Tensionando os jogos da escola: um relato sobre os processos de desesportivização da Educação Física

Tensioning school games: a report on the processes of sportization of Physical Education

Tensionando los juegos escolares: un informe sobre los procesos desesportización en la Educación Física

 

Cibele Kern Biehl

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

biehlcibele@gmail.com

Daniel Giordani Vasques

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

daniel.vasques@ufrgs.br

 

Recebido em 11 de maio de 2023

Aprovado em 30 de maio de 2023

Publicado em 26 de junho de 2024

 

RESUMO

Este estudo tratou das intencionalidades pedagógicas para as transformações de sentido e de currículo da Educação Física na escola, analisadas especificamente nos jogos esportivos da escola. Assim, a partir de um relato de experiência produzido no ‘chão da escola’, são descritas a proposta, seus tensionamentos e suas ressonâncias. Foram problematizadas a esportivização da escola e as incorporações de sentidos e comportamentos decorrentes desse processo. De forma mais específica, a naturalização das violências, a separação e hierarquia dos papéis de gênero, e a supervalorização da ‘vitória a qualquer custo’ foram elementos que geraram certo desconforto docente, e sobre os quais os docentes decidiram atuar. Foram construídos uma direção e um sentido para as transformações intencionadas na Educação Física escolar. Um modelo mais amadurecido dos jogos passa necessariamente por insistências e por recuos, mas foi possível entender que ele deve ser produzido na participação coletiva, democrática e mais horizontalizada entre corpo docente e discente.

Palavras-chave: Educação Física; Esportivização; Escola.

 

ABSTRACT

This study dealt with the pedagogical intentions for the transformations in the meaning and curriculum of Physical Education at school, specifically analyzed in school games. Thus, based on an experience report produced on the 'school floor', we describe the proposal, its tensions and resonances. We problematize the sportization of the school and the incorporations of meanings and behaviors resulting from this process. More specifically, the naturalization of violence, the separation and hierarchy of gender roles, and the overvaluation of 'victory at any cost' were elements that generated some teacher discomfort, and on which we decided to act. We build a direction and a sense for the transformations that we intend in Physical Education at school. A more mature model of games necessarily goes through insistence and setbacks, but we understand that it must be produced in the collective, democratic and more horizontal participation between teachers and students.

Keywords: Physical Education; Sportization; School.

 

RESUMEN

Este estudio abordólas intenciones pedagógicas para las transformaciones en el sentido y currículo de la Educación Física en la escuela, específicamente analizadas en los juegos escolares. Así, a partir de un relato de experiencia producidoenel 'piso de laescuela', describimos la propuesta, sus tensiones y resonancias. Problematizamos la deportivización de la escuela y las incorporaciones de significados y comportamientos resultantes de este proceso. Más concretamente, la naturalización de la violencia, la separación y jerarquización de los roles de género, y las obrevaloración de la 'victoria a toda costa' fueron elementos que generaron cierto mal estaren los docentes, y sobre los que decidimos actuar. Construimos una dirección y un sentido para las transformaciones que pretendemos en la Educación Física en la escuela. Un modelo de juego más maduro pasa necesariamente por la insistencia y los retrocesos, pero entendemos que debe producirse en la participación colectiva, democrática y más horizontal entre profesores y alumnos.

Palabras clave: Educación Física; Deportización; Escuela.

 

Introdução

Este texto trata de um processo de transformações da Educação Física em uma escola pública federal, fazendo incidir um feixe de luz sobre um dos elementos que compõem o currículo, a tradicional “Olimpíada” da escola, termo nativo que designa um evento esportivo que ocupa sete dias letivos de todas as turmas das séries finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, e que, no ano de 2022, foi organizada a sua 39ª edição.

A Olimpíada da escola vem sendo organizada, ao menos na última década, em cinco eventos, separados por etapa escolar, sendo que três desses são concomitantes durante essa semana (6º e 7º anos; 8º e 9º anos; e Ensino Médio)[1]. Tais eventos possuem suas especificidades e os/as professores/as atuam nos formatos e sentidos dos jogos de modo ligeiramente diverso, incluindo modalidades participativas e competitivas, misturando estudantes de diferentes gêneros ou não, controlando mais ou menos a organização das equipes. No entanto, além de a semântica do nome do evento pressupor sentidos esportivizados e competitivos, Souza et al. (2021, p. 305) constataram, ao estudar esses jogos em 2017, certo “modelo adulto/profissional” de competição nos formatos da Olimpíada a partir do 6º ano, sendo que essa característica adquiria mais ênfase a partir do 8º ano.

Nas últimas três ou quatro décadas, ao menos, o esporte foi sustentado em um lugar privilegiado no currículo dessa escola. Além de realizar uma competição anual entre turmas com práticas esportivas em formatos similares aos institucionalizadas – e nas quais atos de violência física e simbólica eram recorrentes e, em certa medida, naturalizados pela comunidade –, havia equipes esportivas que treinavam e competiam em campeonatos interescolares. As aulas de Educação Física do Ensino Médio, por sua vez, eram organizadas por ‘modalidades’ quase sempre esportivas, e, por vezes, os/as estudantes eram separados/as por gênero ou por habilidades; nessas aulas, ainda, os/as estudantes eram agrupados/as trimestralmente de acordo com os seus interesses/desejos/preferências e as possibilidades de oferta de práticas, e poderiam escolher qual esporte jogariam.

