Os contextos históricos da implantação da formação técnica no Brasil: um estudo de caso relacionado à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Historical contexts of the implementation of technical formation in Brazil: a case study concerning the Federal University of Santa Maria
Contextos históricos de la implementación de la formación técnica em Brasil: un estudio de caso relacionado con la Universidad Federal de Santa Maria
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
otaviofinger@gmail.com
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
julioausani@gmail.com
Universidade Franciscana, Santa Maria, RS, Brasil
awoltmann@gmail.com
Recebido em 25 de setembro de 2024
Aprovado em 25 de setembro de 2024
Publicado em 11 de fevereiro de 2025
RESUMO
Este estudo tem por objetivo, com base em revisão bibliográfica e análises documentais pertinentes, refletir sobre o processo histórico nacional e internacional que estimulou a implantação do ensino técnico na Universidade Federal de Santa Maria. Parte-se do princípio da correlação dos fatos históricos, com base em autores do materialismo histórico-dialético, para estabelecer reflexões sobre os elementos históricos que influiram na implementação do ensino técnico no âmbito da UFSM, a primeira Universidade Federal instalada do interior do Rio Grande do Sul, cotejando-se tal perspectiva com outros pensadores representantes de outras linhas. Nesse sentido, vê-se que as décadas de 1950 e 1960 foram marcadas pela reordenação do modelo produtivo capitalista, sendo a época em que se estabeleceram novos parâmetros para a produção agrícola mundial, a partir da alta mecanização das lavouras, aplicação de defensivos agrícolas, sementes e o emprego de novas técnicas de cultivo. Ainda, observa-se que foi nesse contexto de polarização da Guerra Fria que o Brasil efetivamente definiu seu papel frente às novas demandas do capitalismo, daí decorrendo, por exemplo, o convênio “MEC-USAID” e o estabelecimento de novas diretrizes educacionais, em um cenário de implantação da ditadura civil-militar, cujos governos articularam os mecanismos para as novas relações entre capital e trabalho.
Palavras-chave: Ensino técnico; Educação; Ditadura civil-militar; Capitalismo; Materialismo histórico.
ABSTRACT
This study aims to reflect on the national and international historical process that stimulated the implementation of technical education at the Federal University of Santa Maria, based on a bibliographic review and pertinent documentary analyses. The work is based on the principle of the correlation of historical facts, based on authors of historical-dialectical materialism, in order to establish reflections on the historical framework that influenced the implementation of technical education in UFSM, the first Federal University installed in the interior of Rio Grande do Sul, as well as comparing this line of thought with other thinkers representing other lines. In this sense, it is seen that the 1950s and 1960s were marked by the reorganization of the capitalist production model, being the time in which new parameters were established for global agricultural production, based on the high mechanization of crops, application of agricultural pesticides, seeds and the use of new cultivation techniques. Furthermore, it is observed that it was in this context of Cold War polarization that Brazil effectively defined its role in the face of the new demands of capitalism, resulting, for example, in the “MEC-USAID” agreement and the establishment of new educational guidelines, in a scenario of implementation of the civil-military dictatorship, whose governments articulated the mechanisms for the new relations between capital and labor.
Keywords: Technical education; Civil-military dictatorship; Capitalism; Historical materialism.
RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo, a partir de una revisión bibliográfica y el análisis documental pertinente, reflexionar sobre el proceso histórico nacional e internacional que impulsó la implementación de la educación técnica en la Universidad Federal de Santa María. Se parte del principio de correlación de hechos históricos, basado en autores del materialismo histórico-dialéctico, para establecer reflexiones sobre los elementos históricos que influyeron en la implementación de la educación técnica en el ámbito de la UFSM, la primera Universidad Federal instalada en el interior de Río. Grande del Sur, comparando esta perspectiva con otros pensadores de otras líneas. En este sentido, se puede observar que las décadas de 1950 y 1960 estuvieron marcadas por la reorganización del modelo productivo capitalista, siendo la época en la que se establecieron nuevos parámetros para la producción agrícola global, basados en la alta mecanización de los cultivos, la aplicación de tecnologías agrícolas pesticidas, semillas y el uso de nuevas técnicas de cultivo. Además, se observa que fue en este contexto de polarización de la Guerra Fría que Brasil definió efectivamente su papel frente a las nuevas demandas del capitalismo, resultando, por ejemplo, en el acuerdo “MEC-USAID” y el establecimiento de nuevos lineamientos educativos, en un escenario de implementación de la dictadura cívico-militar, cuyos gobiernos articularon los mecanismos para nuevas relaciones entre capital y trabajo.
Palabras clave: Educación técnica; Educación; Dictadura civil-militar; Capitalismo; Materialismo histórico.
Introdução
A educação enquanto parte de um todo social é produto das interrelações entre sociedade, cultura, política e filosofia. Ou seja, a educação e, por consequência, o ensino, possuem raízes em um contexto histórico ideológico, o qual impacta na implantação e nos rumos seguidos pelas instituições. Nesse sentido, considerando a influência da doutrina positivista na educação do Rio Grande do Sul, de mentalidade significativamente progressista - tomando-se a visão positivista -, lança-se a pergunta: de que forma o pensamento proposto pela corrente filosófica positivista, nas décadas de 1950 a 1960 impactou na implantação da unidade de formação técnica de nível médio, isto é, o Colégio Agrícola, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e na sua esteira o Colégio Técnico Industrial (CTISM/UFSM).
