Educação, corpo e emancipação: considerações para a educação crítica na escola contemporânea[1]

Education, body and emancipation: considerations for critical education in the contemporary school

Educación, cuerpo y emancipación: consideraciones para la educación crítica en la escuela contemporánea

 

Renan Santos Furtado

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.

renan.furtado@yahoo.com.br

Carlos Nazareno Ferreira Borges

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.

enosalesiano@hotmail.com

Claudia Maria Rodrigues Barros

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.

claudinhauepa@yahoo.com.br

 

Recebido em 03 de maio de 2023

Aprovado em 06 de junho de 2023

Publicado em 30 de janeiro de 2025

 

RESUMO

Trata-se de um ensaio teórico que visa apresentar aportes teórico-conceituais para pensarmos sobre a construção de uma educação crítica e emancipatória na escola contemporânea. Por via das contribuições sobre experiência e educação de Walter Benjamin e Theodor Adorno e das noções de educação libertadora e corpo consciente de Paulo Freire, vislumbra-se argumentar sobre a necessidade de a educação crítica do presente perpassar por uma valorização do corpo. Sendo assim, aponta-se que o projeto de legitimar a escola moderna objetivando uma educação para emancipação ganha fôlego a partir do momento no qual os objetos de conhecimento passam a ser tratados não como abstrações incompressíveis, mas como conceitos que podem ser aprendidos pelo corpo, como experiências que podem se transformar em conceitos, ou experiências que são, também, expressões de conceitos. No fundo, trata-se de reconhecer que na vida social, na verdadeira experiência e na educação, é impossível e, por vezes, problemática a separação entre o conceito do objeto e sua expressão prática.

Palavras-chave: Educação; Corpo; Corpo consciente.

 

ABSTRACT

This is a theoretical essay that aims to present theoretical-conceptual contributions for us to think about the construction of a critical and emancipatory education in contemporary school. Through the contributions on experience and education by Walter Benjamin and Theodor Adorno and the notions of liberating education and the conscious body by Paulo Freire, it is envisaged to argue about the need for critical education of the present to permeate the body. Therefore, it is pointed out that the project of legitimizing the modern school aiming at an education for emancipation gains momentum from the moment in which objects of knowledge start to be treated not as incompressible abstractions, but as concepts that can be learned by the body, as experiences that can become concepts, or experiences that are also expressions of concepts. Deep down, it is about recognizing that in social life, in true experience and education, it is impossible and sometimes problematic to separate the concept of the object from its practical expression.

Keywords: Education; Body; Conscious body.

 

RESUMEN

Este es un ensayo teórico que tiene como objetivo presentar aportes teórico-conceptuales para pensar la construcción de una educación crítica y emancipadora en la escuela contemporánea. A través de los aportes sobre experiencia y educación de Walter Benjamin y Theodor Adorno y las nociones de educación liberadora y cuerpo consciente de Paulo Freire, se prevé argumentar sobre la necesidad de una educación crítica del presente que permee a través de una valoración del cuerpo. Por lo tanto, se señala que el proyecto de legitimación de la escuela moderna encaminada a una educación para la emancipación cobra fuerza a partir del momento en que los objetos de conocimiento pasan a ser tratados no como abstracciones incompresibles, sino como conceptos que pueden ser aprendidos por el cuerpo, como experiencias que pueden convertirse en conceptos, o experiencias que también son expresiones de conceptos. En el fondo, se trata de reconocer que en la vida social, en la verdadera experiencia y educación, es imposible ya veces problemático separar el concepto de objeto de su expresión práctica.

Palabras clave: Educación; Cuerpo; Cuerpo consciente.


 

Introdução

O tema da educação tem penetrado inúmeros círculos e esferas de discussões do nosso tempo. No mundo moderno, educação, muitas vezes, confunde-se com escolaridade e aquisição de diplomas (Bourdieu; Passeron, 2014). Cientes de que a tarefa de debater o tema da educação exige tanto uma percepção mais ampliada do fenômeno como certas delimitações, ou seja, falar da educação em perspectivas, neste estudo, pretendemos apresentar aportes teórico-conceituais para pensarmos sobre a construção de uma educação crítica e emancipatória na escola contemporânea.

Desse modo, projetamos discutir vias para uma proposição da educação, especialmente da educação escolar, que possam se configurar como formas legítimas de compreensão da função da escola, tendo em vista um projeto emancipatório e efetivamente democrático de educação. Na esteira do debate sobre o que torna a escola legítima, colocaremos a relação entre teoria e prática em cena, o que nos fará abordar ideias pontuais a respeito dos temas do corpo e da educação em Paulo Freire (1921-1997) e sobre corpo e experiência em Walter Benjamin (1892-1940).

Assim, trata-se de um estudo com características de um ensaio teórico, pois a partir da seleção de um determinado material, buscamos refletir sobre a questão colocada e apresentar a posição dos seus autores a respeito (Severino, 2016). Em termos de quadro teórico, selecionamos contribuições conceituais em diferentes níveis e campos de estudos. No âmbito da filosofia e teoria social, usaremos os aportes teóricos de Adorno (1996, 2020) e Benjamin (1987, 1989) para pensarmos sobre a relação entre educação, corpo, experiência e emancipação. Do ponto de vista propositivo, noções como educação libertadora e corpo consciente de Freire (2003, 2008, 2016, 2017, 2018, 2019) vão contribuir para uma reflexão mais próxima da concretude da prática educativa que projetamos para a escola contemporânea. Cabe dizer, que outros trabalhos compõem um escopo mais diversificado de nossa reflexão sobre corpo e educação, dentre os quais, destacamos os estudos de Strazzacappa (2001), Nóbrega (2005) e Petry, Bassani e Vaz (2014).

