Divisão digital e desigualdades educacionais nas redes pública e privada: uma investigação com dados do Exame Nacional do Ensino Médio no estado do Pará

Digital divide and educational inequalities in public and private schools: an investigation with data from the Exame Nacional do Ensino Médio in the state of Pará

División digital y desigualdades educativas en redes públicas y privadas: una investigación con datos del Exame Nacional do Ensino Médio en el estado de Pará

 

Vergas Vitória Andrade da Silva image001.gif

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil

vergas@ufpa.br   

 

Gustavo César de Macedo Ribeiroimage001.gif

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil

gustavo.cmr@gmail.com

           

Erick Henrique Lima Santos image001.gif   

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil

erick.h.l.santos@gmail.com

 

Recebido em 31 de dezembro de 2022

Aprovado em 16 de outubro de 2023

Publicado em 19 de setembro  de 2024

 

 

RESUMO

O artigo aborda o tema das desigualdades digitais e educacionais no Pará. Assentado no arcabouço teórico que enfatiza o peso do capital cultural na compreensão das disparidades de rendimento escolar, o trabalho busca responder à seguinte problematização: qual o papel do acesso digital desigual na reprodução da estrutura social? Elegendo o contexto pandêmico de 2020 como referência, o artigo visa analisar os dados socioeconômicos do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), comparando o ingresso ao ensino remoto nas redes pública e privada paraenses. Para tanto, utiliza-se de uma metodologia quantitativa, debruçando-se sobre as condições sociais de acesso a aparelhos celulares, computadores e conexão de internet. Os resultados revelam que, para a maioria dos estudantes de escolas públicas do Pará, a dependência de um único aparelho celular, a falta de um computador e a ausência de acesso à internet constituem fatores que multiplicam as dificuldades de acesso ao ensino remoto, contribuindo para a reprodução das desigualdades escolares preexistentes. Como conclusões, o artigo descreve as relações entre a posse de capital cultural objetivado e a qualidade do alcance às aulas remotas, desvendando o vínculo dissimulado que os sistemas de ensino mantêm com a estrutura das relações entre as classes.

 

Palavras-chave: Divisão digital; Desigualdades educacionais; Ensino público e privado.

 

ABSTRACT

The article discusses the relationship between the digital divide and educational inequalities. Based on a theoretical framework that emphasizes the weight of cultural capital in understanding disparities in school performance, the work seeks to answer the following question: what is the role of unequal digital access in the reproduction of the social structure? Choosing the 2020 pandemic context as a reference, the article aims to analyse socioeconomic data from the Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), comparing asymmetric enrolment to remote education in public and private networks in Pará. For this purpose, a quantitative methodology is used, focusing on the social conditions of access to cell phones, computers, and internet connection. The results reveal that for most students from public schools in the state of Pará, dependence on a single cell phone, lack of a computer and restricted internet access are factors that multiply difficulties in entering remote education, contributing to the reproduction of pre-existing school inequalities. At its conclusions, the article describes the relationship between the possession of objectified cultural capital and the quality of access to remote classes, revealing the hidden link that education systems maintain with the structure of relations between classes.

Keywords: Digital divide; Educational inequalities; Public and private education.

 

RESUMEN

El artículo aborda el tema de las desigualdades digitales y educativas en Pará. A partir del marco teórico que enfatiza el peso del capital cultural en la comprensión de las disparidades en el desempeño escolar, el trabajo busca responder a la siguiente pregunta: ¿Cuál es el papel del acceso digital desigual en la reproducción de la estructura social? Tomando como referencia el contexto de la pandemia de 2020, el artículo tiene como objetivo analizar datos socioeconómicos del Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), comparando el ingreso a la educación a distancia en redes públicas y privadas en Pará. Para ello se utiliza una metodología cuantitativa, centrándose en las condiciones sociales de acceso a teléfonos celulares, computadoras y conexiones a internet. Los resultados revelan que, para la mayoría de los estudiantes de escuelas públicas de Pará, la dependencia de un solo teléfono celular, la falta de computadora y la ausencia de acceso a Internet constituyen factores que multiplican las dificultades para acceder a la educación remota, contribuyendo a la reproducción de desigualdades escolares preexistentes. Como conclusiones, el artículo describe las relaciones entre la posesión de capital cultural objetivado y la calidad del acceso a clases remotas, develando el vínculo oculto que mantienen los sistemas educativos con la estructura de relaciones entre clases.

Palabras clave: Brecha digital; Desigualdades educativas; Educación pública y privada.

 

 

Introdução

 

Diversos autores, no campo da sociologia da educação, têm se debruçado sobre as persistentes disparidades de oportunidades educacionais, visando compreender processos de reprodução social derivada da instituição escolar (Bernstein, 1996; Bourdieu; Passeron, 2009, 2015; Setton, 2005; Seabra, 2009; Bonamino et al., 2010; Dubet; Duru-Bellat; Vérétout, 2012). O papel da educação como fator de estratificação social tem sido destacado em diversos trabalhos e pesquisas sobre a transmissão intergeracional de status social. Esses estudos são unânimes ao afirmar que as desigualdades educacionais influenciam a reprodução das desigualdades sociais, por ser a educação importante meio de ascensão social e econômica (Abrantes, 2011; Bourdieu, 2015; Draelants; Ballatore, 2021; Nogueira, 2021; Piotto; Nogueira, 2021; Valle, 2022; Knoblauch; Medeiros, 2022). Partindo dessas ponderações, o presente artigo assenta-se na linha dos trabalhos que visam lançar luz sobre a relação entre capital cultural e desigualdades sociais na educação básica. Trata-se de um estudo tributário da perspectiva segundo a qual as diferenças de êxito não residem apenas nas diferenças de esforço individual, mas no capital cultural adquirido no cerne da família (Palermo et al., 2014; Riani; Rios-Neto, 2008; Barros et al., 2001; Soares; Colares, 2006; Fernandes et al., 2018).