Com base em tal problemática, o objetivo derradeiro do presente trabalho é traçar um panorama histórico-analítico sobre a implantação das escolas técnicas, na década de 1960, conectando-a à corrente filosófica positivista surgida na França no começo do século XIX, tendo como linha de trabalho o positivismo de Auguste Comte. Essa vertente foi dominante no Rio Grande do Sul a partir da implantação da República e do Governo de Júlio de Castilhos, com repercussão até o limite do período analisado, ou seja, década de 1960, considerando a implantação do Colégio Técnico Agrícola em 1963, e o Colégio Técnico Industrial em 1967, embora se possa afirmar que a corrente de pensamento positivista repercute até o presente em suas variantes. Tal contexto histórico – embora tenha sido recortado temporalmente para a pesquisa realizada – é decorrente de um longo período de predominância de uma parte da classe política originária da aristocracia rural gaúcha, cuja visão de exercício do poder era de cunho autoritário e pouco questionador; de líderes políticos regionais influenciados pela Revolução Francesa (1789–1799), dos efeitos das Revoluções Industriais (primeira e segunda) e da força da doutrina positivista comtiana.
O Rio Grande do Sul da época era dependente da agricultura e da pecuária extensiva e dominado pela aristocracia rural, bem como governado por líderes forjados sob o enfoque de tal doutrina. Isso se estendeu do final do século XIX (governo Júlio de Castilhos), adentrando o século XX, com os Governos de Borges de Medeiros e Getúlio Vargas, influenciando a política nacional a partir da Revolução de 1930, transcorrendo até o período posterior à Segunda Guerra Mundial. A sua característica no campo educacional fundamental era a de que os mais abastados, ou seja, a elite econômica e intelectual governava, e, portanto, ditava o que os mais pobres, os governados, deveriam fazer.
Assim, o processo histórico de implementação do Colégio Agrícola que inaugurou a implantação do ensino técnico de nível médio na UFSM, objeto de análise neste estudo, está intimamente ligado à modernização da atividade agropecuária, posterior ao fim da Segunda Guerra, ligada aos princípios produtivistas que consolidaram a chamada “Revolução Verde” e que pretendiam elevar o “status” dos países ditos “subdesenvolvidos” ou “de desenvolvimento tardio”, como o caso do Brasil. Vê-se assim o contexto histórico-temporal da implantação de um tipo de educação – a técnica em nível médio –, que não era prática comum no país, embora iniciativas esparsas ao longo do período Imperial e na República Velha tenham ocorrido, além da influência da corrente filosófica que dominava intelectualmente os governantes políticos nas décadas de 1950 e 1960, quando as unidades de ensino foram implantadas na UFSM.
Registre-se, por oportuno, que foram muitos os desafios para os envolvidos nesse processo simbiótico formado pelo ensino e pela aprendizagem, especialmente no que se refere à educação profissional no Brasil. As alterações vividas pelo sistema educacional brasileiro durante os governos de “JK”, Jânio/Jango e durante os governos ditatoriais militares pós 1964, bem como suas relações com os Planos Nacionais de Desenvolvimento e o chamado “Milagre Econômico Brasileiro” (1968-1973), embalado pela chamada “Era de Ouro” do capitalismo mundial, impactaram profundamente o ensino profissional de nível médio no Brasil. Isso porque as demandas promovidas pelas transformações tecnológicas desde meados do século XX exigiram a formação de trabalhadores adequados técnica e socialmente. Traçados tais parâmetros sobre o contexto envolvido na temática, passa-se à pesquisa.
Por que a História?
As bases para a estruturação do sistema de ensino do país remontam à chegada dos primeiros missionários religiosos, integrantes da “Companhia de Jesus”, os quais, pretensamente, se apresentaram como os guardiões da estrutura eclesiástica nas áreas coloniais e os responsáveis pela ordenação ideológica societal. Inclusive por isso, a ordem monopolizou o conhecimento dito científico, desde a Idade Média, no mundo ocidental. Esse modelo perdurou e influenciou profundamente a organização do sistema educacional nacional. No caso da área colonial portuguesa, a ação jesuítica se deu com base na organização de colégios com vistas à conversão indígena e, principalmente, a manutenção dos colonos sob a égide da doutrina religiosa cristã. A ascensão do Marques de Pombal ao poder em Portugal e as reformas que implantou e, em especial aquelas que levaram à expulsão dos padres da Companhia de Jesus das colônias portuguesas, repercutiram de forma profunda nas colônias lusas, especialmente no Brasil.
Iniciativas de formação educacional não foram exclusivas da Igreja Católica, mas durante o século XIX e início do século XX a educação de cunho confessional se fez presente de forma destacada em todo o território nacional, estruturando um modelo de ensino dicotômico, como antes dito, que já apontava para a desvinculação entre o “pensar” e o “fazer”. Isso porque durante os períodos colonial, imperial e até o fim da Primeira República (1889 – 1930), o acesso à educação formal restringiu-se a um pequeno grupo de pessoas privilegiadas social e economicamente, portanto, em condições de enviar seus filhos para estudos na Europa ou, mais tarde, para os grandes centros urbanos do país (GHIRALDELLI JR., 2001[A1] ).