A intencionalidade pedagógica desse projeto de Educação Física no Ensino Médio se ancora no alcance de uma vida mais saudável (Lettnin, 2013), sendo, para isso, utilizadas estratégias de motivação para a aderência de alunos/as às práticas. Essa proposta foi sendo incorporada aos currículos do Ensino Médio a partir do início da década de 2010, porém ela foi se transformando ao longo da última década e se distanciou dos objetivos iniciais, quando da sua proposição.

Mais recentemente, uma série de condições confluíram e acabaram tensionando os lugares e sentidos da Educação Física e do esporte da escola: as mudanças no corpo docente; a diminuição da quantidade de professores/as temporários/as, os quais acabavam sendo responsabilizados pelos treinamentos das equipes esportivas; a alternância na gestão da instituição, que mudou a política de incentivo às equipes esportivas (Cardoso, 2022); as mudanças no perfil discente e o advento da pandemia e o fechamento físico da escola por quase dois anos.

A partir disso, os formatos, os sentidos e as práticas da Educação Física vêm se transformando. A edição das Olimpíadas - evento curricular da Educação Física e objeto deste estudo - de 2022 teve todos os jogos no formato ‘misto’, o que só ocorrera até então ocasionalmente no Ensino Fundamental. Em 2019 e 2022 houve inclusão de modalidades participativas no evento: ginástica, yoga, aventura, beachtennis e frisbee. Ao menos desde 2020 a composição dos conteúdos do Ensino Médio tenta abarcar outros elementos da cultura corporal para além do esporte, e as regras de escolha direcionam o/a estudante para uma certa diversificação de vivências de conteúdos ao longo dos três anos dessa etapa. Além disso, há comparativamente menos interesse dos/as professores/as e da gestão da instituição em retomar os treinamentos e as equipes esportivas.

Essa nova configuração em formação dos currículos da Educação Física é possibilitada pelas condições em confluência, mas também intencionada pedagogicamente pelo grupo de docentes. A proposta tem em vista aproximarmo-nos dos sentidos contemporâneos da Educação Física na escola; da diversidade da cultura corporal de movimento; dos sentidos de participação, cooperação e inclusão; da educação para as relações de gênero e para as relações étnico-raciais; da educação para a construção da cidadania, da democracia e de combate à violência e às desigualdades.

Nessa perspectiva, estamos tratando aqui de discutir, a partir do ‘chão da quadra’, os sentidos da Educação Física na escola, do currículo e dos lugares e formatos do esporte. Para tal, partimos das críticas ao modelo anterior, pautado nos usos, costumes e tradições, e em uma certa concepção de Educação Física que entende o modelo e os sentidos do esporte institucionalizado como direcionadores dos saberes escolares. Chamava a nossa atenção que os estudantes pudessem escolher uma modalidade esportiva e praticá-la ao longo de todo o Ensino Médio; que as aulas visassem principalmente à aquisição de habilidades técnico-motoras e táticas e que, por vezes, se confundissem com os treinamentos das equipes; que as aulas fossem, por vezes, divididas por gênero ou por habilidades; que as Olimpíadas tivessem um caráter acentuadamente competitivo e que atos de violência naquele evento fossem, em alguma medida, naturalizados por certos grupos docentes e discentes.

A partir dessas constatações, vimos a necessidade pedagógica de transformar as práticas num sentido e numa direção específicas, de forma a ‘desesportivizar’ o currículo e, com isso, incluir práticas e sentidos que possibilitassem novos entendimentos sobre a Educação Física, os formatos, a violência e as relações de gênero. De acordo com Ilha e Hypolito (2016), esportivizar é um processo constituído em dispositivos e regimes de enunciação que acaba por conceder a sobrevalência das práticas esportivas frente às outras. Desesportivizar, no nosso caso, tratou de uma proposta de tensionar, entre discursos e ações no jogo de forças, a hegemonia esportiva no currículo da Educação Física da escola.

Com base nisso, o nosso objeto de estudo versa sobre as intencionalidades pedagógicas para as transformações de sentido e de currículo da Educação Física na escola, analisadas especificamente nas Olimpíadas escolares de 2022 - evento no qual a desconstrução da generificação[2] das equipes e a diminuição das ações de violência foram elementos direcionadores das nossas ações - e com um olhar mais direcionado para o Ensino Médio. Essa etapa de ensino foi escolhida já que no seu currículo o esporte ocupava espaços quase hegemônicos, o que permitiu que os processos de transformação da Educação Física fossem mais visíveis. Desse modo, o objetivo foi relatar as intencionalidades, os tensionamentos e as ressonâncias de uma proposta pedagógica de transformação dos jogos denominados ‘Olimpíadas do Colégio’ no currículo de uma escola pública federal.


 

Revisão da literatura

Com a intenção de compreender como a temática ‘desesportivização’ tem sido abordada em produções voltadas para a área de conhecimento da Educação Física, realizamos um levantamento em busca desses trabalhos no endereço eletrônico do Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)[3]. Os termos utilizados para o levantamento foram: ‘desesportivização’, ‘esportivização da escola’, ‘esportivização da educação física’, ‘jogos esportivos escolares’, ‘olimpíadas escolares’. Foram descartados os artigos que apareciam repetidos e aqueles que não estavam relacionados à temática abordada no presente estudo. Restaram onze estudos diretamente relacionados com a temática, que serão apresentados a seguir.

