destas acadêmicas, o que originou a seguinte questão: Quais as potencialidades, limites e desafios enfrentados por mulheres que ingressaram a universidade após um tempo de interrupção nos seus estudos? O objetivo central foi o de analisar as relações entre exigências acadêmicas e outras atribuições ligadas às diversas formas que o trabalho assume na vida das mulheres com mais de 30 anos. Foram aplicados 27 questionários na pesquisa de campo, cujos dados coletados foram confrontados com teorias explicativas oriundas de pesquisa bibliográfica. Estiveram presentes discussões sobre a desigualdade considerando os aspectos geracionais, de gênero e de classe social. Com base nos resultados, observamos que a maioria das participantes referendaram pontos otimistas em seu ingresso na UFFS, principalmente pela oferta de formação que amplia a tomada de consciência. Por outro lado, elas ponderaram que mulheres com idade mais avançada enfrentam maiores desafios no acompanhamento da rotina acadêmica. A pesquisa apontou também que, para além do trabalho remunerado, as atividades socialmente consideradas femininas impactam na vida acadêmica, sobrecarregando excessivamente as mulheres das classes populares.

Palavras-chave: Mulheres; Trabalho; Ensino superior.

 

ABSTRACT

This article is the result of research with female students at the Universidade Federal Fronteira Sul – UFFS. The study is linked to the previous recognition that there is an increase in female representation in higher education courses, as well as in some spaces of productive work, resulting from the feminist struggles. However, despite these advances, we presume that, quite apart from the positive aspects, there are difficulties in the daily lives of these academics, which led to the following question: What are the potentialities, limits and challenges faced by female academics who joined the university after a period of interruption in their studies? The central objective was to analyze the relationships between academic requirements and other attributions linked to the different forms that work takes on in the lives of women over 30 years of age. We applied to 27 questionnaires, The analysis was carried out confronting the data collected in the field research with explanatory theories derived from bibliographical research. Discussions on inequality were present, considering generational, gender and social class aspects. Based on the results, we observed that most of the participants refer to positive aspects of their entry into the UFFS, by the offer of training that expands their awareness. On the other hand, they considered that older women face greater challenges. The research also points out that, in addition to paid work, socially considered feminine activities have an impact on academic life, excessively burdening women from the popular classes.

Keywords: Women; Work; Higher education.

 

RESUMEN

Este artículo es el resultado de una investigación con estudiantes de graduación de la Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS. El estudio está vinculado al reconocimiento previo de que existe un aumento de la representación femenina en cursos de nivel superior, así como en algunos espacios de trabajo, producto de las luchas feministas. Suponemos que, además de los aspectos positivos, existen dificultades en el cotidiano de estas académicas, lo que llevó a la pregunta: ¿Cuáles son las potencialidades, límites y desafíos enfrentados por las académicas que ingresaron en la universidad después de un tiempo de interrupción en sus estudios? El objetivo central fue analizar las relaciones entre exigencias académicas y otras atribuciones vinculadas a las diversas formas que el trabajo asume en la vida de las mujeres mayores de 30 años. Se aplicó 27 cuestionarios, confrontando los datos recolectados en la investigación de campo con teorías explicativas derivadas de la investigación bibliográfica. Estuvieron presentes las discusiones sobre la desigualdad, teniendo en cuenta los aspectos generacionales, de género y de clase social. Con base en los resultados, se observó que la mayoría de las participantes refiere aspectos positivos en su ingreso en la UFFS, por la oferta de formación que amplía la toma de consciencia. Por otro lado, consideraron que mujeres con edad más avanzada enfrentan mayores desafíos. La investigación apunta también que, además del trabajo remunerado, las actividades socialmente consideradas femeninas impactan en la vida académica, sobrecargando excesivamente las mujeres de las clases populares.

Palabras clave: Mujeres; Trabajo; Educación superior.

 

Introdução

            Este texto trata de reflexões a partir dos resultados de uma pequisa realizada no âmbito da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS no campus situado no município de Erechim, que é localizado no Norte do estado do Rio Grande dos Sul, na região do Alto Uruguai.

            A UFFS é uma Instituição de Ensino Superior – IES criada em 2009, com início de atividades de ensino em 2010 e com seis campi distribuídos nos três estados do Sul do Brasil. Possui desde o princípio uma política de ações afirmativas, priorizando estudantes das escolas públicas e atendendo o sistema de cotas. Para Nierotka e Bonamino (2023, p. 4), esta universidade é “bastante peculiar por ser uma IES multicampos e interestadual, com unidades localizadas em municípios pequenos e médios no interior dos três estados da Região Sul, distantes em até 500 km entre si e de suas respectivas capitais”.

            A investigação teve recorte geracional e de gênero como critérios iniciais de seleção de participantes, contemplando graduandas do sexo feminino, com mais de 30 anos de idade, matriculadas na UFFS em Erechim. A escolha do perfil das mulheres, partiu da constatação que é comum a presença de estudantes com estas características no referido campus, sobretudo nos cursos de licenciatura. Desta forma, aprofundar o entendimento e o debate sobre este grupo na universidade desencadeou a seguinte questão de pesquisa: – Quais as potencialidades, limites e desafios enfrentados por acadêmicas mulheres que ingressaram a universidade após um tempo de interrupção nos seus estudos?

            O objetivo geral da pesquisa foi o de analisar as relações entre exigências acadêmicas e outras atribuições ligadas às diversas formas que o trabalho assume na vida das mulheres, com mais de 30 anos, estudantes nos cursos de graduação. Deste, desdobrou-se os objetivos específicos assim listados: a) conhecer o panorama situacional das pesquisadas na universidade, no que refere se às dificuldades, superações e expectativas; b) discutir aspectos relacionados à presença e participação das mulheres trabalhadoras no espaço acadêmico; c) identificar os principais fatores limitantes no processo de avanço nas questões de igualdade de gênero; d) contribuir com o debate em torno do papel da universidade pública, no que se refere à inclusão de grupos e formação da consciência crítica.

