Desenvolvimento profissional de pessoas com diferença funcional: repercussões da trajetória familiar e educacional
Professional development of people with functional differences: repercussions of family and educational trajectory
Desarrollo profesional de personas con diferencias funcionales: repercusiones de la trayectoria familiar y educativa
Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG, Brasil
raissatette@yahoo.com.br
Maria Nivalda de Carvalho-Freitas
Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG, Brasil
nivalda@ufsj.edu.br
Recebido em 16 de dezembro de 2022
Aprovado em 30 de dezembro de 2022
Publicado em 11 de fevereiro de 2025
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo apresentar a interface da trajetória familiar e educacional, e seus desdobramentos no desenvolvimento profissional de pessoas com diferença funcional. A literatura nacional e internacional identifica alguns elementos que articulam estes aspectos, o que ancorou o desenvolvimento das perguntas de entrevistas semiestruturadas realizadas de forma online com 22 pessoas com diferença funcional com ensino superior completo e que trabalham em suas áreas de formação, de todas as regiões do Brasil. Os resultados evidenciam comportamentos de enfrentamento dos pais, relativos à: atenção e clareza na identificação das necessidades dos filhos, obtenção de recursos que correspondessem às suas necessidades e adaptações dos processos educativos, os quais atuaram como estimuladores e contribuíram para o desenvolvimento das crianças. Foi salientada uma inadequação nos processos de aprendizagem nas escolas especiais e também dificuldades tanto no acesso quanto na permanência em escolas regulares. Os respondentes demonstram que a relação atual estabelecida com o trabalho é, para além de uma ocupação, uma forma de crescimento pessoal e profissional. O repertório de competências profissionais citadas pelos entrevistados como importantes condiz com as requeridas e valorizadas no mercado de trabalho atual. No entanto, a despeito do investimento no processo de desenvolvimento profissional, a inclusão laboral ainda apresenta barreiras relacionadas ao capacitismo.
Palavras-chave: Inclusão; Educação; Capacitismo.
ABSTRACT
This research aims to present the interface of the family and educational trajectory, and its consequences in the professional development of people with functional difference. The national and international literature identifies some elements that articulate these aspects, which anchored the development of semi-structured interview questions carried out online with 22 people with disabilities with complete higher education and who work in their areas of training, from all regions of the Brazil. The results show parents' coping behaviors, related to: attention and clarity in identifying the children's needs, obtaining resources that corresponded to their needs and adaptations of the educational processes, which acted as stimulators and contributed to the children's development. An inadequacy in the learning processes in special schools was highlighted, as well as difficulties both in accessing and staying in regular schools. Respondents demonstrate that the current relationship established with work is, in addition to an occupation, a form of personal and professional growth. The repertoire of professional competences cited by the interviewees as important is in line with those required and valued in the current job market. However, despite the investment in the professional development process, labor inclusion still presents barriers related to ableism.
Keywords: Inclusion; Education; Ableism.
RESUMEN
Esta investigación tiene como objetivo presentar la interfaz de la trayectoria familiar y educativa, y sus consecuencias en el desarrollo profesional de personas con diferencias funcionales. La literatura nacional e internacional identifica algunos elementos que articulan estos aspectos, los cuales sirvieron de base para el desarrollo de preguntas de entrevistas semiestructuradas realizadas en línea con 22 personas con discapacidad, con educación superior completa y que trabajan en sus áreas de formación en todas las regiones de Brasil. Los resultados muestran comportamientos de afrontamiento por parte de los padres, relacionados con: atención y claridad en la identificación de las necesidades de los hijos, obtención de recursos que correspondieran a sus demandas y adaptaciones en los procesos educativos, que actuaron como estimuladores y contribuyeron al desarrollo de los niños. Se destacó la inadecuación de los procesos de aprendizaje en escuelas especiales, así como dificultades tanto en el acceso como en la permanencia en escuelas regulares. Los encuestados demuestran que la relación actual establecida con el trabajo es, además de una ocupación, una forma de crecimiento personal y profesional. El repertorio de competencias profesionales citado por los entrevistados como importantes está en consonancia con las requeridas y valoradas en el mercado laboral actual. Sin embargo, a pesar de la inversión en el proceso de desarrollo profesional, la inclusión laboral aún presenta barreras relacionadas con el capacitismo.
Palabras clave: Inclusión; Educación; Capacitismo.
Introdução
A legislação sobre os direitos das pessoas com diferença funcional, tanto no Brasil como em boa parte do mundo, em grande medida, reflete uma trajetória de luta por maiores condições de participação, inclusão social e autonomia para conduzir o próprio percurso de vida (Garcia, 2014). Mesmo com a implementação de políticas públicas, as estatísticas mostram que, quando comparadas às pessoas sem diferença funcional, o acesso a bens e serviços, como educação e trabalho, é significativamente menor entre as pessoas com algum tipo de condição física, sensorial, mental ou intelectual. Elas representam apenas 0,52% do total de matriculados em cursos de graduação do Ensino Superior (INEP, 2019) e 1,1% dos vínculos formais de trabalho (RAIS, 2020).
