Cursinhos Populares enquanto ação afirmativa: potencialidades no acesso ao Ensino Superior

University Preparatory Popular Courses as affirmative action: potentialities in access to Higher Education

Cursos Preparatorios Populares como acción afirmativa: potencialidades en el acceso a la Educación Superior

 

Caroline Rocha Campagni https://lh7-us.googleusercontent.com/h9Ojv87ptVEgwx8PXehJNWB6RbeDlpXgP9wEPNuQgEiN1MWZqOYypeCQ59qJzbAdKq2NWcCoCxu9ig7Uxj9DQGeZQd62p5GHyOeol1sBa83pp3fhKd6TWJ4p1GJxaptf9Bd5r7OgGMw4FOSfvYdyTA

Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP, Brasil

c.campagni@unesp.br

Débora Cristina Fonseca https://lh7-us.googleusercontent.com/h9Ojv87ptVEgwx8PXehJNWB6RbeDlpXgP9wEPNuQgEiN1MWZqOYypeCQ59qJzbAdKq2NWcCoCxu9ig7Uxj9DQGeZQd62p5GHyOeol1sBa83pp3fhKd6TWJ4p1GJxaptf9Bd5r7OgGMw4FOSfvYdyTA

Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP, Brasil

debora.fonseca@unesp.br

 

Recebido em 17 de dezembro de 2022

Aprovado em 20 de dezembro de 2022

Publicado em 26 de março de 2024

 

RESUMO

A história dos (des)caminhos da Educação Básica no Brasil acarretou exclusão da população pobre dos níveis mais elevados de ensino, e nesse cenário surgiram os Cursinhos Populares[1] como forma de ação afirmativa (AA), visando o acesso da população marginalizada à universidade. Neste artigo apresentamos parte dos resultados de um estudo de caso, e aqui objetivamos discutir se, e como um Cursinho Popular do interior de São Paulo (TRIU) contribui para o acesso de alunos ao Ensino Superior. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho interpretativo e crítico, e foi orientado a partir das concepções de Freire e Hooks. Os procedimentos adotados para a obtenção de dados foram: análise documental, aplicação de questionários e entrevista semiestruturada. Como ferramenta de análise foi utilizada a Análise de Conteúdo de Bardin (2004). Ao longo da pesquisa pudemos perceber que a pedagogia do afeto, a educação popular e o acolhimento praticados no TRIU são fundamentais para que exista um aprendizado efetivo dos conteúdos, e o consequente ingresso de seus estudantes nas Instituições de Ensino Superior (IES).

Palavras-chave: Ação afirmativa; Cursinhos Populares; Política de acesso.

 

ABSTRACT

The history of (not)paths of Basic Education in Brazil excluded the poor from higher levels of education, and In this sense, the emergence of University Preparatory Popular Course comes as a form of affirmative action, which aims to help the marginalized population access the university. In this paper we present part of the results of a case study that seeks to discuss if and how the TRIU, a Pre-University Course in the countryside of São Paulo, expands the possibilities of students' access to Higher Education. This work is a qualitative research of an interpretative and critic nature and was guided by the concepts of Freire and Hooks. To obtain data we analyzed documents, applied questionnaires and conducted semi-structured interviews. All collected data was analyzed through Content Analysis (BARDIN, 2004).  This research found that the pedagogy of affection, popular education, the reception practiced in the TRIU have an important role  for there to be an effective learning of the contents, triggering the entry of its students in the Higher Education Institution.

Keywords: Affirmative action; University Preparatory Popular Course; Access policies.

 

RESUMEN

La historia de los (des)caminos de la Educación Básica en Brasil resultó en la exclusión de la población pobre de los niveles más altos de educación, y en ese escenario los Cursos Preparatorios Populares surgieron como una forma de acción afirmativa (AA), con el objetivo de dar el acceso de la población marginada a la universidad. En este artículo presentamos parte de los resultados de un estudio de caso, y aquí pretendemos discutir si y cómo un Curso Preparatorio Popular en el interior de São Paulo (TRIU) contribuye al acceso de los estudiantes a la Educación Superior. Se trata de una investigación cualitativa de carácter interpretativo y crítico, y estuvo guiada por los conceptos de Freire y Hooks. Los procedimientos adoptados para la obtención de datos fueron: análisis de documentos, aplicación de cuestionarios y entrevistas semiestructuradas. Como herramienta de análisis se utilizó el Análisis de Contenido de Bardin (2004). A lo largo de la investigación pudimos constatar que la pedagogía del afecto, la educación popular y la acogida que se practica en el TRIU son fundamentales para el aprendizaje efectivo de los contenidos, y el consecuente ingreso de sus estudiantes a las Instituciones de Educación Superior (IES).

Palabras clave: Acción afirmativa; Cursos Preparatorios Populares; Política de acceso.

 

 

Introdução

A Educação Básica no Brasil é marcada por déficits históricos que fazem com que, em regra, não contemple, não atraia e não permita permanecer em seu espaço e nem seja significativa, afetiva e efetiva para a pluralidade de estudantes que existem no país. Na história da Educação Básica pública no Brasil, podemos afirmar que essa educação foi pensada e projetada para atender às diferentes demandas das camadas sociais com diferentes intenções, mas com o objetivo de manutenção do status quo e produção de mão de obra. Assim, para as camadas mais pobres, tornou-se mais viável o ensino técnico, voltado ao mercado de trabalho, enquanto às elites foram resguardadas amplas possibilidades de ingresso no Ensino Superior (NASCIMENTO, 2007; SAVIANI, 2004). 

Somado a isso, principalmente após 1990 as escolas privadas começaram a ganhar espaço e atender as classes dominantes brasileiras se apoiando em dois pilares: a educação como investimento e a qualidade de ensino (CUNHA, 1985). Em contraponto, a Educação Pública foi sendo sucateada, invisibilizada e destinada à população carente que não podia pagar pelo ensino privado. Esse fator reflete a desigualdade social do Brasil; quem são os destinatários da Educação pública brasileira; qual é o caráter dessa educação; e quais possibilidades são dadas aos diferentes estratos socioeconômicos.

