Pedagogias não-diretivas: Leon Tolstói, Alexander Neill e Carl Rogers
Non-directive pedagogies: Leon Tolstoy, Alexander Neill, and Carl Rogers
Pedagogías no directivas: León Tolstói, Alexander Neill y Carl Rogers
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília, Brasília, DF, Brasil
marcello.lasneaux@ifb.edu.br
Elianda
Figueiredo Arantes Tiballi
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO, Brasil
elianda@pucgoias.edu.br
Recebido em 27 de junho de 2023
Aprovado em 27 de julho de 2023
Publicado em 20 de agosto de 2024
RESUMO
As pedagogias não-diretivas constituem uma concepção pedagógica diferente das correntes mainstream praticadas em escolas de diferentes países, incluindo o Brasil. Este artigo teve como referência empírica um levantamento bibliográfico sobre a base histórica-epistemológica dessa pedagogia, buscando explicitar, suas premissas fundamentais. Dentre os principais pensadores das pedagogias não-diretivas estão Leon Tolstói, Alexander Neill e Carl Rogers. Apesar de haver diversos entendimentos sobre essa tendência pedagógica, com a pesquisa realizada, o termo resultante foi o de pedagogia não-diretiva (quanto ao seu processo pedagógico) e suas escolas praticantes identificadas como escolas democráticas ou escolas livres. Após a pesquisa bibliográfica, percebeu-se também que o espaço editorial ocupado por essa temática é reduzido, apesar da considerável possibilidade pedagógica da concepção do ensino no auxílio de uma educação genuinamente inclusiva, oportunizando uma alternativa à escolarização comum. São considerados centrais nesse processo, valores subestimados em outras pedagogias: a autonomia, o direito de ser quem se é e o protagonismo. Quando Rogers admite esse eu central, protagonista e autêntico, revela o ponto de contato máximo com os pensamentos de Tolstói e de Neill. Assim, o objetivo desse artigo é de explicitar as premissas básicas que fundamentam a pedagogia não diretiva, orientadoras das práticas escolares realizadas em escolas democráticas, escolas livres, escolas não- diretivas, além de contribuir para a possibilidade de suscitar novas pesquisas e ressuscitar outras que possam trazer à luz suas possibilidades, recolocar e ampliar o conhecimento que se tem sobre o tema.
Palavras-chaves: Alexander Neill; Carl Rogers; Escolas democráticas; Leon Tolstói; Pedagogias não-diretivas.
ABSTRACT
Non-directive pedagogies constitute a pedagogical conception different from the mainstream approaches practiced in schools across different countries, including Brazil. This article was empirically based on a bibliographic survey of the historical-epistemological foundation of this pedagogy, seeking to explicitly clarify its fundamental premises. Among the key thinkers of non-directive pedagogies are Leon Tolstoy, Alexander Neill, and Carl Rogers. Despite the various understandings of this pedagogical trend, the resulting term from the conducted research was non-directive pedagogy (regarding its pedagogical process), with its practicing schools identified as democratic schools or free schools. After the bibliographic research, it was also observed that the editorial space dedicated to this theme is limited, despite the considerable pedagogical potential of this teaching approach in fostering genuinely inclusive education, providing an alternative to conventional schooling. Values that are often underestimated in other pedagogies, such as autonomy, the right to be oneself, and protagonism, are considered central to this process. When Rogers acknowledges this central, protagonist, and authentic self, it reveals the maximum point of connection with the thoughts of Tolstoy and Neill. Thus, the objective of this article is to explicitly clarify the basic premises that underpin non-directive pedagogy, guiding the educational practices carried out in democratic schools, free schools, and non-directive schools, while also contributing to the possibility of sparking new research and reviving existing studies that may shed light on their possibilities, reframe, and expand the knowledge on the topic.
Keywords: Alexander Neill; Carl Rogers; Democratic schools; Leon Tolstoy; Non-directive pedagogies.
RESUMEN
Las pedagogías no directivas constituyen una concepción pedagógica diferente de los enfoques convencionales practicados en escuelas de diferentes países, incluyendo Brasil. Este artículo se basó empíricamente en un estudio bibliográfico sobre los fundamentos histórico-epistemológicos de esta pedagogía, buscando aclarar explícitamente sus premisas fundamentales. Entre los pensadores clave de las pedagogías no directivas se encuentran León Tolstói, Alexander Neill y Carl Rogers. A pesar de las diversas interpretaciones de esta tendencia pedagógica, el término resultante de la investigación fue el de pedagogía no directiva (en cuanto a su proceso pedagógico), y las escuelas que la practican se identificaron como escuelas democráticas o escuelas libres. Tras la investigación bibliográfica, también se observó que el espacio editorial dedicado a este tema es limitado, a pesar del considerable potencial pedagógico de esta concepción educativa en fomentar una educación verdaderamente inclusiva, ofreciendo una alternativa a la educación convencional. Valores que a menudo se subestiman en otras pedagogías, como la autonomía, el derecho a ser uno mismo y el protagonismo, son considerados centrales en este proceso. Cuando Rogers reconoce este yo central, protagonista y auténtico, revela el máximo punto de conexión con los pensamientos de Tolstói y Neill. Por lo tanto, el objetivo de este artículo es aclarar explícitamente las premisas básicas que fundamentan la pedagogía no directiva, orientando las prácticas educativas llevadas a cabo en escuelas democráticas, escuelas libres y escuelas no directivas, además de contribuir a la posibilidad de generar nuevas investigaciones y revivir estudios existentes que puedan arrojar luz sobre sus posibilidades, replantear y ampliar el conocimiento sobre el tema.
Palabras Clave: Alexander Neill; Carl Rogers; Escuelas democráticas; Leon Tolstói; Pedagogías no directivas.
Apresentação
As pedagogias não-diretivas constituem uma forma alternativa do pensamento pedagógico diferente das correntes mainstream – identificadas como da escolarização comum - praticadas em diversas partes do mundo escolar, incluindo o Brasil. Na pedagogia de escolarização comum, há em grande parte delas, “um professor que fala, orienta, ensina – de um lado e, do outro, alunos que escutam, anotam para, oportunamente, reproduzir o mais exatamente possível o que foi ensinado” (Justo, 1973). As teorias pedagógicas, sendo subjugadas a matrizes epistemológicas amplas e variadas, subsidiam práticas educativas escolares igualmente diversas, nunca homogêneas, o que possibilita ao processo educativo de ensinar e aprender a liberdade assegurada pelo marco legal máximo no Brasil, a Constituição Federal, que estabelece em seu Art. 206 a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e o “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” (Brasil, 1988, p.152).