A literatura à qual nos filiamos vem produzindo volumosas evidências empíricas e construindo um panorama analítico sobre os efeitos da origem social sobre as diferenças de êxito escolar. Estudiosos pertencentes a essa corrente teórica demonstram que, no Brasil, assim como em outros países, o sistema educacional reproduz as disparidades socioeconômicas herdadas (Crahay; Baye, 2013). Isso ocorre porque, nas sociedades contemporâneas, “a reprodução da ordem social e a persistência de desigualdades e injustiças são promovidas, essencialmente, pelas estratégias escolares, que variam segundo o volume e a espécie de capital possuído” (Valle, 2022, p. 3). A perspectiva do capital cultural proposta por Bourdieu e Passeron (2009), como alternativa à ótica meritocrática de alocação de classes, considera que o nível sociocultural é determinante na compreensão das desigualdades educacionais e da reprodução social. Partindo da assertiva segundo a qual os bens econômicos não são os únicos recursos que dividem uma sociedade em classes, Bourdieu (2015, p. 81) assegura que “a noção de capital cultural impõe-se, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho escolar”.

Empregando a noção de capital cultural “como um patrimônio estimulado e transmitido pela família, capaz de gerar impacto na definição de um trajeto escolar bem-sucedido, ou não” (Knoblauch; Medeiros, p. 12, 2022), este trabalho discute as desigualdades educacionais e digitais próprias às redes de ensino pública e privada do estado do Pará, pois elas engendram variadas formas de segregação social. Neste cenário, o que se tem evidenciado é a persistência das distinções entre a qualidade de ensino, infraestrutura, metodologia e disposição das aulas conforme o tipo de instituição escolar frequentada.  A diferença entre o ensino público e privado carrega em seu âmago a chancela da desigualdade estrutural que caracteriza historicamente a organização educacional brasileira. As disparidades de oportunidades escolares tendem a ter repercussões materiais sobre a vida dos indivíduos, dificultando o acesso a bens culturais e simbólicos (Gusmão; Silveira Amorim, 2022). No contexto pandêmico, as defasagens educacionais se avolumaram, afetando, mais fortemente, estudantes das redes municipais e estaduais. Neste sentido, o funcionamento das escolas foi “assunto recorrente no contexto da pandemia, necessário de ser refletido para compreender como a educação se desenvolveu no contexto de isolamento social” (Czernisz; Mello, p. 10, 2022)

O cenário epidemiológico da Covid-19 abalou as estruturas econômicas e sociais em todo o mundo, provocando, além de milhões de vidas perdidas, desemprego e o acirramento das desigualdades (Carvalho, 2020; Gohn, 2020; Harvey, 2020; Santos, 2020; Attedi et al., 2020; Žižek, 2020). O campo escolar não passou ileso, sendo fortemente impactado pela interrupção das aulas presenciais em função dos lockdowns que passaram a ser implementados pelos governos para frear o contágio da doença (UNESCO, 2020). Nesta circunstância, o panorama escolar é redefinido a partir da adoção das medidas de distanciamento social e da implementação do ensino remoto. Num cenário já marcado por desigualdades de acesso e aprendizado entre as malhas da rede pública e da rede privada de ensino, esse novo contexto que se estabelece reconfigura estruturas e relações sociais. Nesta perspectiva, a interrupção das aulas presenciais como medida de prevenção da Covid-19 atinge as diferentes redes de ensino de maneira diversa, segundo suas “características territoriais, condições de infraestrutura, perfil do alunado e especificidades das diferentes etapas de ensino” (Instituto Península, 2020, p. 21). Apesar dos percentuais de interrupção das aulas presenciais serem próximos entres as redes estaduais, municipais e privadas de ensino num primeiro momento, 78%, 76% e 72%, respectivamente (Instituto Península, 2020), as redes privadas foram mais rápidas em promover atividades não presenciais como alternativa.

O estudo conduzido pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), entre abril e maio de 2020, afirma que, na rede municipal, 60% das escolas haviam suspendido as atividades presenciais, enquanto 40% ainda não havia programado atividades remotas. No que diz respeito ao acesso à internet, pressuposto base para o ensino remoto, embora 79% das famílias com estudantes matriculados na rede pública de ensino tivessem acesso à internet, 54% destes não tinham rede Wi-Fi, enquanto 46% utilizavam apenas o celular (CONSED; UNDIME, 2020). De acordo com a Pesquisa sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos domicílios brasileiros (NIC.BR, 2020), 75% das casas brasileiras têm acesso à internet, porém existem grandes variações de região para região, que precisam ser consideradas. Na comparação entre áreas urbanas e áreas rurais, as primeiras apresentam um percentual de domicílios com acesso à internet de 71%, contra 51% das segundas (NIC.BR, 2020). Observado um recorte por renda, tem-se que 50% das faixas "D" e "E" não têm acesso à internet, o que representa 13 milhões de domicílios (NIC.BR, 2020).