Vale pontuar, que a ideia de aproximar pensadores como Walter Benjamin e Theodor Adorno de Paulo Freire, considerando o horizonte crítico e emancipatório das formulações desses ilustres intelectuais do século XX já é um empreendimento legitimado na produção de conhecimento brasileira. Como destaque, mencionamos a pesquisa de Agostini (2019), que expõe as proximidades de Paulo Freire e Walter Benjamin referente às questões da educação e da emancipação social. Em síntese, o autor reconhece em ambos os intelectuais preocupações e opções teóricas em comum, tais como: a tentativa de contar e pensar a história a partir dos oprimidos, a influência da religião e do marxismo e, a perspectiva da educação como desmistificadora da ideologia dominante.

 Em estudo ainda mais recente, Furtado, Gomes e Borges (2022) demonstram as aproximações teórico-políticas entre Paulo Freire e Theodor Adorno a partir das elaborações sobre educação e emancipação construídas por esses pensadores. Assim, os autores do estudo apontam que em Paulo Freire e Theodor Adorno: a educação é compreendida como prática contraideológica capaz de desmistificar as sentenças burguesas sobre a humanidade e a história; a educação para emancipação é sempre um ato de humanização a favor do sujeito e contra a barbárie; uma educação para a emancipação necessita ser pensada enquanto projeto de educação política e dentro do plano das relações políticas.

Cabe frisar, que não temos o objetivo de realizar uma reflexão sobre o conjunto da obra e das ideias dos pensadores listados. Contudo, suas formulações sobre educação não são isoladas do sistema teórico, tampouco das demais problemáticas nas quais eles se ocuparam. É nesse sentido que, por intermédio da centralidade da discussão educacional, faremos o esforço de aproximar a discussão do quadro mais amplo de ideias que agrupam as reflexões sobre a educação desses autores.

Em termos estruturais, este estudo contará com mais três tópicos além desta introdução. No segundo, buscaremos situar o leitor na discussão sobre corpo e escola a partir de uma perspectiva pedagógica e sociológica, com foco nas relações entre as lógicas sociais do corpo e os processos educativos que ocorrem na ambiência escolar. Em seguida, faremos nossas proposições teórico-conceituais com apontamentos para a prática educativa por via do quadro teórico apresentado. Por último, teremos nossas considerações finais.

 

Notas introdutória sobre corpo e escola

Nas linhas seguintes, esboçaremos uma compreensão de educação e legitimidade da educação escolar que perpassa pela reorientação da discussão do lugar do corpo nas práticas educativas. De início, pode parecer pretensiosa a ideia de repensar o lugar do corpo no processo de escolarização, dado que todo o pressuposto da educação escolar moderna tem sido construído com base na ideia de transmissão de conhecimentos na forma de conteúdos mentais.

De acordo com Strazzacappa (2001), o movimento corporal quase sempre foi usado como uma espécie de moeda de troca na escola. Por consequência, a imobilidade física, em muitos casos, funciona como punição e a possibilidade do movimento corporal, como prêmio para os estudantes que manifestam aptidão para as atividades corporais. Conforme Bassani e Vaz (2003), na escola, existe uma série de castigos e restrições ligados diretamente à dor e à punição corporal. Em geral, tais penalidades correspondem à punição física e se expressam no cotidiano escolar em ações “como poder ou não levantar da carteira ou sair dos berços, a permissão para ir ao banheiro, para tomar água ou punições que impõem a privação do recreio ou das aulas de Educação Física às crianças” (Bassani; Vaz, 2003, p. 30). 

De certo modo, é possível dizer que, na escola, existe toda uma rede de ações que educa contra o corpo e o movimento, a qual reflete a própria lógica social que tende a valorizar bem mais a rigidez corporal entendida como padrão de civilidade na vida moderna (Strazzacappa, 2001). Isso posto, se a escola incorpora a lógica social que historicamente desvaloriza o corpo e o movimento a favor do prestígio às atitudes e ações que prezam pela cognição e rigidez, o movimento corporal tende a ser reprimido ou se fazer presente somente em momentos específicos na escola (recreio, festas, aulas de Educação Física)[2]. Sendo assim, a ideia de disciplina na escola perpassa por alguma coisa que é incompatível com o movimento e a expressão corporal. Ser disciplinado é não se movimentar. Então, o ato de aprender acaba sendo considerado como coisa séria e sem corpo, uma vez que o corpo é entendido como fútil e não sério (Strazzacappa, 2001)[3].  

O diagnóstico de Strazzacappa (2001) a respeito da organização estrutural e cultural da escola, que tradicionalmente despreza o corpo e o movimento, pode ser complementado com algumas outras considerações importantes no plano histórico e sociológico. De início, cabe pensarmos que a relação entre corpo e escola é complexa, pois ao mesmo tempo que a escola tende a não considerar a possibilidade da expressão e da aprendizagem pelo corpo, isso de forma alguma significa que a escola, como instituição social, não apresenta qualquer preocupação política e social com o corpo.

Como afirma Saviani (2011), a escola, em sua perspectiva moderna, surge para transformar os súditos em cidadãos, para vencer a barreira da ignorância do mundo feudal. Por isso, desde sempre, a escola deve se ocupar com os chamados conteúdos científicos, universais e sistematizados, tendo em vista a superação do senso comum e da barreira da ignorância. Essa perspectiva que tangencia desde as ideias tradicionais, as renovadoras e até as mais críticas do iluminismo e da Pedagogia, de certo modo, reforça a ideia de que a escola trabalha com o conteúdo mental, com a apropriação de conceitos e de competências que podem adaptar o sujeito para o trabalho produtivo – como, aliás, é proposto pela atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC)[4] e um conjunto de outras reformas educacionais e políticas de currículo – ou para a transformação social, como sugerem as pedagogias críticas[5].

