Docência universitária e Educação Física: a hermenêutica filosófica como campo de possibilidades

University teaching and Physical Education: philosophical hermeneutics as a field of possibilities

La docencia universitaria y la Educación Física: la hermenéutica filosófica como campo de possibilidades

 

Ricardo Rezer

Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil

rrezer@ufpel.edu.br

 

Recebido em 22 de junho de 2023

Aprovado em 18 de julho de 2023

Publicado em 06 de agosto de 2024

 

RESUMO

O objetivo central deste ensaio teórico é apresentar contribuições da hermenêutica filosófica para a docência universitária, em especial, para o campo da Educação Física (EF). Inicialmente, o texto apresenta nexos entre EF e hermenêutica filosófica, considerando-a como um campo de possibilidades para a docência universitária neste âmbito. Na direção de demonstrar tal premissa, em um segundo momento, explora algumas categorias centrais da hermenêutica filosófica, de forma articulada com a docência universitária no campo da EF, nomeadamente: o jogo da pergunta e da resposta; a fusão de horizontes, o círculo hermenêutico e o jogo da tradução, composição e aplicação. Finalizando, o esforço hermenêutico ora proposto permitiria compreender melhor terrenos suspeitos da docência universitária e, na circularidade do diálogo, enfrentar problemáticas da EF, em um complexo jogo dialético – certamente, desafio nada fácil, mas em acordo com o que se espera da docência ao longo da formação universitária.

Palavras-Chave: Hermenêutica filosófica; Educação Física; Docência Universitária.

 

ABSTRACT

The central objective of this theoretical essay is to present contributions of philosophical hermeneutics to university teaching, in particular, to the field of Physical Education (PE). Initially, the text present links between PE and philosophical hermeneutics, considering it as a field of possibilities for university teaching in this scope. In the direction of to demonstrate this premise, in a second moment, explore some central categories of philosophical hermeneutics, in articulated way with university teaching in the field of PE, namely: the question and answer game; the fusion of horizons, the hermeneutic circle; e the game of traduction, composition and application. Finally, the hermeneutic effort proposed here would allow to understand better suspicious terrains of the university teaching and, in the circularity of the dialogue, to face complex PE issues, in a complex dialectic game - certanly, not easy challenge, but in accordance with what is expectade of teaching in the university formation.

Keywords: Philosophical Hermeneutic; Physical Education; University Teaching.

 

RESUMEN

El objetivo central de este ensayo teórico es presentar aportes de la hermenéutica filosófica a la docencia universitaria, en particular, al campo de la Educación Física (PE). Inicialmente, el texto presenta vínculos entre EF y hermenéutica filosófica, considerándola como un campo de posibilidades para la docencia universitaria en este ámbito. En el sentido de demostrar esta premisa, exploro, en un segundo momento, algunas categorías centrales de la hermenéutica filosófica, de manera articulada con la docencia universitaria en el campo de la EF, a saber: el juego de la preguntas y respuestas; la fusión de horizontes, el círculo hermenéutico; e el juego de traducción, composición y aplicación. El esfuerzo hermenéutico aquí propuesto permitiría comprender mejor los terrenos sospechos de la docencia universitaria y, en la circularidad del diálogo, enfrentar las cuestiones de la EF, en un complejo juego dialéctico – ciertamiente, desafío no fácil, pero en acuerdo con lo que se espera de la docencia en la formación universitaria.

Palabras-Clave: Hermenéutica Filosófica; Educación Fisica; Docencia Universitaria.

 

Introdução

O campo da Educação Física (EF) se situa em um horizonte complexo e plural, compondo, ao mesmo tempo, a grande Área da Educação (pois se coloca como um curso de formação universitária que forma professores/as para a Educação Básica – Licenciatura), mas também, compondo a grande Área de Ciências da Saúde (pois se coloca como curso de formação universitária que prepara para o exercício profissional em vários contextos de trabalho não-escolares – academias, clubes, Sistema Único de Saúde, entre outros) [1]. Isso coloca a EF em uma “zona de fronteiras” com as Ciências Humanas e Sociais e as Ciências Biológicas e da Saúde, o que exige um amplo espectro de referenciais para o exercício profissional, para a produção acadêmica, mas especialmente para a formação universitária.

Considerando este cenário plural, de amplo espectro político-epistemológico, a EF se aproxima, de forma direta ou tangencial, de vários e distintos campos do conhecimento (Engenharias, Pedagogia, Sociologia, Medicina, Filosofia e outros). Ao longo destas aproximações, ela vai constituindo um repertório teórico (próprio) que vem lhe permitindo analisar e enfrentar seus problemas específicos, bem como coparticipar de discussões e desafios de maior abrangência, referentes a ampla conjuntura da sociedade brasileira. Nesta seara, a docência universitária se coloca como um tema com matizes específicas neste contexto.

Assim, vão sendo produzidos trabalhos que se propõem a compreender melhor a problemática, a fim de produzir respostas frente aos desafios da docência universitária no âmbito da EF. Trabalhos como os de Silva (2008), Rezer (2014), Pires et al (2018), Lopes e Carbinatto (2019), entre outros, procuram abordar esta temática a partir de distintas perspectivas, evidenciando a importância de estudar o tema com profundidade, ampliando o debate acerca das complexas questões que o constituem.

Já aproximações da EF com a hermenêutica, em especial com a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer (1900-2002)[2], ainda se colocam de forma tímida. Pode-se inferir que os trabalhos de Fensterseifer (2007, 2009, 2011), Rezer e Fensterseifer (2013), Rezer (2014), Cardoso (2016), Almeida e Fensterseifer (2019), Rezer e Fensterseifer (2021), entre poucos outros, vão abrindo caminhos para a discussão hermenêutica neste âmbito. Além desses, as poucas e tímidas aproximações indicam a hermenêutica sendo abordada predominantemente como metodologia, algo bem distinto do escopo dos trabalhos mencionados.