As pedagogias não-diretivas estão entre estas possibilidades de orientação teórica e metodológica para o trabalho docente como possível alternativa à escolarização comum, para alunos em dificuldades de adaptação a outros formatos, em situação de fracasso escolar, com necessidades de inclusão, em dificuldade de socialização ou em condições impeditivas de frequência escolar por motivações de saúde mental. Não obstante, estas pedagogias são frequentemente acusadas de experienciais e marginais frente aos sistemas de ensino, por destituírem o professor de sua autoridade professoral, por serem “permissivas”, deixando o aluno conduzir o processo de ensino e de aprendizagem a partir da acepção do laissez-faire, embora tenhamos exemplos marcantes de longevidade desta proposta pedagógica e de práticas educativas dela decorrentes, comprovadamente bem-sucedidas.
Elas representam e se funcionalizam emuma tendência pedagógica quase ausente em teses e dissertação recentemente defendidas em programas de pós-graduação de universidades brasileiras. Na base de dados da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - BDTD do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, usando os descritores "pedagogia não-diretiva" com recorte temporal de 1973 a 2023, foram localizados 22 trabalhos, sendo selecionados 2 deles que, no entanto, ao ler os resumos percebeu-se que não tratavam diretamente do tema aqui abordado: o de Mariana Guimarães Wrege, intitulado "Escolas democráticas - um olhar construtivista" (2012) e do Helena Singer: A gestão democrática do conhecimento . No repositório da CAPES, do mesmo modo, não foram localizados trabalhos que abordam a escola democrática a partir das concepções de Carl Rogers e Alexander Neill. Este dado evidencia a escassez de pesquisa publicadas sobre a temática.
Libâneo (2014) está entre os pedagogistas que participam ativamente da constituição do discurso educacional brasileiro e que abordam esta temática. O autor propõe que as tendências pedagógicas que orientam práticas educativas não-diretivas possam ser explicadas por meio de duas grandes categorias: a pedagogia liberal e a pedagogia progressista. A pedagogia liberal seria representativa da sociedade de classes, com o respaldo da lógica da sociedade capitalista, centrada em uma organização social sustentada pela livre iniciativa e pela propriedade privada. Nesta pedagogia, a liberdade individual e a livre iniciativa, propostas para a economia capitalista liberal, seriam assimiladas como modelo a ser seguido pelos processos educativos escolares. Já as progressistas, encerram-se em torno de uma “análise crítica das realidades sociais (p.33)” atuando sectariamente contra a organização da sociedade capitalista. Dicotomicamente, Libâneo usa o modo de produção capitalista como divisor das duas categorias pedagógicas citadas. Compondo a representação liberal, sugere que há quatro tendências, sendo uma delas denominada de liberal renovada não-diretiva. Nesta, considera o autor que a escola estaria “mais preocupada com os problemas psicológicos do que com os pedagógicos” que “todo esforço está em estabelecer um clima favorável a uma mudança dentro do indivíduo”. Há rebaixamento da importância do conteúdo; o importante é o “autodesenvolvimento e realização pessoal (p.28).” A não-diretividade está ligada aos conteúdos. Os alunos devem buscar “por si mesmos os conhecimentos que, no entanto, são dispensáveis. (p.28).” O professor adquire um papel de facilitador, de ajudar o aluno confiante no autodirecionamento “curricular”. A educação está centrada no aluno que se desenvolve a partir de experiências autossignificativas. “Toda intervenção é ameaçadora, inibidora da aprendizagem. (p.29)”. Aprender significaria restritamente “modificar suas próprias percepções.” Nessa esteira, a avaliação escolar (ou qualquer outra) seria desnecessária, “privilegiando-se a autoavaliação (p.29).” Em suas análises Libâneo cita o psicólogo Carl Rogers e o educador Alexander Neill como representantes desta tendência pedagógica (Libâneo, 2014).
Entretanto, Gadotti (1999), ao se referir às relações de Rogers com a educação, prefere categorizar sua ideia pedagógica dentro de uma chave de classificação que intitulou de “pensamento pedagógico antiautoritário”. Nessa categoria, inclui Freinet, Rogers e Lobrot. O inspirador dessa categoria seria Freud que “embora (...) não possa ser considerado um pedagogo, teve grande influência na educação (p.173)”. Duas contribuições seriam fundamentais. A primeira, a do fenômeno da transferência – de suma importância entre analista e analisando, também seria entre professor e aluno. A segunda, a prática repressiva da sociedade e da escola na composição das instâncias psíquicas. Sendo assim, o freudismo e a psicanálise sugerem uma “prática educativa não repressiva e respeitadora da criança. (p.174)”
Outro autor que também classificou as tendências pedagógicas contemporâneas e que menciona a pedagogia não-diretiva a partir de categorias de sua análise foi Paquette (2014) que as organizou segundo a contribuição do aluno e do docente em quatro categorias, como na Figura 1.
Figura 1: Organização das tendências pedagógicas segundo as contribuições do aluno e do docente. Tipologia proposta por Paquette (1979). Adaptado de Gaulthier e Tardif, 2014, p. 281.
Analisando Paquette, a pedagogia livre seria a que se aproxima da pedagogia não-diretiva citada por Libâneo. Segundo ele, a contribuição do aluno na sua própria aprendizagem é forte, sendo fraca a intensidade da contribuição docente. O aluno é o responsável pela sua aprendizagem e é a partir das suas necessidades que essa aprendizagem se desenvolve, tendo como terreno para que se consolide sua própria atividade cotidiana.
Gallo (2007) traz mais uma contribuição para as pedagogias não-diretivas, livres ou como ele prefere se referir, libertárias. Citando Lapassade, indica que uma característica da pedagogia não-diretiva é a autogestão e, nesse sentido, a considera autoautoritária. Ao explicar esta concepção pedagógica, o autor afirma que se trata de uma educação negativa, isto é, uma educação (ou pedagogia) que não tem um humanismo certo, um desejo de homem certo, um desejo de egresso pré-estabelecido. Nela, o professor “renuncia à sua autoridade de transmissor da mensagem” para colocar o papel da aprendizagem central no aluno (Gallo, 2007, p.118). Nessa chave de classificação, as pedagogias positivas têm a intenção de homem ao longo do seu processo e são diretivas (pela prática docente e pelo seu currículo pré-organizado a despeito da individualidade dos alunos) para que conquistem esse desejo. A pedagogia negativa resume-se a partir da dialética negativa de Adorno, ressignificando a dialética hegeliana: a pedagogia negativa é aquela organizada na tese, na antítese, mas sem síntese (representada pela não-diretividade curricular). Pretende-se então se libertar da dialética afirmativa, produzindo-se um antissistema (Adorno, 1984).