Diante disso, é necessário nos colocarmos a reflexão sobre a negação-afirmação do direito à educação, seguindo o raciocínio de Arroyo (2015), sob a ótica do poder-saber:

 

[...]nosso sistema escolar e as identidades das escolas, públicas, sobretudo, e de seus profissionais foram construídos tendo como referente os seus destinatários, os trabalhadores, os pobres, os camponeses, os negros, mas pensados e alocados como inferiores no poder-saber. A histórica visão negativa desses coletivos marcaram e continuam marcando a lenta garantia de seus direitos à educação, à escola e à universidade (ARROYO, 2015, p.17).

 

Os alunos que ficam às margens do processo educativo são aqueles que já estão às margens socialmente, e que são atravessados cotidianamente pelas consequências da desigualdade social. A educação não pode ser fator limitante na vida dos estudantes, é preciso que  atue como expansor de possibilidades para que eles possam ter chances de escolher os caminhos que irão trilhar e não permanecerem naquilo que socialmente lhes foi dado como única possibilidade.

Cientes das dificuldades da Educação Básica pública e as possibilidades que esta etapa de ensino oferece, podemos pensar a quem então destina-se o Ensino Superior brasileiro que desde o período colonial até os dias atuais foi planejado para as classes dominantes (CUNHA, 2000). Essa modalidade de ensino funciona desde sempre como instrumento de “discriminação social eficaz e aceito como legítimo” (CUNHA, 2000, p. 156). 

A população socioeconomicamente desfavorecida não se encaixa nos padrões exigidos por essa etapa de ensino, pois exige uma infinidade de demandas que muitas vezes não podem ser sanadas, tais como: taxas de inscrição elevadas dos exames vestibulares; cobrança de conteúdos elitizados, acessíveis apenas a quem pôde pagar por um ensino particular; elevado custo de mensalidade em universidades privadas; condições de permanência quando há deslocamento para universidades públicas; entre outros.

Não podemos negar que já existem algumas políticas de ampliação do acesso, como o caso das reservas de vagas, o PROUNI, o FIES e o SISU, que viabilizam o acesso de alunos pobres nas IES, permitindo hoje, segundo dados da ANDIFES (2019), um novo perfil estudantil dos alunos das Universidades, sobretudo, públicas. Porém, ainda assim, temos uma parcela relevante dos grupos marginalizados excluída do sistema de Ensino Superior brasileiro.

Foi diante do cenário do acesso à educação por parte dos grupos marginalizados e a consciência da privação de seus direitos, que ao final do século XX começaram a emergir com maior intensidade os Cursinhos Populares da maneira como conhecemos hoje (WHITAKER, 2010) e isso se deu junto com o levante populacional pelas ações afirmativas para a população negra (DOMINGUES, 2005), ambos conduzidos por movimentos sociais. 

Os Cursinhos Populares surgem como forma de enfrentamento das desigualdades sociais, buscando amenizar os prejuízos causados pela Educação Básica pública para ampliar as possibilidades de acesso ao Ensino Superior por parte dos alunos historicamente excluídos dessa etapa educacional. Estes espaços de educação popular atuam enquanto ação afirmativa e política de acesso, pois são propostas que visam o combate à discriminação de grupos marginalizados, bem como são uma tentativa de corrigir os efeitos de ações discriminatórias que aconteceram no passado e no presente, cujos ecos ressoam todos os dias (GOMES, 2001) se tornando fundamentais para viabilizar a entrada de alunos socioeconomicamente carentes na universidade.

Compreendida a relevância e a importância dos Cursinhos Populares, o presente texto, que trata-se de um recorte da dissertação de mestrado de Campagni (2022), tem por objetivo discutir se e como o Cursinho Popular TRIU amplia as possibilidades de acesso de alunos pobres ao Ensino Superior.

Este trabalho justifica-se, porque as pesquisas sobre Cursinhos Populares ainda são escassas e estes são territórios de relevância para as juventudes periféricas, sendo assim é importante compreender suas potencialidades, necessidades e fortalecer a luta pelo acesso à Educação em seus variados níveis.

 

Procedimentos Metodológicos

            Este trabalho contempla uma pesquisa qualitativa de cunho interpretativo e crítico, dialogando a partir das concepções de Paulo Freire (2017a; 2017b), de Bell Hooks (2013), da justiça relacional de Gewirts (2006).

Assim, a produção dos dados se deu de três formas: a primeira, por meio de análise documental, momento em que foi analisado o Projeto Político Pedagógico do Cursinho Popular TRIU. O segundo procedimento adotado foi a aplicação de questionários (via Google forms) que contou com treze estudantes das turmas de 2017 e 2018 do Cursinho Popular TRIU. Após a aplicação do questionário, seis participantes foram selecionados para a terceira etapa, uma entrevista semi-estruturada (via Google Meets), tendo como critério de seleção alunos que ingressaram em Universidades Públicas.

É pertinente salientar que os nomes dos participantes são fictícios. Todos os participantes receberam nomes de figuras importantes no cenário nacional, e que marcaram positivamente a transformação do cenário brasileiro e foram escolhidos de acordo com o gênero e a cor declarada pelos participantes. No mais, a organização e análise de dados do trabalho se deu por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2004). 

 

Análise de dados e discussão

            A partir dos dados coletados, algumas considerações e reflexões puderam ser tecidas a respeito do se e como o TRIU contribui para o acesso de alunos pobres nas IES. Porém, antes de trazer o debate é pertinente destacar que essa pesquisa se deu em um período de crise sanitária mundial, a pandemia da Covid-19, fator que impactou diretamente a coleta de dados. 

            Através da ferramenta analítica de Bardin (2004) e fazendo uso de categorias que emergiram dos dados, organizamos abaixo alguns dos pilares que sustentam o PPP e consequentemente norteiam as ações do Cursinho TRIU, um território fundado no ano de 2004, localizado no Município de Campinas e um movimento social independente, desvinculado de Instituições públicas ou projetos de extensão universitários.