Partindo destas considerações introdutórias, o tema deste ensaio se coloca na direção de produzir um diálogo entre a EF como campo do conhecimento, a docência universitária como problemática importante e necessária de ser investigada e a hermenêutica filosófica como aporte teórico que potencializa a abertura de janelas de oportunidade para enfrentar os desafios da docência, em tempos difíceis para as coisas da universidade e do conhecimento. Ao mergulharmos em uma sala de aula universitária, na condição de docentes, nos deparamos frente a muitas questões, grande parte delas, de natureza hermenêutica, evidenciando uma proximidade entre docência e a hermenêutica filosófica que cabe aprofundar. Nesta lógica, o objetivo central deste ensaio teórico é apresentar contribuições da hermenêutica filosófica para a docência universitária, em especial, para o campo da EF.

A fim de tornar o artigo mais didático, organizei a escrita em dois momentos. Inicialmente, procuro apresentar nexos entre EF e hermenêutica filosófica, considerando-a como um campo de possibilidades para a docência universitária neste âmbito. Na direção de demonstrar tal premissa, apresento na segunda parte, algumas das categorias centrais da hermenêutica filosófica articuladas à problemática em questão, nomeadamente: o jogo da pergunta e da resposta; a fusão de horizontes, o círculo hermenêutico; e o jogo da tradução, composição e aplicação.

Desta forma, este texto procura contribuir com o movimento de pensar a EF e a docência universitária na contemporaneidade, em um movimento de crítica e autocrítica importante e necessário para a formação universitária, bem como para a constituição teórica do próprio campo.

 

Diálogos entre hermenêutica filosófica, docência universitária e Educação Física

Propor nexos entre hermenêutica filosófica, docência universitária e EF se coloca como um campo de estudos ainda recente na realidade brasileira, porém fecundo, que poderia qualificar a docência e a formação neste âmbito. Por isso, compreender a EF na situação hermenêutica em que se encontra representa um avanço para o campo, especialmente no que diz respeito a valorar seus problemas, suas partes (subcampos) e o diálogo possível entre elas na direção de fortalecer o campo que constitui e é constituído por estas partes – esta tensão dialógica entre as partes e o todo se coloca como condição fundante para a constituição e legitimação da EF.

De forma análoga a obra de Gadamer (2004), quando apresenta a noção de jogo, redimensionando a noção sujeito-objeto, o professor, em uma aula universitária, joga o jogo da aula, ao mesmo tempo em que é jogado por ela. Ou seja, não “dominamos” a aula nem os conteúdos, muito menos os alunos, mas sim, estabelecemos uma relação de circularidade com eles, em um jogo no qual os jogadores (estudantes e professores) produzem relações e sentidos em comum, tendo em vista os temas tratados. Desta forma, a condução do processo pedagógico se dá por meio de um jogo dialógico onde os participantes possuem condições de se colocar no processo como responsáveis pela sua condução, mesmo com papéis sociais distintos.

Concordando com Marques (1993), não ensinamos ou aprendemos coisas, mas sim, relações estabelecidas em um processo de entendimento mútuo e expressas em conceitos que, por sua vez, representam construções históricas, nunca dadas de vez, mas sempre retomadas por sujeitos em interações, movidos por interesses práticos no mundo em que vivem.

Nessa lógica, em uma aula, o professor abandona o papel de sujeito (exclusivo) do processo, ao mesmo tempo que demonstra o equívoco de centrar a aula no aluno, através da lógica das “aprendizagens”. Somos conduzidos por uma conjuntura contextualizada que se move de acordo com os sentidos produzidos coletivamente – fruto do entendimento mútuo possível. Assim, para ensinar e aprender é necessário, de alguma forma, querer, abrir-se para o outro, um “querer junto” que nos implica em um processo como a formação universitária (querer é desejar e desejar é se importar). Portanto, a formação é sempre um processo de autoformação que se funda no sentido e na importância que damos ao percurso realizado.

Por meio de argumentos como estes, é possível perceber que o âmago do exercício da docência se trata de um esforço hermenêutico (Hermann, 2002; Berticelli, 2004; Tardif, Lessard, 2005; Ruedell, 2007, Rezer, 2014), o que abre um novo horizonte para a EF e coloca novos ingredientes na discussão. Em acordo com Berticelli (2004), uma atitude hermenêutica como fio condutor da aula nos leva a um campo de possibilidades que nos afasta da tentação de pressupostos dogmáticos, aprofundando a interlocução entre docente, discente e temas estudados.

Desta forma, a aproximação com a hermenêutica possibilita, conforme Berticelli (2004), entender a compreensão e a interpretação como dimensões fundantes da existência humana. De acordo com Palmer (2006), a hermenêutica é relacionada de uma só vez com as dimensões ontológicas da compreensão e com tudo aquilo que isso implica. Isso permite considerar a interpretação e compreensão como princípios ontológicos da docência universitária, que permitem uma ampliação na capacidade de “olhar” para o mundo pelas “janelas” que uma aula nos abre. Assim, a partir de uma orientação hermenêutica, abrimos possibilidades para propor um diálogo entre horizontes distintos e a fusão entre eles (GADAMER, 2004). Nessa relação, objeto e sujeito não se separam, mas mergulham em uma relação de circularidade que “joga” com as possibilidades estabelecidas entre eles, em um movimento dinâmico e dialético que nos permite mergulhar nas reentrâncias do conhecimento.

De acordo com Berticelli (2004), a leitura interpretativa constitui-se num processo hermenêutico e, nesse sentido, conforme Ruedell (2007), ambos partindo de Gadamer, hermenêutica e linguagem são dois temas extremamente imbricados entre si. Este imbricamento pode ampliar as perspectivas do fazer pedagógico. Tal discussão pode ser convertida em um processo de construção e desconstrução do conhecimento, movimento importante de ser produzido ao longo de um componente curricular na formação universitária.