Entretanto, para os filhos dos pobres, os chamados “desvalidos da sorte”, o destino era outro. No início do século XX, o acesso à instrução formal no Brasil, manteve-se marcadamente elitizado, voltado para a formação cultural e política das elites, membros da aristocracia rural. No entanto, já se delineavam algumas alterações em razão das pressões empreendidas por um novo contingente populacional: o operariado urbano. As influências trazidas pelos imigrantes europeus expulsos de suas nações pela ausência de recursos naturais e econômicos e as profundas transformações políticas e sociais, contribuíram para que esse processo de mudança se acelerasse.
O país agrário e dependente das exportações de açúcar, de algodão, café e de tabaco, que emergiu do século XIX com profundas mazelas e embalado por uma incipiente República, rendeu-se gradativamente à necessidade de adaptar-se ao novo contexto em nível mundial: o do liberalismo que viveu seus estertores na Europa e nos Estados Unidos do período entre guerras (1918-1939), com seu modelo de economia de mercado e de novas formas de produção e representação política, como se pode ver na obra biográfica de John Maynard Keynes. Essa nova estruturação exigiu que a educação preparasse as massas de trabalhadores para atender as suas novas demandas (SCHWARTZ, 1984).
Como já afirmado a educação não é um corpo desvinculado do todo social, a implantação desse modelo no Brasil, especialmente a partir da chegada de Getúlio Vargas ao poder e a política de “substituição de importações” exigida pelo contexto da Segunda Guerra Mundial, determinou uma mudança na concepção geral de processo educacional. Com isso, tem-se que:
No Brasil, a extensão da cidadania às classes subalternizadas expande-se a partir da Revolução de 1930, que direciona o Estado para o atendimento de direitos sociais dos trabalhadores. (...) Nesta ótica são entendidos como cidadãos aqueles cujas ocupações são reconhecidas e definidas legalmente. Embute-se a cidadania na ocupação e os direitos passam a ter como referência o lugar que o indivíduo ocupa no processo produtivo. Assim, a constituição da cidadania espelha as desigualdades do processo produtivo e deste modo o reforça (SPOSATI, 1998, p. 36).
Com o novo modelo socioeconômico voltado para a diversificação da economia, urbanização e industrialização, se fez necessária uma mudança no sistema educacional, o qual, por sua vez, impulsionou a ideia de uma possível transformação do país através da educação. A partir da nova ordem econômica e social e de seus reflexos políticos que exigiram alterações no sistema de ensino brasileiro, vislumbrou-se a possibilidade de transformações sociais do país através da educação. Desse quadro decorreu o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, e a criação de um Ministério da Educação (MEC), que iniciou sua história no governo de Getúlio Vargas, em 1930, quando levou o nome de “Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública”. Segundo Ghiraldelli Jr. (2001, p. 32) “O documento de 1932 partiu da premissa que a educação varia sempre em função de uma ‘concepção de vida’, refletindo, em cada época, a filosofia predominante que é determinada, a seu turno, pela estrutura da sociedade”. Acrescenta o autor que “Se a nova educação serviria somente ao indivíduo, ela o faria fundado no ‘princípio da vinculação da escola com o meio social’, meio este que, na atualidade moderna, estaria colocando como ideais da educação a ‘solidariedade’, o ‘serviço social’ e a ‘cooperação’”.
No período histórico seguinte, as políticas públicas implementadas pelo Estado Novo (1937/45) se basearam na necessidade política das classes dominantes estabelecerem instrumentos de condução e manipulação das crescentes massas operárias urbanas, através de aparelhos estatais, o que resultou em uma estrutura que respondia a algumas demandas sociais, ao mesmo tempo em que legitimava e mantinha Getúlio Vargas (1882 - 1954) à frente do processo político.
Assim é que, para compreender-se a educação profissionalizante no Brasil e contextualizar o processo de implantação do ensino técnico de nível médio na UFSM, nos anos 1960, faz-se necessária a análise da estruturação do ensino técnico no país desde a chamada “Era Vargas”, bem como a análise de sua interação com as mudanças de perfil de um país eminentemente rural, para um país urbano e industrial, o que somente se efetivou durante o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956 - 1960). Nesse viés, a educação pública, na medida em que o processo econômico do país sofria alterações em reflexo das mudanças operadas pelo capitalismo mundial, assumiu a função de preparar a mão de obra para suprir as novas demandas. Logo, a estruturação do que hoje se conhece como ensino técnico-profissional, remonta as transformações vividas pelo Brasil, em especial na primeira metade do século XX, mesmo que nos períodos anteriores tenham surgido algumas iniciativas, as quais se mostraram isoladas e efêmeras. No entanto, esse ensino ganhou ênfase a partir do já citado governo “JK”, intensificando-se, a partir de uma nova lógica, a do “adestramento”, durante os governos de cunho civil-militares (1964 a 1985). Para a compreensão do contexto histórico de mudanças no setor educacional do país, importante se faz a análise teórica da ciência histórica, tratada a seguir.