            Neste artigo priorizamos uma síntese dos principais resultados obtidos na pesquisa, que, possivelmente, contribuirão com um diagnóstico situacional e a emergência de novas questões a serem problematizadas e tratadas na universidade, reforçando seu caráter popular e democrático.

 

Metodologia

  A pesquisa foi desenvolvida por meio de: a) estudo bibliográfico acerca da ocupação feminina no espaço acadêmico e no mundo do trabalho, a fim de compreender aspectos históricos que permearam e permeiam as desigualdades de gênero; b) pesquisa de campo com aplicação e análise de questionário com a participação de graduandas; c) cruzamento dos dados coletados com referenciais teóricos produzidos por pensadoras do campo do feminismo materialista, orientando as análises a partir de categorias como historicidade, contradição e totalidade. Para Cisne (2018, p. 427):

 

[…] o feminismo materialista assenta suas análises nas relações materiais, em contraposição às perspectivas culturalistas que têm seu ponto de partida e chegada na ideologia. Isso não significa dizer que o feminismo materialista desconsidera a importância da problematização da ideologia e da cultura. Muito pelo contrário. A perspectiva materialista apenas parte do entendimento de que toda ideologia está relacionada a uma base material e a relação entre ambas não pode nunca ser esquecida, tampouco a análise de uma pode ocorrer em detrimento da outra, ou seja, ambas são fundamentais.

 

 

A pesquisa de campo foi aplicada por meio de um questionário com as estudantes matriculadas nos cursos de graduação da UFFS – Campus Erechim, com idade de 30 anos ou mais, que estavam cursando o primeiro semestre de 2022.[1] Foram selecionadas 50 participantes a partir do critério de gênero e faixa etária, a quem enviamos o convite por e-mail, no formato de lista oculta de destinatários, acompanhado do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, cujo preenchimento foi o aceite para participação.

O instrumento foi composto por um total de 15 questões, sendo 12 fechadas e três abertas. As respostas dos questionários foram direcionadas para planilha eletrônica produzida a partir do aplicativo Google Forms. Durante todo o processo manteve-se a privacidade dos dados pessoais das pesquisadas.

Obtivemos a participação de 27 acadêmicas interessadas que se encaixavam na faixa etária estabelecida. Com as devolutivas dos questionários aplicados, organizamos a análise a partir de três eixos: o primeiro tratando do perfil das estudantes, em seguida a relação entre estudo e trabalho, e por fim, aspectos envolvendo as potencialidades e dificuldades da trajetória acadêmica, bem como desafios para a universidade.

Para preservar a privacidade e anonimato das participantes utilizamos pseudônimos, tanto na descrição de alguns comentários, como na exposição de depoimentos centrais.

 

Quem são as mulheres da pesquisa?

Sobre o perfil das acadêmicas destacamos a presença expressiva de estudantes do Curso de Pedagogia, representando mais da metade do grupo, ou seja, 18 mulheres do total de 27 participantes. Ocorreu ainda a participação de quatro acadêmicas do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, três do Curso de Licenciatura em História e duas do Curso de Licenciatura em Geografia. Destes cursos, três são noturnos e um acontece em regime especial de alternância. Não obtivemos a participação de nenhuma estudante matriculada em cursos de bacharelado.

Em relação a faixa etária das participantes obtivemos o resultado expresso na Tabela 1:

 

Tabela1 – Faixa etária

IDADE

QUANTITATIVO

%

30 a 35 anos

07

25,9

36 a 40 anos

12

44,4

41 a 45 anos

04

14,8

46 a 50 anos

01

3,7

51 a 55 anos

02

7,4

56 a 60 anos

61 anos ou mais

01

3,7

TOTAL

27

100

Fonte: Elaboração própria, 2022.

 

É possível verificar maior expressividade do grupo de mulheres que possuem entre 36 e 40 anos (44%), porém outras idades estiveram representadas, pressupondo relativa diversidade entre experiências geracionais.

No que diz respeito ao estado civil, a proporcionalidade das respostas foi a seguinte: 36% declararam-se solteiras, 40% casadas, 20% em relação estável e 14% optaram em não responder a questão. Destacamos aqui, que a representação de um terço das entrevistadas como solteiras acompanha certa tendência dos últimos anos, de mulheres em posição de maior independência, em relação a outros tempos, onde o relacionamento conjugal era quase que uma regra social.

Já em relação à maternidade, 22 das participantes afirmaram ter um ou mais filhos, sendo maioria do grupo pesquisado. Assim, ser estudante e mãe é uma realidade frequente nos cursos de licenciatura na UFFS Erechim. Esta é uma situação observável, inclusive com a presença frequente de crianças no ambiente do campus durante as aulas. Ao longo dos anos têm ocorrido movimentações de estudantes reivindicando estratégias para o atendimento das crianças, entretanto, não existe a nível institucional nenhum tipo de programa ou projeto dedicado a esta especificidade.

A responsabilidade sobre o cuidado com as crianças nos remete a refletir sobre questões relacionadas à reprodução humana. Na maioria das sociedades, o compromisso com as novas gerações se vincula ao espaço da vida privada da família, ou seja, aos pais e/ou responsáveis. Enquanto pessoas com melhores condições econômicas conseguem resolver isto de alguma forma através do trabalho de outrem (desde amas de leite no escravismo colonial às babás negras dos condomínios de luxo), nos grupos de pessoas das classes subalternas isso não acontece, recaindo significativamente sobre as mulheres e meninas.

Neste sentido, embora lutas do denominado Feminismo Liberal[2][N1]  obtiveram conquistas significativas no âmbito dos direitos e das liberdades das mulheres, os avanços não ocorreram em todos os extratos sociais. Utilizamos o termo Feminismo Liberal para nos referirmos aos movimentos cujas pautas se limitam às conquistas de direitos de forma particularizada, contemplando apenas determinados grupos de mulheres. Souza-Lobo (2021, p. 217) traz como exemplo deste tipo de feminismo o movimento sufragista brasileiro, na década de 1920, focava na conquista de cidadania plena e era formado por mulheres proeminentes da elite política e social da época. Reconhecemos que são pautas importantes, em que algumas mulheres expandiram fronteiras em termos de liberdades, porém, devido às questões de classe, necessitam do trabalho explorado, geralmente, de outras mulheres. Podemos citar também como exemplos, a situação das empregadas domésticas e trabalhadoras rurais no Brasil, cujos direitos trabalhistas foram alcançados tardiamente e durante muito tempo foram excluídas da concepção de cidadania, embora em outros espaços as mulheres obtinham avanços contra a discriminação de gênero.