Ou seja, uma aula toma forma de acordo com um movimento de construção e desconstrução, adquirindo uma espécie de “vida própria”, condição que dificulta a tentativa de sistematização prévia absoluta (tal como perspectivado, por exemplo, por um neotecnicismo acadêmico, muito presente em contextos universitários que se autointitulam como “vanguarda”). Na lógica assumida, este processo permite abrir a possibilidade de construção/desconstrução da aula, ao longo do próprio processo de sua feitura (por isso, não há como “repetir uma aula” ou “matéria”, mesmo que sejam abordados iguais conteúdos e temas, pois os sujeitos nunca são os mesmos, ainda que sejam os mesmos sujeitos).

Pensando a EF como um campo de contornos epistemológicos movediços, mas que se relacionam entre si e com o mundo pela perspectiva da intervenção pedagógica e pelas investigações científicas derivadas destas relações, tomando a cultura corporal de movimento como escopo de investigação/intervenção, há fecundos ingredientes nesta complexa arquitetura. Neste caso, a hermenêutica poderia contribuir, considerando que a docência universitária se move em meio a um “recrutamento” de referências na construção de processos pedagógicos, articulando diferentes subcampos da EF e outros campos do conhecimento nesta composição (Engenharias, Filosofia, Pedagogia, Medicina, entre outros).

Portanto, mais do que aprofundar as distinções entre subcampos, a docência nos permite apostar na possibilidade de construir pontes, sínteses, solos comuns. Tal como expresso por Ruedell (2007), a discussão se desenvolve em direção a uma concepção e um desdobramento pedagógico em sala de aula, visto a ideia de constituir um solo comum que promova o encontro (em sala de aula) entre diferentes epistemologias (que constituem a EF).

Corroborando o pensamento de Ruedell, é possível estabelecer como pressuposto, a ideia de que as práticas em sala de aula e todo o atual estado de discussão teórica sobre ensino e aprendizagem, possuem na base de sustentação, uma discussão hermenêutica, mesmo que, por vezes, não se perceba isso. O mesmo autor afirma, ainda, que a sala de aula, na medida em que ali se constrói e reconstrói conhecimento e se partilha responsabilidades, é uma pequena, mas importante amostra para uma maior humanização do mundo, caminho esse compartilhado pela hermenêutica (daí sua dimensão ética).

Por sua vez, concordando com Stein (2004), o caminho da docência, do ponto de vista hermenêutico, representa fundamentalmente uma postura que o professor assume diante da aula, dos estudantes, do conhecimento a ser tratado, ou seja, uma atitude frente aos desafios (problemas) que a docência nos coloca em um contexto universitário. No campo da EF, a necessidade de interlocução entre diferentes conhecimentos exigidos em um processo de intervenção pedagógica requisita um solo comum, que permita o reconhecimento da complexidade de saberes que constituem uma aula universitária (didática, metodologia, saberes específicos etc.).

Além disso, pensar a EF na formação universitária necessita considerar as questões do corpo como fundantes das experiências pedagógicas (não “temos” um corpo, mas sim, somos corpo, com tudo que isso implica), em um movimento de complexificação das relações estruturadas em uma aula universitária[3]. Ou seja, um jogo que exige disposição para deslocar um paradigma educacional fortemente centrado na exclusividade do intelecto, modelo hegemonicamente presunçoso de si, que em ceerta medida, desconsidera o corpo (via de regra considerado como mero instrumento/ferramenta em uma perspectiva moderna ou, ainda, como fonte de prazer e de experiências em série, em uma perspectiva pós-moderna), para uma postura mais adequada frente à complexidade dos conhecimentos que transitam na universidade, considerando a necessidade de constituir uma relação de ampliação das referências que constituem nossas relações com os saberes do corpo.

O esforço hermenêutico ora proposto se movimenta no sentido de ampliar as possibilidades de compreensão dos fenômenos com os quais nos deparamos na docência universitária. Isso representa a necessidade de constituir espaços para exercitar nossa capacidade de aproximar diferentes paradigmas, estabelecendo espaços de interlocução e diálogo que permitam aos sujeitos que constituem o campo uma ampliação na capacidade de interpretar a EF e seus fenômenos (por exemplo, o corpo como sistema biológico vivo, mas também, como experiência de mundo, em diálogo com os outros, com o mundo e consigo mesmo).

A importância, então, de aproximar esta discussão da hermenêutica se apresenta a partir da possibilidade de construir, lembrando Ricoeur (2008), a explicitação de um solo ontológico, um solo comum para diferentes “Educações Físicas”. Assim, a aula universitária se coloca como uma janela de possibilidades para isso, em um espaço onde conhecimentos específicos, históricos, pedagógicos, éticos, políticos e epistemológicos são traduzidos e podem ser articulados, na direção de um trabalho de aplicação (expressão cara ao referencial hermenêutico).

Tal proposição não sugere simplesmente um amálgama entre diferentes subcampos da EF mas, sim, pensar a aula universitária como espaço de reflexão, estudo e diálogo constituído por distintas epistemologias, pensando-a como um solo comum que potencializaria a edificação de um conhecimento “próprio”, derivado deste processo comunicativo que partiria dos problemas gerais e específicos da EF, tratados pedagogicamente na formação inicial. Talvez aí esteja, pelo menos no plano teórico, uma possibilidade de articulação comunicativa para o campo que não poderia ser desconsiderada.

Nesse caminho, a fusão de horizontes proposta por Gadamer (2002) se coloca como uma possibilidade importante para lidar com as “Educações Físicas” em um contexto pedagógico. Portanto, no trabalho docente, a intervenção pedagógica e os problemas do campo seriam importantes disparadores da fusão de horizontes entre diferentes subcampos e os protagonistas do processo pedagógico. Na fusão de horizontes, que é o ponto fulcral da experiência hermenêutica, há elementos do nosso horizonte que recuam e outros que avançam (GADAMER, 2004). Assim, toda experiência hermenêutica verdadeira é uma criação nova, uma nova revelação do ser, colocando-se numa relação firme com o presente, e que historicamente não poderia ter ocorrido antes.