Partindo dessas considerações, pode-se inferir que, no contexto pandêmico, as já desiguais redes de ensino do país, tanto entre si, pelas características específicas de cada rede, como internamente, pelas diferenças de classe, raça e questões diversas de cada aluno/família, tornam-se ainda mais desiguais. Em outras palavras, a pandemia da Covid-19 escancara e amplia as desigualdades escolares e o papel de dupla reprodução social perpetrado pela instituição escolar (Silva, 2021a). Neste sentido, é relevante investigar as condições de acesso ao ensino remoto e ao capital cultural objetivado na posse de bens digitais, pois estes ganham proeminente importância no âmbito das investigações acerca da escola e do desempenho estudantil em tempos de pandemia. Pela redefinição do cenário escolar, é fundamental entender como o acesso ao ensino remoto se deu nas redes de ensino do Pará, identificando sua relação com a distribuição do capital cultural, de maneira que essa pesquisa possa contribuir para a melhoria e implementação de futuras políticas públicas de inclusão e desempenho na área educacional, bem como para futuros estudos neste campo. Dessa forma, busca-se contribuir para os recentes esforços acadêmicos no sentido de se compreender os impactos do contexto pandêmico sobre as desigualdades educacionais. Ademais, o presente artigo supre informações ainda incipientes sobre o estado do Pará ao produzir dados ausentes de fontes oficiais e publicações anteriores.

Ante o exposto, o artigo busca desenvolver uma investigação sobre as disparidades no acesso digital entre estudantes paraenses no contexto pandêmico da Covid-19, ano 2020, cujo desdobramento, conforme nossa perspectiva, supõe a reprodução das desigualdades escolares preexistentes. Adotando essa perspectiva como referência, o artigo tem como objetivo analisar os dados socioeconômicos do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM 2020 (INEP, 2022) comparando o acesso ao ensino remoto nas redes pública e privada do Pará. Nossa intenção é considerar o acesso digital como um capital cultural desigualmente repartido, que pode suscitar formas variadas de vantagens num contexto de suspensão das aulas presenciais. Para dar conta de tal propósito, este estudo busca elucidar a seguinte questão de pesquisa: qual o papel do acesso digital desigual na reprodução da estrutura social?

Conforme a perspectiva que tomamos como referência, a diferenciação no acesso digital agiria como um dispositivo segundo o qual as desigualdades escolares se reproduziriam. A posse de tecnologias de base digital passa obrigatoriamente pela posição social que os estudantes paraenses ocupam na estrutura da sociedade. Com base nisso, o artigo debruça-se sobre as condições socioeconômicas de acesso à internet, celulares e computadores de estudantes residentes no Pará e inscritos no ENEM 2020. Espera-se, portanto, que (1) a posse de capital cultural objetivado no acesso a bens digitais (celular, computador, internet) tenha desempenhado papel determinante no ingresso ao ensino remoto, de maneira que (2) esse ingresso tenha ocorrido de forma diferenciada nas redes privadas e públicas do Estado do Pará. Os principais resultados revelam deficiências associadas à infraestrutura de conexão e à disponibilidade de artefatos digitais por uma parcela significativa dos discentes da rede pública de ensino. O artigo conclui que o cenário epidemiológico, com suas repercussões para a área da educação, culmina como agravamento das relações entre desigualdades escolares e origem social, escancarando o vínculo dissimulado que a escola mantém com estrutura das relações entre as classes.

Além desta introdução e das considerações finais, este artigo está organizado em três seções. A primeira debate alguns aspectos das teorias da reprodução, apresentando o aporte teórico que sustenta a análise empreendida. A segunda seção descreve as estratégias metodológicas e os dados produzidos a partir de informações do Exame Nacional do Ensino Médio (INEP, 2020), focando nas variáveis: (i) posse de aparelhos celulares por rede de ensino; (ii) posse de computadores por rede de ensino; (iii) acesso à internet por rede de ensino e (iv) renda familiar por rede de ensino. A terceira e última seção discute os resultados da pesquisa, averiguando as chances de alargamento das desigualdades escolares num contexto em que o processo de ensino-aprendizagem foi mediado por tecnologias distribuídas desigualmente no Pará.