Os motivos alegados para a não inclusão no trabalho são diversos, mas referem-se, principalmente, à falta de mão de obra qualificada (Becker, 2019; Lorenzo; Silva, 2017). Nesse sentido, a temática da inclusão de pessoas com diversidade funcional está também intrinsecamente relacionada às políticas sociais da área da educação, indicando que a qualificação profissional é uma ferramenta importante para o alcance de melhores condições de trabalho e ampliação de oportunidades (Bisol et al., 2018; Cocks; Thorensen; Lee, 2015; Neves-Silva et al., 2015), que a preparação para o trabalho ainda se dá, para boa parte desse grupo, mediante o ensino especializado (Camargo, 2017), e que este frequentemente não condiz com as necessidades competitivas do mercado de trabalho (Shogren et al., 2017).
A terminologia utilizada no artigo será “pessoas com diferença funcional”. Esta escolha tem intenção de reposicionar o conceito de deficiência, conforme discussões produzidas pelo Modelo da Diversidade Funcional (Palacios; Cabrero, 2006). Este modelo compreende a deficiência como uma questão social, pois denota que a organização da sociedade desabilita as pessoas com formas atípicas de funcionamento (motor, sensorial e cognitivo) do acesso e usufruto de seus direitos. Nessa forma de compreensão, as pessoas funcionam de forma diferente, isto é, se apropriam do mundo de formas diversas. O fator biológico presente na deficiência produz, em algum grau, uma diferença funcional. Contudo, em vez de ineficiência e incapacidade - sentidos literais do termo ‘deficiência’ -, a condição da deficiência é, de fato, uma diferença funcional (Palacios et al., 2012).
Pretende-se, com o uso desta terminologia, denotar que a deficiência é uma categoria social, circunscrita à organização normativa da sociedade, posto que há fatores ambientais, históricos e culturais contribuindo para sua manifestação. Documentos internacionais, como a Declaração de Salamanca, ressaltam o olhar para a transição e preparação para a vida adulta de jovens com diversidade funcional, concedendo tanto à escola como à comunidade papeis fundamentais neste processo. Portanto, o desemprego ou o subemprego destas pessoas deve ser compreendido a partir da articulação de diversos fatores, como a história de vida, as possibilidades de acesso a bens e serviços, a cultura na qual a pessoa está inserida e as ideologias que perpassam seu processo de formação (Barnes; Barton; Oliver, 2002). Para além do aspecto educacional, é importante salientar o papel da família de pessoas com diferença funcional como instituição de grande influência no desenvolvimento global destas pessoas, já que ela é a primeira mediadora entre o sujeito e a cultura, constituindo, assim, a unidade dinâmica das relações de cunho afetivo, social e cognitivo (Polonia; Dessen, 2005).
A descoberta da diferença funcional de um filho pode modificar e alterar o nível emocional de todos os integrantes da família (Silva; Dessen, 2001), envolvendo expectativas, diagnósticos, luto, buscas por tratamentos e inúmeras emoções, que podem incluir a não aceitação e negação ou a superproteção do indivíduo (Sales, 2017). Nesse sentido, a conduta da família ao longo da vida pode tanto apoiar e estimular a questão do trabalho, ao respeitar e impulsionar a autonomia e independência, quanto dificultar a inserção e a manutenção do trabalho, ao adotar uma postura de proteção excessiva (Lorenzo; Silva, 2017).
A escola também constitui um espaço importante de desenvolvimento dos seus membros, pois afeta o número de interações sociais dos indivíduos. De modo geral, quanto maior o nível de educação, maior a amplitude dessas interações. A convivência com os pares desempenha um papel essencial na construção da identidade social, que ocorre por meio da relação com outros significativos, já que é no contexto das relações sociais que emergem a linguagem, o desenvolvimento cognitivo e o conhecimento de si e do outro (Aranha, 1993). Portanto, ter menos chance de interagir pode gerar menores oportunidades para o desenvolvimento e fortalecimento social, levando a problemas subsequentes para lidar com situações mais complexas (Lindsay et al., 2018).
Além disso, os espaços escolares são, por excelência, fomentadores de formação e aprendizagem. Pesquisas indicam carência no desenvolvimento de estratégias adaptativas que proporcionem ensino de qualidade (Pertile; Mori, 2021; Pletsch, 2020; Orrú, 2017), falta de acessibilidade física e arquitetônica (Bisol et al., 2018) e maior distância social entre alunos com diferença funcional e seus colegas de escola (Werner; Roth, 2014). A falta de qualificação profissional é também apontada como um dos principais entraves à contratação desse grupo no mercado de trabalho (Cocks et al., 2015; Garcia, 2014; Neves-Silva et al., 2015).