De acordo com Nóbrega (2005), desde o renascimento e com a proliferação do humanismo, educar o corpo tem sido uma tarefa fulcral para garantir a civilidade na sociedade moderna. A política, a cultura, a filosofia e a educação, de alguma maneira, reverberam a racionalidade instrumental moderna que faz apologia à razão e ao domínio técnico da natureza, transformando o corpo em ferramenta para tal. Por isso, Nóbrega (2005, p. 603) destaca que “percebemos que o sensível está posto na filosofia moderna e no ideário pedagógico do Iluminismo, mas assume, com relação ao conhecimento, um papel inferior ou acessório”.  

No trabalho de Libâneo (1994), que expõe as bases de uma reconhecida pedagogia crítica brasileira, identificamos a distinção entre as disciplinas que formam o espírito e tratam dos conhecimentos científicos (Português, Matemática, História, Geografia e Ciências) e aquelas que devem se ocupar com o corpo, a expressão e o movimento, no caso da Educação Artística e a Educação Física. Como se vê, apesar do reconhecimento do caráter crítico da obra do autor como um todo, além da dicotomização entre saber intelectual e saber sensível, a sua perspectiva de Educação Física pouco difere dos apontamentos de Durkheim (2018) sobre a divisão entre educação intelectual, moral e física, uma vez que, para Libâneo (1994, p. 47), a Educação Física é importante na escola “para formar o caráter, a autodisciplina e o espírito de cooperação, lealdade e solidariedade. Além disso, organiza a recreação e o lazer das crianças”.

Com esses apontamentos, cabe dizer que apesar de a escola ser pouco sensível ao corpo e movimento na sua organização estrutural e cultural (Strazzacappa, 2001), e apresentar relações de castigo e punição corporal em sua rotina (Bassani; Vaz, 2003), bem como depreciar corpo e movimento na seleção dos tipos de conhecimentos e suas determinadas funções “formativas” (Libâneo, 1994), isso revela, de algum modo, certa preocupação política e social com o corpo, ou dizendo em outras palavras, de alguma forma parece haver um reconhecimento que o controle sobre o corpo é importante para a manutenção de um pretendido status social dominante.

Segundo Foucault (1998), as instituições modernas, dentre elas a escola, operam por meio de um conjunto de técnicas de disciplina que visam docilizar corpos. Nesse sentido, além de se pensar o poder como algo que se exerce somente por via de ordens e leis, cabe visualizarmos o exercício e a reprodução do poder e da ideologia na materialidade do corpo. O próprio Foucault declarava que o controle dos indivíduos não pode ser concebido como algo que ocorre simplesmente através da consciência na forma de ideologia, mas sim como um empreendimento que começa no corpo, com o corpo.

Ao situar os estudiosos do século XX que tematizaram a questão do corpo, dentre eles Michel Foucault, Le Breton (2012) lembra que para o filósofo parisiense, o poder é resultado de posições estratégicas e que o corpo é revelador precioso da relação de poder na sociedade moderna. Isso se dá nas mais diversas possibilidades de restrições, como o disciplinamento, a dominação, a eficácia, a docilidade e o controle, que se encontram presentes por exemplo em espaços como a prisão, os hospitais e as escolas.

Por essa razão, a escola tende a reprimir para melhor controlar o corpo, quer dizer, impor as formas dominantes de ser que não podem existir somente como representações ideológicas, mas que precisam ser ideologia corporificada. Portanto, é possível dizer que o não lugar do corpo na educação, na verdade, faz parte de um projeto de dominação do sujeito e de suas múltiplas potencialidades de desenvolvimento.

Nesse sentido, a questão que se coloca para pensar uma educação crítica do presente pode ser elaborada da seguinte forma: se a escola tem sido uma instituição dominada pela racionalidade iluminista que prima pelo domínio da consciência em detrimento do corpo, seria possível pensar em uma nova forma de legitimidade que aponte outro sentido para a educação escolar crítica sem considerar a demanda pela reorientação do lugar do corpo na escola e nos processos de escolarização? Corroboramos com Nóbrega (2005, p. 610), quando a autora afirma que “não se trata de incluir o corpo na educação. O corpo já está incluído na educação. Pensar o lugar do corpo na educação significa evidenciar o desafio de nos percebermos como seres corporais”.

Portanto, para o bem ou para o mal, toda a forma de educação é uma forma de mensagem para o corpo e a respeito dele. Cabe, agora, reorganizar a escola para a valorização da condição humana de ser corpo, o que implica pensar para além da ideia de Arendt (2020), do corpo atrelado ao trabalho em uma dimensão eminentemente mecânica e de subsistência biológica. Nos termos de Le Breton (2012), precisamos compreender que todas as nossas ações no mundo são mediadas pelo corpo e corporeidade, pois, se existir significa viver enquanto corpo, a corporeidade deve ser entendida como a possibilidade de extensão da experiência do ser humano no mundo.

Le Breton (2012) afirma que o corpo é um vetor semântico da relação do ator com o mundo, manifestando-se, por meio de sentimentos, ritos, aparência, sedução, técnicas corporais, exercícios, dor e sofrimento. A própria existência humana é corporal. Sendo assim, o corpo é emissor e receptor, é produtor de sentidos. Com isso, Le Breton (2012) lembra que,

 

A caracterização do corpo, longe de ser unanimidade nas sociedades Humanas, revela-se surpreendentemente difícil e suscita várias questões epistemológicas. O corpo é uma falsa evidência, não é um dado inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e cultural (Le Breton, 2012, p. 26).