 

As desigualdades educacionais à luz das teorias da reprodução

  A investigação se ancora em uma abordagem teórico-metodológica das teorias da reprodução de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (2009, 2015), as quais, por intermédio do conceito de capital cultural, asseguram que estudantes de classes abastadas herdam de suas famílias “vários recursos culturais (linguagem, cultura geral, ferramentas intelectuais, disposições corporais e estéticas, modos de se comportar e falar, gostos refinados...) que se acumulariam e se transformariam, no contexto escolar, em vantagens reais” (Draelants; Ballatore, 2021,p. 6). Nas teorias da reprodução, a posse de capital cultural, assim como seu desapossamento, influencia sobremaneira o desempenho escolar. Trata-se de uma corrente teórica cujo pano de fundo é sintetizado nessa diretriz: “de todos os fatores de diferenciação, a origem social é sem dúvida aquela cuja influência exerce-se mais fortemente sobre o meio estudantil” (Bourdieu; Passeron, 2015, p. 27). Partindo dessas proposições, a abordagem teórica inaugurada por Bourdieu e Passeron (2009, 2015) fornece explicações importantes para pensar as desigualdades escolares a partir da premissa central de que:

 

os alunos não são indivíduos abstratos que competem em condições relativamente igualitárias na escola, mas atores socialmente constituídos que trazem, em larga medida incorporada, uma bagagem social e cultural diferenciada e mais ou menos rentável no mercado escolar (Nogueira; Nogueira, 2002, p. 18).

 

Ao tomar como ponto de partida a consideração dessa bagagem, Bourdieu (2007) afirma a centralidade do conceito de capital cultural para o entendimento das desigualdades escolares, relacionando, assim, o sucesso escolar à distribuição desigual dos capitais entre as classes. Desta maneira, o capital cultural, enquanto ativo capaz de conceder “benefícios específicos que as crianças das diferentes classes e frações de classe podem obter no mercado escolar” (Bourdieu, 2007, p. 73), é um conceito-chave que torna possível a reprodução da estrutura das relações de força entre as classes sociais e constitui um nexo que concilia exterioridade e interioridade, as perspectivas objetiva e subjetiva, apresentando-se como uma hipótese imprescindível para entender as desigualdades de desempenho escolar entre estudantes provenientes de diferentes classes sociais (Bourdieu, 2007). Neste entendimento, os mecanismos de reprodução social, abrigados pela escola e por ela legitimados, emergem “sob o véu da neutralidade, da racionalidade meritocrática, da democratização da educação” (Valle, 2015, p. 12).

Deste modo, o presente artigo parte da premissa de que o capital cultural é um fator de diferenciação no acesso aos resultados exitosos. É uma noção útil a essa pesquisa, pois fornece subsídios para explicar as desigualdades de rendimento escolar verificadas entre os alunos, “deslocando o eixo explicativo dos fatores de ordem individual (o “dom”, a inteligência, a aptidão etc.) para os fatores de ordem social, em particular, o meio sociocultural de pertencimento da criança” (Nogueira; Piotto, 2021, p. 02). À sombra dessa orientação, é importante ressaltar que o capital cultural se apresenta sob três formas: “no estado incorporado, ou seja, sob a forma de disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais (...); e, enfim, no estado institucionalizado” (Bourdieu, 2007, p. 74). Para atender aos propósitos desse artigo, o capital cultural que será por nós privilegiado é o capital cultural objetivado na posse de bens digitais (celulares, acesso à internet e computadores).

Ainda a respeito do capital cultural, vale destacar também que, para o desenvolvimento deste artigo, filiamo-nos ao seu “sentido amplo”. Conforme Nogueira (2021, p.12), “o papel do capital cultural continua sendo decisivo no contexto atual, desde que concebido em seu sentido amplo, que incorpora as novas dinâmicas culturais”. Seguindo a mesma linha de argumentação, Nogueira e Piotto (2021, p. 03) defendem que no sentido amplo

 

a definição alarga consideravelmente o conteúdo do conceito, estendendo-o às disposições dos indivíduos e a suas relações com os bens de cultura. [...] quando se adota a definição restrita de capital cultural, é possível colocar em dúvida seu papel central na explicação das desigualdades escolares atuais; em contrapartida, [...] esse não é o caso quando se adota a definição mais ampla, a qual estaria [...] em maior conformidade com o próprio pensamento de Bourdieu.

De todo o modo, é fundamental entender que o capital cultural em sua forma mais fundamental se encontra “ligado ao corpo e pressupõe a sua incorporação”, sendo “uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da pessoa, um habitus” (Bourdieu, 2007, p. 74), subdividindo-se em ethos, que equivale aos valores incorporados pelo indivíduo de maneira a guiar sua conduta, e hexis, que corresponde à postura corporal e linguagem (Almeida, 2005). Em sua forma objetivada, afirma Bourdieu (2007), o capital cultural só pode ser apropriado de fato pelo indivíduo se este tiver os instrumentos para tal. Dessa forma, algumas propriedades dos bens culturais enquanto capital cultural objetivado só se definem por sua relação com o capital cultural incorporado (Bourdieu, 2007). Seguindo essa linha de raciocínio, os bens culturais são passíveis de duas apropriações, uma é material, cujo requisito é o capital econômico, e a outra é simbólica, cujo requisito é o capital cultural (Bourdieu, 2007). Esta constatação é de grande importante para este artigo, pois ela dá conta de que não basta a posse de um bem cultural ou máquina sem a posse de um habitus que lhe permita fazer uso daquele capital ou utilizar a máquina para sua finalidade específica (Bourdieu, 2007).