Estudos contemporâneos demonstram como outros fatores (tais como classe e/ou raça) exercem determinações nas formas de opressão e hierarquização entre os seres humanos. Na base de tudo, as necessidades de sobrevivência imprimem suas marcas, ou seja, o trabalho desempenhado pelas mulheres na esfera da reprodução não é considerado, muito menos remunerado.

Contribuindo com essa perspectiva, temos os estudos sobre a história das mulheres e o patriarcado, que, dentre outras coisas, coloca em evidência o trabalho doméstico não pago como funcional ao capital, com destaque para os escritos de Saffioti (2013, 2015); Davis (2016); Federici (2017; 2019); Lerner (2019) e Vogel (2022). Por essa razão, em nossa interpretação, o trabalho, em suas diversas dimensões, continua como categoria central para entendermos o funcionamento da sociedade e a maneira como as hierarquias vão sendo estabelecidas e justificadas.

 

O que fazem as mulheres da pesquisa?

Para além da condição de estudante universitária, todas as participantes afirmaram que realizavam algum tipo de atividade remunerada regular, sendo que 16 delas responderam estar em emprego formal de 40 horas semanais, duas em emprego formal de 20 horas, cinco participando de algum tipo de programa de bolsas da universidade, três em trabalho informal e uma declarou-se aposentada.

Ainda sobre a ocupação do tempo, outras atividades regulares exercidas regularmente foram apresentadas pelas participantes, tendo destaque: a) a realização das tarefas domésticas e/ou de cuidado (alimentação, roupa, casa, filhos, pessoas enfermas); b) a participação em atividades voluntárias (igrejas, ongs, movimentos sociais); c) estágios curriculares; d) serviços eventuais (vendas, faxinas, produção de artesanato). Tais respostas corresponderam com as expectativas inciais previstas sobre as características deste grupo, ou seja, de mulheres que exercem múltiplas atividades. Esta situação não passa desapercebida pelas estudantes, que apontaram a sobrecarga de tarefas como um dos principais fatores de dificuldades relacionados a vida acadêmica. Quando indagadas se o fato de ser mulher possui relação com o acúmulo de atividades diárias, 100% delas responderam afirmativamente.

No modelo de familiar nuclear e patriarcal o ritmo da organização da casa e atividades desempenhadas majoritariamente por mulheres não são reconhecidas. O trabalho não remunerado, geralmente realizado no âmbito privado está associado à ideia de vocação feminina, naturalizado como uma atividade menor, como o preparo da alimentação, tarefas de limpeza, cuidado com crianças e familiares, etc. O resultado deste tipo de trabalho não é convertido em mercadoria e não possui posição de prestígio social. Com o avanço do capitalismo, as delimitações entre os diferentes tipos de trabalho ficaram mais evidentes, assim como, os variados graus de reconhecimento entre eles.

 

O modo capitalista de produção eleva ao máximo a contradição presente em todas as formações econômico-sociais anteriores assentadas na apropriação privada dos meios de produção e dos produtos do trabalho humano. A saturação empírica da categoria mercadoria, além de fazer-se acompanhar por uma divisão social do trabalho extremamente desenvolvida, marca o divórcio entre o valor de uso e o valor de troca dos produtos do trabalho (SAFFIOTI, 2013, p.53).

 

Neste sentido, não é inusitado encontrar até os dias atuais a expressão “do lar” para caracterizar mulheres que não desempenham algum tipo de atividade remunerada. Para além da caracterização pejorativa, está implícita a ideia de que mulheres nesta situação não trabalham. Como afirma Souza-Lobo (2021, p. 169): “o trabalho doméstico não assalariado não é considerado trabalho e o trabalho doméstico assalariado é considerado um trabalho particular…”

No Brasil, a luta das mulheres camponesas colocou em pauta uma série de direitos historicamente negados, como documentação, previdência social, posse da terra etc (Munari, Cinelli, Cordeiro, 2020). Entretanto, estudos comparativos comprovam que, em geral, as jornadas laborais do trabalho na agricultura familiar e/ou camponesa são mais alargadas para as mulheres do que para os homens (Conte, Calaça, Taborda,2020).

Prosseguindo com a identificação das participantes buscamos mensurar o período de afastamento das participantes em atividades regulares do ensino, perguntando qual foi o tempo de interrupção nos estudos formais, cujas respostas estão expressas na Tabela 2:

 

Tabela 2 – Tempo de interrupção nos estudos

TEMPO

QUANTITATIVO

%

Menos de 5 anos

03

11,1

5 a 10 anos

10

37,0

11 a 15 anos

04

14,8

16 a 20 anos

04

14,8

Mais de 20 anos

06

22,2

TOTAL

27

100

Fonte: Elaboração própria, 2022.

 

Conforme as respostas, verificamos que cerca da metade das participantes esteve no grupo que se afastou do ensino por um período de até dez anos, e a outra metade teve esta interrupção por mais tempo. Nos chamou a atenção a presença de seis mulheres que pararam de estudar por mais de 20 anos. Pressupomos que este tempo de interrupção maior pode significar também maiores desafios, considerando as mudanças que ocorreram nos sistemas educacionais ao longo do tempo, tais como o conteúdo curricular, as estratégias metodológicas, recursos tecnológicos e de comunicação, dentre outros.