 

Desse modo, a escola, que tem como função aproximar crianças, jovens, adultos e idosos da experiência humana produzida histórica e socialmente, não pode esquecer que essas experiências também são vivenciadas pelos nossos sentidos, por gestos, expressões, pensamentos e emoções. Em Ingold (2010), existe uma forte crítica à ciência cognitivista, principalmente sobre a ideia de que no processo de transmissão e apropriação da cultura, ela poderia ser repassada apenas na forma de conteúdo mental. Com isso, os conhecimentos são tratados como informação, e os seres humanos se tornam mecanismos treinados para processá-los.

No campo educacional, Nóbrega (2005) questiona a ideia de que seria possível aprender conteúdos cognitivos desatrelados da experiência corporal. Ou seja, somente pode haver atividade cognitiva, ou consciência de algo, quando existe experiência sensível e percepção, já que “a cognição emerge da corporeidade, expressando-se na compreensão da percepção como movimento e não como processamento de informações. Somos seres corporais, corpos em movimento” (Nóbrega, 2005, p. 606).

É em oposição a toda essa racionalidade moderna, a qual se apresenta, na educação, em discursos pedagógicos das mais diversas orientações teóricas, que acreditamos ser prudente caminharmos para uma educação crítica do nosso tempo que supere as dicotomias historicamente produzidas que desprezam a expressão corporal e a condição humana de ser corpo nos seus discursos e práticas. Sendo assim, arriscamo-nos a aprofundar a ideia da educação como experiência, a qual, para realmente oportunizar o pleno desenvolvimento de todas as potencialidades humanas, precisa considerar o corpo não somente como alguma coisa que sustenta a alma ou os nossos pensamentos (Nóbrega, 2005), mas como nossa via para a construção de experiências educacionais efetivamente formativas, críticas e reflexivas. É essa construção que faremos no tópico seguinte.

 

Educação escolar: corpo, experiência e legitimidade

Quando Adorno (2020) discute experiência e educação, o filósofo sinaliza que toda e qualquer educação crítica precisa se deparar com a problemática da perda progressiva da experiência no mundo moderno, marcado pelo avanço do capitalismo, de formas políticas totalitárias, da razão instrumental e da indústria cultural. Mas, ao mesmo tempo, o pensador alemão aponta que é tarefa da educação formar nas novas gerações a aptidão para a experiência tradicional e coletiva, no que é corroborado pelo pensamento exposto por Benjamin (1987).

Nesse sentido, podemos pensar a educação tanto como prática de experiência em si, o que certamente seria sempre mais desejável, quanto como processo de construção de aptidão para fazer experiência. É como se a educação pudesse atuar no sentido de promover o reencontro do humano consigo mesmo, retornando a uma forma de contato com os objetos que transcenda a lógica da manipulação objetiva para fins que não sejam o desenvolvimento do próprio humano.

Em uma perspectiva similar, Benjamin (1987) se ocupa com a perda da experiência no campo cultural e da arte, especialmente em manifestações literárias, no cinema, no teatro, dentre outras. Acreditamos então ser possível afirmar que Benjamin reconhece em sua obra várias formas de experiência, a dizer, a religiosa, cultural, histórica e estética. Nessas e outras dimensões, teríamos, então, a possibilidade de formar a subjetividade dos sujeitos em sentido pleno.  

Contudo, o pensador berlinense identifica que é justamente na época histórica marcada pelo ininterrupto progresso técnico e proliferação das demandas da economia burguesa que atuam para deteriorar o nosso contato formativo com as objetivações do mundo, que a autêntica experiência perpassa pela sua maior crise. Nesse contexto, Benjamin é enfático ao afirmar que a perda da capacidade humana de fazer experiência é uma das mais nefastas expressões da barbárie do século XX. De acordo com Petry, Bassani e Vaz (2014), o conjunto de mudanças no contemporâneo empreendidas pelos processos de modernização e aceleração da vida atuam na contínua perda da experiência e, consequentemente, no declínio da subjetividade e da formação.

Se, tal como a formação, a experiência entra em período de regressão na modernidade, necessitamos compreender a estrutura e as características da real experiência nos termos dos autores frankfurtianos, bem como as suas possibilidades no nosso tempo de crise. Grosso modo, experiência é sempre alguma coisa que envolve acúmulo formativo no presente, em conjunto com tradição e história na forma de acontecimentos significativos para os sujeitos. Nos termos de Benjamin (1989, p. 105),

Na verdade, a experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com frequência inconscientes, que afluem à memória (Benjamin, 1989, p. 105).

 

É importante sinalizar que em Benjamin (1987) a experiência se coloca em oposição à vivência inautêntica. Desse modo, se a vivência dos sujeitos no mundo moderno tende a ser orientada pela lógica da informação, das rápidas sensações, do efêmero e chamado fator de choque, a real experiência se relaciona com a história em sentido não linear, provocando mudanças qualitativas na memória individual e coletiva dos sujeitos, podendo sempre ser comunicável entre as pessoas por via da narração. Logo, é esse sentido de coletividade da experiência que, de acordo com Petry, Bassani e Vaz (2014), faz com que ela se notabilize por vincular conhecimentos e saberes significativos e integrados com a própria vida dos sujeitos na sua dimensão não instrumental e racionalizada.