Carbonell (2016) também está entre os pedagogistas que abordaram o tema. Este autor classificou sete grupos de pedagogias: as pedagogias críticas que são aquelas que vão de encontro à neutralidade, ao pensamento único e à fragmentação curricular; as pedagogias de inclusão e de cooperação que defendem a mudança da diversidade excludente para a diferença inclusiva, reforçando práticas de grupos cooperativos e interativos; a pedagogia lenta, serena e sustentável que defende que se deve devolver tempo à infância, à aprendizagem e aos docentes, bem como organizá-la em sintonia com a sustentabilidade; a pedagogia sistêmica que considera a família em primeiro plano sendo a escola um espaço total de comunicação; as pedagogias do conhecimento integrado que se organizam por projetos de trabalho e defendem caminhar da interdisciplinaridade à transdisciplinaridade; as pedagogias de diversas inteligências fundamentada em Howard Gardner e suas inteligências múltiplas; e, finalmente, as pedagogias livres não-diretivas como alternativas para a escolarização comum, sustentada em Tolstói, Alexander Neill e Carl Rogers.
Carbonell salienta ainda
(...) a memória pedagógica e um século e meio da obra de 11 autores, cujas ideias haviam influenciado o pensamento e a prática dos professores mais inovadores, tanto da Espanha, quanto na Europa e na América Latina: Montessori, Ferrer y Guàrdia, Dewey, Giner de los Rios, Freinet, Neill, Makarenko, Piaget, Milani, Freire e Stenhouse. Onze maneiras diferentes de entender a melhoria, a mudança e a transformação na escola. Onze histórias pessoais comprometidas com pequenas ou grandes utopias. Onze modos de pensar, construir e viver a escola com mais plenitude, criatividade e justiça. De alguma maneira, esses foram juntos a outros, os “inventores” ou “descobridores da educação contemporânea (Carbonell, 2106, p.xi).
Apesar de haver diversos entendimentos sobre essa tendência pedagógica, como visto, o termo aqui empregado será pedagogia não-diretiva (quanto ao seu processo pedagógico) e suas escolas praticantes reconhecidas como escolas democráticas ou escolas livres. Sabe-se que o termo “escolas democráticas” causa debates sobre o que representam, enquanto muitos acreditam ser um termo que reserva um paradoxo em si, haja vista que há muitos direitos em uma democracia que não são usufruídos pelos estudantes, por exemplo (Apple; Beane, 1997). Além de escolas democráticas e livres, encontram-se outros termos de referência como: escolas autônomas, escolas alternativas, escolas não-diretivas, escolas progressistas, escolas de autogestão, escolas comunitárias, escolas sem paredes (Singer, 2008).
Em alguns países, como a Alemanha, por exemplo, escolas “livres” (Freie) são todas as não-estatais, mas somente as mais progressistas incluem o adjetivo no nome; em outros, como a Dinamarca, Friskole nomeia iniciativas de pais que recebem 75% de subsídios do governo desde que mantenham um número mínimo de alunos; na Austrália, todas as escolas se consideram democráticas, por isso as que querem ressaltar as características assinaladas acima se autorreferem como progressive schools; já nos Estados Unidos, existem tantas escolas com as características aqui descritas, que elas se diferenciam entre si de acordo com o subgrupo ao qual pertencem” (Singer, 2008, p. 07).
Exemplos de escolas democráticas, como de Summerhill, estão presentes em diversos países do mundo, como observa-se no sítio da Alternative Education Resource Organization (Aero, 2018). Trata-se de uma das entidades que congregam experiências alternativas de educação à escolarização comum. Há exemplos em: Portugal, Estados Unidos, Brasil, México, Israel, Alemanha, Espanha, França, Canadá, Noruega, África do Sul, Japão, Nova Zelândia, Argentina, Índia, Palestina, entre outros.
Algumas das escolas democráticas mais conhecidas são:
1. Escola da Ponte - Portugal: criada em 1976 pelo educador português José Pacheco, a escola tem uma abordagem baseada na autonomia e na colaboração, em que os alunos são incentivados a desenvolver suas habilidades e interesses de forma autônoma.
2. Sudbury Valley School - Estados Unidos: fundada em 1968, é uma das escolas democráticas mais antigas dos Estados Unidos. A escola é administrada pelos próprios alunos e professores, que tomam decisões coletivas sobre assuntos que afetam a comunidade escolar.
3. Escola Democrática Integral - México: fundada em 1972, a escola tem uma abordagem pedagógica baseada na liberdade e na democracia. Os alunos têm a liberdade de escolher as atividades e disciplinas que desejam participar e são encorajados a tomar decisões coletivas sobre a gestão da escola.
4. Escola Democrática de Hadera - Israel: fundada em 1987, a escola tem uma abordagem pedagógica baseada na democracia e na justiça social. Os alunos são incentivados a participar de assembleias democráticas e a se envolver em projetos sociais e comunitários.
Ainda que algumas críticas formuladas nas análises da “tendência pedagógica não-diretiva”, sejam aparentemente pertinentes, estas não se aplicam à totalidade dos fundamentos pedagógicas da pedagogia não-diretiva, senão a alguns aspectos teóricos metodológicos que, de fato, precisam ser mais bem explicitados para evitar equívocos epistemológicos decorrentes da ausência de uma compreensão conceitual mais aprofundada desta concepção pedagógica.
Diante da diversidade teórica e prática e da dificuldade de delineamento conceitual, a escrita deste artigo se fez pautada pela base histórica-epistemológica das pedagogias não-diretivas, a partir de seus principais pensadores Leon Tolstói, Alexander Neill e Carl Rogers.
Tolstói e a escola Iasnaia Poliana
Leon Tolstói (1828-1910) foi um escritor russo de obras capitais como Anna Karenina e Guerra e Paz, que entre tantas contribuições em vários territórios do saber, incluem a alfabetização e escolarização de crianças e jovens em uma Rússia que apresentava índices de analfabetismo substanciais. Assinou com Jean Grave, Lousie Michel, Élisée Reclus, Piotr Kropotkin, todos eles militantes históricos do anarquismo, o manifesto “A liberdade pelo ensino: a escola libertária” (Tolstói, 2021). Sua experiência mais sólida foi sua escola em Iasnaia Poliana, fazenda de sua propriedade. Tolstói foi considerado um anarquista cristão e tendo contribuído, por meio de suas obras e suas categorias de pensamento, para a configuração de um movimento anarquista internacional.