Segundo a abordagem que tomamos como referência, o habitus “é o que se adquiriu, mas que se encarnou de forma duradoura no corpo sob a forma de disposições permanentes”. A noção lembra, portanto, “de forma constante, que ela se refere a algo histórico, que está ligada à história individual” (Bourdieu, 2019, p. 128). Refere-se aos “sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios organizadores de práticas e de representações” (Bourdieu, 2013, p. 8). As disposições do habitus são duráveis, na medida em que, sendo enraizadas nas pessoas, elas tendem a se perpetuar, a se reproduzir. Nesse sentido, o habitus, para Bourdieu (2019), é composto por maneiras de perceber o mundo, maneiras de julgá-lo e maneiras de comportar-se. Ou seja, ele se compõe ao mesmo tempo de estruturas mentais, através das quais os indivíduos apreendem o mundo social, e de suas manifestações corporais (Bourdieu, 2004).

Em suma, é com base nessa estrutura conceitual, privilegiando as noções de capital cultural e habitus, que este artigo analisa as condições sociais de acesso a bens digitais dos estudantes paraenses, corroborando “o debate sobre o peso diferenciado dos fatores econômicos e culturais no destino acadêmico dos estudantes, concluindo pela preponderância que o peso do fator cultural exerce sobre o desempenho escolar” (Nogueira; Piotto, 2021, p. 02).

 

Aspectos metodológicos e resultados

 

Este estudo se baseia na análise de dados socioeconômicos de candidatas(os) ao ENEM, em sua edição 2020, no estado do Pará (INEP, 2020). Dessa forma, analisamos um universo de 33.109 estudantes. Produzindo análises descritivas, elaboramos um conjunto de cruzamentos entre a variável “tipo de escola” (i.e. pública ou privada) e as seguintes características socioeconômicas: 1) Posse de celular (obtida por meio da pergunta “na sua residência, tem telefone celular?”); 2) Posse de computador (“na sua residência, tem computador?”); 3) Acesso à internet (“na sua residência, tem acesso à Internet?”); 4) Renda familiar (“qual é a renda mensal de sua família?”) (Para mais informações sobre as variáveis, cf. Anexo Metodológico).

Embora o celular seja um equipamento bastante massificado, ainda é possível identificar desigualdades em seu acesso quando se comparam as redes de ensino. Observa-se, na tabela 1 (abaixo), dos estudantes de escolas públicas, 3,7% não possuem celulares; enquanto 29,9% possuem um; 32,1% possuem dois; 22,3% possuem três; 11,8% possuem quatro ou mais. Dos estudantes de escolas privadas, apenas 1,6% não possuem celulares; enquanto 5,9% (possuem um); 19,1% (possuem dois); 36,4% (possuem três); 36,9% (possuem quatro ou mais). Ao passo que, entre estudantes de escolas privadas, as respostas com maior frequência são as que apontam a posse de três ou mais aparelhos celulares, representando 73% do total para esta rede; entre alunos oriundos de escolas públicas, a resposta mais frequente foi no sentido de que possuem um ou dois aparelhos, representando 62% do total para esta rede de ensino. Além disso, chama-nos a atenção o fato de o percentual de estudantes que não possuem celulares ser maior entre aqueles que são oriundos de escolas públicas.

 

 

Tabela 1: Tipo de escola por posse de celular no Pará

 

TELEFONE CELULAR

 

Estudantes

Escola Pública

Estudantes

Escola Privada

 

Total de estudantes paraenses

Não possui celular

3,7%

1,6%

3,4%

Sim, um

29,9%

5,9%

26,1%

Sim, dois

32,1%

19,1%

30%

Sim, três

22,3%

36,4%

24,5%

Sim, quatro ou mais

11,8%

36,9%

15,8%

Não se aplica

0,2%

0,1%

0,2%

TOTAL

100%

100%

100%

Fonte: Elaboração própria; INEP (2020).

 

 

Ao observar os dados que se referem à posse de computador em casa, a disparidade é ainda maior entre as duas redes de ensino. É possível notar que, na tabela 2 (abaixo), dos estudantes de escolas públicas no Pará, 76,9% não possuem computadores; 20,3% possuem um; 2,1% dois; 0,5% três e 0,2% possuem quatro ou mais. Em contrapartida, dos estudantes paraenses oriundos de escolas privadas, apenas 26,4% não possuem computadores; possuem um (46,3%); dois (17,3%); três (7%); quatro ou mais (2,8%).

 

Tabela 2: Tipo de escola por posse de computador no Pará

 

COMPUTADOR

Estudantes

Escola Pública

Estudantes

Escola Privada

 

Total de estudantes paraenses

Não possui computador

76,9%

26,4%

69%

Sim, um

20,3%

46,3%

24,3%

Sim, dois

2,1%

17,3%

4,4%

Sim, três

0,5%

7%

1,5%

Sim, quatro ou mais

0,2%

2,8%

0,6%

Não se aplica

0,2%

0,1%

0,2%

TOTAL

100%

100%

100%

Fonte: Elaboração própria; INEP (2020).

 

 

A modalidade “ensino remoto” supunha a presença de conexão de internet sob pena de não vir a ser. Conforme a tabela 3 (abaixo), dos estudantes de escolas públicas do Pará, 42,9% afirmaram não ter acesso à internet em casa; ao passo que 56,9% sim. Em comparação com os estudantes de escolas privadas, apenas 5,9% não dispõem de internet em sua residência; enquanto 94% possuem internet em casa. Mesmo levando em conta que a estratégia adotada pela Secretaria de Educação do estado do Pará optou por utilizar a televisão para transmitir as aulas, o que supostamente dispensa o acesso à internet, as baterias de exercícios disponibilizados precisavam ser baixadas (CONSED, 2020). Ou seja, para 42,9% do alunado proveniente da rede pública de ensino, não houve possibilidade de nem sequer acessar o ensino remoto em sua integralidade.

