Mídia-Educação e produção de uma realidade crítico-comunicativa na pandemia

Media-Education and production of a critical-communicative reality in the pandemic

Educación mediática y producción de una realidad crítico-comunicativa en la pandemia

 

Marcio Roberto de Lima

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG, Brasil

marcinholima@ufsj.edu.br

Khalmel Gabriel Lima de Oliveira

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG, Brasil

handkal@yahoo.com.br

Diego de Sousa Mendes

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG, Brasil

diegomendes@ufsj.edu.br

 

Recebido em 02 de junho de 2023

Aprovado em 18 de julho de 2023

Publicado em 24 de julho de 2024

 

RESUMO

Este artigo trata da articulação entre a Educação Física escolar e a Mídia-Educação durante o Ensino Remoto Emergencial. O objetivo da pesquisa foi mapear e traduzir uma realidade pedagógica produzida durante o cenário pandêmico. Metodologicamente, o trabalho partiu de uma Pesquisa-Ação que fomentou uma intervenção pautada em uma interlocução pedagógica tematizada no racismo no esporte durante as aulas de Educação Física escolar no Ensino Remoto Emergencial. Seguindo uma orientação sociomaterialista, o estudo foi sistematizado no formato de um relato ator-rede acerca da interlocução pedagógica empreendida, a qual evidenciou vivências edificadas por um coletivo híbrido e que fez emergir um momento formativo que valorizou aspectos críticos e comunicativos. Esse indicador reforça a pertinência e a força conferida às ações didáticas propiciadas pela articulação das aulas de Educação Física à Mídia-Educação. A experiência empreendida evidenciou ainda que é preciso reconhecer que a materialidade não humana nos afeta e nos constitui, sendo imprescindível na produção de educações.

Palavras-chave: Mídia-Educação; Educação Física Escolar; Pandemia; Teoria Ator-Rede.

 

ABSTRACT

This paper deals with the articulation between School Physical Education (PE) and Media-Education (ME) during Emergency Remote Teaching (ERT). The objective of the research was to map and describe a pedagogical reality produced during the pandemic scenario. Methodologically, the study started from an Action-Research that developed an intervention based on a pedagogical dialogue themed on racism in sport during school PE classes at ERT. Following a socio-materialist orientation, this article was systematized in the format of an actor-network report about the pedagogical interlocution produced, which evidenced experiences built by a hybrid collective and which gave rise to a formative moment that valued critical and communicative aspects. This indicator reinforces the pertinence and strength given to the didactic actions provided by the articulation of Physical Education classes with Media-Education. The experience undertaken also showed that it is necessary to recognize that non-human materiality affects and constitutes us, being essential in the production of education.

Keywords: Media-Education; School-Physical Education; Pandemic; Actor-Network Theory.

 

RESUMEN

Este artículo trata de la articulación entre la Educación Física Escolar y la Educación en Medios durante la Enseñanza a Distancia de Emergencia. El objetivo de la investigación fue mapear y traducir una realidad pedagógica producida durante el escenario de la pandemia. Metodológicamente, el trabajo se basó en una Investigación-Acción que propició una intervención basada en un diálogo pedagógico con la temática del racismo en el deporte durante las clases de Educación Física en la escuela en la Enseñanza a Distancia de Emergencia. Siguiendo una orientación sociomaterialista, el estudio fue sistematizado en el formato de un relato actor-red sobre la interlocución pedagógica emprendida, que evidenció experiencias construidas por un colectivo híbrido y que dio lugar a un momento formativo que valoró aspectos críticos y comunicativos. Este indicador refuerza la pertinencia y fortaleza otorgada a las acciones didácticas proporcionadas por la articulación de las clases de Educación Física con la Educación en Medios. La experiencia emprendida mostró también que es necesario reconocer que la materialidad no humana nos afecta y nos constituye, siendo esencial en la producción de la educación.

Palabras clave: Educación en Medios; Educación Física Escolar; Pandemia; Teoría del Actor-Red.

 

Introdução

Neste artigo, tratamos da articulação entre a Educação Física escolar (EF) e a Mídia-Educação (ME) durante o Ensino Remoto Emergencial (ERE). O trabalho é fruto de uma investigação de mestrado[i] em Educação que se desenvolveu em meio à pandemia de Corona Virus Disease (COVID-19) e, como qualquer outro campo, foi afetado nas suas formas de estruturação e de operacionalização. Esse movimento de ‘afetação’ diz respeito às tramas e aos jogos de força interpostos pelo Severe Acute Respiratory Syndrome - Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) ao cotidiano, o que exigiu (re)adequações tendo em vista o regime de distanciamento social provocado pela ação desse vírus. No que diz respeito aos processos socioformativos, “[...] em decorrência da pandemia, o ensino remoto emergencial tornou-se a principal alternativa de instituições educacionais de todos os níveis de ensino, caracterizando-se como uma mudança temporária em circunstâncias de crise” (Brum dos Santos et al., 2023, p. 02).

            O estudo empreendido consolidou-se a partir de uma Pesquisa-Ação (Franco, 2005; Thiollent, 1996; Tripp, 2005) desenvolvida em uma escola pública do interior de Minas Gerais, no componente curricular de Educação Física junto a alunos do 8º ano do Ensino Fundamental. Entre setembro e novembro de 2020, empreendemos uma intervenção empírica que envolveu práticas pedagógicas baseadas na ME como uma forma de oferta das aulas de EF no ERE. Desse modo, vale salientar que, no formato remoto, a efetivação das aulas que produzimos só foi possível pela mediação das tecnologias digitais, o que encontrou aderência temática no campo da ME.