Se a EF se encontra em uma “zona de fronteiras” tênue com outros campos, constituída por distintas comunidades paradigmáticas, o esforço de trazer diferentes conhecimentos para uma aula universitária pode contribuir significativamente para um amadurecimento epistêmico-pedagógico do próprio campo. A seguir, de maneira propositiva (mas não prescritiva), apresento quatro categorias que permitiriam potencializar a EF na formação universitária a partir de um referencial hermenêutico: o jogo da pergunta e da resposta; a fusão de horizontes; o círculo hermenêutico; o jogo da tradução, composição e aplicação.

 

Contribuições da hermenêutica filosófica para a docência universitária no campo da Educação Física

Pensar a docência universitária no campo da EF requer ingressar em um terreno espinhoso, ainda com muitas lacunas a serem investigadas. A seguir, procuro demonstrar como a hermenêutica filosófica poderia contribuir com tal discussão, a partir de algumas categorias importantes, nomeadamente, o jogo da pergunta e da resposta, a fusão de horizontes, o círculo hermenêutico e o jogo da tradução, composição e aplicação.

 

(i) O jogo da pergunta e da resposta[4]

Para Gadamer (2006), o jogo (Spiel) se coloca como um conceito chave concernente à experiência da obra de arte, possível de ser tomado como referência para pensar a docência universitária. Para ele, a noção de jogo adquire um caráter de relevância significativa, possibilitando um alargamento de horizontes pelo encontro entre “texto” e “intérprete”, em um movimento dialógico de reciprocidade dialética.

Assim, pensar a lógica da pergunta e da resposta como um jogo possibilita conduzir este referencial para a aula universitária, entendendo-a como um texto a ser compreendido pelos participantes. Neste caso, assumindo uma postura gadameriana, ao invés da usual noção de dominação do sujeito sobre o objeto (daí a noção usual de “domínio” do conhecimento), proponho pensar a docência universitária a partir do jogo da pergunta e da resposta. Conforme Berticelli (2004, p. 304), o referencial essencial da interpretação é a pergunta, que sempre nos coloca em um espaço aberto, uma vez que a resposta não se determinada a priori. Nesse sentido, as perguntas nos levam a retroceder para além do dito, em um movimento circular que nos conduz, pela complementaridade entre as partes e o todo, e o todo e as partes, às profundezas do conhecimento.

Pensar a sala de aula como um texto que se edifica pelo encontro entre docente e estudante, bem como pelo encontro de saberes a serem cultivados, nos obriga a acurar nosso olhar a fim de poder perceber as mais diversas perguntas que ela “produz”. A postura dos alunos, sua fisionomia, sua forma de se colocar frente aos desafios da aula, as posições teóricas que assumem ao longo do processo, a indiferença e/ou interesse, entre tantos outros aspectos, colocam perguntas das mais diversas e distintas. Se a formação se dá pela produção de sentidos em comum, os sentidos produzidos no contexto de uma aula se colocam como uma necessidade que pode permitir uma fusão de horizontes (conceito a ser trabalhado no próximo tópico). Ou seja, docente e estudante possuem um horizonte, e este horizonte é a referência que lhes permite dialogar. Cada qual com seus horizontes se colocam em sintonia a partir do jogo da pergunta e da resposta, jogo que conduz a novas perguntas e a novas respostas, em um movimento circular de alargamento de nossa capacidade de perguntar e responder.

Assim, toda pergunta é sempre uma boa pergunta. Mesmo as perguntas aparentemente óbvias revelam o desejo de conhecer, algo que deve ser enaltecido o quanto se possa, especialmente, no âmbito da formação. Conforme Berticelli (2004), se a hermenêutica não é uma pedagogia, o ato pedagógico implica em interpretação e compreensão hermenêutica. Neste caso, o professor universitário exerce uma arte, a arte de ensinar as “coisas do corpo e da cultura corporal de movimento” a futuros professores/profissionais de EF.

Portanto, faz sentido perseguir esta lógica, como um jogo que se edifica através de uma sintonia entre docente e estudante, fundada permanentemente por uma dialética que coloca ambos como responsáveis (cada qual com seu papel) pela formação, em um processo de colocar em comunidade suas experiências de sentido.

Por isso, o aprendido se coloca como ponto de partida, e não de chegada, reconhecendo nossas incompletudes, que se colocam como motor do processo de formação - o jogo da pergunta e da resposta se funda na maiêutica socrática, que se coloca como um pano de fundo para este processo, alçando a pergunta (fruto da curiosidade e de nossa capacidade de criação) como categoria decisiva para a docência universitária[5].

Assim, finalizando este tópico e anunciando o seguinte, estar atento ao que a sala de aula nos “diz” representa mergulhar em um torvelinho que pode proporcionar uma sintonia com os estudantes, em um processo de perseguir perguntas (neste caso, elas seriam o motor da formação). Ao provocar os estudantes com perguntas do tipo “o que é?” ou “como pode ser?” ou ainda, “como pode não ser?”, cabe por um lado, considerar as respostas, problematizando-as e, por outro lado, perguntar sobre a compreensão dos estudantes sobre sua própria compreensão acerca de seus argumentos, o que representa um exercício que permite produzir o autoexame, alçando-o como uma prática recorrente na formação. Na complexidade do percurso proposto, a fusão de horizontes passa a representar uma possibilidade viva para a docência universitária, conforme a seguir.

 

(ii) A fusão de horizontes (Horizontverschmelzung)

Conforme Gadamer (2004), um horizonte não é uma fronteira rígida, mas algo que se desloca conosco, conforme nosso avanço, e que convida a seguir adentrando, se movendo junto com nosso próprio movimento. Conforme Lawn (2007), se trata de um termo usado, inicialmente, por Friedrich Nietzsche e Edmund Husserl, para se referir a determinado ponto de vista ou perspectiva de mundo. Gadamer (2004) o entende como o alcance da visão que inclui tudo que pode ser visto, a partir de uma determinada perspectiva. Para ele, a “fusão de horizontes” representa uma categoria importante, que descreve a possibilidade do entendimento no mundo comum. Desta forma, cada sujeito perspectiva o mundo através de um horizonte e, na tentativa de estabelecer entendimento com outros, estes horizontes avançam ou recuam, modificando a forma como nos relacionamos com o mundo e conosco mesmos.