 

Tabela 3: Tipo de escola por acesso à internet no domicílio do Pará

 

ACESSO À INTERNET

 

Estudantes

Escola Pública

Estudantes

Escola Privada

 

Total de estudantes paraenses

 

Não

42,9%

5,9%

37,1%

Sim

56,9%

94%

62,7%

Não se aplica

0,2%

0,1%

0,2%

TOTAL

100%

100%

100%

Fonte: Elaboração própria; INEP (2020).

 

 

A observação dos dados acerca da renda familiar mensal dos estudantes das duas redes de ensino corrobora a disparidade apontada nos dados apresentados anteriormente. De forma quase previsível, as desigualdades digitais acompanham as desigualdades econômicas. Conforme é possível averiguar na tabela 4 (abaixo), dos estudantes paraenses de escolas públicas, 12,73% encontram-se sem renda alguma; ao posso que, dos estudantes de escolas privadas, o percentual é de apenas 1,2%. Das famílias que ganham até R$ 1.045,00, 48,73% são de escolas públicas e 9,1% de escolas privadas. O mesmo ocorre com a renda familiar de R$ 1.045,01 até R$ 1.567,50, 16,52% pertencem a estudantes da rede de ensino pública e 9,7%, privada. Levando em conta só esses números, verifica-se um desequilíbrio na renda familiar segundo a rede de ensino frequentada. Ainda é interessante notar que, entre estudantes matriculados em escolas públicas, as respostas com as maiores frequências foram aquelas caracterizadas pela menor renda, partindo da ausência de renda (12,73%), passando pela faixa até R$ 1.045,00 (48,73%) e chegando à faixa entre R$ 1.045,01 e R$ 1.567,50 (16,52%), totalizando 77,98% do total, que se distribui de maneira decrescente à medida que as faixas de renda aumentam. Por outro lado, entre estudantes matriculados em escolas privadas, as maiores frequências das respostas se encontram mais igualmente distribuídas entre as faixas de renda, de maneira que, entre R$ 1.045,00 e R$ 4.180,00, as porcentagens das respostas se encontram entre 7,2% e 10,9%, concentrando 57,1% do total, distribuídos em seis faixas de renda subsequentes.

 

Tabela 4: Tipo de escola por renda familiar no Pará

 

RENDA FAMILIAR

 

Estudantes

Escola Pública

Estudantes

Escola Privada

 

Total de estudantes paraenses

 

Nenhuma Renda

12,73%

1,2%

10,9%

Até R$ 1.045,00

48,73%

9,1%

42,5%

De R$ 1.045,01 até R$ 1.567,50

16,52%

9,7%

15,4%

De R$ 1.567,51 até R$ 2.090,00

8,7%

10,9%

9,1%

De R$ 2.090,01 até R$ 2.612,50

3,57%

7,2%

4,1%

De R$ 2.612,51 até R$ 3.135,00

3,26%

10,7%

4,4%

De R$ 3.135,01 até R$ 4.180,00

2,44%

9,5%

3,5%

De R$ 4.180,01 até R$ 5.225,00

1,52%

8,6%

2,6%

De R$ 5.225,01 até R$ 6.270,00

0,81%

6,3%

1,7%

De R$ 6.270,01 até R$ 7.315,00

0,38%

3,7%

0,9%

De R$ 7.315,01 até R$ 8.360,00

0,26%

3%

0,7%

De R$ 8.360,01 até R$ 9.405,00

0,18%

2,6%

0,6%

De R$ 9.405,01 até R$ 10.450,00

0,23%

3,9%

0,8%

De R$ 10.450,01 até R$ 12.540,00

0,16%

3%

0,6%

De R$ 12.540,01 até R$ 15.675,00

0,12%

3%

0,6%

De R$ 15.675,01 até R$ 20.900,00

0,09%

3,7%

0,7%

Acima de R$ 20.900,00

0,07%

3,8%

0,7

Não se aplica

0,2%

0,1%

0,2%

TOTAL

100%

100%

100%

Fonte: Elaboração própria; INEP (2020).

 

 

Comentários sobre os dados

Em face dos dados produzidos, é possível formular respostas à problemática de pesquisa proposta. Sendo assim, partimos de uma observação basilar, pano de fundo no qual se assenta o objeto de estudo desta pesquisa, qual seja: no cenário epidemiológico da Covid-19, as contradições e desigualdades intrínsecas ao ano 2020 apresentam-se de forma patente, avolumando as desigualdades entre as redes de ensino no Pará. Esse fenômeno é fruto e espelho de uma sociedade assentada em relações sociais desiguais, que pune grupos mais desfavorecidos economicamente. Nesse cenário dissonante, as debilidades de acesso digital ganham forma, podendo, com isso, contribuir para a perpetuação das desigualdades escolares.