Outro aspecto importante a ser mencionado se refere ao fato de que a experiência é alguma coisa que acontece na relação entre sujeitos e, por vezes, entre sujeitos e algum objeto, não necessariamente no sentido de objetos de conhecimento, como a ciência positivista tem predileção, muito menos com informações e expressões inautênticas da indústria cultural, mas objetos e manifestações humanas que possam ser transmitidos pela narração. Podemos pensar por exemplo na relação entre o sujeito e o jogo, ou entre o sujeito e o trabalho.

De acordo com Benjamin (1987), falar em experiência significa pensar em processos nos quais os sujeitos possam se comunicar, desenvolver suas subjetividades e socializar informações sem coerções externas. Essa comunicação ganha sentido na medida em que ocorre a troca e transmissão efetiva da cultura humana, “pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” (Benjamin, 1987, p. 115).

Ainda que Benjamin (1987, 1989) seja enfático quando expõe que a experiência se configura como processo de narração e comunicação de algo, isso não quer dizer que o pensador alemão entende esse empreendimento como algo que se manifesta somente no ato de falar, devendo, então, ser internalizado pelas faculdades mentais. Sendo assim, na verdadeira experiência, deparamo-nos com o humano em sua complexidade, na medida em que:

 

A alma, o olho, e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum um produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito) (Benjamin, 1987, p. 220-221).

 

O fato de a experiência ser um atributo fundamental para a emancipação pode ser comprovado com a excessiva preocupação do capital e da indústria cultural em deteriorar as suas formas. No ensaio sobre a crise da formação cultural promovida pela indústria cultural e a semicultura, Adorno (1996, p. 11) afirma que no mundo do capital, a experiência, como continuidade da reflexão na mente dos sujeitos (formação da memória), que visa constituir uma certa tradição e acúmulo efetivo sobre algo, “fica substituída por um estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará borrado no próximo instante por outras informações”. Nos termos de Benjamin, substitui-se a experiência pela vivência. 

Desse modo, considerar o conceito e a demanda pela experiência no sentido de Benjamin e Adorno para pensar a educação crítica do presente, coloca-nos novamente diante do desafio de encontrar ou reelaborar o sentido das pedagogias críticas para uma prática educativa que considere o humano em toda a sua complexidade. Apesar de tradicionalmente as pedagogias críticas operarem com um discurso de denúncia e com uma orientação transformadora para a prática educativa, quase sempre isso é realizado apenas como movimento de conceitos.

Como observamos na perspectiva de Libâneo (1994), que expressa a tônica de grande parte do debate pedagógico brasileiro, o sujeito da educação tende a ser um sujeito sem corpo, sem expressão, sem gesto, entretanto, precisa ser conscientizado por meio da assimilação de conhecimentos científicos, para, assim, ter formada a sua condição de trabalhador assalariado e cidadão, ou mesmo a sua consciência de classe. Sendo assim, consideramos que é fundamental para as pedagogias críticas do nosso tempo a incorporação da noção de experiência formativa em conexão com uma avançada concepção de corpo.

No debate educacional brasileiro crítico, observamos em Freire (1985, 2003, 2008, 2016, 2017, 2018, 2019) uma possibilidade para pensarmos uma nova concepção de humano, de sujeito da educação e de processo de ensinar e aprender, que, na linguagem pedagógica, orienta-se em direção similar de primar pela experiência nas acepções de Benjamin e Adorno. Do nosso ponto de vista, a chave para pensarmos a educação em Freire para além das suas definições cognitivistas, pode ser encontrada no seu conceito de corpo consciente.

Apesar de não ser um conceito dos mais conhecidos e explorados dentro da obra freiriana (Gonçalves, 2019), a noção de corpo consciente revela tanto a concepção de ser humano como se desdobra nos conceitos de educação e ensino de Freire. Essa questão parece ser fundamental, ou seja, articular um conceito de educação a uma concepção não fragmentada de ser humano e consequentemente de sujeito cognoscente da educação.

De acordo com Gonçalves (2019), a noção de corpo consciente, que aparece pela primeira vez em Freire na Pedagogia do Oprimido, obra icônica publicada em 1968, primeiramente fora do Brasil, apresenta diferentes sentidos no decorrer da construção teórica do autor. Durante os anos 1970 e 1980, o conceito faz menção ao ser humano em geral, que não seria somente uma consciência encarnada em um corpo, mas um corpo consciente que experiencia o mundo de modo singular, “nesse caso, a experiência do corpo consciente é intransferível” (Gonçalves, 2019, p. 133).

Outro enfoque, aprofundado a partir dos anos 1990 por Freire, refere-se à noção de corpo consciente como modo de pertencimento social e possibilidade cognoscente, imbricando-se em relações profundas de aprendizagem. O ponto a ser destacado é que uma concepção ampliada de corpo, baseada nas amplas possibilidades existenciais dos sujeitos, certamente coaduna com a busca incessante de Freire em elaborar uma concepção libertadora de educação (Gonçalves, 2019). Sendo assim, trataremos brevemente, a seguir, de forma imbricada, sobre os dois sentidos do conceito de corpo consciente em Freire.   

Do mesmo modo que Benjamin (1987, 1989) e Adorno (1996, 2020) pensaram na experiência como uma possibilidade contra a perda do significado formativo das ações humanas no mundo moderno, Freire (2017) elabora sua concepção de educação libertadora e problematizadora a partir da crítica ao que denominou de educação bancária. Na educação bancária, temos a prevalência do narrar[6], do depositar e do transmitir conhecimentos.