O processo histórico como recurso epistemológico
A compreensão do processo histórico da educação profissional no Brasil permite examiner, de modo mais acurado, a contradição entre o trabalho de base escravocrata, manual e operativo, e o trabalho dito intelectual e reflexivo, acessível à elite proprietária. Assim, ao se pretender compreender o caminho percorrido pela educação profissional e tecnológica no Brasil a partir da “Era Vargas” e sua ressignificação nas décadas seguintes, com vistas a contextualização do processo de criação do Colégio técnico agrícola de nível médio no âmbito da UFSM, no início da década de 1960 e do Colégio Técnico Industrial em 1967, impera lançar o olhar sobre o processo histórico e sua complexidade, refletida nos processos político, social e econômico de um país em transformações.
Para Burke (2003) a educação ou o “conhecimento” – como ele denomina – na modernidade, é compreensível através do contexto histórico das descobertas que caracterizam o período. O autor aborda a propagação da imprensa, do desenvolvimento das ciências e da tecnologia, da reforma religiosa (protestante), da urbanização e da apropriação do conhecimento pela Academia, como fatores determinantes da valorização social da educação. Porém, não é propriamente isso que se percebe quanto à implantação do ensino técnico no Brasil. Esse parece relacionar-se mais a políticas assistencialistas, voltadas a preparação de mão de obra para a indústria, agricultura e serviços sem preocupação com a superação da dicotomia entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, herança do escravismo, mantendo os privilégios de determinadas classes sociais. Ainda hoje, tal questão não foi adequadamente enfrentada, permanecendo como “fratura social”, ou seja, aqueles indivíduos oriundos das classes menos favorecidas são treinados para o chão de fábrica, enquanto os melhor aquinhoados, têm acesso a uma educação integral que lhes permite o acesso aos trabalhos tidos como “nobres”, socialmente valorizados e, portanto, melhor remunerados. A superação dessa discrepância é o grande desafio para uma mudança radical no ensino profissional e tecnológico no Brasil.
No campo educacional, esse pensamento foi reforçado pela ideologia paternalista e populista do governo Vargas. Porém, houve uma inflexão, como se pode aferir do excerto que segue:
No início dos anos 40 irá ocorrer “uma mudança qualitativa no comportamento assistencial do Estado e do empresariado em relação ao proletariado. As atitudes aparentemente paternalistas - absolutamente não desprovidas de interesse econômico - que geralmente procuravam responder, até mesmo preventivamente, e desvirtuar em seu conteúdo a pressão reivindicatória, devem ceder o lugar a uma política mais global, representativa de uma nova racionalidade” (SPOSATI et al, 1998, p. 46).
Essa mudança intensificou-se a partir da década de 1960, com o convênio MEC-USAID,que inspirou e apoiou a nova configuração do ensino profissionalizante no país, dando suporte econômico e técnico a todo o processo educativo relativo ao novo modelo. O pano de fundo do projeto e sua construção foi o conflito entre o capitalismo e o comunismo, o qual caracterizou o período histórico conhecido por Guerra Fria.
Arapiraca (1979), em sua dissertação sobre a USAID e a educação brasileira, aborda criticamente a teoria do capital humano e distingue as práticas escolares brasileiras sob dois modelos de influência ideológico-social: aquelas que emanam de sociedades que concentram o modo de produção no socialismo demandam um tipo de escola única e politécnica, e aquelas inseridas no sistema capitalista, por uma questão de coerência e princípio lógico, refletem uma educação baseada na diferença, a qual o autor chama de “escola de classe”.
A análise de um determinado período histórico implica em utilizarem-se não somente as informações que estão registradas através de diversas fontes, mas, sobretudo, emprestar uma nova significação aos fatos registrados com a visão do presente, o que será sempre uma tarefa difícil, complexa e altamente desafiadora, como antes dito. Nessa posição teórica e metodológica, o historiador se depara com questões do tipo: que conceitos inferir para tornar o texto atraente, informativo e cientificamente adequado? Quais os ramos da história se aproximam mais dos objetivos dimensionados? De quais elementos filosóficos, técnicos e ideológicos do extenso ferramental que a filosofia, a ciência histórica, a arqueologia, a antropologia, a sociologia ou mesmo a economia oferecem, irá se valer o investigador? Assim, é indispensável delimitar com quais desses elementos se irá trabalhar e, ao enfocá-los, definir qual é o ponto onde o observador estará colocado e de onde fará as suas investidas, na tentativa de construir seu discurso.
Portanto, para interpretar o processo histórico local e regional em que se deu a implantação do ensino técnico na UFSM, é fundamental tomar emprestado da história social e da história econômica conceitos estruturantes que auxiliem na reflexão sobre os diversos aspectos que se fizeram presentes nesse processo, quais sejam, o político, o social e o econômico, ou de cunho empresarial.