Assim, tanto a família como a escola podem desempenhar o importante papel de melhor preparar os indivíduos para o desempenho de funções que possibilitem a promoção de independência e de autonomia, num contexto capitalista em que a questão do trabalho é central. Objetiva-se que estas duas instituições ofertem subsídios necessários para o pós-escola, visando principalmente a inserção no mercado de trabalho. O modelo teórico que ancora este trabalho é o Modelo da Diversidade Funcional (Palacios; Cabrero, 2006), que oferece uma perspectiva para se pensar as relações com o grupo de pessoas com diferença funcional a partir dos princípios da bioética, quais sejam: não causar dano intencional à pessoa (não maleficência), buscar o maior benefício para o maior número de pessoas (beneficência), respeitar e garantir o poder de decisão das pessoas (autonomia) e garantir o direito de todos (justiça). Assim, esse modelo visa promover o respeito pela dignidade humana e propaga que as pessoas são consideradas sujeitos de direitos e possuidoras de capacidade de gestão das suas vidas, fazendo suas escolhas de forma independente, sendo-lhes garantida a igualdade de oportunidades. Para isso, baseia-se em certos princípios, como: vida independente, não-discriminação, acesso universal, padronização do ambiente e do diálogo civil, entre outros (Palacios et al., 2012).
Nesse modelo ressalta-se que toda vida, com ou sem diferença funcional, tem a mesma importância, a mesma dignidade, merece ser igualmente preservada e ter seus direitos garantidos. Em razão das lacunas entre as demandas de trabalho, ações educativas, necessidades próprias delas e/ou de seus familiares, as pessoas com diversidade funcional ainda têm tido dificuldades de inserção e desenvolvimento profissional (Lorenzo; Silva, 2017), tanto em situações de trabalho formal como informal. A presente pesquisa pretende compreender de que forma os processos familiares e escolares/acadêmicos contribuem para melhores possibilidades de desenvolvimento profissional de pessoas com diferença funcional.
Metodologia
Foi realizada uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório, da qual participaram 22 pessoas com diferença funcional residentes nas cinco diferentes regiões do país, com destaque para os estados de Minas Gerais (31,8% do número de participantes) e São Paulo (22,7%). Do total, a maioria é do sexo masculino (77,2%) e a idade dos respondentes variou entre 31 e 58 anos, com média de 42,6 anos. A maior parte dos entrevistados estudou até o ensino médio em escola pública (77,2%), mas apenas seis participantes (27,2%) fizeram o ensino superior em universidade pública.
Em relação ao tipo de diferença funcional, 45,2% dos participantes apresentam diferenças físicas, 32% diferenças auditivas e 22,8% diferenças visuais. Nenhum participante possui comprometimento intelectual, como também nenhum participante possui cegueira ou surdez completa. Em relação ao nível salarial, a amostra se distribui da seguinte forma: 13,6% recebem até dois salários mínimos; 68,2% recebem entre 3 e 5, 13,6% recebem de 6 a 8; e 13,6% recebem de 9 a 12 salários mínimos. 77,2% dos entrevistados afirmaram morar na mesma residência com mais duas ou três pessoas e 22,8% afirmaram morar sozinhos. Já em relação aos cargos que ocupam, os participantes se distribuem em: assistente administrativo (3), professor universitário (3), gerente de vendas (3), contador (3), supervisor de segurança do trabalho (2), assistente de departamento de pessoal (2), advogado (2), controlador de qualidade (1), supervisor de marketing (1), assistente de dados (1) e coordenador de sistemas (1).
Os participantes desta pesquisa foram contatados por meio da rede social profissional LinkedIn e convidados a responder primeiramente a um questionário contendo dados sociodemográficos, para verificar se atendiam aos critérios de inclusão da pesquisa, os quais foram: ter ensino superior completo, estar trabalhando na sua área de formação e possuir diferença funcional desde a infância. Para a fundamentação do roteiro de perguntas da entrevista, foi realizado um levantamento exploratório de bibliografia para identificar os conhecimentos produzidos nacionalmente e internacionalmente que embasam a temática da pesquisa. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas individualmente de forma online, com questões sobre o papel da família, da escola e da universidade na trajetória de vida dos participantes, e como cada uma delas influenciou a entrada, permanência e desempenho dos participantes no mercado de trabalho. A escolha do modelo de entrevista para este estudo se justifica por possibilitar que o sujeito discorra sobre o tema com autonomia sem diferir do tema proposto (Minayo, 2010). Nesse sentido, foram definidos tópicos amplos que serviram como pontos norteadores da entrevista para o objetivo do estudo (Gaskell, 2004).
Considerando o caráter qualitativo da pesquisa, o número de profissionais entrevistados foi definido via critério de saturação, em que foi suspensa a coleta de dados quando as informações passaram a se repetir e não agregar novos elementos. A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética e atendeu aos requisitos de participação livre e esclarecida. A análise das entrevistas foi feita a partir da análise temática de conteúdo (Bardin, 1977), utilizando-se como ferramenta de apoio o site WordArt, para gerar nuvens de palavras. Esta análise originou a construção de três categorias de análise: “aspectos familiares”, “aspectos escolares/acadêmicos” e “desenvolvimento profissional”.
Resultados e discussão
Aspectos familiares
Em relação ao papel da família no seu desenvolvimento profissional, foi gerada uma nuvem de palavras com os principais termos identificados nas respostas.