Essa experiência parece ter sido a primeira de uma escola democrática não-diretiva. Em sua fazenda, Iasnaia Poliana, implantou-se um modelo de educação livre que enfrentava o modelo vigente, na Rússia do século XIX, modelo esse que Tolstói acusava de “garantir” a falta de conhecimento do povo, ensinava coisas que o aluno já sabia e se tratava de uma verdadeira emulação do modelo alemão (ou prussiano, na época). Foi assim, diante de sua resignação que iniciou em 1857, a experiência em Iasnaia Poliana, conforme sua experiência relatada:
Ninguém traz consigo coisa alguma, nem livros nem cadernos. Nenhum aluno é obrigado a fazer dever de casa. Além de virem de mãos vazias, os alunos não são obrigados a decorar lições, sequer a aula do dia anterior. Eles não se atormentam com o pensamento da tarefa por fazer. Trazem apenas a si mesmos, sua natureza receptiva, e a certeza de que hoje a escola será alegre quanto ontem [...]. Ninguém jamais é repreendido por se atrasar. Eles se sentam onde querem: bancos mesas, peitoris das janelas, poltronas. O horário prevê quatro aulas antes do jantar, que às vezes na prática se tornam três ou duas, e que podem ser sobre assuntos bastante diferentes [...]. Na minha opinião essa desordem externa é útil e necessária, por mais estranha e inconveniente que possa parecer ao professor [...]. De início, essa desordem, ou ordem livre, nos assusta, porque fomos educados de outra maneira e estamos acostumados a algo bem diferente. Em segundo lugar, neste como em muitos casos semelhantes, a coerção só é usada por causa de pressa ou falta de respeito pela natureza humana (...) (Bartlett, 2013, p. 191-192).
A fundamentação para o pensamento educacional de Tolstói está fortemente ancorado em Rousseau (Singer, 2008; Wreger, 2012; Gauthier;Tardif, 2014). Em “Emílio”, Rousseau explica o que seria posteriormente atribuído como o naturalismo. A educação deve ocorrer de modo natural porque a essência da criança é boa. O desenvolvimento deve ser livre e espontâneo, sem que haja necessidade de livros e sem se importar efetivamente com a demora na aprendizagem – cada um tem o seu ritmo.
A escola funcionava a partir de pressupostos como educar na liberdade, sem regras excessivas, sem punições e sem premiações. Dentro da liberdade discente estava o fato de que eles poderiam escolher entre assistir ou não as aulas. Iasnaia Poliana funcionava em tempo integral e os alunos dormiam na casa de dois andares, juntamente com seus professores, em quartos separados. Era gratuita e matriculava alunos em vulnerabilidade da região. Tolstói defendia a ideia de que a educação deveria ser acessível a todos, independentemente de sua origem social ou econômica. Não havia lições de casa e a separação de séries era muito distinta da escola tradicional (na verdade, ela praticamente não havia). Não se repreendia os atrasados nem aqueles que saíam mais cedo das aulas. Não havia nota. No final da tarde, os alunos reportavam aos seus professores o que haviam aprendido durante o dia (Wrege, 2012). A casa contava com um estúdio para as aulas, mas eram muito importantes os espaços externos como espaços de aprendizagem. Pretendia-se claramente assim escapar das quatro paredes, do controle absoluto da permanência síncrona entre todos e o confinamento do modelo pedagógico fechado ou centrado no professor e nos objetivos de aprendizagem.
Havia alguma leve divergência com os pressupostos rousseaunianos sobre o currículo: ele não era tão livre. Tolstói tinha foco em três aprendizagens nas séries iniciais: leitura, rudimentos de matemática e história sagrada. Depois, ampliava os conhecimentos para ensino religioso, canto, ciências naturais, matemática, desenho, desenho geométrico, leitura, história sagrada e história da Rússia (Wrege, 2012).
O que Tolstói queria era que a Rússia não copiasse o modelo europeu, e que deveria encontrar seu próprio caminho. Na época, o Ministério da Educação russo aprovava as atividades pedagógicas praticadas em Iasnaia Poliana, embora outros setores do governo, como o Ministério de Assuntos Internos, tivessem restrições às conduções de Tolstói, associando suas práticas ao anarquismo, ao radicalismo e à uma revolução (Bartlett, 2013). Em suas obras literárias, Tolstói abordou temas relacionados à educação, como a importância da formação moral e ética dos personagens, a crítica à educação formal baseada em dogmas e convenções sociais, e a defesa de uma educação que valorize a liberdade, a criatividade e a autonomia do indivíduo. Tolstói confiava na valorização do desenvolvimento integral do ser humano e na busca por uma educação mais acessível e democrática, sem práticas autoritárias e privilegiadoras. Dessa forma, a faceta pedagógica do tolstoísmo era fundamentada em uma aprendizagem centrada na criança, a partir da liberdade de aprender. Essa base, será encontrada em diversas experiências posteriores. Em Faure (2015), na escola A Colmeia: “não há qualificações; nem castigo, nem recompensas.(p.21). Em Little Commonwealth, de Homer Lane, há uma defesa do autogoverno em vez da punição (Lane, 1968). Em Summerhill, será vistointensamente com Alexander Neill.
Alexander Neill e a escola Summerhill
Neill nasceu em 1883, filho de um mestre-escola, na Escócia. Inusitadamente, Neill não foi enviado para a escola secundária, sendo o único dos oito filhos a não a cursar. O motivo teria sido a sua “incapacidade de aprender”. Depois de muitas dificuldades de escolher a sua profissão, Neill acaba por formar-se professor de Literatura, em 1912. Em 1921, funda Summerhill (Neill, 1976). É autor de dezessete livros com tradução para mais de 10 línguas. O professor Alexander Neill, se recusava a aplicar o castigo físico, era contrário à aprendizagem por mera memorização, abdicou da aprendizagem sem significância e tentou fazer seus alunos pensarem. Acreditava que formar os estudantes na pedagogia tradicional era um ato de violência ou uma espécie de modelagem com astúcia. Terminou despedido. Foi trabalhar em fazenda, recolhendo fezes bovinas.
Summerhill é uma escola que acumulou experiência centenária. Antes de criá-la, no dia de sua despedida das crianças de sua escola anterior, disse:
Acho que nenhum de vocês compreende por que eu vou embora, mas tentarei dizer-lhes. Eu fui demitido por seus pais e suas mães. Dizem que eu não sou bom professor. Dei a vocês liberdade demais. Saí com vocês para desenhar, pescar e brincar. Deixem que lessem o que quisessem. Deixei que fizessem o que quisessem. Não lhes ensinei o suficiente. Quantos de vocês sabem qual é a capital da Bolívia? Estão vendo? Ninguém sabe (Neill, 1978, p.24).