As categorias conceituais referidas, no caso brasileiro, foram expressas em políticas públicas gestadas a partir de um Estado em transformação, que precedeu a chegada da ditadura civil-militar ao poder. A dialética que envolveu a gênese da execução da unidade de ensino técnico de nível médio na UFSM impõe métodos e processos de reflexão que nos remetem aos pressupostos teóricos da história econômica do período posterior a 1945, especialmente o materialismo histórico, pelo instrumental que oferece à presente análise. Trata-se da utilização de elementos que proporcionam a indicação das consequências políticas e sociais do processo em questão, seguindo a linha que Hill (1987) utiliza ao analisar a “revolução” dentro da “revolução inglesa”. Em sua obra, o autor registra que
[...] estuda o que, de um ponto de vista, não passa de ideias e episódios secundários na Revolução Inglesa: as tentativas de vários grupos, formados em meio à gente simples do povo, para imporem as suas próprias soluções aos problemas de seu tempo, em oposição aos propósitos dos seus melhores, que os haviam chamado a ingressar na ação política (HILL, 1987, p. 442).
Sobre a análise compartimentalizada da sociedade de classe, Fragoso e Florentino (1997, p. 30), com base em Thompson (2004), afirmam que a experiência de classe se afere, em considerável nível, pelo contexto de relações de produção em que os seres humanos são criados, ou que adentram involuntariamente. Assim, ao examinar o processo de estruturação do ensino profissionalizante na UFSM, não se pode perder de vista a que público se desejava atender naquele cenário, ou seja, qual era a classe socioeconômica que se pretendia atingir, na medida em que as escolas surgiram, em âmbito local, sob a égide das relações econômicas estabelecidas e, portanto, vivenciadas por seus elementos (sujeitos).
A história das instituições escolares e a inserção do ensino técnico na Universidade Federal de Santa Maria: uma história à parte?
Para melhor aquilatar o processo de modernização da economia brasileira no período em estudo, imprescindível retroceder ao contexto da “Revolução” que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930, e que marcou o fim da Primeira República, ou seja, o fim da velha política do “café com leite”, em que as oligarquias paulista e mineira dominaram a cena política nacional.
Na concepção de Pesavento,
No decorrer da Primeira República brasileira, os industriais, que viviam o seu momento de afirmação, tiveram a sua atuação inserida e delimitada nos quadros de um estado oligárquico, conduzido segundo os interesses de uma burguesia agrária. O que se coloca em questão, todavia, é que as generalizações feitas para a República Velha como um todo não dão conta da heterogeneidade dos setores agrários nas diferentes regiões do País nem das composições específicas que são feitas, regionalmente, com as frações não agrárias da burguesia nacional (PESAVENTO, 1985, p. 57).
Na época, o Brasil dependia fundamentalmente das exportações de produtos primários, especialmente café, açúcar e algodão entre outros. As oligarquias paulistas e cariocas - já havia desde o fim do império uma dissidência mineira - mantinham-se no poder à custa dos esforços do restante do país, e as ideias fomentadas a partir da década de 1920, por movimentos como Revolta do Forte de Copacabana, Tenentismo, Coluna Prestes, Modernismo e Manifesto pela Educação Nova, compõem o cenário político e cultural para o movimento de ruptura da já citada política do “café com leite”.
Os anos que se seguiram à chegada de Vargas ao poder foram de agitações políticas e de mudanças nos padrões de decisões tomadas pelo centro irradiador do Rio de Janeiro, em que pese a tentativa de volta ao poder por parte dos paulistas, através da chamada Revolução Constitucionalista de 1932. Getúlio abafou e acabou com a insurreição, não, sem um grande acordo com as elites paulistas, firmando, em 1934 uma Constituição com forte influência alemã. Enquanto isso, o Rio Grande do Sul experimentava um primeiro surto desenvolvimentista no setor viário, com as reformas e a criação de órgãos estatais para dar suporte à modernização das estruturas de transporte, ligando as várias regiões do estado.
Convém registrar que as ideias de Augusto Comte (1983) embasavam as coordenadas de Borges nessa época, as quais objetivavam mudar os paradigmas da sociedade, transformando a mentalidade estatal. Nesse sentido, para Lessa (1985, p. 59) “A criação de uma mentalidade progressista, a partir de investimentos públicos no Ensino e na promoção da cultura, atraindo a participação dos segmentos privados e viabilizando o equilíbrio social mediante a incorporação do proletariado à sociedade”, era um preceito que remontava a Augusto Comte e à doutrina positivista.
A partir dessa mentalidade progressista e nitidamente positivista, o ensino foi sendo implantado, resultando, em Porto Alegre, nas Escolas de Medicina e Farmácia, na instalação da Escola Livre de Direito, de Engenharia, de Agronomia e de Veterinária. A filosofia para as universidades baseava-se na concentração de investimentos em “profissões realmente necessárias ao desenvolvimento, relegando-se a plano bem inferior os cursos meramente especulativos.” (LESSA, 1985, p. 60).