 Consequentemente, os dados sobre a posse de celular parecem importantes, pois podem apontar para uma maior disponibilidade dos estudantes de escolas privadas de dedicar um ou mais aparelhos exclusivamente para as aulas e exercícios escolares, deixando os demais para outras atividades, o que pode filtrar as distrações oriundas de notificações de aplicativos, como WhatsApp, Facebook, Instagram, por exemplo. Enquanto para a maioria dos estudantes da rede pública um único aparelho acumula todas as funções, de estudo, de lazer, de comunicação etc. – o que certamente pode se tornar um fator de dificuldade, sobretudo para aqueles que acessaram ao ensino remoto, exclusivamente, por meio de aparelhos celulares. Vale salientar que as desigualdades que se verificam na posse de celular por rede de ensino são, segundo nossa análise, tributárias das fissuras que resultam do modelo de distribuição do acesso digital que já existia antes da pandemia e se agrava com ela. O que se evidencia é que o ingresso às aulas remotas pode ter sido um fator discriminatório e desigual, mais fácil para uns grupos do que para outros.

Da mesma forma, os dados sobre acesso a computadores reforçam os indícios de reprodução das desigualdades. Uma vez que a maioria dos estudantes da rede pública afirmaram não dispor desse recurso, depreende-se que, para eles, o aparelho celular representou a única forma de acesso ao ensino remoto disponível via internet e, desta forma, representou um fator a mais de dificuldade não apenas ao acesso, mas para a qualidade do aproveitamento deste ensino remoto. Ou seja, a maioria dos estudantes de escolas públicas paraenses assistiram às aulas remotas num instrumento limitado, cuja qualidade de leitura e escrita é bastante diminuta quando comparada a um computador. Apoiado nisso, inferimos que a disparidade de acesso a equipamentos adequados às aulas remotas, que a pandemia só tornou cristalina, parece ter afetado, mais fortemente, estudantes oriundos de escolas públicas. Embora a Covid-19 tenha potencial de afetar a todas as pessoas do planeta, seus efeitos são crivados por meio de discriminações costumeiras (Santos, 2020). Nossos dados demonstram que nem todos são atingidos da mesma forma. No Pará, a Covid-19 constituiu-se numa condição socialmente imposta e desigualmente distribuída (Silva, 2021b). Interessa reter que a presença ou a ausência de um computador no domicílio pode ser um fator de diferenciação crucial, com consequências decisivas para o destino escolar desses estudantes.

Tendo em vista a baixa capacidade de conexão dos discentes da rede pública à internet, torna-se possível observar que o trabalho pedagógico, no que se refere ao ensino/aprendizagem e à avaliação, encontrou-se prejudicado. Como notamos anteriormente, tal fato prejudicava o acesso à integralidade de atividades disponibilizadas pela Secretaria de Educação aos estudantes. Por conseguinte, sendo a ação pedagógica o meio pelo qual a escola tenta inculcar no estudante um habitus secundário, que reflete os valores e conhecimentos da classe dominante (Bourdieu; Passeron, 2009), a própria função primária da escola, que já apresentava dificuldades do ponto de vista concreto, não se realizou nem em seus aspectos formais para parcela substancial do corpo discente. É nesse sentido que tendemos a afirmar que as desigualdades digitais mobilizam desigualdades educacionais. Afinal de contas, de acordo com a constatação de Salata et al. (2013, p. 292), “a posse de computador com acesso à internet nos domicílios tem-se mostrado um importante fator na explicação dos diferenciais de desempenho escolar de crianças, adolescentes e jovens”.

No que concerne ao perfil do alunado da rede pública em termos de renda, como esperado, houve uma tendência à concentração nas faixas de baixos rendimentos. No sentido contrário, estão as famílias de estudantes das escolas particulares, concentradas nas maiores faixas de renda. Tal dado vai no sentido da tendência afirmada por Nogueira (2021), segundo a qual as famílias mais abastadas tendem a investir capital financeiro em estratégias para o sucesso escolar de seus filhos, entre eles, a escolha de escolas mais bem classificadas, seja em rankings ou com melhor reputação. Em síntese, vale ressaltar, ainda, que os dados sobre a renda familiar, anteriormente discutidos, não são inéditos, tampouco inerentes à conjuntura epidemiológico de 2020. Ao contrário, revelam as repercussões próprias às desigualdades sociais preexistentes, caracterizadas pela divisão de uma sociedade em classes.

 

Considerações finais

 

Com base nos dados levantados a partir das informações socioeconômicas do ENEM 2020 (INEP, 2020), este artigo se propôs a avaliar como se deu o acesso dos estudantes do ensino médio paraenses ao ensino remoto emergencial. Com base no referencial teórico das teorias da reprodução, mais proeminentemente Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (2009,2015), foi possível evidenciar como a posse de capital cultural objetivada em qualidade ao ensino remoto tornou evidentes as disparidades entre estudantes das redes pública e privada. Para a maioria dos estudantes da escola pública, a dependência de um único aparelho celular, a falta de um computador e a ausência de acesso à internet, constatados nos resultados, constituíram-se em fatores que concorreram para avolumar as dificuldades para o acesso ao ensino remoto e, assim, multiplicar as desigualdades escolares já presentes entre as redes. Desse modo, os dados produzidos se conformaram no sentido esperado – a posse de capital cultural objetivado foi determinante para o acesso ao ensino remoto; esse acesso se deu de forma diferenciada entre as redes pública e privada de ensino. Desta maneira, uma vez descrito como o acesso à educação de qualidade se deu de forma diferenciada entre diferentes origens sociais, este artigo contribui para ampliar a análise de aspectos não abarcados por fontes como as sinopses estatísticas do ENEM 2020. Por extensão, visamos, através do presente escrito, contribuir para a compreensão de aspecto relevante em relação às desigualdades escolares do estado do Pará, bem como para a formulação de políticas públicas no sentido de mitigá-las. 