Figura 1: Nuvem de palavras relacionadas ao suporte familiar
Fonte: Dados da pesquisa
Como pode ser observado na figura 1, as palavras que tiveram maior frequência relacionam-se aos membros da família: 77,2% dos entrevistados, ou seja, 17 participantes, relataram em suas falas o papel primordial da mãe na sua formação, já o restante citou a palavra “pai”, “pais”, ou “irmão/irmãos” para caracterizar o apoio recebido na infância, demonstrando que a família constitui a primeira instituição de acolhimento e tem uma grande influência no seu desenvolvimento posterior, como evidenciam as falas:
“40 anos atrás era difícil entender o que eu tinha... tive diagnóstico de deficiência mental e autismo antes de perceberem que na verdade eu não ouvia. Depois que diagnosticaram, eu tive a sorte de ter pais que buscaram por informação. A informação deles foi fundamental para correrem atrás de estratégias adequadas para meu desenvolvimento.” (A9 – homem com perda auditiva, controlador de qualidade)
“Minha mãe era aquela pessoa que estava ciente de todas as leis, regulamentos e decretos que legalmente me protegiam. De posse disso, ela fazia tudo que fosse possível para que eu me integrasse à sociedade. Aos poucos, eu fui me tornando essa pessoa também.” (A11 – homem com diferença física, professor universitário)
“Todas as noites, minha mãe lia para mim. Essa é uma das lembranças mais preciosas que eu tenho, e diz muito de quem eu me tornei.” (A19 – mulher com baixa visão, professora universitária)
Os relatos demonstram alguns comportamentos de enfrentamento dos pais, relativos à: atenção e clareza na identificação das necessidades dos filhos, obtenção de recursos que correspondessem às necessidades das crianças e ajustamento e/ou adaptações dos processos educativos, os quais atuaram como estimuladores e contribuíram para o desenvolvimento das crianças. Em diferentes relatos, a mãe foi a protagonista responsável por estimular cognitivamente os filhos, instigar o desejo de crescimento, além de expressar comportamentos de resistência e luta, seja por cuidados de saúde ou por busca dos direitos sociais, coadunando com pesquisas que indicam que os comportamentos parentais são determinantes para incrementar o desenvolvimento de seus membros (Love et al., 2017).
Estes são comportamentos inversos às condutas baseadas na superproteção e na permissividade, comuns em pais de crianças com diversidade funcional (Azevedo; Freire; Moura, 2021; Benitez et al., 2020; Silva; Ramos, 2014). As frequências apontadas na nuvem de palavras demonstram que vocábulos como “apoio”, “suporte”, “cuidado”, “estímulo” e “influência” foram constantemente apontados pelos participantes como associados aos comportamentos dos pais. Nota-se, à princípio, que especificamente no contexto familiar, a fato de possuir uma condição específica não fez com que estas crianças fossem vistas a partir de uma ineficiência, no sentido de uma condição estática, natural e definitiva, mas como, de fato, possuintes de uma diferença funcional e, portanto, necessitárias de estratégias e demandas específicas.
Chama a atenção também o fato de que as interações entre irmãos foram bastante citadas, sugerindo a importância deste tipo de relação para a própria criança. Frequentemente, houve menção a um clima de harmonia no convívio fraterno e que este subsidiou momentos de autonomia na infância dos entrevistados, como por exemplo, nas falas:
“Meus pais se sentiam seguros quando eu saía com meus irmãos, mas o fato é que na verdade eles iam viver a vida deles e eu tinha que “me virar”. Essa autonomia foi fundamental para que, entre erros e acertos, eu aprendesse.” (A15 – homem com perda auditiva, contador)
“Acredito que se eu não tivesse irmãos, todas as atenções da minha casa se virariam para mim. Mas não tinha esse tempo todo pra me mimar ou proteger.” (A8 – mulher com diferença física, assistente de departamento de pessoal)
“Meus irmãos tiraram carteira de carro. Quando eu disse que eu também queria tirar, foi um problema na família. Todos questionavam... perguntavam ‘pra quê?’ E eu respondia ‘pra quê meus irmãos vão tirar? Eu vou tirar pelo mesmo motivo deles’.” (A11 – homem com diferença física, professor universitário)
Destaca-se que não houve nenhum relato de descontentamento em relação à atitude familiar frente à diferença funcional, pelo contrário, a visão dos participantes é de que a família cumpriu uma função fundamental. Os comportamentos dos familiares foram de esforço em busca de melhores condições para seus filhos, mesmo em um cenário de baixo nível socioeconômico, os quais parecem ser especialmente benéficos em países com recursos limitados e com poucos serviços especializados de apoio às famílias que convivem com a diversidade funcional, como o Brasil.
Considerando que as relações familiares são marcadas pelo envolvimento de valores, crenças e práticas transmitidas aos filhos de modo a influenciá-los, juntamente com a cultura na qual estão inseridos (Sigolo; Rinaldo; Ramiro, 2015), esse núcleo familiar representa, em seu cerne, uma vasta gama de condutas e sentimentos que são determinantes para explicar o processo de socialização, constituição e desenvolvimento de seus membros (Silva; Ramos, 2014). Os resultados revelam que essas famílias tinham, em comum, duas condutas importantes: o estímulo da autonomia e a valorização da educação. Ambas atuaram como elementos-chave para o desenvolvimento das crianças com diferença funcional, fortalecendo seu senso de valor e estimulando a participação no enfrentamento de situações difíceis, o que reduz os efeitos de um possível isolamento social decorrente do preconceito (Heller; Parker-Harris, 2012).