Na ótica positivista, o Rio Grande do Sul precisava caminhar a passos largos rumo à modernidade. A velha criação extensiva de gado, as charqueadas e os velhos métodos de gerir as estâncias e as criações de gado não mais respondiam às necessidades de competitividade com os Países do Prata, cuja estrutura frigorífica dominava os mercados internacionais com a exportação de carne frigorificada. Por isso, a necessidade de reformulação das bases desse sistema produtivo, o que possibilitaria, inclusive, apoiar os Estados Unidos da América durante a Segunda Grande Guerra. Assim, o Rio Grande do Sul passou a encomendar e a financiar embarcações frigoríficas e incentivar a criação de cooperativas rurais. No que dizia respeito ao contexto educacional nacional, a partir de 1932, como anteriormente referido, através do “Manifesto pela Educação Nova” (DEWEY, 1980) a questão ganhou um novo patamar, o que forçou Governo Vargas a tratar o assunto com maior atenção.
As primeiras iniciativas que configuraram as novas políticas para a educação brasileira foram: a inclusão de verbas para educação no orçamento da União, a legitimação da educação como direito social pela Constituição de 1934, o debate em torno da criação de um Ministério da Educação, em substituição ao Ministério da Saúde e Instrução e, na sequência, a promulgação da Lei Capanema, em 1942. O período em que Getúlio governou como ditador foi extremamente rico em debates e estudos sobre os caminhos que o Brasil deveria percorrer para desenvolver-se. Porém, nesses debates havia o consenso de que a via para que o país atingisse o desenvolvimento era a educação.
Getúlio foi deposto em 1945 e Eurico Gaspar Dutra venceu a eleição realizada naquele ano, sendo que, em certa medida, seguiu o receituário político e econômico de Vargas. Dutra era militar formado sob os influxos positivistas. Havia sido aluno da Escola Tática Militar de Rio Pardo (RS), em turma da época em que Getúlio fora aluno. Influenciado pelas ideias de Auguste Comte, deu sequência ao receituário getulista, tendo sido seu governo denominado de “Continuísmo Sem Getúlio”. Foi nesse contexto histórico que Getúlio incentivou a criação de escolas técnicas, acreditando na vocação agrária do Rio Grande do Sul. Dessa ideia originaram-se, por exemplo, a escola agrícola de São Vicente do Sul (1955), atualmente Instituto Federal Farroupilha e a escola agrícola de Alegrete. Lembra-se que Borges de Medeiros (“presidente” do Rio Grande Sul entre os períodos de 1898 - 1908 e 1913 -1928), já havia criado escolas técnicas e faculdades de veterinária e agronomia (Bairro da Agronomia, em Porto Alegre), o que seguiu quando o governador Leonel de Moura Brizola, afilhado político de Getúlio Vargas no antigo PTB, criou centenas de escolas no RS conhecidas como Brizoletas, algumas delas operando até hoje (LESSA, 1985).
Getúlio suicidou-se em 1954, seguindo-se uma crise institucional que culminou com a eleição, em 1955, de “JK” (PSD), o qual somente tomou posse após nova crise política. Com o novo governo, o processo de industrialização andou a pleno vapor e o Brasil foi lançado a um ousado projeto nacional desenvolvimentista com os chamados Planos de Metas, dentre os quais estavam novas metas para a Educação Nacional. Foi no governo JK, em 1960 que o projeto da Universidade de Santa Maria foi aprovado após anos de negociações políticas nacionais e estaduais. Segundo Isaia (2006, p. 123-127), após uma década de planejamento e arranjos políticos, fez-se o plano de construção de treze edifícios para um Centro Politécnico, que fazia parte dos planos para a Universidade, iniciando-se pelo Instituto de Eletrotécnica. Assim:
Em junho de 1958, realizou-se uma reunião da Associação Santa-mariense Pró-Ensino Superior, convocada especialmente para apreciar e decidir sobre o anteprojeto do Centro Politécnico, idealizado pelo Professor Mariano da Rocha, após seu retorno dos Estados Unidos e Europa, quando visitou campi de diversas universidades. [...] Em dezembro de 1960, quando foi assinada a Lei que criou a USM, a estrutura de concreto do bloco estava construída.
Os primeiros cursos em funcionamento foram os de Engenharia Civil e Engenharia Elétrica, evidenciando a prioridade técnica da formação ofertada. A universidade, pensada, na prática, para que os filhos da elite não precisassem ir até Porto Alegre para adquirir formação e, as escolas técnicas, para formar trabalhadores e capatazes, fomentou o crescimento da cidade, voltado ao comércio que atende o público das Universidades, dos centros religiosos e do Exército/Aeronáutica e, anteriormente, da via férrea, todos envolvendo um grande número de pessoas e instalações. Quadros (2012, p. 344) demonstra que Santa Maria, nos anos 1950, com a via férrea, se tornou um espaço de circulação do interior do Estado, relações e possibilidades variadas.
Originou-se, nesse contexto, o Colégio Agrícola de Santa Maria, sendo uma unidade de ensino vinculada à Universidade, tendo por finalidade atuar no Ensino Médio e na Educação Profissional nos diferentes níveis e modalidades. Sua criação deu-se pelo Decreto-lei Federal nº 3.864, de janeiro de 1961, denominando-o de Escola Agrotécnica de Santa Maria, subordinada à Superintendência do Ensino Agrícola e Veterinária do Ministério da Agricultura. Porém, seu funcionamento teve início em 1963. O Colégio Politécnico da UFSM inicialmente ofertava somente o Curso Técnico Agrícola, sendo este o único curso até 1996.