Em suma, os dados levantados e analisados permitiram traçar um panorama que pode ser considerado desfavorável para os estudantes de escolas públicas paraenses. Segundo as informações aqui produzidas, essas desigualdades se materializam na ausência de bens culturais (celular, computador e internet), isto é, pela privação de capital cultural em sua forma objetivada, que se tornaram condição sine qua non para o acesso ao ensino, naquele momento remoto. Deve-se observar que as disparidades encontradas entre o capital cultural objetivado, possuído pelos estudantes das redes pública e privada de ensino, diferentemente da situação típica e pré-pandêmica, onde o déficit de capital cultural se converte em desvantagem em função das hierarquias escolares, impostas pelo arbitrário cultural e dissimuladas pela ideologia do dom, que reproduzem as hierarquias sociais (Bourdieu; Passeron, 2009), no contexto pandêmico, em vez de serem apenas reproduzidas, multiplicam-se também, de tal forma que o acesso ao ensino remoto, para muitos estudantes de escolas públicas, se impossibilita antes que possa ocorrer a ação pedagógica e a violência simbólica que lhe é própria e que torna possível a reprodução social, “definida como reprodução das relações de força entre as classes” (Bourdieu; Passeron, 2009, p. 25).

Neste sentido, nossa análise sustenta, em síntese, que as deficiências de acesso aos bens digitais concorrem à reprodução da estrutura social. Este artigo permitiu constatar que as redes de ensino tendem a reproduzir, de forma dissimulada, as desigualdades sociais por meio do estabelecimento de uma relação estreita entre capital cultural objetivado na posse de celular, computador e internet e a qualidade do alcance às aulas remotas, demonstrando como as classes sociais e a instituição escolar se vinculam. A função de perpetuação das desigualdades, em face da cultura transmitida de forma diferenciada pelas escolas públicas e privadas, pode transformar privilégios socialmente condicionados em méritos. Nesses termos, a rede de ensino frequentada (pública ou particular) figura como um fator de diferenciação escolar. A posse de capital cultural objetivado supõe a posse de um habitus que permite aos estudantes paraenses vivenciarem o ensino remoto de forma mais qualificada. Por fim, nunca é demais lembrar que “é por vias secretas, e amplamente legitimadas, que o sistema de ensino atua na fabricação de uma verdadeira ‘aristocracia social’, obscurecendo a dimensão formal do princípio da igualdade de oportunidades” (Valle, 2015, p. 10).

No contexto pandêmico, o acesso desequilibrado às aprendizagens escolares tende a reforçara estratificação digital/social, bem como reiterar desvantagens educacionais vivenciadas por alunos das escolas públicas do Pará. Nestes termos, o acesso às tecnologias de base digital pode ser tomado enquanto uma moeda desigualmente dividida, legando privilégios variados a poucos estudantes. Portanto, a posse de celular, computador e internet, na pandemia, pôde funcionar enquanto um elemento de distinção social, contribuindo para a (re)ordenação de dominações e posições de classes no campo do saber institucionalizado.

 

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Anexo Metodológico

Quadro 1: Código original, questão e categorias – Variáveis do Banco de dados ENEM 2020

Cód. ENEM 2020

Questão

Categoria

TP_ESCOLA

Tipo de escola do Ensino Médio

Não Respondeu

Pública

Privada

Exterior

Q022

Na sua residência, tem telefone celular?

Não.

Sim, um.

Sim, dois.

Sim, três.

Sim, quatro ou mais.

Q024

Na sua residência, tem computador?

Não.

Sim, um.

Sim, dois.

Sim, três.

Sim, quatro ou mais.

Q025

Na sua residência, tem acesso à Internet?

Não.

Sim.

Q006

Qual é a renda mensal de sua família? (Some a sua renda com a dos seus familiares.)

Nenhuma Renda

Até R$ 1.045,00

De R$ 1.045,01 até R$ 1.567,50

De R$ 1.567,51 até R$ 2.090,00

De R$ 2.090,01 até R$ 2.612,50

De R$ 2.612,51 até R$ 3.135,00

De R$ 3.135,01 até R$ 4.180,00

De R$ 4.180,01 até R$ 5.225,00

De R$ 5.225,01 até R$ 6.270,00

De R$ 6.270,01 até R$ 7.315,00

De R$ 7.315,01 até R$ 8.360,00

De R$ 8.360,01 até R$ 9.405,00

De R$ 9.405,01 até R$ 10.450,00

De R$ 10.450,01 até R$ 12.540,00

De R$ 12.540,01 até R$ 15.675,00

De R$ 15.675,01 até R$ 20.900,00

Acima de R$ 20.900,00

Fonte: Elaboração própria; INEP (2020).

 

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