Freire (2017) afirma que a educação bancária contribui para a manutenção do status quo e estimula o aprofundamento das contradições sociais. Desse modo, a educação “se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador, o depositante” (Freire, 2017, p. 80). Logo, a concepção bancária de educação como instrumento da opressão, enquanto cultura do silêncio divide educador e educando. O primeiro sendo o que educa, o que sabe, o que pensa, o que diz a palavra, o que disciplina, o que opta, atua, escolhe o conteúdo, tem autoridade e é sujeito do processo. Enquanto, o segundo, o que nada sabe, que deve escutar docilmente, ser disciplinado, seguir prescrições e internalizar passivamente os objetos narrados pelo educador (Freire, 2017).

Já a concepção libertadora[7], concebe a educação na qualidade de ato cognoscente, isto é, como situação dialógica e criativa. Conforme Freire (2017, p. 94) “como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro”, a perspectiva dialógica e problematizadora de educação visa superar a contradição entre educador e educando, para projetar ambos como sujeitos do processo de ensino e aprendizagem.

Desse modo, como situação gnosiológica de comunicação entre sujeitos, conhecimento e mundo, a educação libertadora não pode pensar o ser humano como uma consciência que serve apenas para armazenar informações, pois “os homens, pelo contrário, porque são consciência de si e, assim, consciência do mundo, porque são um ‘corpo consciente’, vivem uma relação dialética entre os condicionantes e sua liberdade” (Freire, 2017, p. 125).

No final das contas, trata-se de considerar que vivemos no mundo produzindo consciência dele, a qual, como práxis, precisa ser considerada como uma ação de um corpo consciente. Todavia, esse processo de tomada de consciência, para ser cada vez mais libertador e possibilitar o protagonismo do ser humano[8] na história, necessita reconhecer que apreendemos e transformamos o mundo também pelo corpo. Isso porque, se pensarmos sobre o ser histórico e cultural que nos tornamos, chegaremos à conclusão de que tal condição não poderia resultar somente da nossa consciência criadora, mas sim da ação do nosso corpo consciente no mundo (Freire, 2003).

É por meio da práxis[9], da criação e transformação do mundo existente, que os seres humanos em sua relação com a realidade, produzem bens materiais, objetos variáveis, bem como as instituições sociais, ideias e concepções de mundo. Desse modo, ao mesmo tempo que criam a história, tornam-se seres histórico-sociais (Freire, 2017). É essa dialética de conotação criadora entre ser humano e mundo, que garante a conexão entre a história da humanidade e das sociedades humanas.

Dessa concepção ampliada de ser humano apresentada por Freire (2003, 2017) e aprofundada em Freire (2018), desdobra-se uma compreensão de educação libertadora que prima pela consideração do ser humano em sua integralidade. Nos dizeres de Freire (2017, p. 95):

 

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada no mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. (Freire, 2017, p. 95).

 

Segundo Freire (2017) o objetivo é chamar atenção dos verdadeiros humanistas, para que no desejo pela libertação, qualquer maneira de utilização da educação bancária seja freada. Desse modo, é preciso ter cuidado, para que a forma bancária de educação não se torne um legado da sociedade opressora para a sociedade revolucionária. Até mesmo porque, se e somente se, uma sociedade revolucionária ainda mantenha a educação bancária, deve ter se equivocado na manutenção ou se deixado influenciar pela desconfiança e descrença nos seres humanos.

O certo é que para a libertação dos seres humanos não é possível aliená-los, mantê-los alienados e aceitar a concepção mecânica de consciência. É importante que a ação libertadora, portanto, não possua as mesmas armas de dominação (slogans e depósitos) que a visão bancária. Segundo Freire (2021, p.93), “a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens [...]. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo”.

De acordo com Freire (2008), o nosso processo de dominação exercido como domesticação alienante, não acontece somente nas representações ideológicas ou verbalistas identificadas com a opressão, mas em torno do nosso corpo consciente. Dessa maneira, nem a educação em geral e muito menos os processos de ensino em particular podem desprezar o corpo como um texto que deve ser lido de modo não fragmentado, que pode expressar desejos, medo, amor e raiva. Por essa razão, cabe à educação crítica realizar a “leitura do corpo com os educandos, interdisciplinarmente, rompendo dicotomias, rupturas inviáveis e deformantes” (Freire, 2016, p. 169).

Em Freire (1985), o corpo consciente não desconsidera as facetas físicas, biológicas, fisiológicas, técnicas, porém, é preciso considerá-lo para além desses aspectos, ou seja, em suas outras e diferentes dimensões que englobam a reflexividade e a inteireza que envolve a relação entre sujeito e mundo. Como pode-se perceber em,

 

O corpo humano, velho ou moço, gordo ou magro, não importa de que cor, é o corpo consciente, que olha as estrelas, é o corpo que escreve, é o corpo que fala, é o corpo que luta, é o corpo que ama, que odeia, é o corpo que sofre, é o corpo que morre, é o corpo que vive! (Freire, 1985, p. 28)

 

Assim, na perspectiva de Freire (2016), a educação é pensada como uma experiência em que o ser humano atua de corpo inteiro na busca da sua inteireza, mediada por uma situação cognoscível que, por ser cognoscível em sentido amplo, considera a sensibilidade e as emoções como fundamentais para o processo de apreensão crítica do fenômeno. Por isso, Freire (2016, p. 174) é contrário a qualquer tentativa de oposição entre sensibilidade e atividade cognoscitiva, porque segundo ele, “[...] conheço com meu corpo inteiro: sentimentos, emoções, mente crítica”. Aliás, Freire (2019) é enfático ao defender a impossibilidade de compreendermos e atuarmos criticamente no mundo sem considerarmos a complexidade que somos, afinal de contas, somos inteireza e não uma dicotomia.