 

Quadro 1 - Dados oriundos do Projeto Político Pedagógico (PPP)

    

O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO

 

CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO

- Partimos do princípio de que toda a educação é política.

- respeite as diversidades (de gênero, de orientação sexual, étnico-raciais, religiosas e de expressão), buscando, além disso, suas valorizações, promovendo um entendimento mais aprofundado de todas estas questões que permeiam a vida social a fim de dirimir e superar toda e qualquer situação de opressão, violência, intolerância e ódio.

- valorize a democracia, a participação horizontal e o diálogo

- preze pelo coletivismo em detrimento do individualismo

- se preocupe com o meio ambiente e incentive formas econômicas solidárias, comunitárias, sustentáveis e alternativas

- combata a desigualdade social e de classes

- promova a inclusão social de todas as pessoas que possamos ter contato, sem discriminação.

 

PROPOSTA PEDAGÓGICA

- duas propostas pedagógicas distintas (cada uma aplicada, geralmente, para duas salas, como já explicado no histórico).Importante dizer que a escolha da proposta pedagógica é realizada pela(o) estudante durante o processo seletivo após uma explicação sobre as duas alternativas, suas características e propósitos, a aplicação e correção de uma prova diagnóstica básica de língua portuguesa e matemática, além de uma entrevista.

Nomeadas T, R, I, U, para evitar simbolicamente uma hierarquização e tentar evitar, desde aqui, uma significação negativa e indevida das propostas, as turmas são divididas como: TR, com a proposta de aprofundamento e revisão, com maior ênfase curricular no ensino médio, e IU, com proposta de fortalecimento de base de conhecimentos, com ênfase curricular no ensino fundamental. Além disso, é importante que os conteúdos sejam expostos de uma forma que desperte maior atenção, encantamento, autonomização e compreensão. Aulas que se relacionem com o cotidiano dos(as) estudantes, com textos diversos que incentivem a leitura ativa, com conteúdos de outras disciplinas – interdisciplinaridade – e que trabalhem com metodologias ativas, como experimentações, exercícios em sala, dinâmicas, trabalho em grupo, problemas reais e com o lúdico, o que são fundamentais e precisam ocorrer com boa frequência.

- Assegurar apoio emocional, educacional e humano a todos(as) estudantes.

- Prevenir possíveis situações de evasão.

- Fazer um trabalho coletivo e integrado entre as áreas da psicologia, dança, pedagogia e sociologia, no sentido da educação integral.

- Colocar os(as) estudantes em contato com experiências sociais, políticas, culturais e artísticas que possam ser pertinentes ao seu momento e vontade, que contribuam com seu fortalecimento e crescimento humanos.

 

OBJETIVOS PRINCIPAIS

− a popularização da universidade pública através da luta pela democratização do acesso da população oriunda das classes desfavorecidas e do ensino público a estes espaços;

− a contribuição para a formação integral, cidadã e crítica e para a construção da autonomia dos indivíduos, para que atuem com mais consciência em seus contextos e na sociedade, transformando a si mesmos e à realidade coletiva - muitas vezes excludente, desigual e injusta.

 

PÚBLICO-ALVO

O público abarcado pelo Curso Pré-Vestibular Popular TRIU é aquele que inclui as pessoas vindas do ensino público, já desimpedidas de prestar o vestibular e Enem, independentemente de sua idade ou qualquer outra característica e identidade, que possuem uma condição socioeconômica prejudicada – ou seja, de baixa renda familiar e recursos materiais insuficientes.

 

Fonte: elaborado pela autora

 

A partir da leitura do documento, alguns pontos sobressaltam aos olhos, pois eram de maior relevância para compreender o que o Cursinho Popular TRIU entende como Educação, quais são os objetivos desse Movimento, quem quer atravessar com essa iniciativa e a partir de quais propostas pedagógicas se propõem a trabalhar para atender seus objetivos. Através dos dados obtidos e inseridos no quadro, podemos ver que o TRIU entende a educação enquanto um ato político e, diante disso, atua através de um viés progressista e democrático. De acordo com a perspectiva dessa pesquisa, podemos buscar em Hooks (2013) essa concepção de educação democrática, a qual é capaz de expandir os horizontes do conceito de educação, admitindo que ela se dá para além das salas de aula, de modo que, dentro de uma educação democrática, vemos a constante da educação acontecendo, recolhendo conhecimentos teóricos para além deles, usando-os como ferramenta de construção de uma revolução, permitindo o reconhecimento de cada um enquanto sujeito histórico e potência para reivindicar seu lugar no mundo (HOOKS, 2003).

Ao longo do PPP, o Cursinho aponta que entende como válida toda a diversidade étnica, racial, sociocultural, religiosa, de gênero e etc., apontando ainda que repudia toda forma de violência e opressão, lutando pela valorização da diversidade. Essas colocações nos levam ao encontro do conceito de pluralismo apontado por Judith Simmer-Brown (1999 apud HOOKS, 2013), que vai muito além da diversidade, pois a sociedade já é diversa em sua existência, enquanto o pluralismo é de total importância na medida em que faz referência ao ato de compromisso e engajamento com o outro, com a plural diversidade. 

Nesse aspecto, é importante refletirmos que, segundo Freire (2017b), temos que a classe dominante se apropria dos bens culturais (e também materiais) e com isso impõe seu discurso e interesses sobre os oprimidos, que acabam por naturalizar essa cultura em detrimento das suas. Retomando o conceito de pluralismo, podemos compreender que seu encorajamento permite romper com a cultura do dominador (HOOKS, 2013), as elites, proporcionando uma educação significativa e plural que afete a diversidade das pessoas.