Em seus estudos, Ilha e Hypolito (2016, 2017) analisaram as linhas de força do dispositivo da esportivização. Para a autoria, o esporte se constitui no saber que tem delineado as práticas curriculares da Educação Física, sobretudo esportes coletivos têm sido trabalhados com base em características do esporte de alto nível, evidenciando a ênfase na competição e a exclusão dos menos habilidosos. Ilha e Hypolito (2016, 2017) destacam que o termo esportivização se traduz pela identificação de certas modalidades esportivas nas aulas de Educação Física escolar que são privilegiadas em comparação com outras, aproximando-se dos moldes do esporte de rendimento.

Além dos estudos supracitados, também encontramos artigos que se referem à análise de eventos esportivos específicos. Dantas Junior (2009) investigou como os Jogos da Primavera em Sergipe (realizados entre 1964 e 1995) tornaram-se o epicentro da esportivização da escola. O autor aponta que, ao longo do século XX, o esporte foi apropriado como um saber a ser escolarizado na esfera dos projetos educacionais modernos, porém o projeto de “escolarização do esporte” transformou-se em projeto de “esportivização da escola”. Para Dantas Junior (2009), no Brasil esse processo apresentou peculiaridades regionais que, especificamente em Sergipe, foram materializadas nos Jogos da Primavera. O autor compreende os referidos Jogos “como um dos ícones da ‘esportivização’ da escola em Sergipe, buscando suas dimensões, representações e contradições” (Dantas Junior, 2009, p. 121) e apontando a submissão da rede escolar aos princípios espetaculares.

Souza et al. (2021) analisaram modelo de competição adotado pela Olimpíada do Colégio de Aplicação (OCA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, evento esportivo que acontece há, aproximadamente, 40 anos. A autoria constatou que o referido evento apresenta elementos que o aproximam de um modelo adulto/profissional de competição. Para Souza et al. (2021), a competição esportiva pode interferir de maneira positiva ou negativa na formação dos/as estudantes no âmbito escolar, sendo necessário refletir sobre os modelos adotados pelas instituições de ensino. A autoria aponta a necessidade de problematização dos objetivos da OCA por professores(as) e estudantes, a fim de adequá-los ao modelo de competição escolar, enfatizando “aspectos pedagógicos da competição, viabilizando uma maior participação dos(as) alunos(as) e atenuando a ênfase no rendimento esportivo” (Souza et al., 2021, p. 305).

Oliveira, Silva e Wanderley (2013) enfocaram a Olimpíada Escolar do Colégio de Aplicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (CAp-UERJ) que completou 40 anos de existência em 2012. Por meio de entrevistas com personagens que protagonizaram o referido evento ao longo dos anos, buscaram retratar momentos do processo e da prática pedagógica e socializante que envolve a Olimpíada Escolar do CAp-UERJ e que faz parte da história da instituição. Além da obtenção de relatos das experiências ocorridas nesse período de Olimpíadas, as entrevistas também visaram prestar uma homenagem à equipe de Educação Física do CAp-UERJ.

Frizzo (2013) analisou os mecanismos de manutenção e eliminação presentes nos Jogos Escolares da rede municipal de ensino de Nova Santa Rita, especialmente nas séries finais do Ensino Fundamental da educação básica, evidenciando a lógica esportiva na escola integrada ao projeto formativo escolar da atualidade. Para o autor, essa integração entre o sistema esportivo e o projeto educativo da escola produz ranqueamento, comparação e concorrência entre escolas e alunado, disputas em que poucos se sobressaem e nas quais se propõe uma formação com base na competitividade.

Eller et al. (2015) analisaram a Olimpíada Escolar no Estado do Espírito Santo entre 1946 e 1954, buscando compreender a sua relação com o processo de esportivização da Educação Física. Para a autoria, as Olimpíadas Escolares se constituíam em um relevante evento para o governo e para a sociedade capixaba, que visava envolver os/as estudantes do ensino secundário em um projeto nacional, educativo e civilizatório, coordenado pelo Serviço de Educação Física (SEF). De acordo com Eller et al. (2015), o SEF procurou controlar os sentidos do esporte dentro e fora das escolas, disseminando o ideário olímpico, determinando quem deveria participar do evento, “fazendo com que todas as escolas buscassem se adequar a esse projeto de esportivização, mesmo que nem todas tivessem condições, ou interesse, em fazer parte desse ideário competitivo” (Eller et al., 2015, p. 398).

Costa (2015) analisa criticamente parte da produção teórica sobre o esporte no contexto escolar e a principal política pública do esporte escolar no Brasil – as Olimpíadas Escolares. O autor expõe as tensões entre o esporte escolar e o esporte de rendimento e aponta a mera reprodução das competições esportivas tradicionais espetacularizadas pela mídia, perpetuando uma estrutura que “não acompanha as concepções pedagógicas mais progressistas na área da educação física e do esporte'' (p.14). Costa (2015) propõe que a ideia do rendimento não seja o caminho único do esporte escolar, mas sim a perspectiva de fazer a pessoa continuar no esporte a partir de uma perspectiva de lazer, de cooperação e solidariedade.

De maneira mais ampla, Vargas (2012) buscou refletir sobre o contexto   olímpico esportivo, considerando a hierarquização institucional esportiva em relação à escolar. Apoiado na observação da cobertura televisiva dos Jogos Olímpicos de Londres, o autor destaca que os resultados esportivos geram influências muito questionáveis no campo educacional. Para o autor, a Escola e a Educação Física escolar precisam proporcionar ao alunado uma formação crítica fundamentada no conhecimento e não uma formação de atletas por meio do esporte.