Em nosso ponto de vista, a concepção freiriana de educação e o seu conceito de corpo consciente buscam superar a tendência de grande parte das teorias e pedagogias da educação brasileira, que sempre concebem a educação como atividade de uma consciência sem corpo. Como síntese de Freire (2016), podemos dizer que o processo de conhecer, que envolve o corpo consciente, parte de alguma inquietação na forma de curiosidade epistemológica a respeito de algum objeto. Porém, esse processo não pode ser realizado de forma isolada entre sujeito e objeto, uma vez que necessita de outros sujeitos e da interação reflexiva com o mundo. No fluxograma 1, apresentamos uma síntese de Freire (2016).

 

Fluxograma 1 – Percurso da atividade cognoscitiva em Paulo Freire.

Fonte: Elaboração dos autores (2023).

 

Tendo em vista a reorientação do discurso da educação crítica para o presente, nossa proposta de pensar a educação como experiência e como prática de construção da aptidão de fazer experiência encontra em Freire uma concepção de sujeito e de educação que inverte toda a linhagem do debate pedagógico brasileiro. Pelo que pudemos perceber, essa linhagem tende quase sempre a começar do fim, ou seja, do conceito e de generalização científica na forma pronta e acabada de conhecimento escolar, o qual deve ser socializado para os estudantes em prol da formação do trabalhador assalariado, do cidadão ou da consciência crítica.

Nesse sentido, cabe dizer que antes da representação conceitual final, as coisas podem ser experimentadas (no sentido de experiência e não de experimento), tratadas como prática humana que engloba o corpo consciente. Com isso, acreditamos que o projeto de legitimar a escola moderna objetivando uma educação para emancipação ganha fôlego a partir do momento no qual os objetos de conhecimento passam a ser tratados não como abstrações incompressíveis, mas como conceitos que podem ser aprendidos pelo corpo, como experiências que podem se transformar em conceitos, ou experiências que são, também, expressões de conceitos. No fundo, trata-se de reconhecer que na vida social, na verdadeira experiência e na educação, é impossível e, por vezes, problemática a separação entre o conceito do objeto e sua expressão prática.

Com essas reflexões, finalizamos esse estudo que buscou apresentar aportes teórico-conceituais e apontamentos concretos para a educação crítica do presente a partir da consideração da necessidade do processo formativo que se coloca como emancipador, perpassar pelo corpo. No fundo, é preciso orientar a educação para a condição corporal dos sujeitos, fazendo com que a ideia de formar o sujeito crítico, na verdade, se expresse em práticas educativas críticas e libertadoras com e pelo o corpo consciente.

 

Considerações finais

              Fazemos lembrar que nossa intenção no ensaio que ora se finaliza foi o de articular autores reconhecidos dentro da tradição crítica da teoria social e educação em torno de um debate. Tratou-se de um debate educacional pelo qual nos arriscamos a propor uma inflexão a favor do corpo, já que, das pedagogias tradicionais às críticas, o corpo quase nunca foi tratado como protagonista nos processos de ensino e aprendizagem e, muito menos nas intenções e formulações pedagógicas que projetam a emancipação dos sujeitos no tempo e espaço da educação escolar.

              Para essa proposição, além das discussões sobre educação e experiência em Theodor Adorno e Walter Benjamin, apresentamos Paulo Freire como um autor que dentro do campo educacional, considerou a condição corporal dos sujeitos nos processos de ensino e aprendizagem, ao ponto de defender a ideia de que a educação libertadora precisa considerar os sujeitos na qualidade de corpo consciente. Assim, em termos de resultados e afirmações que podemos sustentar através da discussão realizada nesse estudo, pontuamos que:

 

1)    Uma educação crítica do presente orientada para a emancipação e democracia necessita considerar a prática educativa como experiência e formação da aptidão para fazer experiência. Nessa direção, trata-se de reorientar a relação entre teoria e prática, no sentido de realizarmos uma inflexão nos discursos pedagógicos de primazia cognitivista, para que eles se reencontrem com o corpo por vias não dicotômicas. Sendo assim, frisamos que as contribuições de Benjamin e Adorno sobre experiência e formação cultural, se bem mediadas, podem apontar profícuos caminhos para o campo educacional.

2)    No embate entre educação bancária e educação libertadora proposto por Freire, esta última eleva o pensamento contraditório e superador da realidade contemporânea excludente, de uma sociedade ainda desigual, para se pensar, de maneira crítica, a ação dialógica e conscientizadora. Trata-se de uma formação ampliada que se conecta com o plano da ação, gerando luta contra a desumanização, projetando a organização dos oprimidos, a autonomia e a transformação radical da realidade opressora.

3)    O projeto de educação crítica do presente ao qual estamos nos referindo, que concebe o corpo como lugar da experiência formativa imbricado com a reflexão teórica, precisa reconhecer o ser humano enquanto corpo consciente, no sentido freiriano. Nessa condição, a aprendizagem é considerada como uma ação de corpo todo. Esse aspecto é fundamental para reorientarmos a educação escolar, já que a necessidade da educação do corpo em sentido crítico é uma tarefa a ser realizada por todos os componentes curriculares e momentos formativos da escola.

Por fim, ressaltamos que apesar dos apontamentos realizados e da discussão propositiva e a favor do corpo no processo de ensino e aprendizagem pensando a educação crítica na escola contemporânea, pontuamos que essa demanda necessita se concretizar em práticas concretas no âmbito da educação básica. Esse é o nosso desafio, pensar a educação do corpo no cotidiano, nos micros processos de educação e escolarização que permeiam a experiência escolar.