A ideia defendida por Neill é a de que crianças educadas com liberdade podem aceitar deveres com facilidade, mas nunca fazem deles uma obsessão. Os alunos são encorajados a explorar seus interesses e desenvolver suas habilidades de maneira autônoma, sem imposições de currículo ou disciplinas obrigatórias.
Alexander Neill foi considerado um homem de coragem rara. Ele afirmava que não há “crianças-problema” e nem “criança difícil”. Existem crianças infelizes (Neill, 1978).
No livro “Liberdade sem medo”, Neill explica como funciona a escola Summerhill, na Inglaterra. Na escola, são aceitas crianças de 5 a 16 anos. Elas são divididas em três grupos: de 5 a 7 anos, de 8 a 10 anos e de 11 a 16 anos. O horário em Summerhill é apenas para os professores. Os alunos têm assegurado o direito de recusar as aulas. Neill – por ocasião desse relato – afirmou que, deixados muito à vontade, o tempo médio de ócio (não ir a nenhuma aula) era de três meses. Ele comenta que houve um caso de uma menina que ficou três anos sem aulas (Neill, 1976).
A proposta de aprendizagem em Summerhill se dá por meio da educação integral em tempo integral, inclusive as crianças dormem na escola, que é na verdade uma grande casa. As aulas começam à 9h30. As tardes são livres. As noites, se dividem em palestras, oficinas, cinema, ensaios e assembleias. Neill acreditava que a liberdade funciona, mas uma liberdade sem medo (que seria o título de um de seus livros). Não acreditava no “kratos”, isto é, na autoridade e na hierarquia. Também se sentia incomodado com a falta de crítica na sociedade, uma sociedade “em que cerca de 95% dos cidadãos jamais desafiam, jamais discutem o dogma do Estabelecimento, jamais pensam sequer sobre eles.” (Neill, 1978, p. 43)
Em uma frase contundente, em que procura expressar o sentido pedagógico e filosófica da escola, Neill afirma: “A escola deveria ser julgada pelo rosto de seus alunos e não por seus sucessos acadêmicos”. (Neill, 1978, p.16)
Há pressupostos pedagógicos centrais em Summerhill. As assembleias democráticas são da natureza ordinária do funcionamento da escola. Nela, são tomadas decisões coletivas sobre assuntos que afetam a comunidade escolar. As aulas opcionais: os alunos têm a liberdade de escolher as disciplinas e atividades que desejam participar, sem a necessidade de seguir um currículo pré-estabelecido. Os professores atuam como facilitadores, orientando e ajudando os alunos em seus projetos e interesses. A escola defende a liberdade de expressão e de pensamento, encorajando os alunos a discutirem e questionarem ideias e conceitos, e a expressarem suas opiniões sem medo de represálias. Possíveis sanções são determinadas na assembleia. Aprendizagem é significativa pela experiência, por isso incentiva os alunos a realizarem atividades práticas e a experimentarem diferentes formas de aprendizado, como trabalhos manuais, atividades artísticas e esportivas, entre outras. A escola não adota notas ou provas para avaliar os alunos, mas busca acompanhar seu desenvolvimento por meio de observação e diálogo. Os alunos são encorajados a avaliar seu próprio progresso e a buscar feedback dos colegas e professores.
Summerhill tem mais de 100 anos de existência e há inúmeras escolas pelo mundo que se inspiram nesse modelo, com relatos de aprendizagem consistentes (Denisson, 1976). As ideias de Neill foram posteriormente encontrar aderência na exposição do pensamento de um psicólogo: Carl Rogers.
Carl Rogers e a escola não-diretiva
Carl Rogers (1902-1987) foi um dos mais eminentes psicólogos de sua geração, sobretudo nos Estados Unidos, seu país de origem. Sua abordagem centrada da pessoa transcendeu a psicologia e terminou por contribuir de forma inequívoca na pedagogia, tendo como referenciais, entre outros, de John Dewey. Entre suas obras de maior relevância estão: Tornar-se pessoa, Grupos de Encontros, A pessoa como centro e Liberdade para aprender. No Brasil, a psicologia humanista de Rogers é considerada uma importante linha dentre àquelas implementadas no atendimento aos clientes.
O respeito pelo desenvolvimento da natureza do outro parece estar em desuso, do possível pluralismo humanista ou do não-humanismo, mas não em Rogers. Quando publica em 1961, “Tornar-se pessoa”, Rogers consolida a terapia centrada no cliente (Abordagem Centrada na Pessoa), desenvolvida por ele na década de 1940. Rogers identifica em Kierkegaard, a frase para si e para seu pensamento: “ser o eu que verdadeiramente se é”, que pode ser recriada na pergunta: “qual é a sua meta de vida?”. No livro, Rogers aponta que seres humanos necessitam de aceitação e quando isso lhes é dado, movem-se em direção à autorrealização (Rogers, 1997). São claras as influências filosóficas em Rogers. Kierkegaard é reconhecido por muitos como o pai do existencialismo. Entre suas ideias, está a de que somos indivíduos únicos que devem criar seu propósito de vida, devem assumir as responsabilidades de suas escolhas. Dessa forma, a inspiração proporcionada por Kierkegaard é a de que o centro do movimento do individuo está nele próprio. Outra pegada filosófica evidente no pensamento rogeriano é o do filósofo Martin Buber. Para Buber, a verdadeira relação entre as pessoas está no diálogo, na “palavra dialógica”, na “conversação autêntica” (Gauthier; Tardif, 2014).
Rogers parte do pressuposto de que “as pessoas são inerentemente plenas de recursos” (Rogers, 1997, p.XV), e ainda aponta que “o pecado cardeal em terapia ou no ensino e vida familiar, é a imposição da autoridade” (Rogers, 1997, p. XV). Para Rogers, a sensibilidade ao outro é uma arte da mais importante grandeza, um potencial procedimento social que enriquece e suaviza as notícias do mundo, favorece a organização da sociedade e permite a vida sem a infração da liberdade que lhe cabe.