A revisão de literatura realizada apontou ainda dois estudos enfocando relações de gênero e práticas esportivas escolares. Chan-Vianna, Moura e Mourão (2010) buscaram analisar as argumentações que sustentam a afirmação de discriminação das meninas nas aulas de educação física, na produção das pesquisas dos programas stricto sensu em Educação Física do Banco de Teses da CAPES. As pesquisas foram analisadas a partir das seguintes categorias: as propostas das pesquisas; a discriminação e as aulas de educação física; a esportivização e o sexismo; o conceito de sexismo. Chan-Vianna, Moura e Mourão (2010), apontam que as pesquisas denunciam o sistema escolar por reforçar o sexismo, mas chama a atenção que a autoria pontua que gênero não é o único fator de inclusão e exclusão, questionando os achados das pesquisas analisadas.

Já Silva et al. (2019) objetivaram identificar as formas de manifestações das relações de gênero de escolares a partir da prática da Educação Física. Para tanto, destacam que as aulas de Educação Física escolar precisam ser planejadas e ministradas a fim de proporcionar a integração e a interação entre meninos e meninas, “estimulando o desafio social e pessoal do convívio com bases na equidade de gênero” (p. 1113). A autoria aponta ainda que o/a docente pode estimular “a cooperação ao mesmo tempo em que trabalha diversas situações de competição entre os/as alunos/as perante a proposta de uma aula/atividade mista (jogo de equipe)”. Para Silva et al. (2019, p. 1113), a demanda do/a docente abarca desde o planejamento até a “condução das atividades que irão estimular e garantir as relações de gênero de forma igualitária”.

A partir de diferentes olhares, os estudos encontrados na presente revisão de literatura buscam problematizar o modelo esportivo escolar vigente, apoiado no esporte de rendimento; questionam a hegemonia do esporte nas aulas de Educação Física; a formação com base na competitividade; as  relações  de gênero  de  escolares  a  partir  da  prática  da  Educação  Física; a exclusão dos/as menos habilidosos/as. Alguns estudos apontam, ainda, para um necessário rompimento entre o esporte trabalhado no contexto escolar e o modelo esportivo espetacularizado pela mídia e reproduzido pela sociedade.

É importante destacar que o levantamento realizado não cobre tudo o que foi produzido sobre a temática abordada, somente abarca estudos encontrados na base de dados pesquisada a partir do uso de termos específicos, mas proporciona uma privilegiada aproximação ao objeto de investigação do presente estudo, qual seja, a “desesportivização” da escola.

 

Metodologia

Essa pesquisa se caracterizou como um relato de experiência, que tem como sentido descrever, analisar e pôr em debate uma prática que emerge do campo empírico e com amplo debate no universo acadêmico, no caso em tela, as intencionalidades pedagógicas para a transformação dos currículos e dos sentidos da Educação Física em uma escola pública.

Ao mesmo tempo, essa pesquisa se aproxima de uma pesquisa-ação (Betti, 2009; Tripp, 2005), no sentido que ela tem como intenção a construção de conhecimentos para aperfeiçoar a prática pedagógica. Os/as pesquisadores/as são professores/as da escola e, a partir da leitura crítica da realidade na qual estavam inseridos/as, intencionaram transformar os formatos e sentidos da Educação Física, não apenas das suas aulas, mas dos espaços nos quais estavam inseridos, quais sejam, as ‘aulas por modalidades’ do Ensino Médio e as Olimpíadas da escola.

Os dados foram produzidos, portanto, a partir da própria imersão dos/as pesquisadores/as no campo, de forma a estranhar aquilo que lhes foi proposto e apresentado como as formas tradicionais, usuais e costumeiras de atuação docente. Esse processo de inquietação e de não naturalização demandou encontros, diálogos, tensionamentos, articulações e proposições entre professores/as e com estudantes, e só foi possível imaginar certas transformações por conta de mudanças ocorridas no corpo docente nos últimos anos, sendo que os dois autores deste texto, ingressaram há, relativamente, pouco tempo na escola.

Cabe destacar que as propostas de mudanças na Educação Física escolar só tomam forma, por sua vez, naquele contexto se aprovadas pelo grupo composto por oito professores/as efetivos/as. No entanto, trataremos aqui dessas transformações a partir dos nossos olhares, observações e entendimentos, em consonância com a característica de um relato de experiência e com a assunção da influência das concepções dos/as pesquisadores/as sobre o objeto.

Os dados dessa pesquisa foram produzidos, em função especialmente do advento das Olimpíadas da escola, a partir das imersões diárias dos dois professores na escola, além de conversas em aula, em corredores, em reuniões e em outros espaços escolares com estudantes, docentes e gestores da escola. As observações, conversas e ações se deram a partir de debates e da construção de estratégias para atingir os seus objetivos pedagógicos, em consonância com certa compreensão da Educação Física escolar que considera a hegemonia do esporte, a generificação das práticas e a naturalização das violências como elementos que traziam angústias aos nossos cotidianos docentes.

Apesar de os jogos da escola serem objeto reiterado de conversas com alunos/as e colegas professores/as ao longo do ano letivo, consideramos que os dados dessa pesquisa foram produzidos sobretudo no período de agosto a outubro de 2022, ou seja, da decisão da escola em fazer o evento até a sua realização. Durante esse período atuamos pedagogicamente todos os dias em função dos jogos, em conversas com colegas, estudantes e gestores, que, para nós, tinham o sentido de firmar acordos - argumentando, convencendo, concedendo, combinando - quanto aos formatos do evento, de modo a estabelecer um ‘bom limite’, no sentido de atender aos nossos anseios de transformação e de torná-lo possível, com certa harmonia dos colegas, gestores e estudantes.