            Assim, a realidade pedagógica (Lima; Nascimento, 2021) que instauramos visou ampliar a concepção dos jovens estudantes acerca das mídias, levando-os a compreendê-las para além de seus aspectos instrumentais e tensionadas aos conteúdos curriculares trabalhados nas aulas. Respaldados em aportes da Teoria Ator-Rede (Latour, 2012), o objetivo deste artigo foi mapear a realidade pedagógica produzida por um professor de EF junto de seus alunos e tecnologias digitais em uma proposta de ensino pautada na ME durante o ERE. Como resultado desse esforço de pesquisa, materializamos neste texto um relato ator-rede enredado em uma cena pedagógica envolvendo a EF, a partir de um arranjo sociotécnico articulado a preceitos da ME – considerando uma formação crítica e criativa – mesmo nas condições adversas do ERE (Silva; Sousa; Menezes, 2020).

 

Breve fundamentação acerca da Mídia-Educação (Física)

A Mídia-Educação (Bévort; Belloni, 2009; Fantin, 2011) ou Educação Midiática (Buckingham, 2010, 2019) refere-se tanto a um campo de estudo e pesquisa, quanto a uma prática social educativa sobre os modos de funcionamento dos meios de comunicação contemporâneos, como rádio, cinema, revistas e jornais impressos, TV, internet e suas tecnologias e ambientes derivados da cultura digital, bem como de suas interrelações com a cultura e com a sociedade em suas diversas facetas.

Trata-se, portanto, de uma educação para qualificar nossa relação com o ambiente midiático em que vivemos, tornando-nos mais capacitados na curadoria, no compartilhamento, na escrita e na leitura crítica das informações com as quais interagimos; na participação ativa nos processos comunicativos e deliberativos em rede relacionados à contemporaneidade, à democracia e à justiça social; e na possibilidade de autoria ética e criativa a partir dos recursos expressivos disponibilizados com e na cultura digital.

Em termos históricos, há registros internacionais de projetos e marcos documentais que indicam as preocupações de países europeus e americanos com educação midiática – ainda que não com essa nomenclatura, nem mesmo com proposições bem delineadas – a partir da década de 1950 e 1960 (Bévort; Belloni, 2009; Fantin, 2011). Os aspectos fundamentais desses documentos demarcam um caráter moral de proteção das crianças e dos jovens dos efeitos negativos (perigos de influência ideológica, da uniformização estética e do empobrecimento cultural pela padronização dos produtos midiáticos) advindos do cinema e da emergente mídia de massa, como o rádio e a televisão, por meio de ações educativas.

Essas premissas iniciais vão sendo cada vez mais elaboradas no interior das entidades internacionais como Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e em ações governamentais de diversos países, fazendo com que a ME se ampliasse para uma concepção mais culturalista, portanto menos focada na prevenção das mídias como responsável pela inculcação de comportamentos violentos, sexualização precoce, manipulação política etc., e agora pressupondo que “a comunicação e os meios de informação fazem parte da cultura contemporânea, pelo que merecem ser conhecidos e estudados” (Soares, 2014, p. 18).

Nessa direção, as ações educativas enfatizam a importância da educação midiática como parte da cidadania democrática, visando o desenvolvimento de modelos educativos reflexivos e analíticos, em que os alunos possam pensar sobre a sua própria atividade – tanto como ‘consumidores’/‘leitores’, quanto como ‘escritores’ de textos midiáticos –, interrelacionando suas práticas culturais com fatores sociais e econômicos que estão em jogo na produção, na circulação e no consumo midiático. Aqui, a produção midiática por parte dos estudantes assume maior protagonismo, assim como o potencial participativo nas redes on-line (Buckingham, 2018, 2019).

É a partir dessa conjuntura que a Mídia-Educação (Física) ou Mídia-Educação na Educação Física vem-se constituindo e consolidando como um subcampo acadêmico na Educação Física brasileira desde os anos 90 (Mezzaroba, 2020; Pires; Pereira, 2016). Um dos autores pioneiros na ME na Educação Física, Betti (1998) propõe uma nova postura na abordagem dos temas da cultura corporal de movimento na EF escolar, compreendendo uma nova tarefa pedagógica, na qual exista a formação de um receptor crítico, sensível e inteligente diante das produções midiáticas no campo da cultura corporal de movimento. O autor indica ainda a incorporação das produções midiáticas pela EF, tais como a utilização de vídeos, o debate e a reflexão sobre o jornalismo esportivo, para educação midiática de crianças e jovens.

De acordo com Pires e Pereira (2016), a Mídia-Educação (Física) vem buscando constituir um espaço de atuação pedagógica, no intuito de atender às novas demandas e aos desafios impostos pela cultura digital. Os autores relembram que os esforços iniciais da Educação Física, ao se aproximar do campo da Comunicação, deram maior ênfase às análises de produtos midiáticos, sobretudo os advindos da televisão. Considerando esse contexto, os autores ressaltam que “a Mídia-Educação tem sido empregada como conceito orientador de estudos que visam relatar/refletir sobre experiências de práticas pedagógicas com mídia/TICs na Educação Física escolar” (Pires; Pereira, 2016, p. 244).