Além disso, nos questionamos, se muitas acadêmicas destas faixas etárias não fazem parte de uma geração que foi demais influenciada pela lógica de funcionamento patriarcal de família nuclear como abordado anteriormente. Dentro desta perspectiva, a carreira acadêmica e/ou profissional não estava no horizonte de mulheres que iniciavam uma vida conjugal. Tomamos como exemplo o hábito comum em alguns ambientes, onde ocorriam mecanismos diferenciados para preparação das crianças para a vida adulta. No caso de algumas práticas de reprodução do campesinato, aos filhos do sexo masculino destinava-se o direito à propriedade e/ou a possibilidade de prosseguimento dos estudos, enquanto para as filhas a expectativa estava na preparação de uma futura esposa, quase nunca tendo direito herança da terra. (Gebara, 2002).

 Em seguida, tratamos sobre as razões que levaram a interrupção nos estudos, oferecendo a possibilidade de escolha de um ou mais motivo. Verificamos que o principal fator alegado foi a “falta de acesso ao ensino superior gratuito” que apareceu em 21 das respostas. Cabe aqui ressaltar a importância da expansão das ofertas educacionais ocorridas no Brasil entre os anos de 2002 e 2016, oportunizando principalmente os grupos das camadas populares, historicamente negligenciadas. Reforça também, a importância da criação da UFFS em regiões como a de Erechim, onde as políticas públicas nesta modalidade de educação estavam fragilizadas. Regiões estas que localizam-se mais distantes das capitais ou de grandes centros urbanos. Esta situação também é corroborada pela resposta assinalada por cinco das participantes, que declararam o seguinte fator influenciador na interrupção dos estudos: “por residir em local distante da oferta de ensino superior”. Outra razão considerada significativa, com 18 respostas, foi assim descrita: “porque precisei realizar trabalho remunerado e não consegui conciliar com os estudos”. Interpretamos que estas três razões identificadas inicialmente possuem íntima relação, pois ligam-se aos aspectos econômicos, ou seja, das condições básicas de sobrevivência das pessoas. Conforme tratam as leituras da história da educação, o ensino superior sempre foi elitizado em nosso país, destinando pouca possibilidade de acesso e frequência aos trabalhadores da cidade e do campo.

Sinalizada por dez das participantes, outra resposta tem relação com a questão da divisão sexual do trabalho, verificada na seguinte afirmação: “porque tive que me dedicar às tarefas da casa e cuidado com filhos/as e familiares”. Chamamos a atenção, aqui que se entrecruzam situações de desigualdade de gênero e classe, como muitos estudos vem indicando.

O patriarcado impacta a vida de todas as mulheres, porém, dentre alguns grupos como neste caso, aquelas menos favorecidas economicamente, o peso é maior. Como afirma Cisne (2018, p. 224): “as mulheres sofrem uma exploração particular, ainda mais intensa do que a dos homens da classe trabalhadora, e que isso atende diretamente aos interesses dominantes”.

As necessidades imediatas de sobrevivência podem explicar o porquê da incidência maior de mulheres trabalhadoras com mais de 30 anos nos cursos noturnos, cuja frequência é conciliada com muitas outras responsabilidades.

Este elemento é bem explícito na fala de Rosa: “Muitas vezes nos deparamos com situações onde precisamos escolher comer ou estudar. A prioridade (alimentação/sustento) tem muito peso. Ainda, nossa região não remunera com excelentes salários e isso afeta muito o sustento de nossas vidas”. Na mesma direção Amarílis enfatiza esta sobrecarga: “Meu trabalho remunerado era intenso e indispensável para o sustento da minha família, pois fui mãe solo. Também meu trabalho exigia muito empenho e ocupava a maior parte do meu tempo. Assim, não dispunha de energia para frequentar as aulas, bem como não dispunha de condições financeiras para pagar uma universidade privada, pois ainda não existia a UFFS.

Para além das questões objetivas da sobrevivência, podemos destacar outros fatores que levaram a interrupção dos estudos das participantes, evidentes nas seguintes falas: “por falta de interesse e motivação pessoal” e “porque cursar o ensino superior não fazia parte dos hábitos e perspectivas de minha família na época”. Muitas vezes, não existe uma proibição explícita por parte da família, porém indiretamente, a responsabilidade pela criação de filhos acaba sendo atribuída quase que naturalmente para a mãe, como sugere a fala de Violeta: “Por ter me casado muito cedo e tive a minha primeira filha cedo, isso interrompeu os meus estudos”.

Embora estes fatores aparentem estar ligados apenas aos aspectos em torno de valores e hábitos culturais, insistimos que estão intrinsecamente ligados a ordem econômica de como as sociedades foram se estruturando. Segundo alguns estudos antropológicos indicam, a divisão sexual do trabalho já ocorria em modos de produção anteriores, porém, é no capitalismo que a segmentação das tarefas se aperfeiçoa, corroborando e intensificando a exploração de determinados grupos de seres humanos e da natureza.

Além disso, certas estruturas, como família, igrejas, instituições educacionais, dentre outras, são bem funcionais para reprodução da forma social capitalista, principalmente na transmissão de um sistema geral de valores. Nesse sentido, a “família nuclear hierárquica está articulada em plena sintonia com o princípio antagônico que estrutura o sistema do capital” (Mészáros, 2002, p.271).

A pesquisa também tratou das razões que levaram ao ingresso na universidade na atualidade, onde as participantes podiam também assinalar mais de uma alternativa. Sobre isso, a perspectiva profissional assumiu expressiva importância dentre as opções possíveis, sendo que “a melhoria da qualificação” foi apontada por 18 participantes, “a possibilidade de ingresso no mundo profissional” foi destacada por seis e “a obtenção do diploma”, foi assinalada por sete mulheres. Interpretamos que estas respostas estão associadas às expectativas de melhorias na ocupação do espaço na esfera produtiva e a conquista de maior autonomia econômica, que, permitem também o usufruto de outras liberdades.

Em geral, associa-se questões de empregabilidade a perspectiva de independência e emancipação das mulheres. Entretanto, é preciso considerar o fato de que contraditoriamente, a inserção no mundo do trabalho, muitas vezes vem somada a uma sobreposição de exigências. Em outras palavras, para grande parte das mulheres, o ingresso no mundo produtivo não as libertou dos afazeres domésticos, constituindo aquilo que se reconhece como dupla (ou tripla) jornada de trabalho. Além disso, a precarização e/ou exploração muitas vezes acompanhou as vagas ocupacionais, como sinaliza Mészáros (2002, p. 272):

 

A entrada em massa das mulheres na força de trabalho durante o século XX, em extensão tão significativa que hoje elas chegam a constituir maioria nos países de capitalismo avançado, não resultou em sua emancipação. Em vez disso, apareceu a tendência de generalizar para toda força de trabalho a imposição de salários mais baixos a que as mulheres sempre tiveram de se submeter.