Essa pesquisa seguiu parâmetros de integridade da pesquisa científica (Ufrgs, 2020), sendo que a instituição e os/as participantes foram anonimizados/as. Além disso, como se trata de uma “pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito” (Brasil, 2016, n.p), ela está dispensada de apreciação ética pelo sistema CEP/CONEP.

Nesse processo de produção empírica, decidimos construir uma narrativa a partir de três pontos de análise, que estão apresentados a seguir. Esses pontos incluem as intencionalidades pedagógicas e a implementação de uma nova proposta de Olimpíadas na escola; os tensionamentos dos/as estudantes frente à proposta de transformação dos formatos e sentidos, e os caminhos docentes de atuação frente às problemáticas; e as ressonâncias dessa proposta.

 

Intencionalidades, tensionamentos e ressonâncias

As Olimpíadas são parte das tradições, usos e costumes da escola, como dito, há cerca de 40 anos. Na última década, ao menos, os cotidianos das aulas se transfiguravam durante uma semana para o formato de jogos, o que costuma estar previsto no calendário escolar desde o ano anterior. De todo modo, em 2020 e 2021 os jogos não foram realizados por conta da pandemia de coronavírus e pela emergência do ensino remoto. Em 2022, apesar do retorno à presencialidade na escola, diversos cuidados ainda eram tomados: o uso de máscaras era obrigatório, os horários de aula e intervalo foram modificados, as reuniões docentes ocorriam online e era previsto o afastamento da turma da escola por uma semana no caso de certa quantidade de casos positivos, entre outras medidas.

Os jogos estavam previstos para outubro, porém, até dois meses antes não se tinha certeza da sua realização, especialmente porque os protocolos de segurança frente à Covid-19 seriam dificilmente respeitados e controlados, tendo em vista as características do evento, que propunha a prática de esportes com o agrupamento de muitas pessoas. A decisão de fazer o evento foi tomada pela direção e pelos órgãos superiores da instituição em setembro, um mês antes dos jogos, e se deu de modo concomitante com o afrouxamento dos protocolos de controle do vírus, flexibilizando o uso de máscaras em ambientes abertos. Cabe destacar que a ampla maioria das escolas de ensino básico já havia, nesse período, permitido que os/as alunos/as não usassem máscaras.

Uma preocupação do corpo docente de Educação Física, responsável pela organização do evento, era ficar incumbido de, além de organizar os jogos, fiscalizar os usos (e não usos) da máscara pelos/as estudantes. Assim, pressionou a gestão e o corpo docente para se posicionarem sobre a realização dos jogos e para auxiliar no cumprimento e na fiscalização dos protocolos sanitários. A decisão da escola se deu pela manutenção do evento e pela mudança nos protocolos.

As conversas entre os/as professores/as de Educação Física sobre os jogos iniciaram, porém, muito antes disso. Que Olimpíadas queríamos? Quais ‘modalidades’/práticas corporais? Em que formatos? Tendo em vista os costumes da escola e certo habitus esportivo incorporado na comunidade, tateávamos também os limites de transformação. Que mudanças eram possíveis? Como os/as alunos/as reagiriam a tais modificações? Entendemos, naquele momento, que os jogos de 2022 tinham peculiaridades que concediam uma margem de manobra maior para ações de modificação. 

A primeira delas é que os/as estudantes que estavam agora no 1º e 2º ano do Ensino Médio tinham participado dos jogos somente no 8º e 9º anos, ou seja, não haviam jogado no Ensino Médio, cujo currículo apresenta um modelo ‘mais esportivista’. Ainda, havia estudantes que ingressaram na escola nos três últimos anos (2020, 2021 ou 2022) e, portanto, nunca haviam jogado.

Outro argumento é que os quase dois anos de ensino remoto, sem vivências corporais na escola e sem treinamentos esportivos, possivelmente teriam afastado os/as alunos/as do universo do esporte, tanto das práticas corporais quanto do desejo de jogá-las, incidindo em uma espécie de diminuição do habitus esportivo dos/as estudantes, especialmente daqueles/as acostumados/as com os currículos da Educação Física no período anterior à pandemia, mais afeito ao esporte e aos treinamentos.

Por último, o pouco tempo remanescente para a organização do evento e a manutenção dos protocolos sanitários (em ambientes fechados ainda era necessário o uso de máscara) eram argumentos legítimos para diminuir a quantidade de eventos, modalidades esportivas e jogos, o que permitia mudanças nos formatos.

Sabedores/as de que as reclamações os/as alunos/as ‘esportistas’ e mais antigos/as da escola seriam mais brandas e também de que tínhamos argumentos para mudar o evento, resolvemos, enquanto grupo de professores/as de Educação Física, propor formatos diferentes - dentro do que entendemos serem os limites razoáveis tendo em vista a variedade de interesses e possibilidades de atuação docentes e discentes - para os jogos de 2022. Em conversas ‘de corredor’ e em reuniões formais, em diálogos em pequenos e no grande grupo, elencamos, nós docentes, argumentos pedagógicos e acadêmicos, políticos e científicos, ideológicos e pragmáticos; os quais foram atravessados pela diversidade de concepções de mundo, de escola, de Educação Física e de esporte dos/as oito professores/as. Dessa forma, a proposta é um resultado de negociações e acordos interessados e viáveis naquela configuração social em que estávamos inseridos, e o que relatamos aqui é, novamente, o nosso olhar para esse objeto, assumindo que outros olhares sobre ele são possíveis.