Cabe ressaltar que alguns participantes relatam que, atualmente, possuem uma visão mais abrangente da própria infância e das relações familiares estabelecidas nesta época:
“Hoje adulta, penso que ter uma criança com deficiência deve ser sim um choque. É natural as pessoas criarem um monte de idealizações em cima de um filho e depois é preciso se reinventar e mudar a dinâmica da casa e da vida. Mas meus pais nunca deixaram eu me sentir uma carga para eles, pelo contrário, não lembro de falarem em nenhum momento de a deficiência ser algo ruim.” (A8 – mulher com diferença física, assistente de departamento de pessoal)
“Minha mãe abriu mão da vida dela para cuidar de mim. Ela me construiu, mais do que qualquer outra coisa, minha mãe me fez quem sou.” (A3 – mulher com diferença física, coordenadora de sistemas)
“Olhando pra trás, eu penso que meus pais ‘cortaram um dobrado’ para me criar e para me dar as oportunidades que me deram. E eu sou muito grato, porque se não fossem eles eu não teria andado a metade.” (A15 – homem com perda auditiva, contador)
Os entrevistados manifestaram, portanto, que hoje, adultos, percebem que foi despendido muito tempo e esforço dos familiares para se adaptarem a uma criança com diferença funcional. A nuvem de palavras mostra que os relatos trouxeram termos como “batalha”, “luta”, “estímulo” e “zelo”, demonstrando que esses familiares se encontraram muitas vezes fragilizados e com prejuízos nos âmbitos pessoal, social, econômico e profissional, como pode ser referendado em falas como “abriu mão da vida dela”, “foi uma luta” e “cortaram um dobrado”. No entanto, as falas mostram que, embora possivelmente tenham se assustado com a notícia de um filho com diferença funcional, estes pais tentaram resolver os problemas de uma forma realista e resiliente, incorporando diferentes estratégias de enfrentamento, sendo a principal delas focada em concentrar-se nas possibilidades da criança, e não nos déficits.
Considerando que a diversidade funcional é percebida, compreendida e tratada a partir de um conjunto de representações próprias da cultura em que está inserida, cabe destacar que estas famílias mostraram para essas crianças - desde cedo - que elas podiam. Estas famílias perceberam as desvantagens e/ou restrições provocadas pela sociedade para com as pessoas fora do padrão de normalidade e, à despeito desta construção social, batalharam contra o padrão normativo (consequente de processos históricos, políticos, econômicos e culturais) e criaram diversas estratégias para que as crianças pudessem ser mais funcionais.
A nuvem de palavras e várias falas dos entrevistados reforçam a autonomia e independência com que as famílias (e consequentemente eles próprios) promoveram ao olhar para a deficiência para além da perspectiva individual e biomédica, a qual vê a pessoa com diferença funcional a partir da sua falta. O fato de as famílias creditarem que eles eram capazes, enxergando alternativas dentro da dinâmica contextual nas quais estavam inseridos foi fundamental para que, ainda crianças, eles não concebessem a deficiência como uma tragédia pessoal que limita, desqualifica e desmobiliza (Barnes et al., 2002), e sim reconheceram-na como uma diferença funcional que deveria ser enfrentada por meio de outras possibilidades favorecedoras do desenvolvimento (Palacios et al., 2012), inclusive relacionadas ao acesso a bens culturais e educacionais.
Aspectos escolares e acadêmicos
A nuvem de palavras gerada pelas respostas em relação às experiências escolares e educacionais foi:
Figura 2: Nuvem de palavras relacionadas ao suporte escolar/educacional
Fonte: Dados da pesquisa
Conforme a figura 2, as palavras mais frequentemente citadas foram “professor”, “alunos”, “colegas”, “pais” e “mãe”, o que demonstra que a escola e a família se complementam em seus papeis no processo educacional, razão pela qual é importante voltar o olhar para a participação da família como parceira na concretização do processo de ensino e aprendizagem dos respondentes.
“Primeira vez que eu frequentei uma escola, era uma escola de surdos e mudos. Minha mãe visitou a escola e percebeu que era só gritaria e ninguém respeitava os professores. Ela me tirou de lá no mesmo dia e me colocou numa escola normal.” (A9 – homem com perda auditiva, controlador de qualidade)
“Infelizmente, não tive nada direcionado a mim não... nenhum cuidado especial. Tive que me virar. (...) Pra você ter uma ideia, eu nunca faltei uma aula na vida. Com chuva ou com sol, tinha que ir pra escola.” (A16 – homem com diferença física, gerente de vendas)
“Eu estudei primeiro numa escola especial. Era tudo misturado e muitas crianças tinham ‘dificuldade intelectual’. Eu não tinha noção de que era ruim, eu gostava de ir pra lá, mas não aprendia. Ainda bem que meus pais perceberam e depois me colocaram numa escola normal. Mas não foi um mar de rosas também não... custei a adaptar, porque nada diferente era feito para mim. Minha mãe conversava com a professora todo dia, pegava o que tinha sido dado na aula e lia todas as páginas da apostila depois que a gente chegava em casa.” (A17 – mulher com baixa visão - assistente de departamento de pessoal)
Os respondentes salientam uma inadequação nos processos de aprendizagem nas escolas especiais e também dificuldades tanto no acesso quanto na permanência em escolas regulares. Chama a atenção o fato de que a maioria dos respondentes estudou em escolas regulares na maior parte de suas trajetórias. A nuvem de palavras trouxe termos como “falta de recursos”, “falta de preparo”, “falta de acesso”, “falta de adaptações” e “preconceito” e foi apontada por todos eles como fatores dificultadores, consoante com os resultados apontados por Guimarães, Borges e Van Petten (2021) e Almeida e Ferreira (2018). É importante salientar que pessoas com diferença funcional constituem um grupo de pessoas heterogêneo que reúne, em uma mesma categoria, indivíduos com várias condições físicas, sensoriais, intelectuais e mentais, o que faz com que as ações e estratégias de ensino voltadas para esse segmento devam considerar um mosaico de diferentes necessidades.