Partindo para uma aproximação da Mídia-Educação (Física) com o contexto da cultura digital, Mendes(2020) faz apontamentos no que tange às relações desta última com a cultura corporal de movimento. O autor aponta a necessidade das práticas pedagógicas da Educação Física escolar atentarem-se para como as interações no cerne da cultura digital têm atravessado a cultura corporal de movimento, evidenciando as interfaces e os imbricamentos dessas duas temáticas na composição de determinadas redes. Inteligência artificial, big data, usuários, corporações desenvolvedoras de softwares, aplicativos fitness, arenas esportivas inteligentes, entre outros, são alguns dos elementos que compõem as redes sociomateriais que abrangem a cultura digital e a cultura corporal de movimento e que podem ser tematizadas nas aulas de EF escolar.

É nesse contexto que a Educação Física, sobretudo em sua faceta escolar e, por consequência, no âmbito da formação de professores, é impulsionada ao trabalho com as tecnologias digitais nos últimos anos, por ao menos dois fatores recentes: a consolidação da nova Base Nacional Curricular Comum (BNCC) (Brasil, 2018), em 2018, e a Pandemia de COVID-19 entre os anos de 2020 e 2022.

Longe de esgotar essas temáticas, é preciso reconhecer que a implantação da BNCC ratificou a Educação Física na área das Linguagens, que abrange a comunicação, a expressão e a interpretação, descrevendo habilidades e competências a serem trabalhados na escola por esse componente curricular, com possibilidades para sua aproximação à cultura digital e às tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) (Costa; Mezzaroba; Zylberberg, 2023; Moreira; Moreira, 2023). Como destacam Costa, Zilberberg e Mezzaroba (2023, p. 2-3), a partir da BNCC:

 

Por intermédio da utilização das mídias e tecnologias, como forma de linguagem, os professores podem explorar diferentes recursos, como vídeos, fotografias, textos escritos, áudios e imagens, para estimular a expressão corporal, a criatividade, a reflexão crítica e a compreensão de conceitos relacionados à EF.

 

Ademais, com a instauração da Pandemia de COVID-19, a partir de 2020, a Educação Física e seus professores se viram induzidos a se adaptar rapidamente às exigências do ensino remoto (Araújo; Ovens, 2022) e a integrarem as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) ao exercício da docência. Não por acaso, nos últimos anos (2022 e 2023), a produção acadêmica da área de Educação Física viu emergir estudos que buscaram registrar as experiências e os desafios da integração e do uso de tecnologias nessa área. A título de exemplo, destacam-se estudos constituídos a partir de experiências de ensino da Educação Física mediado pelas TDIC (Bianchi; Moraes; Filho, 2023; Junior; Mendes, 2023; Lima, 2020; Lima; Mendes; Lima, 2020; Lima; Ribeiro, 2024; Ovens; Philpot; Bennett, 2022), estudos sobre a formação dos professores no contexto da pandemia (Venâncio et al., 2022), e ainda estudos narrativos, com relatos de professores sobre suas sequências didáticas, planejamento, trabalho docente etc. (Leite et al., 2022; Rodriguez, 2022).

Em consonância com esses estudos, buscamos consolidar algumas ações didáticas orientadoras das interlocuções pedagógicas propostas no âmbito da EF escolar no ERE, nas circunstâncias pesquisadas da Mídia-Educação (Física), como nosso aporte teórico para as ações realizadas no campo junto aos estudantes das turmas investigadas.

 

Caminho metodológico

Esta pesquisa seguiu as orientações procedimentais da Pesquisa-Ação. De acordo com Franco (2005), esse método de pesquisa busca a modificação de situações concretas e exige atenção às transformações e aos novos elementos que, porventura, surjam durante a investigação. Ao empreender nossa Pesquisa-Ação visamos mais do que cumprir protocolos burocráticos e estivemos sensíveis para: 1) escutar aquilo que as pessoas tinham a dizer; 2) observar aquilo que era produzido coletivamente (Thiollent, 1996), inclusive com/pelos actantes não humanos; 3) promover registros; e 4) construir um relato analítico-descritivo da cena social estudada (Latour, 2012). Dessa feita, adotamos uma postura que, além de buscar sistematizar conhecimentos, nós nos somamos à situação estudada, adotando uma atitude investigativa, participativa e, portanto, ativa na construção da realidade pedagógica que pesquisamos.

Nesse ponto cabe contextualizar que nossa intervenção se desenvolveu ao longo de aulas do ERE em virtude da pandemia de COVID-19, e, nesse sentido, visávamos romper com os procedimentos de aulas pouco dialógicas e limitadas à entrega de atividades discentes em meios informáticos para a conferência do professor – o que contingenciaria a interação professor-aluno. Assim, ao intervir em uma cena de ensino-aprendizagem de EF escolar com foco em ME, empreendemos práticas pedagógicas que foram aprimoradas em tempo de sua execução, pela via de uma alternância entre momentos de ação (planejar, agir, monitorar, avaliar) e de investigação (Tripp, 2005). Em termos práticos, elaboramos uma estratégia (Quadro 1) na qual as tecnologias digitais se integraram ao fazer pedagógico de maneira a expandir possibilidades de ação frente ao ensino e à aprendizagem, valorizando comunicação, criatividade e posicionamento crítico frente às proposições curriculares.

Quadro 1 – Estratégia de intervenção no campo empírico

PLANEJAR

AGIR

MONITORAR

AVALIAR

Organização de Interlocuções Pedagógicas (IP) pautadas na unidade temática ‘Esportes’. Objetivo: fomentar o desenvolvimento discente de materiais midiáticos (para este artigo, destaca-se o podcast).

