Políticas da imagem: contexto digital e educação

 

Image policies: context and education

 

Políticas de imagen: contexto digital y la educación

 

 

 

Salete de Fátima Noro Cordeirohttps://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/download/71504/63428/405192

Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil.

salete.noro@ufba.br

 

Recebido em 04 de outubro de 2023

Aprovado em 14 de novembro de 2023

Publicado em 03 de Julho de 2024

 

Giselle Beiguelman (1962), professora livre-docente da FAU-USP, com formação em História, tem destaque nacional e internacional no desenvolvimento de pesquisas e elaboração de conteúdos no campo das mídias digitais, comunicação e cultura. Atua como artista, sendo responsável por várias produções entre elas intervenções no espaço urbano e projetos em rede. Em 2021, publicou Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera, pela editora UBU. O livro é formado pela organização de seis ensaios inéditos, que trazem para o centro do debate as políticas da imagem no contexto contemporâneo. Para a autora “as imagens tornam-se as principais interfaces de mediação do cotidiano” (p.18), por esse motivo apresenta uma rede de enlaces entre o objeto principal da discussão, nossos comportamentos mais habituais ou práticas sociais mais amplas, que evidenciam as imagens como campo de disputas políticas, onde estão em jogo diversos interesses de poder envolvendo as tecnologias, o mercado, o ativismo, a comunicação e a educação. A discussão crítica e vigorosa é campo fértil para nos inspirar e refletir sobre a educação no momento contemporâneo. Assim, cada início de capítulo temos um QR Code que oferece um conjunto de imagens artísticas relacionados à temática. O acesso a essas imagens através do código digital possibilita ao leitor aprofundar a experiência sensorial através de outros espaços da web. Ao todo são sete códigos, um para cada capítulo e outro na contracapa fazendo apresentação da obra e mostrando biografia e foto da própria autora.

O primeiro capítulo - Olhar além dos olhos – chama atenção para um cambiamento paradigmático tanto nas maneiras pelas quais são produzidas as imagens quanto no modo como as percebemos. Se o período industrial é caracterizado pela sociedade disciplinar - corpos dóceis - onde o olhar desprende-se do corpo, do tato e é arrancado do espaço percebido e reorganizado para atender a demandas de informação, consumo e trabalho, na contemporaneidade existe uma reconfiguração do olhar que envolve “o que olhamos e o que é visto” (p.19), e que vai determinar o que a autora chama de “olhares dóceis”. Explica que través de processos de produção de imagens controlados do início ao fim por algoritmos, nosso olhar já frágil em termos de experiências, passa a ser cada vez mais domesticado pela inteligência artificial. Por outro lado, indica que os movimentos de resistência podem ser fortalecidos, e um exemplo é o da produção de imagens através do ativismo artístico. Nesse sentido a educação é elemento fundamental na formação dos cidadãos e necessita urgentemente repensar suas práticas formativas, dando oportunidades a outras linguagens e desfragmentando seus currículos. É necessário pensar a imagem não apenas como consumo, mas oportunidade de experimentação, onde cada cidadão poderá fortalecer seu protagonismo, emancipação e o desenvolvimento do pensamento divergente.

No capítulo dois intitulado Dadosfera - umas das críticas mais veementes aponta para as questões que envolvem a eugenia e o racismo, que passam a ter dimensão algorítmica, uma vez que todo o aparato maquínico da datificação é construído a partir de opções teóricas e políticas dotadas de um pensamento normativo, à revelia de outras alternativas. A autora alerta para a absurda quantidade de dados que são capturados e tratados por máquinas, promovendo o que é chamado de profilagem, ou seja, a geração de uma acumulação fenomenal de informações pessoais dos usuários referente a qualquer tipo de interação exercida nas redes e seu poder discriminatório. A preocupação da autora não está apenas naquilo que a sociedade estabelece como padrões de normalidade, mas na maneira como os algoritmos “podem amplificar as tendências discriminatórias” (p.61). No campo da educação as plataformas privadas, que avançam em escala, principalmente durante o momento pandêmico, atuam com a mesma lógica de exploração de dados. Uma vez que é criada uma conta de e-mail, por exemplo, ela será a chave para acessar diversos outros sítios e redes sociais coletando dados e metadados. Essa prática além de fidelizar estudantes e suas famílias desde os primeiros anos escolares, pode ao longo do tempo e a partir do acúmulo de informações, modelar perfis e interferir diretamente na capacidade de crítica, autonomia e liberdade dos cidadãos.

No terceiro capítulo - A ágora distribuída – aqui a cidade é concebida como o espaço central no emaranhado de redes, artefatos, dispositivos e sistemas de vigilância. A autora anuncia que, nessa trama de redes e ruas, a polis continua sendo o espaço do homem como ser político, que vai adequar-se a esses dispositivos, artefatos e linguagens para contrapor-se ao que é dado, forjar suas lutas e embates nesses territórios híbridos, como bem exemplifica na série de obras que dialogam com esse capítulo, apresentadas através do QR Code. Destaca um ponto interessante, quando aponta que devemos migrar de uma concepção de cidadania digital focada nos aplicativos para as práticas de uma cidadania em rede, na qual as ações colaborativas ganham primazia, indo na contramão de gestões privadas e corporativas. Apesar de compreender que no Brasil a distribuição e acesso às tecnologias não se dá de maneira uniforme, existindo muitas lacunas em termos de políticas públicas de universalização e formação, chama atenção para o uso ainda restrito, mais voltado para comunicação em redes sociais e downloads. A questão central para a autora está mais em “potencializar o uso crítico e criativo da tecnologia” do que em dar “acesso à interatividade e a tecnologia em si” (p.94). Entretanto, acreditamos que esses dois aspectos são indissociáveis para a constituição de uma formação crítica e ativista dos cidadãos, o que incide em não desmerecer o direito ao acesso de qualidade à rede e dispositivos, uma vez que no Brasil persistem grandes desigualdades. Para atendermos a essa formação cidadã necessitamos de políticas públicas educacionais robustas, que incentivem o protagonismo dos estudantes na construção de soluções colaborativas e em rede.