 

Para além dos objetivos ligados à empregabilidade, também foram levantados outros motivos de retorno à universidade, tais como estratégia de “expansão dos conhecimentos” (18 participantes) e para “ocupação do tempo livre” (duas participantes). Estes fatores possuem conexão com aspectos em torno da realização pessoal, da possibilidade da busca de satisfação enquanto ser humano ou de ‘vir a ser mais’, como propõe Freire (2005). Sinalizamos esta perspectiva como algo interessante, pois, por razões históricas, é raro à carreira acadêmica não estar associada a uma visão funcionalista restrita às demandas do mercado de trabalho.

De certa forma, entendemos estas duas dimensões, profissional e de realização pessoal, como dimensões fundamentais no processo formativo, tanto em termos de humanização como de socialização.

 

O que pensam e problematizam as mulheres da pesquisa?

A segunda parte do questionário buscou, em certa medida, captar compreensões sobre a experiência universitária, refletindo sobre potenciais, limitadores e desafios apontados pelas participantes.

Em relação as dificuldades que afetam as estudantes, a resposta de maior evidência foi a “falta de tempo para acompanhar as diversas atividades extraclasse (leituras, exercícios, trabalhos e etc.)”, assinalada por 20 acadêmicas e correspondendo a 74,1% das respostas. No meio universitário, a falta de organização do tempo tem sido apontado como um problema entre docentes e discentes, principalmente no período pós-pandemia onde os semestres ficaram mais concentrados e atividades remotas dificultaram a comunicação. Porém, diante do público participante da pesquisa, estimamos que esta falta de tempo está ligada ao contexto das múltiplas atividades que as mulheres desempenham, o que também possui ligação com a segunda razão destacada por 16 das participantes, expressa na seguinte afirmação: “dificuldades em garantir total concentração nas atividades acadêmicas, pois necessito cotidianamente estar atenta às questões familiares”.

A falta de tempo para desempenhar todas responsabilidades é um sintoma cada vez mais presente no cotidiano feminino, tornando-se um verdadeiro fardo. No entanto, o desempenho de muitas destas tarefas nem sempre está associado diretamente ao mundo do trabalho, ficando como problema a ser resolvido individualmente. Silvia Federici nos auxilia nesta compreensão, ao tratar sobre o aumento da migração das mulheres para força de trabalho assalariada, a partir dos anos 1970:

 

Enquanto o trabalho dos homens diminuiu na última década, as mulheres hoje trabalham ainda mais que no passado. Isso acontece particularmente entre as mulheres chefes de família e as mulheres com salários baixos, que muitas vezes são obrigadas a fazer bicos para poder pagar contas. O fardo que muitas mulheres ainda carregam se reflete bem no seu histórico médico. Muito se diz do fato de mulheres viverem mais tempo que os homens. No entanto, os registros médicos contam uma história diferente. As mulheres, especialmente no começo dos trinta anos, apresentam a maior taxa de suicídio entre a população jovem, assim como as maiores taxas de uso de drogas, colapso nervoso e tratamento para doenças mentais (com ou sem internação), e têm uma probabilidade maior de relatar estresse e desconforto do que os homens. Essas estatísticas são os sintomas do preço que as mulheres pagam ou por levar a vida como donas de casa em tempo integral, ou pelo fardo da jornada dupla, isto é, o frado de uma vida construída exclusivamente sobre o trabalho. Está claro que nenhuma mudança positiva poderá ocorrer na vida das mulheres se não houver uma profunda transformação nas políticas sociais e econômicas e nas prioridades sociais (Federici, 2019, p. 109-110).

 

As participantes também elencaram dificuldades que possuem relação com o acompanhamento das aulas, quer sejam: “dificuldades de cunho didático e/ou pedagógico no desenvolvimento dos conteúdos” (48,1%), como: “dificuldades na utilização dos recursos e/ou ferramentas tecnológicas disponíveis” (40,7%). Obteve-se ainda duas participantes que apontaram  “dificuldades na aquisição de material” e duas que alegaram existir “preconceito de colegas e professores em relação a idade mais avançada de alunas”.

Estes últimos dados nos fazem refletir sobre a responsabilidade institucional da UFFS, afinal ela se construiu com forte discurso em torno da inclusão, sobretudo das classes populares. Em que medida o grupo de mulheres, mães e trabalhadoras fazem parte das preocupações na política universitária? Ressaltamos que para concretizar estas políticas é necessário o planejamento e realização de ações efetivas que materializem as intencionalidades.

Nesta mesma direção, trazemos elementos sobre as percepções em torno da organização e do ambiente universitário, no sentido de avaliar se estes facilitam o acesso e permanência das acadêmicas. No universo das 27 participantes, sete consideram o ambiente do Campus Erechim “totalmente” adequado às demandas das mulheres, duas responderam que “não é adequado” e dezoito, representando 66,7% das mulheres, considerou que a organização e o ambiente do campus cumprem apenas “parcialmente” com o ingresso e permanência delas mulheres nos cursos escolhidos.

A parte final do questionário remetia a problematização em torno dos desafios das mulheres, tanto nas ocupações profissionais, como no mundo acadêmico. A pergunta foi formulada da seguinte maneira: “Nos últimos anos as mulheres conquistaram maior espaço nas instituições de ensino superior e no mercado de trabalho. Em sua concepção ainda existem barreiras a serem superadas?” De posse das respostas, observou-se unanimidade em relação à compreensão da existência de limites em relação à equidade e igualdade de gênero, bem como a necessidade de superação destes limites.

A partir disso, traremos alguns elementos presentes nas falas das participantes, que tinham a possibilidade de acréscimos ao questionário, explicações e argumentos que justificavam as respostas, bem como críticas e sugestões à pesquisa.