Em um encontro na sala de aula, professor e aluno se conduzem, cada qual com seus horizontes de mundo, em um contexto que lhes coloca como responsabilidade precípua a disposição de partilhar leituras de mundo. Do lado do professor, cabe a responsabilidade de propor um percurso no qual determinado conhecimento representa um dispositivo para a produção de interações pedagógicas que possibilitem dois movimentos extremamente importantes: tornar o que é estranho familiar, bem como, tornar estranho aquilo que parece familiar. Ou seja, em uma dialética radical, perspectiva um alargamento da leitura de mundo dos estudantes, por consequência, também do professor, por meio da compreensão de determinados temas e da capacidade de estranhamento frente àquilo que julgamos conhecer. Por sua vez, os estudantes se colocam como sujeitos que carregam consigo o desejo de inserção no mundo profissional que pretendem adentrar, esforço que exige disposição para conhecer (tanto questões técnicas específicas, próprias do universo da EF, como questões amplas, tomando como referência a conjuntura na qual a EF se edifica).

Se formação é produção de sentidos em comum, como tratado anteriormente, isso se coloca conforme horizontes de professor e aluno se entrecruzam, modificando, ambos, suas perspectivas de mundo a partir de interações simbólicas que ocorrem ao longo deste processo. Como referido, não se trata nem de simples amálgama, nem de simples sobreposição de um horizonte sobre outro, mas, sim, de uma nova condição que se descortina pelo jogo que se edifica na experiência (pedagógica) partilhada.

Nesta lógica, verdadeiramente aprender é a modificação que a fusão de horizontes nos proporciona, através da compreensão de determinados saberes por meio de interações edificadas com base no diálogo (o que não se dá sem tensões). No caso da EF, temos o universo das práticas corporais, possibilidades de experiências de mundo que se abrem aos atores e autores deste processo, potencalizando a dimensão dialógica da docência.

E nesta dimensão dialógica orbitam as possibilidades da fusão de horizontes, experiência genuína que nos modifica, ao longo do tempo, pois já não possuímos mais a mesma compreensão de mundo, nos transformando a partir da interlocução. E não se trata de uma idealização, tendo em vista que o diálogo não pressupõe apenas acordo. O diálogo também admite a discordância, a dissimulação, o erro, enfim, o desejo de ser e estar de forma distinta do outro no mundo[6]. Concordando com Portocarrero (2010), a hermenêutica filosófica não se coloca com pretensões de uma homogeneidade, pois reconhece os limites e as mazelas humanas – a produção da vida é permeada por interpretações diferentes e, por vezes, concorrentes. No entanto, a interpretação reconhece a necessidade de se abrir para outras interpretações – do contrário, a formação perde seu sentido. Por exemplo, se estudante e professor não assumirem sua condição de interlocutores, a postura hermenêutica enquanto atitude pedagógica se desloca para uma atitude hermética, com sentido diametralmente oposto aos argumentos ora produzidos.

E isso não quer dizer que todo argumento se equivale, pois a questão, aqui, não é um convite ao relativismo mas, sim, compreender que nosso desafio como docente é aprender a ouvir e argumentar acerca dos nossos próprios argumentos, bem como do argumento dos estudantes. Como exemplo, em uma aula da graduação, um estudante emitiu uma opinião sobre um tema e, ao ser questionado sobre ela, argumentou que eu deveria “respeitar” sua opinião. Disse a ele que tanto a respeitava, que foi dado a ele o direito legítimo de externá-la. Mas também que se tratava de uma leitura de mundo que não seria acolhida em diferentes contextos, pois simplificava a apressadamente a complexidade do tema. Ou seja, me cabia a responsabilidade de lhe dizer sobre a precariedade de sua afirmação, na mesma medida que precisava refletir acerca de suas principais convicções a respeito, sem fechar as portas para a manutenção do diálogo – seria um desastre estancar o diálogo a partir de uma postura refratária do docente.

Ou seja, a fusão de horizontes se baseia na confiança entre interlocutores, considerando o erro como “tema de aula” importante de ser contextualizado e aprofundado, pois faz parte de nossa condição humana (e não há saída para isso). Daí a necessidade de aprendermos a lidar com eles – neste caso, a contribuição do aluno, por meio de sua intervenção, foi inestimável naquele momento. Assim, o erro se coloca como importante dispositivo, um humus que nos permite compreender melhor os pressupostos (outra palavra cara à hermenêutica filosófica) de aluno e professor.

Se, por um lado, não pode haver um saber absoluto, por outro, não podemos nos conceder um salvo-conduto para nos expressarmos como bem entendemos, com a opinião que mais nos convier, sem responsabilidades em produzir um lastro para elas, sem preocupações com as consequências de nossos discursos (o esquecimento disso quase levou o Brasil a um colapso nas eleições presidenciais de 2022). Assim, a lógica da pergunta e da resposta se coloca como uma possibilidade de produzirmos um solo comum no qual possamos edificar uma fusão de horizontes, ao longo do jogo pedagógico da formação universitária. Neste caso, o convencimento dá lugar ao encontro de distintas perspectivas de mundo que passam a comungar leituras edificadas a partir da produção de sentidos em comum, bem verdade, algo nada fácil de ser produzido.