Realização de IP que articularam temas da EF escolar com a ME.

Observação sistemática e registros acerca das IP em diário de campo. Registro do chat da plataforma Jitsi Meet.

Capturas e gravações de tela do processo de desenvolvimento das IP.

Registro e organização dos materiais produzidos pelos alunos.

Avaliação do desenvolvimento da IP;

Avaliação dos materiais midiáticos produzidos pelos estudantes.

Aplicação de um questionário após a IP.

Fonte: elaborado pelos autores com base nas orientações de Tripp (2005).

A escolha por essa forma de intervenção foi influenciada por nossa vivência no espaço escolar, pelo acesso direto aos gestores da instituição que abrigou nossa investigação e por um dos pesquisadores ser também o professor que empreendeu as dinâmicas com os alunos e que acompanhou a consolidação dos materiais digitais. Além disso, dispúnhamos – junto dos alunos que integraram nossa intervenção – de recursos infocomunicacionais que mediaram toda a experiência e se constituíram como elementos cruciais na realidade pedagógica produzida.

O material empírico produzido compilou rastros de muitas frentes de ‘inter-ações’ estabelecidas entre professor, alunos, materiais midiáticos, tecnologias digitais, conteúdo de referência curricular, proposta pedagógica, legislação etc. Essa configuração sugere a formação de um coletivo heterogêneo, o qual, em seus movimentos de (des)associação, traduziu uma realidade pedagógica (Lima; Nascimento, 2021). Dessa maneira, encontramos na Teoria Ator-Rede (Latour, 2012) uma via de tratamento teórico-metodológica desse corpus, que esteve atenta a

 

‘seguir os próprios atores’, ou seja, tentar entender suas inovações [...], a fim de descobrir o que a existência coletiva se tornou em suas mãos, que métodos elaboraram para sua adequação, quais definições esclareceriam melhor as novas associações que eles se viram forçados a estabelecer. (Latour, 2012, p. 31)

 

A partir dessa visão – e longe de desejar e buscar estabelecer uma lei empírica –, indicamos que, metodologicamente, trabalhamos no sentido de: 1) reconhecer os atores que integraram nossa cena de intervenção (quem/o que integra a situação estudada); 2) construir um mapeamento das associações entre esses atores (formação de rede); 3) descrever a realidade pedagógica produzida. Para tanto, é necessário ter em mente as orientações de Latour (2012, p. 180) de “[...] trazer para o primeiro plano o próprio ato de compor relatos”, afinal “[...] nenhum pesquisador deve achar humilhante a tarefa de descrever” (Latour, 2012, p. 199). E vale ressaltar que

 

Ainda que a [Teoria Ator-Rede] tenha sido concebida em um campo distinto da Educação, reiteramos que seus conceitos e proposições teórico-metodológicas são aderentes e oportunos aos interesses à pesquisa dessa área de conhecimento. Afinal, os processos educativos são híbridos e sua materialidade – leis, salas e laboratórios, currículos, avaliações, equipamentos, materiais didáticos, pessoas etc. – se faz imprescindível à tarefa de educar. [...] Longe de defendermos um determinismo tecnológico, preferimos reconhecer que, se os objetos não educam por si só, sem eles não produzimos Educação. (Lima; Nascimento, 2021, p. 6).

 

Na sequência, apresentamos nossos resultados e sua discussão fundamentados em elementos da Teoria Ator-Rede (TAR)[ii] e mixados a indicadores da ME. Acreditamos que essa formulação é aderente às orientações da Pesquisa-Ação, que também indicam o detalhamento da intervenção produzida. Entretanto, evitamos seguir uma lógica cartesiana de categorização empírica fundada em indexadores compostos a priori e, alternativamente, construímos uma difração[iii] analítica que valoriza os rastros das ações empreendidas pelos atores-rede e que traduzem uma realidade pedagógica.

 

Resultados & discussão: descrição e difração analítica sobre o espaço-tempo da intervenção empírica

 

Acreditamos que não há outra maneira de iniciar nosso trabalho de descrição da realidade pedagógica produzida senão a partir do cenário pandêmico. A ampla circulação do SARS-CoV-2 no planeta desestabilizou o cotidiano assumido como ‘normal’ e interpôs uma série de circunstâncias que fizeram a população mundial rever e adotar novos hábitos. Essa reconfiguração se fez indispensável face à letalidade provocada pela COVID-19 e também foi evidenciada pelas formas de cuidados e prevenções com as máscaras de proteção individual, pela decretação da suspensão da presencialidade física nos espaços comuns para o exercício laboral e migração para o regime de home office, pela emergência de aulas remotas no campo do ensino, pelo isolamento e pelo distanciamento social, pela aceleração de pesquisas para concepção de vacinas etc.

Logo de início, essa pequena contextualização já evidencia algo que integra os fundamentos da TAR e que é precioso para a produção deste relato: ‘afetações’ que são produzidas em uma rede heterogênea. Essa constatação remete ao conceito de ‘actante[iv]’, ou seja, aquele/aquilo que gera ações, produz movimento (Latour, 2012, 2017; Lemos, 2013) e transformações, assumindo uma configuração no espaço-tempo de associações. Assim, na perspectiva da TAR, um actante é definido por sua atuação em uma rede em que se coloca em associações, podendo ser humano ou não humano. Transladando esse constructo para um processo de ensino-aprendizagem, encontramos, em Latour (2008) e em Sørensen (2009), a indicação de que uma situação pedagogicamente enredada – material e artificialmente – pode provocar ‘afetações’ em um sujeito que, se efetivamente integrado ao coletivo em que se associa, rompe com seu estado de inércia e se coloca em movimento rumo ao registro de novas experiências.