A proposta tinha como objetivo certa transformação possível dos sentidos da Educação Física, especialmente do Ensino Médio, entendendo a diversidade de práticas da cultura corporal de movimento, a participação de todos/as os/as estudantes e não somente aqueles/as com mais habilidade/experiência esportiva, a cooperação e a inclusão, a problematização da generificação por ‘naipes esportivos’ e a diminuição das violências físicas, verbais e simbólicas.

Os esportes não foram excluídos dos jogos, mas criou-se certa equidade entre as modalidades ‘de competição’ (basquete, futebol, queimada, tênis de mesa, vôlei e xadrez) e as ‘de participação’ (aventura, beachtennis, dança, frisbee, ginástica e yoga) nos jogos, tanto no que se refere à quantidade de práticas corporais ofertadas/jogadas quanto na pontuação que cada uma delas possibilitava na somatória final da turma. Assim, ganhar a competição de basquete somava a mesma quantidade de pontos que participar da aula de yoga com cinco alunos/as da turma, por exemplo. Apesar de haver certo sentido de esportivização na lógica de pontuar, de haver uma turma campeã e de fixar regras para um jogo (no caso da queimada), houve comparativamente aos eventos anteriores mudanças que resultaram em uma diversidade de práticas corporais e uma intencionalidade de valorizar práticas não competitivas.

Porém, a mudança mais impactante parece ter sido a não separação dos/as estudantes por gênero durante toda a Olimpíada. Todas as modalidades foram ‘mistas’, o que nunca ocorrera antes nos jogos do Ensino Médio. Em 2019 houve uma modalidade de ‘futsal misto’ para os/as alunos/as de 8º e 9º anos, além da ‘masculina’ e da ‘feminina’; os 6º e 7º anos têm já há alguns anos algumas modalidades ‘mistas’, porém até então não ocorria em todas. Em 2022 todos os jogos, práticas e modalidades foram vivenciados de forma ‘mista’. Em algumas delas, inserimos regras que obrigavam a ter ‘em quadra’ ao mesmo tempo uma quantidade mínima de jogadores/as de um mesmo gênero: por exemplo, no vôlei precisava ter três estudantes de cada gênero; no futsal e no basquete, dois, etc.

Temíamos que a inexistência dessa norma excluísse as meninas dos jogos esportivos. Ao mesmo tempo, nos inquietávamos em determinar esse binarismo de gênero para jogar. Ainda, nos preocupávamos com a exclusão das meninas dentro das quadras de jogo, e nos pareceu urgente problematizar isso com os estudantes e criar espaços de empoderamento para jogar juntas(os). As aulas de Educação Física em 2022 não eram mais separadas por gênero - como ocorria até meados da década anterior, não institucionalmente, mas pelas práticas pedagógicas - e as equipes esportivas generificadas não faziam mais parte da escola desde 2019, ou seja, todo o currículo da Educação Física era constituído de atividades que previam a participação conjunta de todos/as estudantes. Não fazia sentido, para nós, que nas Olimpíadas houvesse tal separação. De todo modo, apesar da persistência de certas angústias docentes, tal modificação estrutural nos jogos nos parecia uma mudança em uma direção problematizadora dos sentidos da escola, da Educação Física e dos esportes, que se aproximava das concepções contemporâneas de educação e de sociedade que visam a desconstruir estereótipos de gênero associados ao esporte.

A diminuição da violência foi outro elemento de importantes considerações nessa transformação. Não eram raros nos corredores da escola relatos que em eventos anteriores havia socos, ‘voadoras’, braços quebrados, xingamentos e ameaças presenciais e em redes sociais, além da presença ocasional na escola de facas e canivetes. Esses discursos - principalmente discentes, mas também docentes - eram por vezes naturalizados em expressões como: “faz parte da Olimpíada”, “é normal”, “esporte é assim mesmo”, “é porque todo mundo quer ganhar”, “isso vem de rixas antigas”, entre outras que mostram uma incorporação de violências no cotidiano da escola, e que ocorriam especialmente durante as ‘Olimpíadas’. Entendíamos que, ao mesmo tempo que não mais realizar o evento diminuiria essas violências e nos isentaria, docentes da área, de atuar nessas questões, uma semana dedicada às práticas corporais é um lugar potencialmente valioso no currículo da Educação Física. Assim, percebíamos que as transformações viriam, ao menos nesse momento, a partir de mudanças internas no evento. No entanto, quais transformações poderiam atenuar as violências? Que mudanças eram possíveis?

Os regulamentos anteriores das Olimpíadas dispunham de uma ‘comissão disciplinar’, formatada nos moldes dos regulamentos das instituições esportivas, que recebia denúncias e punia ‘esportivamente’ os/as ‘atletas’ e/ou as ‘equipes’, excluindo-os/as do jogo, da modalidade ou da competição, ou, ainda, mudando os resultados ou cancelando a partida. Tal dispositivo se manteve, apesar das críticas que alguns/algumas de nós endereçaram a esse modo ‘esportivista’ de lidar com comportamentos dos/as estudantes dentro da escola, a qual tem suas próprias normas de atuação frente aos comportamentos dos/as estudantes.

A organização da arbitragem, a substituição da modalidade de handebol por queimada, a escolha dos horários e dias de alguns jogos e modalidades, a presença próxima aos jogos de docentes da escola - para intervenção, se necessária -, além da própria decisão de ter jogos não separados por gênero foram elementos pensados para evitar/diminuir/conter episódios de violência. Além disso, a entrada dos/as professores/as de Educação Física nas salas de aula das turmas do Ensino Médio, que será relatada adiante, foi um elemento importante para problematizar as violências junto aos estudantes.