As falas demonstram que os pais dos entrevistados identificaram essa inconformidade nos processos de ensino e acabaram assumindo um papel ativo no acompanhamento da educação dos filhos. Dessa forma, percebe-se uma individualização do processo educacional das crianças, no qual a escola delegou aos familiares e pessoas com diferença funcional a responsabilidade pela construção de ações. E elas assim o fizeram, acreditando que as crianças podiam e mereciam uma boa educação. Trata-se de um movimento de resistência frente às dificuldades, carências e limites das escolas. Termos como “incentivo”, “aprendizagem” e “cuidado” foram frequentemente ligados aos papéis que os pais e irmãos desempenharam durante sua trajetória de vida. Nesse sentido, a questão da formação educacional parece ser central para estas famílias, tanto que elas buscam individualmente formas alternativas de aprendizagem (mudança de escola, suporte dos pais/irmãos, adequação dos materiais), demonstrando que elas confiavam que, por meio da educação, o desenvolvimento pessoal e profissional dos filhos seria possível:
“O que mais pesa para que uma pessoa com deficiência possa ter uma vida melhor é a educação.” (A10 – homem com diferença física – gerente de vendas)
“Eu vi a necessidade de buscar minha independência, e a única forma que eu via de fazer isso era estudar. Eu sabia que pra melhorar de vida era isso que eu precisava fazer.” (A1 – homem com diferença física, professor universitário)
“A escola não aceitou a matrícula no primeiro momento. Dizia que não estava preparada. Foi preciso pegar um laudo na AACD para comprovar que eu não tinha comprometimento intelectual. Foi à base da força, mas a gente sabia que só assim pra eu ter um futuro digno.” (A21 – mulher com perda auditiva, assistente de dados)
“Cresci com a ideia de que quem estuda vai longe. Era estudar ou estudar. Nunca houve outra opção.” (A5 – homem com diferença física, supervisor de marketing)
A análise indica que o processo de inclusão escolar se deu sobremaneira a partir de atitudes dedicadas e comprometidas por parte dos estudantes e/ou seus familiares, com menos peso sobre estratégias desenvolvidas pelas instituições de ensino. A despeito das dificuldades dos processos de inclusão escolar, a educação para estas famílias era ferramenta emancipatória e empoderadora. O empoderamento das pessoas com diferença funcional, compreendido como um conceito-chave para a obtenção de poder pessoal e coletivo e de uma educação libertadora e conscientizadora dos direitos, foi defendida por Beresford (2013) e parece ir ao encontro das atitudes destes pais, que fomentaram e incentivaram a relação com a educação durante a trajetória de vida dos filhos com diversidade funcional. Vale lembrar que, enquanto crianças, provavelmente os entrevistados não tinham discernimento para avaliar se o processo educativo estava sendo eficaz ou não, enquanto seus pais o faziam e tomavam atitudes quando este não correspondia às expectativas.
Todos os entrevistados tiveram acesso à educação superior. No entanto, ressalta-se que todos deram um intervalo entre a finalização do ensino médio e o ingresso à graduação. Os motivos variaram sobre as atividades desenvolvidas neste período, mas a maioria relata experiências profissionais que subsidiaram uma situação financeira que possibilitasse o ingresso posterior numa instituição particular. O ingresso e permanência escolar, principalmente na educação superior, é um elemento importante na vida de pessoas com diferença funcional, uma vez que, para elas, a chegada a esta etapa de ensino constitui a superação de diversas barreiras sociais precedentes. É interessante ressaltar que alguns participantes trouxeram uma diferenciação entre a experiência no ensino básico e no ensino superior, principalmente no que se refere ao preparo por parte dos docentes:
“Na faculdade eu tive acesso a pessoas – colegas e professores – que me incentivaram e me ajudaram muito. Mas eu não tinha tido esse apoio na escola.” (A12 – mulher com diferença física, advogada)
“Eu demorei para fazer universidade. Na faculdade, foi o primeiro lugar em que não me senti invisível. Os professores vinham perguntar se eu tinha entendido a aula, se preocupavam comigo... isso nunca tinha acontecido.” (A10 – homem com diferença física – gerente de vendas)
“Fui fazer faculdade já adulta né? Porque antes não tinha condições de pagar. Eu vivi uma realidade muito melhor na faculdade. Houve mais preparo e menos preconceito, me sentia acolhida.” (A21 – mulher com perda auditiva, assistente de dados)
As experiências no ensino básico parecem ter tido a presença de um maior número de barreiras, principalmente em relação a preconceitos por parte da diretoria e de professores, que não ofereciam estratégias diferenciadas em relação aos demais alunos. Os relatos mostram que as chamadas “pessoas com deficiência” tornaram-se mais limitadas a partir da organização de espaço escolar excludente em relação à diversidade funcional. Dessa forma, a responsabilidade recaiu sobre a pessoa que apresentava diferença funcional, quando se esperou - ou se exigiu - que ela se adaptasse. Vale lembrar que os participantes dessa pesquisa possuem idade média de 42,6 anos, o que faz com que sua experiência no ensino básico tenha sido realizada antes das principais mudanças nas legislações nacionais acerca da inclusão. No entanto, pesquisas recentes continuam identificando barreiras presentes no cotidiano escolar (Diniz; Silva, 2021; Almeida; Ferreira, 2018).