 

(iii) O círculo hermenêutico (hermeneutischer Zirkel)

Conforme Berticelli (2004, p. 304), o referencial essencial da interpretação é a pergunta, que sempre nos coloca em um espaço aberto, uma vez que ela abre novos caminhos, muitos deles inimagináveis. Nesse sentido, as perguntas nos levariam para aquém e além do dito, em diração a um círculo hermenêutico, o círculo da compreensão  que nos conduz, pela complementaridade entre as partes e o todo e o todo e as partes, às profundezas do conhecimento. Para Portocarrero (2010, p. 7), o círculo refere a lógica interna da compreensão hermenêutica, isto é,

 

[...] a regra segundo a qual é necessário compreender o todo de um texto a partir das suas partes e estas a partir do todo. [...]. Na raiz desta ideia de círculo hermenêutico reside, de facto, a aplicação à escrita do princípio da retórica clássica, segundo o qual todo o discurso tem princípio, meio e fim. Na base deste princípio reside um pressuposto existencial, que a hermenêutica clarifica e que se pode caracterizar do seguinte modo: compreender um texto é poder ser por ele interpelado, de um modo tal que podemos dizer que uma antecipação de sentido conduz toda a nossa compreensão. Interpretar não é partir de um grau zero, mas, pelo contrário, de uma prévia compreensão que envolve a nossa própria relação com o todo do texto, embora ela apenas se torne numa compreensão explícita quando por sua vez as partes, que se definem a partir do todo, podem definir esse mesmo todo.

 

Seguindo tal lógica, Kahlmeyer-Mertens (2017) afirma que basta o anúncio de uma obra para termos, por meio de seu título, expectativas provocadas acerca de seu conteúdo. No entanto, tais expectativas são somente pré-compreensões do sentido do texto, o que exige do intérprete novas e sucessivas investidas a fim de que a compreensão seja possível. Este movimento se dá em aula, a partir do encontro entre professor e aluno, onde o movimento da compreensão se dá do conjunto para a parte, e novamente para o conjunto, e novamente para a parte, em um movimento circular, que se finda apenas, neste caso, pelo término de uma disciplina.

Este jogo interminável, inerente à nossa condição humana representa um motor formidável para a relação pedagógica em sala de aula. Por exemplo, em uma aula sobre uma modalidade esportiva coletiva, no caso da EF, a circularidade presente entre técnica e tática representa um bom exemplo.

Em sua lógica interna, todo esporte coletivo se institui a partir de uma interlocução entre técnica e tática, elementos intrínsecos à sua prática, o que permite um exemplo bem didático. A técnica se refere à execução dos fundamentos de determinado esporte (passe, chute, arremesso, entre outros). Já a tática se refere a capacidade que temos para resolver os problemas do jogo, quer seja de forma coletiva ou individual. Ao se deparar com uma situação específica, o jogador (aquele que joga) irá definir sua ação como resultante de sua capacidade de tomada de decisão (por exemplo, no futsal, poderá conduzir, passar, chutar, entre outras ações), o que implica em ler o jogo, a posição na qual se encontra, bem como, seus colegas e adversários (o todo e as partes).

Desta forma, a circularidade entre a técnica e a tática se coloca na medida em que o jogador necessita compreender a parte do jogo que lhe cabe (a ação específica), ao mesmo tempo em que procura compreender a situação do jogo em sua totalidade (a pergunta que o jogo lhe faz). Neste caso, o passe, por exemplo (a parte), só tem sentido se estiver interligado a uma situação geral do jogo (o todo), em um movimento circular que permite ao jogador se colocar radicalmente no contexto, tanto do ponto de vista individual, como coletivo, em um diálogo permanente.

Assim, pensar uma aula que envolva fundamentos técnicos e táticos de um esporte coletivo permite abordá-lo em sua complexidade, possibilitando lhe conferir uma abordagem sistêmica, na qual o movimento circular entre o todo e as partes se coloca como um solo ontológico para o acontecimento da experiência. Aprender sobre um esporte se coloca como um desafio, uma linguagem (Sprachlichkeit) a ser compreendida, algo que se aprende também com o corpo, esforço que coloca o estudante em uma condição de autocompreensão e de diálogo consigo mesmo e com o mundo da vida (Lebeswelt). Trazer esta reflexão ao longo da aula, tratando-a pedagogicamente, permite expressá-la como espaço e tempo de formação docente, na medida em que reconhecemos o nível de exigência pedagógica necessária para abordar o esporte como tema importante da formação universitária.

Ao tomar conhecimento de si como Ser que pode compreender, este percurso se constitui como repertório pedagógico do professor em formação (o estudante), em um exercício que pode trazer como desdobramento uma percepção qualificada dos desafios de seu trabalho como futuro professor, independentemente do contexto onde irá atuar.

De forma análoga, ler um texto requer compreender cada letra/palavra, porém, dentro de um contexto mais amplo. Ou seja, ler um texto requer o conhecimento de cada parte, em um movimento circular que considere o todo – tal como no esporte. Assim, o todo é mais do que a soma das partes e as partes representam mais do que fragmentos do todo. Por isso, exigem a devida compreensão oriunda de um movimento circular, o círculo hermenêutico como uma categoria importante para a formação universitária e a docência neste âmbito, movimento que precisamos aprender a qualificar ao longo de nossa caminhada. Partindo disso, a seguir, abordarei a intrínseca relação entre tradução, aplicação e composição.

 

(iv) O jogo da tradução, composição e aplicação...

Neste tópico, procuro articular três questões importantes para o trabalho docente, na perspectiva ora desenvolvida: tradução, composição e aplicação. Vamos a elas.

Sobre a questão da tradução, entendo que se trata de um processo que todo docente realiza, ao longo de sua intervenção (muitas vezes, sem se dar conta). Neste caso, a complexidade do esforço de tradução de textos de uma língua para outra, tratado por Gadamer (2004), pode servir de referência para a interlocução entre diferentes saberes e sujeitos que se encontram em uma aula universitária, em um processo de transposição didático-pedagógica que permita: (i) construir pontes entre sujeitos que possuem horizontes distintos; (ii) tratar com saberes que, em suas origens, via de regra, não foram construídos para uma aula universitária, de modo que possam ser tratados academicamente em contextos pedagógicos.