Rogers condena a “atitude de fachada”, condena o “agir como se eu fosse alguma coisa que eu não sou” (Rogers, 1997, p.19). Rogers advoga a favor da autenticidade e da admissão de um eu. Valida para a mesma situação, disposições diametralmente opostas pelo singelo fato de serem próprias de seus interlocutores. Sempre é, e sempre será, altamente enriquecedor, aceitar outra pessoa, da forma como ela é. Esse processo é movimento que possibilita a sociedade, que nos possibilita. Pode um mesmo indivíduo ser alvo de raiva e de amor? Esses sentimentos antipodais podem ser legítimos? Rogers afirma que: “Quanto mais aberto estou às realidades em mim e nos outros, menos me vejo procurando, a todo o custo, remediar as coisas”. (Rogers, 1997, p.25)
O avanço das ideias rogerianas sugere uma possibilidade de revelar a individualidade respeitada de cada um de nós, por todos que orbitam na realidade desse indivíduo. “Quanto mais um indivíduo é compreendido e aceito, maior sua tendência para abandonar as falsas defesas que empregou para enfrentar a vida, maior sua tendência para seguir em frente” (Rogers, 1997, p.31). Em muitos exemplos apresentados por Neill em “Liberdade para aprender” (1976) pode-se perceber o quanto isso foi fundamental para o auto-engajamento dos estudantes em Summerhill.
Rogers se antecipa e pede que não seja visto como um rousseauniano estrito, adepto de uma ingênua credulidade na bondade irrestrita do ser humano. É que o terreno do intrapsíquico é muito movediço e pode reservar o mal e os desvios.
Rogers afirma que quanto mais genuínos formos frente aos conflitos e nas demais relações interpessoais, mais úteis seremos, em todo nosso espaço social. A genuinidade e a autenticidade são recursos protetores e desenvolvimentistas de uma possibilidade super- humana de conviver e avançar. Quantos menos eus estiverem em curso no ambiente social total, mais suprimentos teremos para uma justiça social e libertação coletiva. A relação de ajuda entre todos, depende desse estruturante, de um comparecimento desse eu possivelmente único (Britto, 1986). A liberdade de ser é um elemento importante na relação. Dentro dessa perspectiva, Rogers se aponta como um companheiro para seu cliente, embora nem sempre isso seja possível. Ele indica que essa é uma hipótese ampla para as relações humanas, uma possibilidade de ajuda e de vivências e superação de conflitos. Diante de si, sua autoaceitação será mais fácil e a aceitação do outro será mais fácil. A possibilidade da compreensão de si e de todos tornará os dividendos da vida mais suaves, adequados e tranquilos. Diante da tranquilidade e da aceitação, o regime dos conflitos será reduzido em níveis aceitáveis e o avanço do indivíduo como indivíduo mais viável.
Um pacto pela aceitação democrática de si e de todos perfaz um caminho que envereda pela afetividade e proporciona, segundo Rogers, um caminho de “desenvolvimento intelectual acelerado (QI mais elevado), maior originalidade, maior segurança e controle emocional, menor excitabilidade” (Rogers, 1997, p.48).
Na relação entre pais e filhos, quando as atitudes dos pais são classificadas como “rejeição”, as crianças revelam atraso no desenvolvimento mental, empobrecimento de respostas, falta de originalidade responsiva. Apresentam-se como crianças “emocionalmente instáveis, rebeldes, agressivas e agitadas”. (Rogers, 1997, p.48). É possível perceber que o entorno do campo internacional, que é peculiar a cada família, oferece um construto totalmente direto no desenvolvimento cognitivo das crianças. Como pode diante de tantas variáveis acreditar em único ser humano? É possível que, esse desejo da superestrutura que ajeita o mundo, possa ultrapassar todas as outras dimensões que sabidamente se interpõem como organizadores psíquicos e configurar um ser humano, de semblante único, de unicidade intelectiva e responsivo isotípico a um mesmo dispositivo de educabilidade?
Rogers cita trabalhos desenvolvidos com terapia mostrando resultados mais promissores quando algumas qualidades durante o tratamento estavam presentes: “a confiança no seu terapeuta, o fato de terem sido [os pacientes] compreendidos por ele [terapeuta]; o sentimento de independência que tiveram ao fazer opções e tomar decisões”. (Rogers, 1997, p.50) Assim, o trabalho do terapeuta importante para o avanço do tratamento era o de “clarificar e exprimir abertamente o que o paciente abordara vagamente com hesitação”. (Rogers, 1997, p.50). Nessa relação de estrito empoderamento do indivíduo, algumas questões se mostraram desfavoráveis por parte do terapeuta como: opiniões precisas, conselhos diretos/diretivos, grande importância a eventos passados, mas também falta de interesse ou simpatia excessiva. Espera-se um “interesse caloroso, sem uma excessiva implicação emocional. (Rogers, 1997, p.50). Não seria exatamente o que ocorre com o currículo e a prática docente na escolarização comum?
Segundo Rogers, a compreensão das intenções provenientes do paciente é essencialmente uma atitude de desejo de compreender. E ainda afirma que “seus procedimentos e suas técnicas são menos importantes que suas atitudes”. E nessa relação, fundamental para o tratamento, é de suma importância como ocorre a percepção por parte dele [paciente], frente ao terapeuta. É necessário entender aqui que o terapeuta é o professor: autêntico, disponível e afetivo. Nessa relação professor-aluno, não deveria haver a desejabilidade de um homem fixo do outro lado e nem a pré-disposição do lado de cá, de esculpir o modelo em vigor, regimizado, um homem a fazer a derivar de um modelo.
Kilpatrick, outra influência no rogerianismo, afirma que
(...) em algum momento, no fim da adolescência, cada um deveria reexaminar por si mesmo o que recebeu (...) como verdade. Esse reexame (rethinking) será feito da melhor maneira se estivem em conexão com discussões conduzidas por um adulto simpático e crítico, que saiba como questionar e guiar sem interpor a sua maneira de pensar, impedindo o jovem de abordar ele próprio os seus problemas reais e chegar às suas próprias conclusões, à luz das diversas ideias que os homens têm ou tiveram sobre sesses problemas (Peretti in Gauthier; Tardif, 2014, p.266).
Assim, as experiências de Tolstói e Neill entram em confluência com a teoria de ensino-aprendizagem de Carl Rogers originando a categoria de pedagogias não-diretivas. Apesar do surgimento em momentos diferentes, em países diferentes e em culturas diferentes, elas convergem em uma direção: o respeito pelo livre desenvolvimento da infância e adolescência, sem as organizações controladas pelos adultos, nem das pretensas expectativas da sociedade, do Estado e de suas políticas, flertando, em algumas delas, com o anarquismo. A liberdade como valor intrínseco igualmente aproxima práticas e concepções pedagógicas engajadas, enfrentar dilemas e exclusões históricas empoderando pessoas (Hooks, 2017).