Considerando essas questões e intencionalidades pedagógicas, construímos um regulamento e uma ficha para que cada turma pudesse se inscrever nas diferentes modalidades da ‘Olimpíada’. Assim, cerca de duas semanas antes do evento, os documentos foram entregues às turmas. Porém, as discussões entre os/as professores/as, os/as estudantes e as turmas de Ensino Médio sobre os ‘novos’ formatos e intencionalidades já estavam acontecendo há algumas semanas. Os/as alunos/as já sabiam, por exemplo, que os jogos não seriam generificados e que haveria menos modalidades que nas edições anteriores. Durante esse período os tensionamentos foram cotidianos.

Diversos tensionamentos estiveram presentes durante os jogos da escola, principalmente no período que antecedeu ao evento. A dúvida sobre a realização ou não dos jogos, que permeou frequentemente os questionamentos de estudantes, foi um desses tensionamentos. A demora em “bater o martelo” sobre a realização do evento, em função da necessidade de flexibilização dos protocolos para Covid-19, gerou ansiedade entre os/as alunos/as.

O fato de os jogos não serem generificados produziu reclamações de estudantes do Ensino Médio, que passaram a tentar convencer outros discentes a se posicionarem contra os jogos mistos. Por exemplo, em alguns momentos havia alunos do Ensino Médio nos corredores da escola interceptando estudantes dos sétimos anos do Ensino Fundamental para esse fim. É importante destacar que os alunos que faziam o papel de convencer os/as demais, eram justamente aqueles que se consideravam os ‘atletas’, os ‘mais habilidosos’. Esse ‘convencimento de corredor’ levou muitos/as alunos/as do Ensino Médio a referendar um abaixo assinado que expressava o desacordo com os jogos mistos, o qual foi encaminhado para a direção da escola. Porém, quando indagados/as sobre o assunto, muitos/as estudantes relataram que assinaram uma folha em branco, sem saber realmente o conteúdo do abaixo assinado.

Além disso, o grupo de docentes da área da Educação Física passou a ser agredido verbalmente nos corredores da escola pela opção dos jogos mistos e a receber promessas de que as ‘alunas seriam lesionadas’ nos jogos. Foi um período muito tenso para o grupo de docentes. No intuito de dialogar com os/as estudantes sobre o que estava ocorrendo, organizamos momentos de debate com as turmas do Ensino Médio, enfocando a temática da violência e a não generificação nos jogos. Alunos/as e professores/as pontuaram seus argumentos e seu entendimento sobre o sentido de ‘jogar’ e não de somente ‘ganhar o jogo’, sobre a necessidade do ‘jogo limpo’ (fair play) e sobre a não naturalização da violência. Os/as estudantes foram orientados/as a denunciar ameaças que recebessem de colegas na própria escola e nas redes sociais. Durante o diálogo com os/as estudantes, ficou claro o pouco espaço que as meninas encontravam para se colocar como protagonistas nas escolhas dos times, o que evidenciou a necessidade de um trabalho direcionado às relações de gênero, ponto que parece ter ficado muito defasado durante o período da pandemia.

Nessas vésperas de Olimpíadas aprendemos bastante sobre as relações desiguais de poder entre meninos e meninas nas discussões, observações e práticas do ‘chão da quadra’. Muito brevemente, entendemos que a relação de gênero desigual e estrutural se reproduz na escola, apesar de os tensionamentos serem crescentes. Há espaço para atuação contrária, apesar de pequeno. Assim, ao mesmo tempo que estranhávamos estudantes dizendo que alguns espaços são ‘de meninas’ e outros ‘de meninos’, entendíamos que a reprodução das desigualdades de gênero na escola era amplamente marcada pelos usos, costumes e tradições do currículo esportivo da escola. Ainda, cabe destacar que as conversas em sala foram também espaços de empoderamento feminino em relação ao esporte, além de incentivarem questionamentos, como, por exemplo: “Porque os meninos estão montando as equipes e não as meninas?”; “Porque eles estão definindo as posições de jogo?”.

Nos demos conta de que, por vezes, o argumento discente contra os jogos mistos misturava um conformismo em relação às desigualdades de gênero com a naturalização das violências dos jogos. Algumas meninas e meninos diziam que, ao jogarem juntos, “os meninos poderiam machucar as meninas”. A preocupação excessiva com ‘machucar-se’, com as brutalidades e agressividades, era um traço de uma naturalização da violência daqueles jogos. Entendíamos tal preocupação e também nos preocupávamos, mas sabíamos da importância de desconstruir a violência e a agressividade como elementos característicos daqueles jogos; assim, a nossa intencionalidade junto aos estudantes se deu num sentido de desnaturalizar as violências e estrategicamente atuamos junto à arbitragem para punir rigorosamente lances que visavam ou que poderiam machucar o/a adversário/a. Na realidade, não observamos nenhum lance em que isso ocorreu. A violência estava associada a um medo em relação à violência que já era esperada e que não era questionada. Em vista das concepções contemporâneas de escola e de Educação Física, exigem ser desconstruídos.

Esses momentos em sala de aula antes dos jogos foram muito importantes pois possibilitaram escutar, problematizar e reconstruir as concepções e expectativas dos estudantes sobre os jogos. A desnaturalização das violências, a desconstrução da ‘vitória a qualquer custo’ e a ‘desgenerificação’ da competição são discussões que demandam conversas, debates, argumentações, exposições e contraposições que parecem ser mais possíveis em espaços construídos para isso, como a sala de aula. Nos demos conta, nesses momentos, que as transformações de sentido e de práticas da Educação Física demandam espaços de construção participativa e horizontalizada, como esses debates em sala de aula.