Desde a entrada em vigor da Lei Capanema (1941), o Brasil não vivia um momento de tamanha excitação e expectativas na área educacional. A ideia de criação de escolas técnicas vinculadas ao Estado brasileiro, conforme fizera Getúlio Vargas (SENAI, 1942 e SENAC, 1946), foi retomada no governo “JK”. Afinal, conforme destaca Couto (2011, p. 288), o lema do governante era: “O Brasil vai viver cinquenta anos em cinco”. Nesse ponto, as ideias do economista Celso Furtado foram as bases do novo planejamento como forma de estruturação das políticas públicas, bem aquelas propostas por outros pensadores como Roberto Campos, San Tiago Dantas e Osvaldo Bulhões.
Os anos 1960 foram marcados, no cenário internacional, pela hegemonia estadunidense, em que pese o elevado grau de desenvolvimento da URSS, que dominava a corrida armamentista e espacial. Os norte-americanos entenderam que precisavam correr contra o tempo e mostrar mais uma vez a sua força de inventividade e capacidade de superar adversidades. Lançaram a ideia de levar o homem à Lua antes do fim daquela década. Entretanto, não poderiam perder de vista aquilo que consideravam o seu “quintal”: a América Latina, especialmente após a Revolução Cubana, em 1959.
Para tanto, voltaram-se para a América Latina com propostas de desenvolvimento e apoio à área educacional. São exemplos dessas propostas os célebres convênios MEC/USAID, o aumento da produção de alimentos e a chamada “Revolução Verde” (ALVES, 1968). Porém, não descuidaram de manter os exércitos locais afinados com os interesses das empresas estrangeiras que invadiram os países das periferias capitalistas, para as quais eram necessárias escolas de formação técnica, com currículos e métodos de ensino voltados para o “adestramento” dos trabalhadores que deveriam manter-se privados da participação política.
Considerações finais
Este trabalho buscou responder de que forma o pensamento proposto pela corrente filosófica positivista impactou, nas décadas de 1950 a 1960, na implantação das primeiras unidades de formação técnica de nível médio no campus da UFSM, o Colégio Agrícola e o Colégio Técnico Industrial. Para responder o questionamento proposto, foi preciso adentrar em diversos ramos da História: os paradigmas econômicos, políticos e sociais, abordados através do método materialista histórico. Percebeu-se que a criação das estruturas pesquisadas foi impactada determinantemente pelos acontecimentos políticos e econômicos do início do século XX. A história das revoltas populares, dos levantes militares, da “Revolução de 1930”, da chegada, da deposição e do retorno de Vargas ao poder, dos governos “JK” e Jânio/Jango, da ditadura civil-militar, bem como do paradoxo causado pelo momento vivido pela Guerra Fria, dos convênios MEC/USAID e da “Revolução Verde”, tiveram uma influência significativa no modelo educacional brasileiro, motivando a implantação do ensino técnico em escolas públicas. Nesse ponto, é possível asseverar que a história da implantação do ensino técnico a partir do embasamento teórico-filosófico do positivismo trouxe caráter ressignificador à mudança do paradigma educacional no país.
Ao afirmar-se que a educação profissional teve sua história marcada pela disputa epistemológica e política, concluiu-se que a educação profissional e técnica no Brasil, desde o início do século XX, foram delineadas pelo ideário positivista de ordem, desenvolvimento e progresso. Tal ideário teve como centro irradiador a função executiva do Estado, que deu vazão ao pensamento da elite pensante, vale dizer, da burguesia empresarial, valorizando a hierarquia e a disciplina, na formação de mão de obra técnica, em detrimento de uma educação emancipadora do trabalhador.
Em âmbito estadual, denotou-se que, efetivamente, o ideário positivista inspirou a implantação do ensino técnico, impactando diretamente na criação das estruturas para a instalação de uma universidade no interior, no caso a UFSM. Através da análise pelo método escolhido, pôde-se inferir que aqueles que tinham acesso à educação técnica, atingiam a condição simplista de técnicos e capatazes, mas não iriam além do trabalho de “chão de fábrica”, o que corresponde ao ideário positivista de elevação da condição do proletariado através do trabalho, mas sem formação aliada à perspectiva de autonomia e independência.
Para tanto, é preciso compreender a dimensão histórica dessa modalidade de educação e das políticas geradoras das escolas implantadas na época, bem como o modelo por elas adotado. Aí reside a dimensão da relação entre presente e passado. Essa questão que tem orientado muitos pesquisadores desafiados pelas experiências pretéritas defendendo que é no passado que residem as referências para a nossa compreensão do presente. A história é apenas uma das possibilidades de se lidar com essas representações.
Um exemplo dessa apreensão está na relação entre os contextos históricos que embasaram a ampliação do ensino técnico no Brasil e no Rio Grande do Sul, especificamente, na década de 1960. Na época, o modelo de industrialização implantado a partir do “Plano de Metas” do governo de Juscelino Kubitschek e intensificado pelos chamados “Planos Nacionais de Desenvolvimento” dos governos do período ditatorial, aumentou a demanda por mão de obra especializada e exigiu a expansão da rede de ensino técnico voltado para os vários setores da economia, a saber: indústria, comércio, serviços, transportes e agropecuária.