Voltando ao nosso cenário de pesquisa, é facilmente perceptível que o regime de mudanças instaurado pela atuação do SARS-CoV-2 colocou às claras que um actante não humano é dotado de capacidade agencial e, portanto, produz diferenças que traduzem realidades: os terríveis quadros de mortalidade por COVID-19, a compra de vacinas, as novas políticas de saúde pública, uma Comissão Parlamentar de Inquérito da COVID-19 no Congresso Nacional do Brasil no ano de 2021, por exemplo. Não ignorando as múltiplas formas de agenciamento desse coronavírus, neste trabalho, reportaremo-nos a um recorte agencial que diz respeito às aulas do ERE, das quais participamos desde o planejamento à execução. Interessa-nos aqui relatar os actantes, as suas relações e, fundamentalmente, a realidade pedagógica instaurada a partir de suas (associ)ações.

O ERE aconteceu respeitando o distanciamento geográfico entre professores e alunos e, para evitar que atividades socioeducativas fossem suspensas, englobou os dois níveis da Educação Brasileira. A modalidade de ERE foi desenvolvida a partir de momentos síncronos – por intermédio de sistemas de webconferência – e de momentos assíncronos – que não se pautavam em ordenação temporal fixa e foram mediados por aplicativos mensageiros e/ou por plataformas digitais. Tendo em mente que o ERE se constituiu como modalidade possível para os processos socioformativos durante a pandemia, é preciso, inegavelmente, reconhecer que a adoção de tecnologias digitais foi um condicionante desse processo. Isso equivale a dizer que sem os meios infocomunicacionais digitais o ERE seria impraticável.

Essa última constatação reforça a proposição da TAR de que, ao agirmos, nunca o fazemos sozinhos ou apartados de um mundo de coisas (Latour, 2012). Essa ideia encontra sintonia com as indicações de Callon (2008, p. 307–308), que nos diz não ser possível “[...] compreender a ação humana, e não se pode compreender a constituição de coletivos, sem levar em conta a materialidade, as tecnologias e os não-humanos”. Decorrente disso, partimos para a descrição desse coletivo que integrou a rede investigada. Porém, é preciso ter em mente que

 

[...] rede não é a estrutura, infraestrutura ou a sociabilidade, não é o local por onde as coisas passam, deslocam-se ou são depositadas, mas o local onde as relações se estabelecem e se transformam. A rede é o próprio movimento das associações que formam o social [...]. (Oliveira; Porto, 2016, p. 67)

 

Assumindo a ideia de rede como espaço-tempo de associações em que são estabelecidas alianças, jogos de força e múltiplas interferências entre os actantes que integram esse coletivo híbrido, apresentamos uma representação do contexto de pesquisa na Figura 1.

 

Figura 1 – Mapeamento de actantes e suas associações

Fonte: elaborado por Marcio Roberto de Lima no software Gephi.

 

O rizoma da Figura 1 diz respeito ao nosso rastreamento de actantes (destacados entre aspas simples neste parágrafo) e de suas associações durante uma interlocução pedagógica (IP) que abordou a ‘unidade temática’ esportes a partir do tema[v] racismo no esporte. Como já salientado anteriormente, o ‘SARS-CoV-2’ instaurou o Ensino Remoto Emergencial na ‘escola’, alterando substancialmente seu regime de funcionamento, bem como as formas de ‘gestão escolar’, a própria ‘legislação’ e, fundamentalmente, o ‘plano de ensino’ docente. Na composição da IP investigada, além da unidade temática, os ‘referenciais de Mídia-Educação’ e sobre ‘podcast’ foram elencados em inter-ações mediadas por ‘tecnologias digitais’ entre o ‘professor­pesquisador’ e os ‘alunos’ para compor uma atividade pedagógica (AP) e, assim, proporcionar uma articulação entre um tema pertinente à EF escolar e a ME.

O objetivo da AP que integrava a IP foi ampliar as perspectivas dos estudantes em torno da ME, a partir do estímulo à produção autoral de mídias contemporâneas, no caso o podcast. Nesse sentido, é importante mencionar que o professor­pesquisador arregimentou (Latour, 2012) não apenas documentos curriculares para embasar e delinear suas ações pedagógicas, mas também a legislação – que respaldava o ERE – e as tecnologias digitais. Cabe ainda explicar que, de acordo com o planejamento docente, a IP agregava: 1) uma atividade pedagógica (AP) descrita em formato textual e publicizada por intermédio de grupo de WhatsApp ou em formato impresso, que podia ser retirada na escola; 2) um vídeo expositivo veiculado no YouTube, o qual era elaborado pelo professor e divulgado pelo WhatsApp; 3) um encontro síncrono com os estudantes mediado pela plataforma de webconferência Jitsi Meet; e 4) um momento de síntese no qual discussões pós-aula eram disparadas em um grupo do WhatsApp.