Ainda nesse contexto, temos também que a educação que valoriza os diferentes saberes, as diferentes culturas, os diferentes sujeitos, é aliada fundamental no combate a discriminação, já que esta educação propõe a superação dos preconceitos e a valorização da subjetividade humana, da identidade cultural de todos e cada um (FREIRE, 2017a). Nessa linha, podemos pensar a importância de uma educação democrática e plural como possível ferramenta de viabilizar a permanência dos estudantes durante seus estudos, pois estar em um espaço em que há a valorização da diversidade da vida, o estímulo da potência de cada indivíduo, a valorização de suas trajetórias e o estímulo à sua liberdade (HOOKS, 2013) soa como mais efetivo e afetivo do que uma educação desprovida de tais características.

Somado a isso, o Cursinho também compreende a educação de maneira horizontal, sendo que todos os envolvidos nesse processo de ensino-aprendizagem têm a mesma importância, e a educação, uma via de mão dupla  construída coletivamente, no e pelos grupos presentes no Cursinho Popular. Essa educação horizontal e construída no coletivo vai ao encontro à educação popular de Freire, onde sabemos que a relação sujeito-sujeito e sujeito-mundo estão intrinsecamente relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem. Temos, portanto, que a aprendizagem é dialética e se constrói no diálogo com o outro e com o mundo, no meio no qual se insere (FREIRE, 2017a). É nessa dialética que a educação constrói sentido, produz significados e estimula o pensar crítico. 

Quando falamos sobre uma educação horizontal, temos em Freire (2017a) que esta é a única forma de viabilizar uma educação crítica, rompendo com a educação bancária. Para isso, essa educação precisa superar a contradição entre o educador e os educandos, apontando que o meio de realizar tal tarefa é a horizontalidade, por meio do diálogo no qual aquele que ensina também aprende e aquele que aprende também ensina, marcando o surgimento do educando-educador e do educador-educando, ambos formados na dialética do aprendizado (FREIRE, 2017a).

            Ao entender a Educação enquanto ato político, o Cursinho se propõe a atuar na luta pelo combate à desigualdade social, sendo alguns de seus maiores objetivos a popularização das IESs Públicas, a autonomia dos sujeitos e a percepção crítica do mundo. Para isso, o Cursinho recorre ao que na perspectiva dessa pesquisa entende-se por educação popular, que apesar de o PPP não fazer uso deste termo, as descrições de propostas pedagógicas, concepções de educação e objetivo indicam, diante do referencial teórico desta pesquisa, que é a educação popular que norteia a ação do Movimento do TRIU. Nessa linha de raciocínio recorremos a Arroyo (2003), quando fala sobre as pedagogias em movimento e a potência da dialética da educação popular sobre os corpos marginalizados que se entendem enquanto sujeitos coletivos históricos, que se mexem, incomodam e resistem, permanecendo em movimento.  

Outra forma de combate à desigualdade é lutar pelo ingresso de jovens pobres no Ensino Superior, de onde foram historicamente marginalizados. Ainda nesse sentido, visualizando a proposta pedagógica criada pelo TRIU, vemos que ela abre espaço para a diversidade de alunos que chegam, entendendo os estudantes como seres plurais e compreendendo as limitações oferecidas pelo Ensino Público da rede básica, organizando o Cursinho em duas diferentes turmas no intuito de preencher as lacunas deixadas pela Educação Básica em uma delas e, na outra, aprofundar os conhecimentos para o vestibular. Esse tipo de proposta valoriza a permanência do aluno e o acolhe, o que pode reduzir os índices de evasão do alunado e contribuir também para uma aprendizagem efetiva dos estudantes.

            Cientes das propostas, concepções e motivações do TRIU, podemos visualizar (Quadro 2), por meio de dados obtidos nos questionários aplicados a ex-alunos do TRIU, a questão do “se”, se o TRIU, um Cursinho Popular, contribui no ingresso de seus estudantes no Ensino Superior. Cabe ressaltar que, devido a crise sanitária causada pela Covid-19 e o consequente distanciamento social, a amostra de participantes foi reduzida, tendo treze ex-alunos participando. Sendo assim, os dados podem não representar o todo, caso o total de estudantes solicitados tivessem  participado da pesquisa.

 

Quadro 2 - Ingressos em universidades públicas ou privadas

    

INGRESSO NA UNIVERSIDADE

 

Quantidade

%

Pública

7

3,8

Privada

6

6,2

Fonte: elaborado pela autora

 

Dentre os estudantes que participaram dessa pesquisa, tivemos 100% de ingressos no Ensino Superior, sendo que destes 53,8% ingressaram em universidades públicas e 46,2% em universidades privadas. Esses resultados mostram que o Cursinho Popular em questão teve importante papel em viabilizar a entrada desses estudantes no Ensino Superior, mas ainda assim é importante refletir se os treze participantes representam a realidade de ingressos, uma vez que aqueles que não acessaram o Ensino Superior podem não ter se disponibilizado em participar da pesquisa. No mais, outro dado que chama atenção é que quase metade dos estudantes participantes ingressou em universidades privadas, sendo todos eles usuários de políticas de acesso como Prouni, Fies e etc.

Através desse dado, podemos pensar que ainda há um elevado direcionamento dos estudantes pobres para a rede de Ensino Superior privada por meio das políticas de acesso neoliberais e possivelmente muito casos estão relacionados a perspectiva do estudante pobre com a universidade, seu deslocamento, o desacreditar que esse território é seu também. Vemos aqui que as IESs Públicas ainda não são a realidade de boa parte dos estudantes pobres e vindos da rede pública, mas vemos que o Cursinho exerce papel relevante para essa porta de entrada nas Instituições de Ensino Superior.

Visto os dados de ingresso na IES, podemos nos debruçar sobre os dados referentes ao “como”, discutindo o papel efetivo do Cursinho na vida dos estudantes e em seus respectivos ingressos. Para isso foram elaborados dois quadros, o quadro 3 apresenta informações retiradas dos questionários e o quadro 4 das entrevistas. Nos questionários os alunos foram perguntados sobre o que o TRIU representava para eles, e as respostas foram condensadas em quatro categorias: espaço de conhecimento; luta e transformação social; acolhimento e afetividade; e ação afirmativa. Vejamos:

 

Quadro 3 - O que o Cursinho Popular representa para os estudantes que dele participam

    

O QUE O CURSINHO POPULAR REPRESENTA PARA VOCÊ?