Por exemplo, o esporte como fenômeno sociocultural foi sendo produzido a partir do Século XVIII, em especial no Século XIX e se instituindo como fenômeno cultural a partir da referência europeia (especificamente inglesa) no Século XX (com especial expansão, a partir do final da II Guerra Mundial). Na virada do Século XX para o XXI, o esporte se coloca como um dos maiores fenômenos socioculturais da contemporaneidade (MARQUES, 2015), assumindo as bases da globalização, dotado de enorme complexidade e assentado em paradoxos dos mais diversos. Como traduzir esta amplitude de questões para a formação inicial no campo da EF?

Sem avançar mais nessa discussão, a qual não é escopo deste artigo, procurando apenas tomá-la como exemplo, compreender as bases de sua construção, suas raízes, seu desenvolvimento ao longo do Século XX e sua condição globalizada, complexa e paradoxal no Século XXI, bem como, suas consequências na vida das pessoas, representam aspectos importantes e necessários do esporte a serem tratados ao longo da formação universitária em EF. Além das modalidades, que podem permitir determinado aprofundamento em uma tradição específica (basquete, atletismo, entre outras), compreender o esporte como fenômeno sociocultural permite a produção de saberes contextualizados sobre suas origens, mas também, o estado e status de sua condição na contemporaneidade.

Considerando estes elementos, o trabalho da tradução como processo de transpor as distâncias históricas entre pessoas e saberes acaba se constituindo como solo fecundo para o trabalho da composição. Ou seja, tal como um compositor, o docente produz perspectivas e abordagens sistematizadas de saberes que possam ser desenvolvidos em processos de ensino-aprendizagem. Ou seja, compor propostas de intervenção, unidades didáticas e aulas é um esforço que se coloca como uma necessidade da docência universitária (um esforço que deve permitir a compreensão qualificada dos estudantes sobre como este processo se desenvolve). Em meio a muitas possibilidades, o docente se coloca como um compositor que organiza as notas e acordes com as quais vai compor sua intervenção, em um processo impossível de ser totalmente programado previamente (mas que deve apresentar pontos de partida, em um percurso a ser trilhado em parceria com os estudantes).

De onde partimos? Para onde vamos? Que conteúdos? Como estruturar determinado recorte? Quais elementos traduzir, a fim de que saberes do mundo se coloquem como saberes de uma aula universitária? Assim, o trabalho de composição representa uma derivação do trabalho de tradução, porém, sem “etapismos”, pois se colocam como processos circulares. Em meio a esta dinâmica, surge o trabalho da aplicação, conceito nuclear na obra de Gadamer (2002, 2004), representando outro ingrediente importante e necessário para a docência universitária.

Palmer (2006, p. 190), baseado em Gadamer, afirma que ocorre, ao longo do movimento da aplicação, uma presentificação contextualizada de saberes em direção a compreensão – para Gadamer (2004), a compreensão é sempre uma aplicação. Desta forma,a o trabalho da aplicação se edifica a partir da tensão gerada entre distintos sujeitos que se encontram em uma aula universitária e um saber instituído em seu interior, entre um contexto e a necessidade de sua aplicação atual, o que transforma a empreitada em um evento, um acontecimento que ocorre no tempo e no espaço, e que não pode nunca ser inteiramente objetificado nem repetido.

Tal tensão estabelecida, neste caso, nas relações de sala de aula entre professor, estudante e conhecimento, permite identificar que a própria crítica se origina de um processo interpretativo. A capacidade de crítica imersa na tradição hermenêutica (RICOEUR, 2008) passa pela capacidade de compreender determinado assunto, tanto, a ponto de tencioná-lo, colocando-o em inspeção, duvidando da força de sua tradição. Ou seja, nesta lógica, não há saber ou professor a prova de crítica, pois a legitimidade de um componente curricular e da docência se dá, lembrando Marques (1993), a cada vez e nunca de vez.

Assim, pensar o trabalho da tradução, da composição e da aplicação como um esforço de tornar saberes históricos contemporâneos de nosso tempo é reconhecer que uma abordagem hermenêutica permite abrir um universo de possibilidades no trato com o conhecimento. Retomando o exemplo anterior, pensar o esporte, suas origens, seu “estado” e seu “status” no contemporâneo, se coloca para muito além de abordar modalidades esportivas (desconexas entre si) ao longo da formação universitária. Certamente, não se trata de tarefa simples, nem de simplificação da importância das modalidades esportivas, mas de um processo que pode dar ao esporte a complexidade que ele merece, em um movimento de tensão permanente entre saberes específicos e saberes amplos.

Portanto, compreender já é, na perspectiva ora expressa, aplicar, o que representa a possibilidade de traduzir um “texto” para a linguagem de uma situação concreta por meio do diálogo entre horizontes distintos. Concordando com Portocarrero (2010), toda tradução se coloca como resposta a um apelo, com o intuito de criar um espaço simbólico que exige, como a interpretação, um conjunto de decisões tomadas que reconheça sua finitude – ou seja, não há tradução ideal[7]. Porém, isso não representa um “problema”, pois nos coloca na condição de intérpretes de uma obra, permitindo assumir a condição de autoria edificada pelo encontro histórico entre “texto” e “leitor” (ambos no sentido lato), na expectativa de que, junto com os estudantes, possamos alargar nossos horizontes de mundo, desafio de grande monta, mas nada menos do que se espera de uma formação universitária comprometida com a formação humana.

 

Considerações Finais

Ao longo do texto, procurei apresentar contribuições da hermenêutica filosófica para a docência universitária, em especial, para o campo da EF. Porém, penso que as questões de fundo não são exclusivas deste campo, o que permite pensar aproximações dos argumentos então trabalhados, com outros campos do conhecimento na formação universitária.