 Diante do que esperávamos em relação à violência, é possível afirmar que os jogos aconteceram com relativa tranquilidade. As atividades e jogos participativos (aventura, beachtennis, dança, frisbee, ginástica e yoga) transcorreram de forma pacífica e organizada, contando com o envolvimento de estudantes de todas as turmas/equipes. Porém, no início dos jogos competitivos houve um momento em que foi preciso intervir de forma mais pontual; durante um jogo de queimada, uma turma/equipe começou a agredir verbalmente, e de forma incisiva, a equipe oponente. Então, entendendo que os jogos que acontecem na escola são também espaços pedagógicos, interrompemos a partida, retiramos a equipe agressora da quadra e realizamos um diálogo sobre violência verbal e respeito, que culminou em combinações para que o jogo pudesse prosseguir. Acreditamos que essa intervenção pontual, realizada no início das competições, fez muita diferença para que a semana de jogos transcorresse sem grandes sobressaltos. Os confrontos do futebol, sobre o qual tínhamos receio em relação a possíveis manifestações agressivas, também ocorreram de forma organizada e pacífica.

Em relação à não generificação dos jogos competitivos, foi possível observar que, em algumas equipes/turmas, as meninas recebiam poucos passes durante as partidas, pois muitos meninos não passavam a bola para as meninas da sua própria equipe, inviabilizando a atuação delas durante o jogo. Esse fato reforçou a nossa percepção sobre a relação desigual de gênero, que invisibiliza e exclui as meninas dos esportes, que estava ocorrendo em algumas turmas do Ensino Médio. Ficou visível o papel desafiador que precisamos desempenhar como docentes de Educação Física e a urgência de um projeto que envolva efetivamente o trabalho pedagógico direcionado às relações de gênero.

Após o final da ‘Olimpíada’ da escola, realizamos uma avaliação do evento junto aos/às estudantes do Ensino Médio. Para nossa surpresa, os jogos participativos foram bem avaliados, os/as alunos/as demonstraram interesse em incluir maior número de atividades de caráter participativo na próxima edição dos jogos escolares. Já a não generificação dos jogos competitivos sofreu novamente algumas críticas; algumas meninas relataram que foram invisibilizadas pelos meninos durante os jogos e que se sentiram excluídas em algumas modalidades, principalmente no futebol e no basquetebol.

Diante do que foi exposto no momento de avaliação, realizamos diversas combinações com os/as estudantes, que envolveram principalmente a possibilidade de participação dos/as mesmos/as no planejamento, organização e execução dos jogos da escola em 2023. A intenção é realizar o planejamento do evento em conjunto com os/as estudantes e com bastante antecedência à data de concretização do mesmo.

 

Considerações finais

Este trabalho tratou das intencionalidades pedagógicas para as transformações de sentido e de currículo da Educação Física na escola, analisadas especificamente nas Olimpíadas escolares. Assim, a partir de um relato de experiência com traços de pesquisa-ação produzida no ‘chão dos jogos da escola’, descrevemos a proposta, seus tensionamentos e ressonâncias. Problematizamos a esportivização da escola e as incorporações de sentidos e comportamentos decorrentes desse processo. De forma mais específica, a naturalização das violências, a separação e hierarquia dos papéis de gênero, e a supervalorização da ‘vitória a qualquer custo’ foram elementos que nos incomodavam enquanto docentes, e que decidimos atuar para transformar.

A proposta, ao mesmo tempo que revela intencionalidades compatíveis com valores e interesses de uma Educação e de uma Educação Física contemporânea e crítica às desigualdades e violências, mostra limitações de atuação a curto prazo, aqui justificadas pela incorporação de grupos discentes de um habitus esportivo, pela não separação entre treino e aula e pela dependência de referências midiáticas como modelo esportivo. Além disso, o pouco tempo de preparo para o evento, a relativa pouca participação discente na construção do modelo de jogos, e as tradições, usos e costumes em relação ao modelo esportivizado dos jogos são elementos a serem considerados nos processos de transformação dos currículos ‘esportivos’ das escolas.

Construímos aqui uma direção e um sentido para as transformações que intencionamos na Educação Física escolar. A curto prazo parece já ter produzido alguns efeitos, porém algumas desigualdades permaneceram ou se fortaleceram. Um modelo mais amadurecido dos jogos passa necessariamente por insistências e por recuos, mas entendemos que ele deve ser produzido na participação coletiva, democrática e mais horizontalizada entre corpo docente e discente. Os interesses, desejos e vontades dos diferentes grupos (e concepções) docentes e discentes devem ser harmonizados com base no conhecimento produzido, acadêmica e empiricamente, e a mediação entre esses saberes, interesses e concepções parece ser o principal desafio da nossa função docente.


 

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Notas



[1]O evento também ocorre nos currículos das séries iniciais do Ensino Fundamental e na Educação de Jovens e Adultos (EJA), porém em outras datas e com formatos diferentes.

 

[2]Para Goellner (2016, p. 31), a produção de corpos generificados que acontece no esporte “é uma construção cultural à qual se agregam discursos, valores e práticas que produzem re-presentações de feminilidades e masculinidades, as quais, por sua vez, produzem posições sociais que hierarquizam os sujeitos a partir da biologia dos seus corpos.”

 

[3]Disponível em: <https://www-periodicos-capes-gov-br.ezl.periodicos.capes.gov.br/index.php>. Acesso em: 31 out 2022.