Desenvolvimento profissional de pessoas com diferença funcional
O conjunto de informações desse tópico versa sobre como os participantes consideram o seu desenvolvimento profissional, levando em conta que este construto não se associa exclusivamente às progressões verticais, mas às competências desenvolvidas durante a formação acadêmica, vivências pessoais e a prática profissional. A importância do trabalho na vida cotidiana e do papel de trabalhador na constituição da identidade é praticamente consenso na literatura, entretanto, o desenvolvimento profissional refere-se a um processo específico, que aborda o caminho intencional e contínuo de aquisição e aperfeiçoamento de conhecimentos, habilidades e atitudes com implicações em termos de transformações identitárias e de melhorias de desempenho ao longo da trajetória laboral (Mourão; Monteiro, 2018). Assim, ancorados nos preceitos do Modelo da Diversidade Funcional, considera-se que o desenvolvimento profissional é uma premissa fundamental para os direitos humanos e a dignidade humana das pessoas com diferença funcional. Os respondentes demonstram que a relação que eles estabelecem com o trabalho é, para além de uma ocupação, uma forma de crescimento pessoal e profissional. A nuvem de palavras gerada pelas respostas a respeito do desenvolvimento profissional foi:
Figura 3: Nuvem de palavras relacionadas ao desenvolvimento profissional
Fonte: Dados da pesquisa
A análise de conteúdo realizada a partir das enunciações originais mostra que os termos que apareceram com maior frequência na nuvem de palavras foram: “trabalho”, “profissional”, “desenvolvimento”, “emprego”, “cargo” e “preconceito”. De fato, o preconceito foi um termo frequentemente associado aos aspectos profissionais dos participantes, embora eles atuem em sua área de formação. Os termos “operacional” e “informal” também apareceram realçados, demonstrando que os respondentes sabem do gargalo que a maior parte das pessoas com diferença funcional enfrenta: elas tendem a ocupar cargos de baixa responsabilidade e sofrem com a falta de planos de carreira nas empresas em que atuam. Apareceram também outros vocábulos como “identidade”, “promoção”, “competências”, “carreira”, e “educação”, que se associam as possibilidades de crescimento e ascensão profissional dos respondentes.
As estatísticas nacionais mostram que adultos com diversidade funcional vivenciam usualmente situações de não vinculação ao trabalho ou de trabalhos em cargos operacionais (RAIS, 2020), muitas vezes segregados em ambientes restritos e com poucas relações sociais no ambiente de trabalho (Becker, 2019). No entanto, todos os entrevistados desta pesquisa estão empregados em funções correspondentes à sua formação e já tiveram, ao menos, uma promoção vertical em suas carreiras. Eles atribuem a isso o fato de terem cursado o ensino superior e, também, refletem que estão se aperfeiçoando constantemente, de maneira formal ou informal. A maioria dos participantes relatou o desenvolvimento de competências diversas justamente devido à condição que apresentam, como fica evidenciados nas seguintes falas:
“Uma das minhas principais virtudes é a paciência. Por ter a deficiência, eu já enfrentei muitas situações adversas na vida. Com isso acabei desenvolvendo uma resiliência que a maior parte das pessoas não tem.” (A11 – homem com diferença física, professor universitário)
“Eu desenvolvi uma memória visual absurda. Em razão da minha deficiência (auditiva), eu tenho uma visão periférica também impressionante. Não uso deficiência como muleta... nunca usei, e foi por isso que eu cheguei tão longe.” (A21 – mulher com perda auditiva, assistente de dados)
“Eu vou continuar melhorando para ir abrindo novas portas. Com a deficiência, nunca se vive dentro da zona de conforto, e isso me ajuda a caminhar adiante todos os dias.” (A6 – homem com diferença visual, supervisor de segurança do trabalho)
Considerando que o desenvolvimento possui caráter processual e cíclico e deriva da aprendizagem ao longo da vida, envolvendo elementos diversos (Paquay et al., 2012), ele pode ser entendido como um processo holístico, que envolve transações entre a pessoa e o ambiente. Nesse sentido, quanto mais interações e experiências forem possibilitadas a uma pessoa, maior seria sua capacidade de desenvolvimento profissional (Bell et al., 2017). Para além do quesito “escolaridade” (pré-requisito habitual para o ingresso no trabalho), os participantes da pesquisa relatam apresentar competências semelhantes às de pessoas sem diferença funcional que ocupam cargos similares.