O diálogo proposto entre EF, hermenêutica filosófica e docência universitária procurou explicitar a importância e a necessidade de pensar criticamente o “fazer docente” na educação superior, sem desconsiderar os rumos distintos pelos quais este contexto vai se conduzindo e sendo conduzido[8]. E na direção de demonstrar a fecundidade da hermenêutica filosófica, procurei explorar algumas de suas categorias centrais: o jogo da pergunta e da resposta, a fusão de horizontes, o círculo hermenêutico, e o jogo da tradução, composição e aplicação. Pensar as questões apresentadas ao longo destes quatro tópicos permite projetar um alargamento dos horizontes da docência universitária (impregnada de questões hermenêuticas), com possíveis impactos importantes para a formação no campo da EF.

Compreendo que, se a hermenêutica filosófica não “resolve” os problemas da docência e da formação universitária neste campo (e nem é essa a pretensão em curso), pode se colocar como uma atitude filosófica frente a seus desafios, como um campo de possibilidades que nos permite um movimento de “mão dupla”. Por um lado, produzir criticamente sentidos em comum, ao longo do trabalho docente, que nos permita tornar algo, antes desconhecido e estranho, como algo familiar, conhecido, constituinte do universo dos estudantes (mas também, do universo docente). Por outro, permitir o estranhamento daquilo que nos parecia, a priori, familiar, conhecido, habitual, em um movimento circular de estranhamento e familiarização.

Neste caso, a hermenêutica filosófica se coloca como uma filosofia prática importante para a docência universitária, especialmente em um campo plural como a EF. Finalizo destacando que o esforço hermenêutico ora proposto poderia permitir navegar por terrenos suspeitos da docência universitária e, na circularidade do diálogo, construir sentidos comuns para problemas da docência e da EF, e novamente reinterpretá-los, para reconstruí-los e, assim, indefinidamente, numa dialética complexa, desafio nada fácil, mas em acordo com o que se espera da docência, especialmente na formação universitária.

 

Referências

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Notas



[1] Conforme classificação da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a Educação Física está alocada na Área de Ciências da Saúde do Colégio de Ciências da Vida. Enquanto Área da Pós-Graduação, a Educação Física compõe a Área 21, juntamente com Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional.

[2] Hans-Georg Gadamer, ex-aluno de Matin Heidegger (1889-1976), filósofo de grande importância, trabalhou em Leipzig, Frankfurt e Heidelberg. Professor emérito desde 1968, suas obras abrangem o âmbito da hermenêutica, em um constante diálogo com Platão, Aristóteles, Hegel, Heidegger e outros autores contemporâneos. Em sua arquitetura teórica, redimensionou a filosofia hermenêutica em direção a uma hermenêutica filosófica, considerando a linguagem como nossa possibilidade de Ser no mundo – para ele, ser que pode ser compreendido é linguagem. A hermenêutica, em seu sentido lato, foi concebida como uma “teoria geral da interpretação”, com raízes na Teologia (hermenêutica teológica) e no Direito (hermenêutica jurídica), como um método para a interpretação e compreensão correta de textos. Por sua vez, Gadamer alarga esta potencialidade para além da dimensão metodológica. Neste caso, a arquitetura teórica de Gadamer acompanha a “virada linguística” ou “giro linguístico” (lingusitic turn), movimento que se caracteriza pelo deslocamento da filosofia da consciência em direção a filosofia da linguagem (deslocando a subjetividade em direção a intersubjetividade), especialmente na segunda metade do século XX.

[3] A EF se coloca como um campo do conhecimento que trabalha com o universo biológico do ser humano, sem dúvidas. Porém, trabalha também com o universo relacional do conhecimento do próprio corpo, da cultura corporal, da cultura corporal de movimento, do movimento humano, enfim, com aspectos específico e amplos da formação humana.

[4] De acordo com Gadamer (2004), R. G. Collingwood, um filósofo e historiador britânico, em Oxford, na década de 1930, foi o criador da expressão “lógica da pergunta e da resposta” (logic of question and answer), um ponto importante no qual Gadamer se concentra para combater a posição de seus oponentes de que os textos filosóficos deveriam ser “julgados” de acordo com uma lógica universal.

[5] O jogo da pergunta e da resposta se produz através da maiêutica, que se edifica por meio de uma práxis dialógica de influência socrática constituída pelo procedimento da pergunta, da resposta e de uma nova pergunta, que produz outra, e outra, em um movimento circular radical que caracteriza um processo espiral que se movimenta entre o auto-exame e o exame coletivo de nossas perspectivas.

[6] Hans-Georg Flickinger, ex-aluno de Gadamer, recorre ao texto “A incapacidade para o diálogo” (GADAMER, 2002), para discorrer sobre experiências de comunicação verbal que não cumprem as exigências do diálogo genuíno, como por exemplo, o interrogatório Jurídico, a conversação terapêutica e a negociação entre comerciantes, pois se colocam para alcançar resultados premeditados (FLICKNGER, 2014). Em um diálogo genuíno, não há como premeditar o desfecho da conversação, tendo em vista os rumos indefinidos e inéditos que a fusão de horizontes pode levar os interlocutores. Porém, neste caso, cabe refletir (e isso fica para outro texto), como este diálogo genuíno pode se colocar em sala de aula quando estudante e professor possuem “poderes” bastante desiguais ao longo do processo.

[7] Há um aforismo italiano que ilustra bem essa assertiva, segundo o qual, toda tradução é sempre infiel, por consequência, “traidora” do pensamento original do autor: “il traduttore, il traditore".

[8]  Por exemplo, a pedagogia das competências representa um projeto neoliberal para a formação universitária em pleno vigor, com perspectivas bem distantes do referencial apresentado nos argumentos presentes neste texto. Um projeto que colonizou os dispositivos legais que referenciam a estruturação curricular na formação universitária (no caso da EF, cito a Resolução 06/2018), com pretensões de “vanguarda”, tendo em vista a formação de trabalhadores flexíveis, resilientes e adaptáveis a precarização do mundo trabalho.