Categorias

Respostas








ESPAÇO DE CONHECIMENTO

“Então Cursinho Popular nos auxilia lembrar das matérias antigas como também auxilia algumas pessoas aprenderem o que não puderam aprender no ensino médio”. (João Pedro Stédile_fictício)

“São espaços totalmente importantes, não me trouxeram apenas conhecimento para passar no vestibular, obtive também muito conhecimento sobre a sociedade como um todo, suas estruturas e, sobretudo, a tamanha desigualdade existente, tudo obtido através da convivência com diversas pessoas que frequentavam o cursinho”. (Dexter_fictício)

“É uma ótima experiência e um ótimo acesso para aprendizagem”. (Maria da Penha_fictício)

“Os espaços dos Cursinhos Populares têm papel fundamental no aprendizado dos alunos. Além de localização adequada, boa infraestrutura e pessoas dedicadas ao ensino popular que apresentam conteúdo de qualidade”. (Cora Coralina_fictício)

“Importante para o aprendizado e para o ingresso de faculdade pública e privadas”. (Renan Quinalha_fictício)

 

LUTA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

“Revolução do povo pobre, ingressar na universidade é o caminho pra ocuparmos os cargos influentes da sociedade”. (Marighella_fictício)

“Representam muita luta, e vejo como uma oportunidade única, pois muitos dos adolescentes que dão início, realmente estão sonhando com essa oportunidade”. (Carolina de Jesus_fictício)

“Cursinhos populares são uma porta aberta para a esperança de conseguir entrar em uma universidade, seja ela pública ou particular. É a oportunidade de poder lutar pelo que já é nosso direito de entrar na universidade”. (Tarsila do Amaral_fictício)

“A existência desses lugares é essencial na resistência e persistência na busca da qualidade de ensino popular a fim da ascensão à universidade de modo geral”. (Cora Coralina_fictício)

ACOLHIMENTO E AFETIVIDADE

“É um ato solidário muito valoroso para pessoas que não tem condições de pagar por um curso ou Ensino Superior. Além de ser lugares harmoniosos com pessoas totalmente dispostas a ajudar”. (Nise da Silveira_fictício)

“Embora eu tenha optado por uma bolsa na faculdade particular, o trabalho do Cursinho foi fundamental para que eu acreditasse em mim antes de qualquer coisa. Além do conhecimento e entendimento sobre as possibilidades de acesso, também me proporcionou autoconhecimento e autoestima intelectual”. (Dandara_fictício)

“Cursinhos populares são espaços muito importantes e essenciais para ressignificar trajetórias de alunos e alunas de escolas públicas, que antes de adentrar nesses espaços nunca imaginaram entrar em uma universidade”. (Bertha Lutz_fictício)

AÇÃO AFIRMATIVA

“Para mim, os Cursinhos Populares representam espaços de democratização da educação. Os Cursinhos Populares são, antes de tudo, projetos sociais, sendo que a necessidade da existência destes está ligada à precarização da educação pública”. (Júlio Lancelotti_fictício)

“Sua necessidade indica uma carência na Educação Básica pública, de modo que não há competição justa entre alunos de escolas públicas e alunos de escolas privadas”. (Sebastião Salgado_fictício)

Fonte: elaborado pela autora

            A partir das colocações dos participantes, podemos ver que o Cursinho Popular realiza o papel a que se propõe: trabalhar dentro da dicotomia do pré-vestibular e uma educação popular, integral e acolhedora. 

Quando os estudantes citam que o Cursinho é um espaço de conhecimento, vemos que esse conhecimento é multifacetado, indo desde os conteúdos do vestibular até questões políticas, sociais, sobre ser e estar no mundo e o papel ocupado por nós enquanto sujeitos. Este último é inclusive um dos pilares que sustenta a educação popular, sendo importante compreender que ela é fundamental na luta por direitos básicos, uma forma de resistência, pois é capaz de contribuir para a construção da cidadania ativa e transformadora, fomentando a luta pela justiça social (PONTUAL, 2019). 

Ao dizermos sobre o conhecimento multifacetado, nos referimos aos conhecimentos teóricos, escolares e acadêmicos como os mencionados pelos participantes da pesquisa, batizados ficticiamente por Cora Coralina_fictício, João Pedro Stédile_fictício, Maria da Penha_fictício e Renan Quinalha_fictício,; mas nos referimos também àqueles conhecimentos histórico-políticos-culturais como bem colocados por Dexter_fictício na frase “não me trouxeram apenas conhecimento para passar no vestibular, obtive também muito conhecimento sobre a sociedade como um todo, suas estruturas e, sobretudo, a tamanha desigualdade existente, tudo obtido através da convivência com diversas pessoas que frequentavam o Cursinho”. Sendo ambos de extrema importância na formação desses sujeitos.

Quando os estudantes versam sobre luta e transformação social, vemos que para muitos o Cursinho é um território de luta e, indo ao encontro de Freire,  pensando a maneira como a educação se dá dentro do TRIU, podemos entender a educação popular como algo capaz de transformar e romper as barreiras da escola, invadindo os diferentes territórios (PONTUAL, 2019), assim como é o caso dos movimentos sociais, dos Cursinhos Populares e do TRIU em específico, que se tornam um espaço de luta pelo acesso ao direito à educação. 

Podemos ver nitidamente a potência de luta e transformação social do Cursinho nas falas de Marighella_fictício e Tarsila do Amaral_fictício, onde colocam, respectivamente, que o Cursinho é a “revolução do povo pobre, ingressar na universidade é o caminho pra ocuparmos os cargos influentes da sociedade”; e que “Cursinhos Populares são uma porta aberta para a esperança de conseguir entrar em uma universidade, seja ela pública ou particular. É a oportunidade de poder lutar pelo que já é nosso direito de entrar na universidade”.