Essas experiências se multiplicaram pelo mundo e muitas delas continuam em vigência. Exemplos, como o de Summerhill, estão presentes em diversos países do mundo. Gribble (1998) escreveu sobre 14 experiências de escolas libertárias em todo mundo: quatro delas na Inglaterra (incluindo Summerhill), três nos Estados Unidos, duas na Índia, uma na Nova Zelândia, uma no Japão, uma no Equador, uma na Suíça e uma em Israel. Em Israel, por exemplo, a escola apresentada foi a Escola Democrática de Hadera.
A escola democrática de Hadera foi fundada em 1987. Atende crianças de quatro a 18 anos, muitas delas com dificuldades de aprendizagem e necessidades específicas. As inspirações teóricas da escola são Rousseau, Martin Buber, Carl Rogers e Janusz Korczak. No cotidiano, os professores oferecem atividades aos estudantes que não, no entanto podem escolher participar ou não. Ao recusarem, tem diversas opções de outros espaços de aprendizagem, como biblioteca, centro de música, carpintaria, entre outros. Estudantes, pais e professores formam comitês e um parlamento para debater ideias. Democraticamente, todos tem voz e voto nas deliberações (Hecht, 2016).
Na Espanha, a Escola Livre Paideia, criada em 1978, se afina claramente com pedagogias livres anarquistas, inspiradas especialmente na Escola Moderna, de Ferrer y Guardia (2014) cujo ideário se organiza em torno da autonomia e a resistência à hierarquia e ao autoritarismo. As assembleias podem ser convocadas a qualquer momento por qualquer um na comunidade escolar: os estudantes escolhem o que e como querem estudar (Carbonell, 2016).A Alternative Education Resource Organization (Aero, 2018) é uma entidade que congrega mais de uma centena de escolas democráticas pelo mundo. Analisando os dados disponibilizados no sítio, percebe-se um total de 64 países com instituições consideradas “escolas democráticas”.
O Brasil, como dito, está entre eles, tendo destaque para projetos e escolas como Iasnaia Poliana (em Brasília), Escola Lumiar, Escola Politeia e Wish School (em São Paulo).
Iasnaia Poliana é um projeto pedagógico para estudantes entre cinco e 18 anos, cujo nome remete à experiência de Tolstói, no século XIX. Na apresentação da escola, há referência clara ao núcleo estruturante presente em Neill e Rogers: confiança na natureza humana, recusa ao autoritarismo, autogestão pedagógica, garantia de liberdade de expressão e criação, currículo autodirigido e sem separação etária. Além disso, o sítio afirma que há uma “inclusão includente” sugerindo que a pedagogia implantada tem a intenção de contribuir para o tema da inclusão, tema esse de atual e necessária discussão. No cotidiano da escola, o aluno recebe uma oferta inicial de atividade e está absolutamente livre para aceitar ou recusar. Se houver uma recusa, uma segunda oferta será feita e dialogada com o estudante, que pode sugerir outras possibilidades. Se a recusa se mantiver, ela é respeitada (Iasnaia Poliana, 2018).
A escola Lumiar, iniciada em São Paulo (SP), possui alunos de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Seu idealizador, Ricardo Semler, afirma que: “As escolas libertárias têm em comum a participação dos estudantes na gestão, a ausência de hierarquia, de provas e de boletins e o livre aprendizado. Nelas, cabe ao professor apenas guiar as crianças na descoberta dos próprios interesses." (Semler, 2007, p. 107) Entre algumas características da pedagogia livre, utiliza-se de um currículo em mosaico. Segundo o sítio, significa uma exposição curricular de modo não linear e individualizado, respeitando a singularidade de cada um. A escola possui gestão participativa, envolvendo estudantes, pais e professores. A escola apresentou expansão tendo além do Estado de origem, tendo presença em Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. (Lumiar, 2024).
Na Escola Politeia, os “estudantes fazem parte da elaboração das regras de convivência, atuam no cuidado e funcionamento da escola, bem como na elaboração de seus percursos de aprendizagem.” (Politeia, 2024). Os alunos são todos de ensino fundamental, do 1º ao 9º ano. Os princípios básicos são o protagonismo na aprendizagem e a confiança em uma educação democrática. A escola é gerida por professores. Apresenta diversos dispositivos para atingir seus objetivos propostos. Na roda do dia, os alunos se reúnem todos os dias, no início das aulas, para informes. As assembleias ocorrem duas vezes por semana. Nelas, os estudantes “podem compreender melhor a necessidade de escuta e fala para construir relações cotidianas justas entre o coletivo” e usam esse tempo para “para elaborarem regras de convivência, utilização dos materiais, propostas de ação da escola, entre outros temas que surgem ao longo do ano e do contexto em que estamos vivendo (dentro ou fora do ambiente escolar).” (Politeia, 2024). Há comissões instauradas para solução e acompanhamento de questões como limpeza, alimentação, horta, eventos.... Há um fórum em que os alunos praticam a mediação de conflitos com sustentação na comunicação não-violenta e na justiça restaurativa. Há grupos de estudos firmados a partir do interesse dos estudantes.
Apesar de exemplos de escolas livres em profusão e alguns modelos delas em expansão, Carbonell (2016) traz à tona diversas questões e debates a serem enfrentados com base em toda a experiência relatada. Segundo ele, há uma tendência das escolas livres representarem uma “economia precária e falta de reconhecimento” (p.86). Muitas funcionam à margem do sistema educativo, “não encontra seu lugar na lei (p.86)”. Quando se trata da educação infantil, há uma tolerância governamental maior, o que dificilmente ocorre com o ensino médio, por exemplo. Algumas tem apoio financeiro do governo enquanto outras vivem de mensalidades cobradas diretamente aos responsáveis. São escolas invariavelmente pequenas, por vezes com profissionais habilitados e ainda em habilitação ou ainda com notório saber. São escolas que têm na sua origem, frustrações, críticas e buscas para além da pedagogia tradicional que se unem nas ideias democráticas e não não-diretividade de seus assuntos abordados.
A não-diretividade se justifica exatamente pelo conceito de aprender em liberdade, de tatear o currículo pessoal e significativo para cada um. Como Rogers traz: uma abordagem centrada no aluno. Nesse sentido, como chamado por Gadotti, uma pedagogia antiautoritária, em que o desejo do estudante seja realmente aceito e a função do educador é a de exatamente assegurar esse ambiente de aprendizagem, com exposição de conteúdos, mas sem a verticalidade de quem detém o saber.