Dentre os comentários houve recorrência sobre as dificuldades em conciliar trabalho/casa/filhos/estudo, aparecendo em muitos comentários. Mesmo daquelas que não possuem filhos pequenos e que, com o tempo conquistaram certa autonomia, há um sentimento de solidariedade para com as colegas que enfrentam maiores dificuldades. Sobre os espaços profissionais, os elementos mais apontados foram os relacionados à falta de oportunidades de empregabilidade, falta de equidade salarial entre homens e mulheres, desigualdade na ocupação dos postos de chefia, além de preconceitos em relação à competência técnica na ocupação de alguns cargos.

Nos últimos anos no Brasil, verificamos um incremento da participação feminina no Ensino Superior e na inserção no mercado de trabalho. Entretanto, as mulheres estão em menor número nos cargos de maior prestígio, além de receberem menores salários ao exercerem a mesma atividade (Barros e Mourão, 2018). Estudos relacionados à carreira universitária como o de Reznik e Massaran (2022, p. 15), refletem que:

 

As mulheres estão majoritariamente em cursos das áreas da saúde, bem-estar e humanidades, áreas de menor remuneração e relacionadas aos papéis tradicionais de gênero e ao trabalho reprodutivo, e os homens em carreiras de maior prestígio e remuneração, nas áreas de exatas, tecnológicas e engenharias.

 

Nesta direção, a participante Amarílis identifica as dificuldades profissionais enfrentadas pelas mulheres que já acontecem nos espaços da formação:

 

“Nas instituições superiores é notável que as mulheres por mais que se dediquem não tem o protagonismo. Há o preconceito em relação aos cursos escolhidos, por exemplo, uma mulher nos cursos como engenharia mecânica, agronomia, entre outros, acabam sofrendo preconceito. No mercado de trabalho as pesquisas apontam que mulheres com o mesmo grau de instrução que um homem ganha 60% menos. Nas entrevistas de emprego, perguntas irrelevantes como se deseja ter mais filhos ou se a mulher não tem filhos ou não quer ter filhos, ter que justificar ao empregador as escolhas pessoais. Já me ocorreu por diversas vezes nas entrevistas de emprego de me perguntarem se acaso meu filho ficasse doente se eu teria com quem deixá-lo ou se eu teria que ficar com ele em casa. Há mulheres que não tem rede de apoio, nesses casos essas mulheres são excluídas do mercado de trabalho, tenho certeza que esse tipo de abordagem não acontece com os homens”

 

Já Rosa apresenta a necessidade de diversas lutas, dentre as quais o reconhecimento do trabalho doméstico como função social: “Ainda precisamos de equiparação salarial em relação aos homens, fazer com que nossa jornada de mãe e dona de casa também seja socialmente reconhecida como trabalho, precisamos enfrentar o assédio nas várias esferas sociais, precisamos de oportunidade para ocupar mais cargos de liderança”.

Respectivamente, Margarida, Camélia e Rosa apresentam em seus relatos situações de discriminação no ambiente profissional: “Recentemente perdi uma vaga por decisão da liderança local em concluir que eu, ou a gente que tem filhos pequenos atrapalha para contratação para trabalhar. E estudos de tempo integral também” (Margarida); “Trabalho em uma autoescola e percebo que alguns alunos têm preconceito em aprender com instrutora mulher (aulas práticas). O que mais me choca é que muitas vezes o preconceito vem de outras mulheres, como se a mulher não fosse tão boa quanto um homem” (Camélia); “Ainda existe a ‘ideia’ de que os homens são mais qualificados, mais competentes, a última palavra ainda é deles” (Rosa).

Em vários comentários apareceu a disparidade entre o reconhecimento da opinião e/ou posicionamento das mulheres, tanto nos ambientes educacionais como profissionais, legitimando quase sempre o poder da voz masculina, presentes nos trechos da fala de Magnólia: “Dentro da sala de aula presenciei muitas vezes poucos homens presentes em relação ao número de mulheres, mas os poucos entornavam a voz quando da participação nas aulas, enquanto a maioria se encolhia” E mais adiante prossegue: “[…] participei de vários projetos e quando viajava para congressos para apresentar os resultados, era muito comum, especialmente nos eventos da pedagogia, ter em sua maioria palestrantes homens para um público quase que exclusivamente feminino”.

Outra participante identifica situações discriminatórias tanto no espaço profissional como na oferta das oportunidades educacionais, ao fazer as seguintes constatações sobre as barreiras e desafios que devem ser superados pelas mulheres, nos tempos atuais: “[...] desde melhores salários se comparado ao sexo masculino no mercado de trabalho, mesmo exercendo as mesmas funções. Além da sobrecarga de ser mãe, mulher, dona de casa, trabalhadora e estudante, acredito que o ensino superior possibilita qualificação profissional, com curso noturno, oportuniza as mulheres trabalhadoras voltar a estudar e conseguir conciliar filhos, marido, trabalho, entre outros, apesar da necessidade de trabalhar durante o dia para complementar renda. Mas falta acolhimento principalmente para as mulheres que estão voltando após um longo período parada nos estudos, desde da parte tecnológica até a compreensão de leituras acadêmicas e sua linguagem mais culta” (Begônia).

Este preconceito velado com pessoas de maior idade também apareceu na fala de Orquídea: “Embora não se discuta, percebe-se que muitos(as) docentes valorizam mais as jovens principalmente por se disporem a produzir artigos acadêmicos como co-autoras.”

Aqui destacamos o elemento geracional como critério a ser problematizado. A primeira questão que pode suscitar é se existem diferenças na apropriação do conhecimento entre pessoas de idades diferenciadas? Jasmin apresenta sinais sobre estas diferenças: “A mulher com mais idade se sente mais madura, gosta mais do silêncio para aprender, traz a sua bagagem de conhecimento, enquanto os mais jovens não respeitam, não tem a paciência de ensinar e partilhar seus conhecimentos e opiniões”.