Esta categoria está inclusive intimamente relacionada com a da ação afirmativa, onde percebemos nas falas de Júlio Lancelotti_fictício e Sebastião Salgado_fictício quando dizem, respectivamente, que “Cursinhos Populares representam espaços de democratização da educação. Os Cursinhos Populares são, antes de tudo, projetos sociais, sendo que a necessidade da existência destes está ligada à precarização da educação pública” e que a necessidade de existência dos Cursinhos Populares “indica uma carência na Educação Básica pública, de modo que não há competição justa entre alunos de escolas pública e alunos de escolas privadas”. Vemos aqui que os estudantes enxergam a importância da existência dos Cursinhos Populares diante das barreiras do Ensino Básico Público e do vestibular, ao mesmo tempo em que enxergam as contradições da existência desses espaços, entendendo também que a existência dos Cursinhos Populares é, por ora, necessária para reverter o status quo.

Por último, mas não menos importante, a categoria de acolhimento e afetividade demonstrada nas falas dos estudantes, que mostra como a dinâmica de funcionamento do Cursinho Popular se faz relevante no sentido de proporcionar pertencimento àqueles que ocupam esses territórios, de compreender quem são os estudantes, suas trajetórias e assim valorizar suas experiências. Vamos ver em Ratier (2019) que existem muitas pesquisas atestando a relação entre sentimentos e o processo de aprendizagem, podendo essas influências serem negativas ou positivas. 

 

Acredita-se que o imaginário social e coletivo pode ser modificado com o estímulo à autoestima, à autoconfiança, à empatia, facilitado pela busca do sistema emocional dessas crianças, via afetividade, para reestruturar os mecanismos de organização do pensamento, de forma que elas consigam aprender e permanecer no ambiente escolar (MATTOS, 2012, p.230).

 

No caso do TRIU, essa afetividade criada dentro de seu território é fundamental para potencializar o desempenho dos estudantes, evitar a evasão e manter a harmonia entre os sujeitos que compõem o Cursinho. Quando trazemos a afetividade para a discussão, nos apoiamos na pedagogia do amor de Freire (2017), na pedagogia do esperançar, pois é desta forma que se possibilita acolher e viabilizar que os coletivos oprimidos rompam as barreiras sócio-históricas (FREIRE, 2017a; FREIRE, 2017b). É somente pelo amor, pela afetividade, por uma educação popular que a transformação social acontecerá (FREIRE, 2017a).

Na continuidade dos dados do quadro anterior, temos as respostas obtidas nas entrevistas. Estas se deram com os participantes que ingressaram em universidades públicas e totalizaram sete pessoas. O quadro 4 é referente as percepções dos estudantes sobre a importância do Cursinho em suas vidas e foi organizado em quatro categorias: formação acadêmica, pedagogia do acolhimento, formação política e crítica. Vejamos:

 

Quadro 4 - Considerações dos entrevistados sobre a relevância do Cursinho Popular em suas vidas

CURSINHO POPULAR

 

Colocações dos entrevistados

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FORMAÇÃO ACADÊMICA

"Aí fui pro Cursinho que foi quem me instruiu no conteúdo de Escola e Vestibular foi o Cursinho. Ele é tipo de importância total em tudo. Ele me ensinou do zero coisas que eu saí da escola semi analfabeto assim só escrevendo o nome. Tudo que eu aprendi foi nesses um ano e meio de Cursinho”. (Marighella_fictício)

“Foi uma base muito grande.  (...)  eu tava vendo as coisas pela primeira vez. Tinham aulas de Botânica, de matemática, alguns teoremas que eu nunca tinha visto na minha vida. Alguns macetes.  Eu fiquei tipo:  é por isso que eu não passei antes!” (João Pedro Stédile_fictício)

“Bom, acho que foi, a relevância foi altíssima, eu dou um grande peso ao Cursinho Popular aos professores, ao projeto, por eu ter entrado na universidade. Então, eu acredito que assim, obviamente eu estudei por conta, mas tudo o que eu aprendi e me ensinaram no Cursinho foi muito relevante pra eu conseguir entrar na universidade”. (Dexter_fictício)

“No Cursinho você tem simulados, você tem professores com experiência da UNICAMP, você tem diversas matérias focadas no vestibular que o ensino médio não dava, né? Além do todo ambiente também, que é voltado pro vestibular.” (Dexter_fictício)

“(...) lá no TRIU o importante foi isso, porque daí o pessoal passou a matéria certinho e com uma metodologia, né? Assim, aí eu demorei acho que mais uns dois anos, eu fiz um ano no no Cursinho, né? Prestei o vestibular, mas daí não passei de novo. Então, fiz outros de novo, fiz mais um ano, aí eu passei. Então, eu acho que a importância do trio foi essa, sabe? Foi, não, não me deixar parado, e dar uma metodologia pra estudo”. (Júlio Lancelotti_fictício)

“E eu acho que eu não consegui entrar só com o que eu aprendi na escola, então foi com certeza por causa dele que me ajudou.”  (Sebastião Salgado_fictício)

“E acho que o ponto principal é a qualidade mesmo do ensino, teve, eu posso falar assim que oitenta por cento do que eu vi no Cursinho de química eu não tinha visto no ensino básico, então é isso.” (Sebastião Salgado_fictício)

“O espaço do Cursinho sim eu me sentia muito pertencente, eu me identificava muito, até mesmo com os professores porque eram professores praticamente da minha idade, porque eu já era mais velha, e também com os alunos, assim me identificava bastante era todo mundo ali na mesma pegada.” (Bertha Lutz_fictício)

 

 

 

 

 

 

 

PEDAGOGIA DO ACOLHIMENTO

“A gente tem os professores indígenas, mas o foco é Enem e vestibulares. É claro que dentro de uma perspectiva decolonial, entendendo todo esse processo de seleção de vestibular, entendendo esse processo de forma crítica. A gente tem essa perspectiva mais decolonial e problematiza essa epistemeocidental”. (Marighella_fictício)