Em sintonia, os três autores remetem o processo de desenvolvimento à subjetividade hegeliana dos estudantes, o ser-consigo-mesmo, o direito inegável de eles serem reconhecidos como sujeito perante à sua aprendizagem (Barros, 2009). Considera-se que o professor possa sentir o mundo fenomenal do aluno, ainda que confusamente, abrindo mão de seu julgamento e sinalizando uma atmosfera de segurança para que o aluno aprenda (Puente, 1978). Assim, são considerados centrais nesse processo, valores renegados em outras pedagogias: a autonomia, o direito de ser quem se é e o protagonismo. Não há força consistente em um todo preparado e preconceituado a partir do mundo adulto de sua época para a formação dos estudantes. Se a escola é transformadora, há de se duelar o que é implícito do sujeito com o que está posto e esperado pelo sistema, mas garantindo a liberdade de aprender – título de obra de Carl Rogers e liberdade sem medo – título de obra de Alexander Neill. Quando Rogers admite esse eu central, protagonista e autêntico, revela o ponto de contato máximo com os pensamentos de Tolstói e de Neill.
Conclusão
A gênese da pedagogia não-diretiva encontra-se nas frustrações com o ensino tradicional – nas pedagogias fechadas e docêntrica, como percebido desde Tolstói. As contribuições dele, de Neill e de Rogers para a configuração nítida de uma pedagogia alternativa às diretivas, são reconhecidas e frutificadas de exemplos que as implementam ativamente até à atualidade. Nessa genealogia, é perceptível a partir da análise bibliográfica, a relação ancestral com os pressupostos de Rousseau, como na Figura 2.
Figura 2: Árvore evolutiva que conecta os principais nomes das pedagogias não-diretivas ou negativas: de Rousseau até Nell e Rogers, incluindo Tolstói e Freinet.
Fonte: autor.
Tolstói iniciou intuitivamente um movimento que enfrentava de forma clara a educação estatal dos russos, que na concepção dele não emancipava sujeitos e causava a europeização de seu povo. Foi uma insubordinação que retirava do Estado o poder sobre a educação do povo. O que naturalmente incomodou, assim como a experiência de Neill.
Neill demonstrou de forma prática que é possível executar uma escola com as pedagogias aqui discutidas. Há uma sequência considerável de escolas atuais que conseguem a partir dessas premissas, fazer uma educação de qualidade reconhecida em diversas nações a ponto de muitas delas serem escolas regulares e com aceitação pelo Estado (como é por exemplo, o caso de Summerhill).
A contribuição de Carl Rogers para a área da pedagogia está na defesa de uma abordagem centrada no aluno, na valorização da aprendizagem baseada nas experiências pessoais do aluno e na importância da comunicação e da empatia na relação entre professor e aluno. Suas ideias continuam influenciando a educação até hoje, inspirando educadores e pesquisadores em todo o mundo.
Tendo os três como mentores de transformação e resistência ao situacionismo pedagógico, surge uma estratégia possível com experiências de mais de 150 anos de história para que tenhamos mais uma referência para mudanças, apresentadas ao longo do artigo. Revela-se ainda uma posição propositiva para uma pedagogia que possa produzir protagonismo juvenil e enfrentar diversas situações contundentes e diuturnas de inadaptação, exclusão e consequente situação de fracasso escolar.
A partir da baixa incidência bibliográfica do tema percebe-se tacitamente que a pedagogia não-diretiva seja considerada como uma "pedagogia menor", periférica, quase atópica, sem possibilidade se angariar espaço ocupado pelas pedagogias tradicionais e de atender os pressupostos legais que impõem um currículo básico e outras diversas regras originárias de um pensamento escolástico remontado à educação jesuítica, elassalista e em Comenius. Entretanto, há evidências de que a pedagogia não-diretiva possa coadunar com a demanda de alunos com dificuldades de se adaptar à pedagogia tradicional praticada por muitas escolas no mundo, sustentada no centro docente e nos ritmos protocolares legais, estandardizados por exames e massificados dentro de um modelo fabril. Há muitos exemplos demonstrando um lugar pedagógico possível fora dessa linha, auxiliando na educação genuinamente inclusiva, aumentando as chances de alunos em situação de fracasso escolar, ressocializando aqueles com dificuldades socioemocionais, em suma, resgatando sujeitos.
Tem-se, como foi apresentado, uma ampla representividade de experiências mais que centenária de escolas democráticas. Há um lugar ocupado ainda que contido: são centenas de escolas democráticas em um cenário de milhares de “outras” escolas. Os desafios apontados s tão reais e particularmente quando se trata de garantir um currículo autodirigido em vez de um currículo estabelecido por normativas gerais quase sempre sob forma de lei. Nesse sentido, cooptada pelo cumprimento das expectativas governamentais, é que a pedagogia livre, se consterna, enfrenta a tradição e se marginaliza, por vezes; mas permanece, a despeito do incômodo, da educação infantil ao ensino médio demonstrando ser alternativa possível e fundamentada.
Com suporte de diversos teóricos, desde Rousseau, a prática escolar e a afirmação do protagonismo, com vistas à subjetividade e à emancipação do estudante, revelam-se possíveis. São realidades muito distantes do protagonismo vazio que muitas instituições e governos prometem, mas antes de se iniciar já lhe é sonegada, já nasce “póstuma”, impossível de se atingir. Se se quer um cidadão ativo, democrático, crítico e esclarecido não se poderá fazê-lo sem que valores básicos como autonomia e seu valor na coletividade puderem ser desenvolvidos nas escolas.
Se são escolas pequenas, ilhas que sequer chegam a formar arquipélagos, os estudos e os relatos empoderam-nas como alternativa para uma outra linha pedagógica, inclusive potencialmente mais inclusivista, como apontado em alguns trechos deste artigo.
Os resultados desta pesquisa bibliográfica buscam contribuir para a identificação de conceitos e teorias relevantes das pedagogias livres não-diretivas, se propondo como uma revisão crítica da literatura existente sobre o assunto, como forma de trazer insumos para questões pedagógicas ainda não resolvidas. O debate e as querelas sobre esse modelo pedagógico devem ser considerados nos estudos acadêmicos de uma forma mais constante e mais intensa. Talvez, a principal contribuição esperada do artigo é a de trazer visibilidade para os autores e instituições pesquisadas, suscitando novas pesquisas e ressuscitando outras que possam recolocar e ampliar o conhecimento que se tem sobre as pedagogias não-diretivas, dando lugar atualizado para suas práticas no chão da escola como alternativa real para a escolarização comum.
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