Acreditamos que estar em diferentes etapas da vida incide sobre as escolhas e também sobre as respostas às situações, ou seja, para um mesmo problema, pessoas com diversas idades podem lidar de forma diferenciada. Entretanto, sempre é bom pensarmos que em uma sociedade que superestima o trabalho produtivo, extrator de mais valia, não é de se estranhar que existam preconceitos envolvendo pessoas mais velhas, associando-as com falta de produtividade.

Outra pergunta suscitada a partir deste tema foi: Será que o elemento idade mais avançada acaba se tornando mais um peso na discriminação? Em nossa compreensão, a rotina da universidade parece ser pensada para um tipo idealizado de estudante típico das universidades públicas, ou seja, o modelo do jovem com idade entre 17 e 20 anos, cujos pais conseguem prover grande parte de sua manutenção e possuem na atividade estudantil, seu principal foco. Em grande medida, por um ou mais fator, isto não corresponde à realidade da UFFS Erechim.

A crítica que efetuamos aqui não visa depreciar o papel significativo da criação da universidade, entretanto, sempre é importante termos clareza das contradições que acompanharam a expansão da Educação Superior no Brasil. (Neto, Castro, 2014). A UFFS, como diversas outras IES no país, principalmente nos últimos anos, enfrenta desafios no que diz respeito à manutenção financeira e criação de novas ações para garantir a inclusão e permanência das camadas populares de forma substancial.

Perante o público com quem trabalhamos nesta pesquisa, outro fator limitante apontado foi as condições de frequência das mulheres mães e a possibilidade de acolhimento das crianças, presentes na seguinte fala: “Nosso Campus ainda não tem estrutura adequada para mães estudantes acompanharem as aulas com os seus filhos. Os cursos não informam e nem preparam os professores para a demanda de mães que frequentam as aulas com os filhos. Há docentes que não aceitam o fato de mães estudantes trazerem os filhos para a universidade” (Rosa).

Sob a mesma ótica, outras estudantes se posicionaram: “Na minha opinião deveria ter um grupo de apoio, pois já presenciei a desistência de muitas colegas nos semestres que cursei geografia e até mesmo na pedagogia” (Amarílis); “A universidade deveria colocar sala especial para as mães que trazem os filhos” (Lótus); “Não tive apoio da Universidade para deixar meu filho pequeno, nas noites de aulas” (Hortência).

 Mesmo as estudantes que não enfrentaram diretamente as dificuldades relacionadas à maternidade, citaram em seus depoimentos a necessidade de pensar estratégias que facilitem a vida das mães estudantes, como é o caso de Violeta que declara que para sua condição pessoal o campus está adequado, porém: “[…] respondo parcialmente, pois as mães, que possuem filhos pequenos, podem encontrar dificuldades, considerando que o campus não possui um espaço adequado para permanências das crianças”.

Para além das questões do cuidado das crianças outras duas questões foram levantadas, a primeira sobre a licença maternidade e a segunda sobre o formato dos cursos, trazidas nos depoimentos a seguir: “A licença maternidade deveria ser revista, o acompanhamento social deveria ser mais próximo dos acadêmicos, muitas pessoas nem sabem que existe esse serviço no campus. Deveria ter uma proximidade maior entre os acadêmicos e os professores, noto que há alguns professores inacessíveis também em relação a acordos e conversas sobre as dificuldades enfrentadas pelos acadêmicos” (Hortência); “Meu sonho é cursar o mestrado, mas como posso cursar o mestrado se ele ocorre boa parte de dia. Meu trabalho garante 60% da renda de minha casa, não tenho como deixar de trabalhar para estudar. Nesse aspecto, deveria ser pensado em alguma outra alternativa de ofertas de cursos, voltados às mulheres que cuidam da casa, trabalham fora e mesmo assim tem interesse em continuar estudando” (Margarida).

Estes apontamentos apresentados servem para pensarmos a universidade enquanto espaço público e democrático, contemplando pessoas reais, trabalhadores e trabalhadoras das mais diversas faixas etárias.

Por fim, foi perguntado às acadêmicas se a universidade promoveu modificações quanto a sua forma de vida e compreensão do mundo. Das 27 participantes, 26 (96,3% das mulheres) concordam que sim, justificando mudanças na tomada de consciência sobre o funcionamento da sociedade e de suas múltiplas relações. Diante disso Íris narra que: “Acredito que possibilitou eu voltar a sonhar, além de me sentir realizada em estar cursando pedagogia me sinto realizada pessoalmente e profissionalmente. Abre um leque de possibilidades, de conhecimentos variados, agregando na formação, me tornei mais crítica e pude me apropriar de conhecimentos diversos, onde posso entender melhor diferentes questões da nossa sociedade”.

Magnólia relatou que “vejo o mundo com outros olhos, meu pensar é diferente, agora consigo interagir e conversar com outras pessoas expressando minhas ideias e opiniões”. Nessa mesma direção Violeta responde que: “Primeiramente aprendemos a tratar as pessoas com igualdade e respeito. Segundo, aprendemos que devemos nos dedicar, pois nós podemos mudar as realidades enfrentadas na sociedade. Você percebe quantas possibilidades de atuação existem e com isso abre portas no mercado de trabalho”.

Já Orquídea responde que: “Sim, especialmente no que diz à formação de uma consciência de classe.” A universidade proporciona uma expansão de conhecimento e abre caminhos para reflexões mais apuradas das estruturas e relações sociais, extrapolando o universo da formação profissional.

O posicionamento crítico aparece em diversos depoimentos, na grande maioria ressaltando aspectos favoráveis, como uma nova forma de pensamento diante da política, o reconhecimento e respeito perante as questões da diversidade, a possibilidade de crescimento pessoal e profissional, além da elevação do nível econômico acessando maior renda financeira. Algumas participantes expressaram que o conhecimento tratado na universidade contribui com a comunidade do entorno, quer seja pelas ações formais de extensão, bem como de maneira indireta, pela ação dos estudantes e egressos na vida social dos municípios.