Considerando a cena analisada e descrita neste trabalho, pôde-se perceber que a IP se iniciou com uma AP que teve como objetivo formalizar para os estudantes o conceito de podcast e produzir um material midiático naquele formato, articulando-o com a temática ‘racismo no esporte’ (Oliveira; Mendes, 2021). Tal AP foi dividida em duas partes: 1) a apresentação de informações relevantes acerca da mídia podcast pela via de um texto produzido pelo professor-pesquisador, inclusive com a indicação de materiais complementares na internet; e 2) a produção discente (individual ou em grupo) de um podcast que abordasse o tema ‘racismo no esporte’.

Durante sua ação de ensino, o professor-pesquisador indicou critérios para a elaboração do material requerido, tais como a produção de um roteiro, o formato do material (áudio ou vídeo) e o tempo limite do material (oito minutos). Além disso, o professor-pesquisador também apresentou aos alunos algumas possibilidades para a produção dos podcasts, sugerindo formas de organização tais como: entrevista com convidado(s) e/ou debate ou bate-papo entre os integrantes do grupo (caso o material fosse produzido em grupo), entre outros.

O movimento seguinte à AP foi a produção e o compartilhamento do vídeo da semana pelo professor-pesquisador. Naquele material, foram ressaltadas a importância e a pertinência de ser abordado o tema ‘racismo no esporte’, por intermédio da explanação dos documentos curriculares que embasaram a escolha da temática, bem como a exposição de alguns aspectos da legislação que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino (Brasil, 2018). Desse modo, o professor-pesquisador apresentou dados estatísticos a respeito do racismo envolvendo índices relativos à violência contra pessoas negras, do nível de escolaridade médio, do padrão salarial da população negra e da porcentagem de representantes políticos negros. O professor-pesquisador concluiu sua explanação no vídeo da semana, concatenando as informações previamente abordadas e apresentando o tema central, o que envolveu a exemplificação de casos reais de racismo no esporte.

Observamos que, até o momento do vídeo da semana, o professor-pesquisador esteve empenhado em arregimentar (Latour, 2017) aliados para propiciar aos estudantes afetações (Latour, 2008) e, assim, levá-los a trilhar o percurso estabelecido na AP. Essa dedicação docente também traduz que, em sua busca por afetar pedagogicamente os alunos (Lima; Nascimento, 2021), o professor também foi afetado em seu fazer. Vale enfatizar que essas mobilizações estão associadas ao agenciamento provocado pelo SARS-CoV-2, o qual compeliu um formato de aula possível ao se considerar o ERE e, não menos, transformações nas formas de didatização de temáticas curriculares. Isso equivale a dizer que a construção de alianças e a movimentação de actantes realizada pelo professor-pesquisador explicitaram sua intencionalidade pedagógica, a qual buscava valorizar a autonomia e a atividade discente, todas mediadas por tecnologias digitais.

O momento síncrono da IP também trouxe à tona o engajamento dos estudantes, que se valeram do recurso de chat do Jitsi Meet para expressar suas percepções a respeito da experiência com a produção dos podcasts. Durante a sessão síncrona, uma troca de mensagens entre os estudantes (Figura 2) registrou a articulação entre a EF escolar e a produção de mídias. O formato podcast, especificamente, teve boa aceitação por parte dos estudantes.

 


 

Figura 2 – Comentários de dois estudantes a respeito da produção de podcasts.


Fonte: dados de pesquisa.

 

Além disso, registramos a mediação ocasionada pela produção de podcasts na resposta de uma estudante ao nosso questionário de avaliação da IP:

 

[...] me fez descobrir novos jeitos de estudar em meio a esse período que estamos enfrentando, inclusive minha mãe teve que fazer um podcast na faculdade dela (um trabalho passado para eles com o intuito de fazer com que eles também usassem os recursos para o meio de trabalho deles nesse momento) [...] também o meu pai gostou muito das atividades que foram desenvolvidas no decorrer do ano, pois me ‘obrigou’ a pensar, a ‘quebrar a cabeça’, e me fez descobrir novas maneiras de fazer as coisas. (Estudante Cris).

 

A resposta anterior refere-se à pergunta feita aos estudantes a respeito de qual momento da IP havia sido marcante. Pelo trecho, é possível perceber que o arranjo didático delineado pelo professor-pesquisador foi capaz de produzir afetações discentes no curso da cena analisada. Ampliando essa percepção, a Figura 3 apresenta uma ‘capa’ elaborada para um dos podcasts, e isso sugere que a experiência pedagógica foi significativa, e que, em alguns casos, os estudantes foram além das orientações e das solicitações efetuadas a respeito da produção dos podcasts.

Figura 3 – Capa de um podcast produzido por estudantes.


Fonte: dados de pesquisa.

 

A Figura 3 nos permite observar que os estudantes investiram também na dimensão estética do material midiático produzido. Tal fato corrobora o que propõe Fantin (2011) quanto à dimensão criativa da ME, de modo a reforçar que os pressupostos da ME circularam entre os estudantes e foram integrados à elaboração dos podcasts. Ao mesmo tempo, identificados com a atividade envolvendo tecnologias digitais, aqueles alunos se empenharam e se articularam com diferentes recursos, atitude que nos sugeriu que eles “[...] aprende[ram] a ser afetado[s] por outras entidades, tanto humanas como não humanas, que o[s] coloca[ram] em movimento, deixando-o[s], ao mesmo tempo, mais vinculado[s] [...]” àquilo que construíam coletivamente (Melo, 2008, p. 264).