 

Referências

ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.

 

ADORNO, Theodor. Teoria da semicultura – Parte II. Revista Educação e Sociedade, n. 56, ano XVII, p. 388-411, dez. 1996.

 

AGOSTINI, Nilo. Os desafios da educação a partir de Paulo Freire e Walter Benjamin. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

 

ARENDT, Hannah. A condição humana. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2020.

 

BASSANI, Jaison; VAZ, Alexandre. Comentários sobre a educação do corpo nos “textos pedagógicos” de Theodor W. Adorno. Perspectiva, Florianópolis, v. 21, n. 01, p. 13-37, jan./jun. 2003. 

 

BENJAMIN, Walter. Obras escogidas I: magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo: Editora brasiliense, 1987.

 

BENJAMIN, Walter. Obras escogidas III: Charles Baudeleire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.   

 

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

 

DURKHEIM, Émile. A educação moral. São Paulo: Edipro, 2018.

 

FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Grall, 1998.

 

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

 

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 3. ed. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2003.

 

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 38. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 63. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

 

FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

 

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 26. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016.

 

FURTADO, Renan. Educação Física escolar, conhecimento e legitimidade: investigação a partir de ordenamentos legais. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em educação, Instituto de Ciências da Educação, Universidade Federal do Pará, Belém, 2022, 257 pág.

 

FURTADO, Renan; GOMES, Maria Rosilene; BORGES, Carlos Nazareno. Educação e emancipação em Theodor Adorno e Paulo Freire. Debates em Educação, Maceió, Vol. 14, Nº. 35, Maio/Ago. 2022.

 

GONÇALVES, Luiz. Corpo(s) consciente(s). In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime (org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

 

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1980.

 

LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

 

LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

 

NÓBREGA, Terezinha. Qual o lugar do corpo na educação? Notas sobre conhecimento, processos cognitivos e currículo. Educ. Soc., Campinas, v. 26, n. 91, p. 599-615, maio/ago. 2005.

 

PETRY, Franciele; BASSANI, Jaison; VAZ, Alexandre. Experiência e vida danificada:

Walter Benjamin, Theodor W. Adorno. Cadernos de Pesquisa: Pensamento Educacional, Curitiba, v. 9, n. 22, p. 109-130, maio/ago. 2014.

 

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011.

 

SEVERINO, Antônio. Metodologia do trabalho científico. 24. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2016.

 

STRAZZACAPPA, Márcia. A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola. Cadernos Cedes, ano XXI, n. 53, abr. 2001.

 

CC.png 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)

 

Notas



[1] Este trabalho é fruto da tese de Doutorado do seu primeiro autor. Nesta publicação, apresentamos uma versão revisada e ampliada de um dos tópicos da referida tese, que contou com a colaboração dos demais autores deste estudo.

[2] Quando Strazzacappa (2001) se refere às aulas de Educação Física, a professora concebe a disciplina ainda como um tempo e espaço de uso instrumental e reducionista do corpo. Cabe dizer que essa não é a posição dos autores deste estudo. Em nosso entendimento, as aulas de Educação Física necessitam contribuir para a efetivação da função formativa da escola, favorecendo assim processos de educação do corpo para além da lógica instrumental e reducionista do movimento.

[3] Para ilustrar essa relação entre escola, corpo e punição, diz Strazzacappa que (2001, p. 70) “o movimento corporal sempre funcionou como uma moeda de troca. Se observarmos brevemente as atitudes disciplinares que continuam sendo utilizadas hoje em dia nas escolas, percebemos que não nos diferenciamos muito das famosas ‘palmatórias’ da época de nossos avós. Professores e diretores lançam mão da imobilidade física como punição e da liberdade de se movimentar como prêmio. Constantemente, os alunos indisciplinados (lembrando que muitas vezes o que define uma criança indisciplinada é exatamente o seu excesso de movimento) são impedidos de realizar atividades no pátio, seja através da proibição de usufruir do horário do recreio, seja através do impedimento de participar da aula de educação física, enquanto que aquele que se comporta pode ir ao pátio mais cedo para brincar. Estas atitudes evidenciam que o movimento é sinônimo de prazer e a imobilidade, de desconforto”. Isso rememora a discussão de Huizinga (1980) a respeito do desprezo do jogo e da ludicidade (fenômenos que se expressam pela gestualidade e expressão corporal) no mundo moderno marcado, pela presença de atividades racionalizadas pela ciência e seus meios técnicos, como é o caso do esporte, conforme Adorno (2020).

[4] Trata-se do documento de orientação curricular proposto e aprovado para o sistema de Educação Básica no Brasil a partir das homologações das seguintes resoluções: Resolução CNE/CP Nº 2, DE 22 de dezembro de 2017 que institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular (Educação Infantil e Ensino Fundamental); e Resolução CNE/CP nº 4, de 17 de dezembro de 2018, que Institui a Base Nacional Comum Curricular na Etapa do Ensino Médio (BNCC-EM).

[5] É válido dizer que em virtude do aporte teórico revolucionário, existem indicativos de que a pedagogia formulada por Dermeval Saviani aponta caminhos que valorizam a condição corporal do sujeito histórico.

[6] Narrar enquanto prática de uma educação bancária é diferente da narração como experiência tradicional exposta por Benjamin (1987).

[7] Em Freire (2017) a ação libertadora condiz com um momento consciente que se opõe à realidade opressora.

[8] Ainda em Freire (2017, p. 124) “os homens não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica”.

[9] Segundo Freire (2021, p. 52) “a práxis, porém, é a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido”.