“Eu conheci um método de ensinar totalmente diferente do que eu estava acostumado desde então. A escola ela tem aquela coisa muito rígida, né? Muito fechado e tal. O TRIU ele já era um pouco mais maleável, e tem que ser né? (...)faz parte da questão de acolhimento do TRIU, né? Cursinho ele precisa ser assim, ele precisa ter essa maleabilidade, né? pra ele se adequar, porque muitas vezes a pessoa ela passa por uma dificuldade, a gente não sabe”. (Júlio Lancelotti_fictício)

“me sinto mais pertencente ao TRIU (...) E o trio ele já é um espaço mais democrático (...)Se eu pudesse definir o TRIU com a palavra assim, é respeito.” (Júlio Lancelotti_fictício)

“Pra estar acolhendo uma pessoa que por exemplo esteve na escola pública e às vezes, não sei, deixou de ter um professor ou não teve professor na disciplina tal e tem uma defasagem. O TRIU é pensado pra essas pessoas, né? Que nem tem aquela turma TR e turma IU. Tem a IU que atende o pessoal que precisa de um reforço numa parte mais básica. E tem a TR que daí eles lançam o material do vestibular. Então sim, essa é uma educação que faz sentido. Pra mim esse é um sistema que faz sentido. É uma educação democrática.” (Júlio Lancelotti_fictício)

“Parece que é uma relação muito mais pessoal e íntima no Cursinho, sabe?! Eles realmente parecem, os professores, eles realmente parecem que se importam com você.” (Sebastião Salgado_fictício)

 

 

 

 

 

FORMAÇÃO POLÍTICA E CRÍTICA

“A questão de identidade assim, eu só entendi de forma academia, de entender mais profundo, de entender questões estruturais. Mas eu já cheguei sabendo o que eu tava fazendo ali”. (Marighella_fictício)

“Uma construção política. Porque eu sempre fui um aluno muito preguiçoso em aulas de sociologia e filosofia pra entender política. Mas assim, sendo pobre e estando num Cursinho Popular, você é obrigado a saber a questão política disso, o peso que você tem, o que você tá fazendo lá.”  (João Pedro Stédile_fictício)

“Ah o TRIU foi onde eu mudei a minha cabeça, sabe? Eu amadureci bastante com o tempo que eu fiquei lá no Cursinho quando eu tava na escola eu tinha uma cabeça, quando eu passei pro Cursinho, eu virei outra coisa (...) Eu cresci, sabe? (Júlio Lancelotti_fictício)

“Eu não aprendi só como entrar na universidade, mas, convivendo com o pessoal, eu convivi com pessoas de diferentes tipos, diferentes rendas, vindo as diferentes escolas com diferentes objetivos. (...) Eu acredito que mudou muito, também, minha visão de mundo politicamente e socialmente falando.” (Dexter_fictício)

 “E me fez crescer também, assim como pessoa, porque daí eu tive uma outra ideia, sabe? De educação e de sistemas.” (Júlio Lancelotti_fictício)

“Eu acho que ela tem, eu acho que ele foi muito relevante não só na minha vida, não só no aspecto assim do estudo em si né dos exercícios da matéria, mas também na minha vida pessoal assim sabe, eu acho que a experiência que eu tive no cursinho me ajudou muito, está  ajudando muito dentro da universidade assim (...)  eu acho de ter consciência sabe. De saber de onde eu vim e não me iludir com certas coisas dentro da universidade. Enfim nesse sentido assim.” (Bertha Lutz_fictício)

Fonte: elaborado pela autora

 

Referente a categoria da formação acadêmica, pudemos, a partir das falas dos entrevistados, perceber que o Cursinho foi fundamental em viabilizar os conhecimentos teóricos e acadêmicos necessários para o vestibular, oferecendo conteúdo com qualidade para os alunos. Outro ponto a ser destacado na fala dos entrevistados é sobre como o Cursinho agiu no sentido de encobrir os buracos deixados pela Educação Básica, uma vez que apenas os conhecimentos escolares não teriam sido suficiente para viabilizar o ingresso dos estudantes no Ensino Superior público, como podemos ver nas frases de Sebastião Salgado_fictício, Marighella_fictício e João Pedro Stédile_fictício, respectivamente: “eu acho que eu não consegui entrar só com o que eu aprendi na escola, (...) eu posso falar assim que oitenta por cento do que eu vi no Cursinho de química eu não tinha visto no ensino básico, então é isso.”; "ele me ensinou do zero as coisas, que eu saí da escola semi analfabeto assim: só escrevendo o nome. Tudo que eu aprendi foi nesses um ano e meio de Cursinho”; “Foi uma base muito grande.  (...) eu tava vendo as coisas pela primeira vez. Tinham aulas de Botânica, de matemática, alguns teoremas que eu nunca tinha visto na minha vida”.

            Nesse momento, torna-se importante reconhecer o Cursinho Popular como ação afirmativa, pois ele age no sentido de um reparo histórico de uma Educação Básica pública deficitária, batalha pela representatividade dos jovens pobres no Ensino Superior, e luta pela equidade de oportunidades levando em consideração as desigualdades existentes hoje no cenário educacional. Possivelmente, sem a ação desse Cursinho, o acesso ao Ensino Superior público se tornaria um sonho ainda mais distante para estudantes da rede pública, como é o caso dos participantes desta pesquisa. Essas colocações não buscam afirmar a necessidade permanente de Cursinhos Populares, mas apontar que sua existência é devida a um Ensino Básico deficitário, um projeto pensado de educação que marginaliza o público-alvo dos Cursinhos Populares (WHITAKER, 2013) e que, por ora, a existência desse movimento social é de extrema relevância para que os estudantes marginalizados do acesso ao Ensino Superior possam nele ingressar.

            A segunda categoria, denominada pedagogia do acolhimento, aglutina as falas dos estudantes quando fazem referência ao Cursinho enquanto um espaço acolhedor, que pensa na pluralidade daqueles que o ocupam, nas trajetórias de vida dessas pessoas, e se adequa às necessidades do seu público-alvo, visando garantir uma educação significativa, um espaço acolhedor que gera a sensação de pertencimento. A primeira das falas apresentadas não é sobre o TRIU, mas sobre o Cursinho fundado por um de seus ex-alunos e é interessante perceber que a proposta apresentada por Marighella_fictício carrega a perspectiva decolonial no seu      cerne, visando atender o público-alvo desse Cursinho, a saber, os indígenas, valorizando sua cultura.