No momento de síntese da IP, observamos e registramos alguns fatos que expressaram mediações significativas. Uma dessas passagens ocorreu ao final do encontro síncrono, quando o professor-pesquisador apresentou um questionamento (Figura 4) no intuito de conectar e ampliar as discussões realizadas.


 

Figura 4 – Questão disparadora do momento síntese.


Fonte: dados de pesquisa.

 

Na figura 4, é possível observar que o professor-pesquisador lançou mão de um emoji pensante para incitar os estudantes a refletir sobre o conteúdo da matéria jornalística exibida no slide. Na sequência, o professor-pesquisador comentou a matéria apresentada: ‘– Será mesmo que ela venceu o racismo?’. A situação instaurada pelo professor e pelo material midiático colocou em circulação os pressupostos da ME e colaborou com o aspecto da leitura crítica das mídias defendido por Buckingham (2018). Em parte, essa constatação pôde ser percebida em um diálogo no grupo de WhatsApp ‘Interação Pós-Aula EFI’ entre o estudante Dudu e o professor-pesquisador:

 

– Então, Dudu, você acha que a matéria jornalística apresentou informações suficientes para afirmar que ela ‘venceu o racismo’? (Professor-Pesquisador).

– Eu penso que não, fessor [...] sabe o q eu pensei? Se no blog de cada um a gente colocar um aviso sobre o racismo? Exemplo [...] uma mensagem de conscientização? [...] compartilhar com todos aqueles que conhecemos [...] assim espalha rápido! (Aluno Dudu).

 

No trecho apresentado acima, observamos que o estudante Dudu se aproximou de preceitos da ME, uma vez que manifestou sua ‘criticidade’ e uma perspectiva de exercício da ‘cidadania’ ao propor uma ação de conscientização a respeito do racismo por intermédio de um blog. Tal fato nos indicou que o movimento reflexivo empreendido pelo estudante apresenta relação com dois dos ‘quatro C’ da mídia-educação – cultura, crítica, criação e cidadania – introduzidos por Fantin (2011), quais sejam: crítica e cidadania.

 Em outro diálogo, duas estudantes expressaram que o tema ‘racismo no esporte’, escolhido para a produção dos podcasts, colocou-as em causa:

 

– Quando isso tudo vai acabar? [...] na minha opinião não existe esse negócio de raça negra, branca, amarela... O que existe é raça humana! O movimento anti-racista deve ser bem pesado pra acabar com essa palhaçada (Estudante Chú).

– Cabe a nós, assim, tipo de grão em grão, tentar convencer as pessoas [...] a gente como sociedade não pode tolerar o racismo por que todos são iguais e temos que ter todas as oportunidades (Estudante Kaká).

 

A partir do excerto das falas das estudantes, entendemos que a circulação do tema ‘racismo no esporte’ manifestou uma mediação relevante, pois a temática afetou (Latour, 2008) as estudantes, levando-as a ‘opinar’, a ‘questionar’ e a ‘refletir’. Nesse sentido, a estudante Kaká expressou seu posicionamento e indicou uma proposição para a situação debatida, o que nos pareceu ir ao encontro da perspectiva crítica evocada pela ME (Bévort; Belloni, 2009; Buckingham, 2018; Fantin, 2020). Em consonância com o que Lima e Nascimento (2021) observaram, percebemos que a circulação de um actante – no caso o referencial temático ‘racismo no esporte’ – fez emergir uma nova representação acerca de conteúdo curricular. Em outras palavras, os novos contornos dados ao tema ‘racismo no esporte’ manifestaram o aspecto sociomaterial da aprendizagem (Coutinho et al., 2014; Silva; Pretto, 2021), visto que as afetações produzidas ocorreram em uma rede, e, nesse sentido, diferentes actantes estabeleceram relações e promoveram transformações.

Em outra passagem de nossos dados empíricos, foi identificado um turno de respostas dos estudantes ao nosso questionário, o qual evidencia outras afetações produzidas (Latour, 2008) durante as aulas remotas de EF escolar com podcasts.

 

[...] me marcou pois é uma coisa que acontece em todos segundos, até mesmo sem a gente perceber e é uma coisa a que devemos lutar para acabar não somente no esporte, mas sim no dia a dia. (Estudante Tainara)

[...] foi bastante legal interagir com meu grupo, pois fizemos o máximo pra passar a visão sobre o racismo no esporte, temos bem pouco conhecimento da área, não por não se interessar, mas por ter pouco debate sobre o assunto. (Estudante Tamis)

[...] durante esse ano eu estou assistindo muito podcast e, em questão do racismo, eu acho que é um assunto que sempre temos que ter tempo para discutir, pois é um assunto muito importante. (Estudante Vinícius Júnior)

 

Ante as respostas, foi possível perceber que a temática trabalhada e discutida foi capaz de mobilizar os estudantes para ‘(re)pensar’, ‘(re)agir’, ‘(re)posicionar o que, em conjunto, constituiu um espaço-tempo de debate fomentado pela produção midiática enredada. Sendo assim, expressões como: ‘devemos lutar’, ‘passar a visão’ e ‘ter tempo para discutir’ manifestam a figuração da ME, pois evocam o aspecto crítico e reflexivo postulado por essa corrente teórico-metodológica (Bévort; Belloni, 2009; Buckingham, 2018; Fantin, 2020).