No que diz respeito ao setor primário, mesmo que a “pseudo” modernização da agricultura brasileira tenha iniciado na segunda metade do século XIX, a “Revolução Verde” das décadas de 1960 e 1970 incrementou-a. Nesse período, o aumento da produção agrícola como instrumento de crescimento econômico e social para os países “em desenvolvimento”, fez com que, no Brasil, se estimulasse o incremento de tecnologias próprias, tanto por parte de instituições privadas, como de agências governamentais de fomento à pesquisa, como as fundações, empresas, institutos e Universidades.
Os contextos históricos acima referidos são indicativos importantes da necessidade de ampliação do ensino técnico profissionalizante de nível médio no país, sendo relevantes para o estudo na medida em que conecta o seu objeto à conjuntura política vivenciada na época em que as primeiras unidades técnicas de nível médio foram implantadas na UFSM. Nesse ponto, é válido adicionar, brevemente, às considerações finais, as motivações para a escolha do tema: observar as mudanças estruturais nas instituições estatais a partir do movimento do tempo faz com que haja melhor entendimento sobre os porquês das escolhas dos governantes e, principalmente, sobre as críticas feitas a tais opções estatais. Reafirma-se que, a partir da ideia de relacionar o passado e o presente, podem-se compreender as condições, rupturas e permanências da trajetória vivida pelo ensino técnico brasileiro em geral, e, no âmbito do RS e da UFSM, em particular.
A partir disso, sugere-se que as possibilidades do ensino técnico, além do que se pensou ao implantar, são infinitas. Conforme Figari (2007, p. 173), a integralidade dos saberes faz com que os conhecimentos teóricos não se desvaneçam, mas enraízem-se com a aprendizagem experimental. Compreende-se que as instituições técnicas não devam se limitar a formar e suprir a demanda de mão de obra especializada, mas formar trabalhadores competentes, capazes de intervir crítica e eficazmente na realidade, a fim de transformá-la através do aprimoramento e da humanização às atuais demandas do planeta, assim como, de criar e gerir, sem subestimar a importância e a necessidade do conhecimento técnico, mas valorizando-o e reconhecendo sua importância na formação das pessoas e da sociedade, tornando algo tão importante como a tecnologia, acessível e interessante a todos.
Em um país em que a base da mão de obra foi de natureza escravocrata por aproximadamente três séculos, e que essa base foi liberada a partir de um ato sem qualquer preocupação com as suas consequências sociais, pode-se compreender melhor as diretrizes das elites em relação às políticas públicas destinadas a atender a preparação de trabalhadores para o mercado. Como verificado anteriormente, no início do século XX, com a criação das escolas de artífices e mestres por Nilo Peçanha, a preocupação era oportunizar a incorporação, ao mercado de trabalho, dos “desvalidos da sorte”. O decreto de criação das escolas refere expressamente que um dos objetivos é prevenir a prática de delitos, ou seja, a questão tinha um cunho criminal, policialesco, distante da questão social.
Nessa mesma linha de pensamento, o ideário positivista pregava a incorporação da classe operária ao mercado de trabalho, sem qualquer consideração no que refere ao ensino para emancipação do sujeito. O ideário de Comte encontrou solo fértil no Rio Grande do Sul a partir do governo de Júlio de Castilhos e disseminou-se a partir do período de quase três décadas de mando de Borges de Medeiros. A partir do projeto de substituição de importações, implementado por Getúlio Vargas, formado politicamente sob os influxos positivistas, as mudanças no campo educacional não se distanciaram daquilo que foi delineado como política pública para a educação no período imediatamente anterior, durante a primeira república.
Na UFSM esse ideário positivista encontrou sua expressão máxima a partir da implantação das unidades de formação técnica de nível médio, na década de 1960, o Colégio Agrícola e o Colégio Técnico Industrial. Nele, os filhos dos trabalhadores passaram a dispor de um lugar no espaço aristocrático da primeira Universidade a surgir fora do âmbito das capitais federais. Mas não um lugar qualquer, e sim, o lugar que lhes cabia na estática social pensada por Comte, ou seja, de cidadãos que reconhecem, através da educação adestradora, o valor moralizador do trabalho. Assim, a dinâmica do progresso poderia ser atingida e garantida, além do que, se reservavam para os filhos das elites as vagas nos cursos superiores.
Por fim, pertinente referir que o presente trabalho não possui a finalidade de “colocar um ponto final” na discussão sobre a criação das instituições estatais ligadas à educação professional, precisamente no contexto analisado. Ao contrário, vislumbra-se, para o futuro, rica possibilidade de problemáticas do gênero, considerando-se as questões aqui suscitadas. Educação é assunto atemporal e, tendo-se em conta o atual momento brasileiro, é tema merecedor de continuidade, notadamente para que se trace o nexo causal entre os erros e os acertos do passado.
Referências
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[A1]De acordo com as novas normas da ABNT, apenas a primeira letra das citações deve ser mantida em maiúsculo.