            Quanto à última categoria, que se refere à formação política e crítica, vemos que o Cursinho em questão atinge aquilo a que se propõe de início: ir além do conteúdo do vestibular e ser um território de luta, de uma educação política e de formação para além da universidade. Vemos através das falas dos participantes que o TRIU contribuiu significativamente no processo de construção identitária desses sujeitos, ampliando a visão de mundo deles e contribuindo para os seus reconhecimentos no espaço/tempo, como podemos perceber nas falas de Dexter_fictício e Júlio Lancelotti_fictício, respectivamente: “Eu acredito que mudou muito, também, minha visão de mundo politicamente e socialmente falando”. “E me fez crescer também, assim como pessoa, porque daí eu tive uma outra ideia, sabe? De educação e de sistemas”. 

Acreditamos que aqui mora a pedagogia dos Movimentos de Arroyo (2003), onde temos que os movimentos sociais são atores primordiais na reeducação do pensamento educacional, pois são capazes de articular coletivos que lutam pela (re)existência da população pobre e dos grupos marginalizados. É muitas vezes dentro dos movimentos sociais que as pessoas se descobrem e passam a se entender como sujeitos de direitos que lutam por eles. “Tornam-se sujeitos coletivos históricos se mexendo, incomodando, resistindo. Em movimento” (ARROYO, 2003, p. 33), sendo que é a partir da autopercepção dos grupos oprimidos enquanto sujeitos históricos carregados dos atravessamentos interseccionais que a liberdade deles e dos seus, bem como suas transformações sociais podem de fato acontecer (FREIRE, 2017a; FREIRE, 2017b).


Considerações finais

Diante do que foi apresentado, podemos ver que apesar de contraditória a existência do TRIU, assim como de todo Cursinho Popular, sua relevância na vida dos estudantes que participaram da presente pesquisa foi inegável. O TRIU possuiu papel efetivo no ingresso ao Ensino Superior, seja ele público ou privado, dos estudantes participantes. Mais do que isso, para além do preparo para o vestibular, pudemos perceber que a maneira como o processo de ensino-aprendizagem se deu dentro do território desse Cursinho foi fundamental para viabilizar a permanência dos estudantes, valorizar suas realidades, suas culturas e trabalhar o empoderamento desses indivíduos. 

Destacamos como potencialidades do TRIU a pedagogia do afeto, a educação popular e o acolhimento. Estes pilares se apresentaram como fundamentais para que existisse um aprendizado efetivo dos conteúdos e, mais do que isso, que os conhecimentos proporcionados dentro desse Cursinho ultrapassassem os conteúdos das provas. O TRIU realizou efetivamente uma proposta pedagógica de transformação, de luta pela justiça social, contribuindo para a construção identitária dos sujeitos que compõem seus espaços, empoderando e estimulando seus estudantes que chegam ali atravessados pela desigualdade social a buscarem sua vaga no Ensino Superior, incentivando-os a lutarem por um direito que lhes é corriqueiramente negado. 

Diante disso, podemos afirmar que o TRIU cumpre com o papel ao qual inicialmente se propõe em seu Projeto Político Pedagógico: que é atuar entre o ensino dos conhecimentos do vestibular e a formação crítica do sujeito, pois vemos nas falas de alguns entrevistados a presença de uma consciência política e crítica dos atravessamentos que transpassam suas histórias, bem como a compreensão de seus papéis na luta por transformação social.

Ainda consideramos importante pontuar que a proposta de cursinhos como a do TRIU não são suficientes para sanar as lacunas oriundas das injustiças sociais, uma vez que tais territórios enfrentam dificuldades na luta pela educação popular pois, que estão imersos em uma realidade social desigual e injusta, na qual os cursinhos em geral, e o TRIU em específico, recebem uma diversidade de estudantes, com variadas lacunas de aprendizagem, com dificuldades financeiras de acesso a transporte e a meios digitais, de permanência, e até mesmo de ingresso, além de lidar com o curto tempo para ministrar com efetividade os conteúdos dos vestibulares, e ao mesmo tempo manter seus pilares de movimento social vivos.

Sendo assim, é válido considerar a potência da educação que ocorre dentro do TRIU como ferramenta de transformação social e como valiosa forma de pedagogia, além de sua importância como ação afirmativa e política de acesso, mas é preciso ter consciência de que é uma medida que tem potencialidades e limites, sendo assim paliativa, que existe por conta de déficits na Educação Básica pública, não sendo capaz de sanar os abismos educacionais. Por fim, ressaltamos que a temática dos cursinhos populares ainda é um território pouco ocupado pelas pesquisas acadêmicas, e por isso, é ainda um assunto repleto de lacunas a serem pesquisadas. Os      Cursinhos      Populares são um importante lócus de pesquisa, tanto no que diz respeito a seu papel enquanto ação afirmativa; como suas potencialidades enquanto educação marginal; bem como suas ações enquanto movimento social.

Nesse sentido, é importante que pesquisas futuras busquem      preencher as lacunas desse campo de pesquisa, como: compreender a relevância dos Cursinhos Populares após surgimento das reservas de vaga no Ensino Superior e outras políticas de acesso; reconhecer o perfil geral dos estudantes que entram (ou não) nos Cursinhos Populares e porquê; reconhecer as demandas reprimidas existentes nesse alunado; quem são os estudantes que ingressam em Cursinhos Populares e, destes, quem de fato ingressa na universidade pública e porquê; quais motivos levam jovens periféricos de Cursinho Populares a matricularem-se no sistema de Ensino Superior privado; e quais são as ações atuais dos Cursinhos Populares enquanto movimento social.

 


 

Referências

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[1] Cursinhos Populares foi grafado em letra maiúscula a fim de marcá-lo enquanto movimento social.