Ao final da IP, os discentes produziram 11 podcasts, o que nos sugeriu uma intervenção positiva e, portanto, pedagogicamente evocativa e significativa. Ao longo do processo estudado, pudemos notar que os estudantes formaram novos significados não só para a mídia com que trabalhavam, mas também para a temática do ‘racismo no esporte’. É nesse sentido que identificamos o intercurso da ‘ME e a produção de uma realidade crítico-comunicativa’ durante o ERE.

 

Considerações finais

Este artigo tratou da articulação entre a Educação Física escolar (EF) e a Mídia-Educação (ME) durante o Ensino Remoto Emergencial (ERE). Nosso esforço foi o de mapear e traduzir uma realidade pedagógica que foi produzida por um professor, por seu plano de ensino, pelos alunos, pelas tecnologias digitais e por outros actantes no cenário pandêmico. A partir de uma orientação sociomaterialista, compusemos um relato ator-rede sobre aulas de EF escolar, o qual evidenciou vivências edificadas por um coletivo híbrido e que fez emergir um momento formativo que valorizou aspectos críticos e comunicativos.

Nossa investigação nos possibilitou perceber aspectos relevantes nas relações de ensino­aprendizagem, tais como as afetações discentes e docentes que se desdobraram a partir de uma interlocução pedagógica tematizada no ‘racismo no esporte’. Considerando a ME, enfocamos a produção de podcasts como meio disparador de discussões, ação discente e de uma formação que acolheu e ampliou a cultura digital no meio educacional. Obviamente, todo esse direcionamento pedagógico foi provocado não só pelo desejo do professor-pesquisador que conduziu o processo de ensino-aprendizagem, mas também pelos inegáveis agenciamentos impostos pelo SARS-CoV2e que transformaram a vida no planeta Terra durante a pandemia de COVID-19.

A investigação a respeito da instauração de uma realidade pedagógica crítico-comunicativa nos permitiu observar a pertinência da ação didática propiciada pela articulação das aulas de EF à ME e força conferida a ela. Entretanto, é indispensável registrar que isso não se fez de maneira linear e/ou isenta de processos de negociação típicos das dinâmicas socioformativas. Além disso, os desafios que experimentamos foram significativamente ampliados pelas condições do cenário pandêmico, o que envolveu não somente os cuidados com a saúde e com o distanciamento social, mas a constante atenção com: o alinhamento com a legislação educacional vigente, as condições de infraestrutura para comunicação telemática, o incentivo da permanência dos alunos nas aulas, a conformidade às formas de gestão administrativa do processo de ensino, a adequação às orientações da gestão escolar, a sobrecarga psíquica gerada pela pandemia etc.

Nesse sentido, acreditamos que as afetações pedagógicas produzidas pelo enlace da ME com a Educação Física escolar evidenciaram possibilidades para incorporações mais significativas – no que se refere ao ensino-aprendizagem – das mídias digitais no contexto estudado, colaborando para uma superação de um formato de produção da experiência educativa centrada apenas na transmissão de conteúdo. Tal fato nos sugeriu que, mesmo com o fim do ERE, o delineamento de outros arranjos didáticos que fomentem a apropriação das tecnologias digitais e que estejam em consonância com os variados recursos da cultura contemporânea pode ressignificar o processo de ensino-aprendizagem ao incorporar interlocuções pedagógicas pautadas em ações colaborativas, criativas e críticas.

Finalmente, destacamos que a imbricação da TAR à pesquisa de processos socioformativos exige especial atenção para as ‘inter-ações’ forjadas nas redes heterogêneas estudadas. Nesse particular, em nosso trabalho, procuramos evidenciar que professor-pesquisador, alunos, plano de ensino, legislação, referenciais (de ME e sobre podcast), unidade temática, tecnologias digitais – entre outros – figuraram uma rede sociomaterial (vide Figura 1) e, em uma perspectiva relacional, influenciaram-se, transformaram-se e produziram coletivamente uma nova realidade. A perspectiva sociomaterial que guiou nossa investigação nos ajudou a evidenciar que é necessário seguir investindo em abordagens de pesquisa que não desconsiderem os intercursos associativos entre humanos e não humanos na conformação de processos socioformativos de maneira simétrica. Nesse caminho, nós nos percebemos mais sensíveis ao reconhecimento de que a materialidade não humana nos afeta e nos constitui, sendo que, sem os não humanos, não somos aptos a produzir educações.

 

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Notas



[i]Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 36902920.4.0000.5151.Todos os nomes de alunos colaboradores da pesquisa citados no texto são fictícios. As imagens apresentadas ao longo do artigo foram devidamente autorizadas pela assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

[ii] Este artigo não tem a pretensão de servir como uma introdução à TAR. Esse trabalho já está disponível na literatura (COUTINHO; VIANA, 2019; LEMOS, 2013; OLIVEIRA; PORTO, 2016).

[iii] Tomamos essa metáfora do campo da Física como alternativa à ‘reflexão’, uma vez que nos colocamos em movimento junto dos demais atores da rede investigada, o que produz desvios como na difração.

[iv] Faz referência a ‘ator’ da expressão ‘ator-rede’, porém em Latour (2001) consta indicação de que ‘ator’ tem sentido restrito a humanos, sendo mais adequado ‘actante’.

[v] Contemplando na Base Nacional Comum Curricular em sua habilidade EF89EF05, que consiste em “identificar as transformações históricas do fenômeno esportivo e discutir alguns de seus problemas (doping, corrupção, violência etc.) e a forma como as mídias os apresentam” (Brasil, 2018, p. 236).