No capítulo quatro, a autora aprofunda o debate relacionado à questão da discriminação e do preconceito algorítmico, agora pormenorizando como é constituída e passa a operar a - eugenia maquínica - título do texto. A autora traz diversos casos que mostram a discriminação em relação ao tratamento dos corpos femininos e masculinos, evidenciando “micropolítcas dos processos de seleção” (p.119) e “matizes ideológicos dos processos que envolvem a visão computacional” (p.120), inclusive da invisibilidade de outros corpos, criando exclusão social em um patamar sem precedentes. Beiguelman alerta que o algoritmo não é, por natureza, preconceituoso, “Mas porque o universo de dados que o construiu reflete a presença do racismo estrutural da indústria e da sociedade às quais pertence e o expandem em novas direções.” (p.125). Coloca como urgente o enfrentamento dessas questões, pois o racismo algorítmico tem dimensões políticas e humanas que precisam ser enfrentadas, com o risco de adentrarmos em agudas formas de exclusão. Entendemos que os algoritmos não são neutros, de tal maneira que o fortalecimento da democratização de uma educação de qualidade, que ofereça acesso às tecnologias como estruturante dos processo formativos, e oportunize a reflexão sobre as experiências vivenciais nas redes digitais poderá favorecer  crianças e jovens na construção de ideias divergentes e não homogeneizantes.

No capítulo cinco - Memória Botox - as obras de arte trazidas por Giselle Beiguelman colaboram para compreendermos como podemos trabalhar a imagem brincando com as perspectivas temporais e históricas e ainda usar apps para compor imagens do presente com traços e indícios do passado. Nisso as formas de produção da imagem passam a dizer sobre o significado da memória no tempo das redes. O sujeito social tende a ser apagado e com ele uma memória que não mais identifica as ranhuras e marcas do tempo. Dentro desse contexto a memória passa a ser permeada por ambiguidades: pode ser encarada como bem de consumo, respondendo a demandas de mercado, ou compor narrativas engajadas e críticas, tramitando, segundo Beiguelman, entre “um desafio intelectual e em uma commodity de consumo.” (p.144). Decorre daí sua preocupação com o estatuto da memória no contexto de cultura digital, uma vez que nunca fizemos tantos registros “[…] vivemos um estado de overdose documental, registrando compulsivamente nosso cotidiano.” (p.140). Entretanto, muitas vezes ficamos impossibilitados de resgatar essa memória em função da volatilidade apresentada pelos espaços de registro como as redes sociais, das timelines, dos feeds, e da nossa própria organização em relação a esses conteúdos. Provém dessas reflexões a necessidade do campo educacional estar cada vez mais conectado com o contexto da cultura digital, para além do pensamento instrumental o qual tem nos arrastado para a inércia, reproduzindo práticas desencantadas, descontextualizadas e reprodução de conteúdos enfadonhos. É necessário a aproximação com as experiências sociais que valorizem os saberes individuais e coletivos, as diversas culturas e tudo isso permeado com tecnologias estruturantes que colaborem para a reordenação de processos emancipatórios e democráticos.

Políticas do ponto br ao ponto net – é o título do capítulo seis no qual indica que com a pandemia gerada pelo SARS-CoV-2 é necessário o debate não só sobre o ecossistema planetário, mas também sobre a política, a economia e as questões que envolvem a produção e políticas da imagem. É necessário, diz a autora, politizar a discussão sobre dados, pois apesar do discurso construído por uma narrativa acolhedora e de um imaginário que fala de nuvens, os dados e toda a infraestrutura que formam essa rede neural consomem não apenas espaço físico, mas recursos naturais, energia, água, geram poluição e, portanto, afetam os ecossistemas. Giselle Beiguelman evidencia que o período pandêmico foi acompanhado e registrado por diversos artistas, resultando em trabalhos que envolvem o ativismo, no qual imagem, denúncia, estética e arte estão emaranhados. No decorrer do texto são trazidos outros elementos que nos sensibilizam para a necessidade de uma formação cidadã, atenta aos movimentos sociais, políticos, econômicos, culturais e científicos. Nesse sentido a educação conectada com seu tempo e seus desafios torna-se indispensável para nos afastar de investidas mercadológicas colonizadoras, que nos concebem como produtos, e nos relegam o posto de meros consumidores de cultura, tecnologias e conhecimentos.

Com a apresentação de ideias a partir de um repertório instigante que envolve temas da atualidade e o entrelaçamento com uma produção intensa no campo da arte, Giselle Bieguelman faz do cotidiano um espaço de reflexão potente. Sua escrita abre diversos olhares para pensarmos os espaços educativos, a formação de professores, crianças e jovens. Leitura imprescindível para pensarmos a educação em suas múltiplas linguagens e aspectos que favoreçam a emancipação dos sujeitos e sua cidadania. Por tratar de aspectos atuais e de tamanha relevância para praticarmos o cotidiano no contemporâneo, recomendo a leitura da obra Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera de Giselle Beiguelman, não somente para educadores e estudantes dos cursos de licenciaturas e formação de professores, mas para todos aqueles que têm o compromisso com a educação e lutam por um mundo melhor.

Referências:

BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: UBU Editora, 2021.

 

Desenho de rosto

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