Cabe destacar que a pesquisa teve com intenção primeira entender a perspectiva das universitárias participantes, porém no decorrer do tratamento dos dados, nos permitiu ampliar o entendimento sobre a importância da existência da universidade pública na região. Para além, das dificuldades encontradas, evidenciar que a reflexão sobre diversos problemas locais e/ou de maior abrangência tomam vida a partir da inserção de diversas pessoas no espaço universitário é relevante.

Mudanças objetivas na resolução de algumas dificuldades pontuais podem decorrer de lutas, como diversos movimentos sociais já comprovaram, dentre elas as lutas feministas. Entretanto, a tomada de consciência de que os desafios estruturais são mais amplos é crucial. Como afirma Federicci (2019, p. 225-226):

 

Nem a reorganização do trabalho reprodutivo em uma base de mercado, nem a ‘globalização do cuidado’, muito menos a tecnologização do trabalho reprodutivo ‘libertam as mulheres’ ou eliminaram a exploração inerente ao trabalho reprodutivo em sua forma atual. Se tomarmos uma perspectiva global, veremos que não só as mulheres ainda fazem maior parte do trabalho doméstico não remunerado em todos países, mas, devido aos cortes nos serviços sociais e à descentralização da produção industrial, a quantidade de trabalho doméstico as mulheres realizam, pago ou não, aumentou, mesmo quando elas realizam um trabalho fora de casa.

 

 Compreender o trabalho desenvolvido pelas mulheres, nas suas múltiplas manifestações, não é suficiente. O espaço universitário, como qualquer espaço de nossa sociedade é repleto de antagonismos e contradições. Porém, ao acionar algumas estratégias de superação das dificuldades mais imediatas é possível provocar perguntas que qualifiquem reflexões de caráter mais amplo, quiçá motivações em contraposição ao modelo social vigente.

 

Considerações Finais

A discussão deste artigo teve como foco as relações entre trabalho e educação que permeiam a vida de estudantes universitárias, sobretudo, daquelas que não tiveram oportunidades de acesso educacional em épocas anteriores. A partir dos dados analisados, e, nos debruçando sobre outros estudos feitos com mulheres trabalhadoras, entendemos que muitas das dificuldades encontradas são recorrentes, reflexos dos problemas estruturais da sociedade. Os diversos tipos de exploração e opressão (de classe, de gênero, de raça/etnia, de idade, etc) que operam de forma geral, podem também incidir em graus diferenciados sobre determinados grupos. Em nossa compreensão, avançar para uma sociedade mais justa significa combater conjuntamente o capitalismo, o patriarcado, bem como as relações racistas e preconceituosas.

No universo específico da pesquisa, a primeira parte deste artigo foi dedicada a reconhecer e identificar as participantes. Conforme os dados coletados, observamos que são estudantes com mais de 30 anos, da classe trabalhadora e que frequentam cursos noturnos. A maioria das participantes possui filhos/as. Principalmente pela falta de recursos econômicos, pela distância de moradia e por exigências da maternidade estas mulheres ingressaram tardiamente na universidade e/ou necessitaram interromper seus estudos em algum momento de suas vidas.

Em seguida, identificamos que as participantes estão diretamente envolvidas nos processos produtivos e reprodutivos do trabalho, além do tempo dedicado a universidade. Na esfera produtiva, destacamos que todas exercem algum tipo de atividade remunerada para sobrevivência, conciliadas com outras tantas atividades ligadas à reprodução, tais como os afazeres domésticos, cuidados com filhos e familiares. Entretanto, mesmo enfrentando desafios, optaram pelo ingresso ou retorno à graduação, afirmando a importância do acesso à educação superior pública, o que, segundo elas, possibilita uma maior consciência crítica em torno da sociedade e seu funcionamento.

Com enfoque no ambiente universitário, na terceira  e última parte discutimos as limitações e potencialidades levantadas pelas participantes. De forma geral, predominaram falas sobre as dificuldades em conciliar estudo, trabalho remunerado, trabalho doméstico e maternidade. A maioria destas responsabilidades continuam sendo naturalizadas enquanto atividades tipicamente femininas, resultando em cotidianos exaustivos e acelerados. Segundo as participantes, a falta de tempo para dedicação plena às aulas, além de fatores inerentes aos processos didáticos pedagógicos incidem no desempenho acadêmico. Algumas mulheres revelaram possíveis situações de discriminação de gênero, de geração e pelo fato de serem mães. Um dos desafios imediatos diz respeito à criação de estratégias institucionais que contribuam com as estudantes trabalhadoras com filhos/as pequenos/as.

No decorrer dos depoimentos ficou evidente a importância da universidade pública e gratuita no quesito oportunidades, evidenciando superações e perspectivas de melhorias no campo profissional, nas dimensões da convivência política e social, bem como no âmbito da realização pessoal.

Ressaltamos que o acesso ao ensino superior é indiscutível para a consolidação de uma sociedade que avança no caminho democrático. Olhar para o contexto dos estudantes reais, neste caso, das mulheres trabalhadoras, pode suscitar um espaço de debate e de transformação das políticas de acesso e permanência, enquanto estratégia para conquistas mais ampliadas. No entanto, cabe pontuar que, por mais que existam avanços nas formas de inclusão de pessoas em espaços historicamente negados, muitas das práticas de exploração e opressão continuam a ser vivenciadas e defendidas publicamente. Ao atentarmos para o Brasil dos últimos anos presenciamos a proliferação de discursos preconceituosos, misóginos, de ódio e contrários à reflexão crítica. Neste sentido, entendemos que no espaço acadêmico e na sociedade é necessária a continuidade de estudos e debates que avancem na construção de relações produtivas e reprodutivas mais justas.

Por fim, compreendemos que a luta feminista pode e deve incidir sobre questões pontuais e na esfera de direitos, porém, a construção de um projeto societário concretamente emancipatório será possível a partir de uma intervenção coletiva ampla de superação dos antagonismos estruturais da sociedade.

 

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Notas



[1] Os dados abordados neste artigo são decorrentes da pesquisa intitulada “Estudante, trabalhadora, mãe, esposa: dificuldades e desafios das graduandas da UFFS em Erechim”. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa – CEP da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, em 20/07/2022. Parecer: 5.536.329.

 


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