“Logo que eu saí da faculdade tive uma oportunidade na X (nome da empresa) onde estou até hoje. Olha, pra te falar a verdade, sei que a Lei de Cotas ajudou, mas ela não é responsável por eu estar onde estou hoje. Ela foi minha porta de entrada, mas sem modéstia alguma, o crescimento é mérito meu.” (A2 – mulher com diferença física, gerente de vendas))
“É importante não se manter estático, saber reagir, não desistir no primeiro ‘não’, encontrar as ferramentas certas para se construir aquilo que se almeja.” (A1 – homem com diferença física, professor universitário)
“O desafio é o que me move. Veja bem... eu conseguir não ser o estigma da pessoa com deficiência que fica em casa assistindo televisão e recebendo auxílio do governo é minha grande vitória. Conseguir desbancar uma pessoa sem deficiência no trabalho e atuar num cargo não operacional é motivo de muito orgulho de onde eu cheguei.” (A5 – homem com diferença física, supervisor de marketing)
“Eu cheguei num estágio da vida em que busco me desenvolver todos os dias. Um livro, um podcast, uma conversa, qualquer coisa me ensina. Essa entrevista aqui me ensina. E, mais do que aprender, eu procuro aplicar o que aprendo.” (A15 – homem com diferença auditiva, contador)
Todos os participantes compartilham a opinião de que a dimensão laboral constitui um processo fundamental na inclusão social de pessoas com diferença funcional, estabelecendo novas perspectivas de reconhecimento social e ampliando as possibilidades de autonomia para indivíduos que tradicionalmente foram amparados, tutelados e protegidos como menos capazes. No entanto, mesmo os participantes da pesquisa possuindo diploma de ensino superior e trabalhando em cargos não operacionais, alguns relatos demonstram que ainda há diversos fatores atravessando o processo de inclusão no trabalho:
“A qualificação constante vale pra mim que tenho deficiência, mas vale pra qualquer outra pessoa. E se vale para outra pessoa, pra mim vale dobrado, porque estou sempre um passo atrás (por causa da deficiência)”. (A2 – mulher com diferença física, gerente de vendas)
“Eu ainda não sou reconhecido pelo meu nome, as pessoas me chamam de ‘o PcD’”. (A7 – homem com perda auditiva)
“Tenho que provar de A+B tudo que faço. Tenho deficiência física, não intelectual. Tenho mais competências que meu chefe, mas acredito que não tenho possibilidade de ocupar o lugar dele.” (A16 – homem com diferença física, gerente de vendas)
“As pessoas assustam ao ver minha competência. Parece que vejo no olhar delas: ‘mas ela faz isso?’” (A17 – mulher com diferença visual - assistente de departamento de pessoal)
A despeito de todo um processo de investimento destas pessoas, existe a questão do capacitismo que é estrutural. Ou seja, embora tenham sido realizadas inúmeras estratégias de desenvolvimento profissional, os participantes sofrem discriminação materializada na forma de mecanismos de interdição, controle ou descrédito em relação ao trabalho que executam. O capacitismo, é uma leitura que se faz a respeito de pessoas com diferença funcional, assumindo que a condição corporal destas é algo que, naturalmente, as define como menos capazes e menos aptas (Campbell, 2008).
Assim, o que pode ser observado é que estas pessoas possuem alta qualificação, mas que experenciaram/experienciam situações de preconceito, e sentem a necessidade de um esforço extra para provar que merecem a oportunidade de exercer a atividade laboral. Para alguns participantes, estas situações causam desestímulo às suas jornadas de crescimento profissional e reforça suas incertezas e dificuldades, como constatado em outras pesquisas nacionais (Neves-Silva et al., 2015).
Além disso, 72,8% dos respondentes, ou seja, 16 dos 22 participantes da pesquisa, são filhos de pessoas que não tiveram acesso ao ensino superior, o que denota que a oportunidade de cursar uma faculdade e, consequentemente, conseguir um bom emprego, representa para estes participantes mais do que uma necessidade básica de provimento, mas implica em mudança efetiva na posição social. Foi percebido que o posicionamento dos respondentes evidencia grande orgulho e valoração pessoal na constituição de suas identidades profissionais atuais. Apesar das dificuldades, estar onde eles estão hoje parece representar a possibilidade de obter renda, recursos, relacionamentos e informações que os retiram (ou minimizam) da condição de vulnerabilidade e invisibilidade social.
Por fim, tendo como base a compreensão da competência como uma resultante da combinação de múltiplos saberes - saber-fazer (conhecimentos), saber-agir (habilidades), saber-ser (atitudes) - capazes de propiciar respostas efetivas aos desafios advindos do atual contexto de trabalho (Le Boterf, 2000), foi perguntado aos participantes quais competências atitudinais eles julgam importantes para o trabalho que realizam e consideram fundamentais para crescer profissionalmente. A competência mais relatada foi a “qualificação constante” (72,8% - 16 participantes); em seguida, foram citadas com destaque “relacionamento interpessoal” (59% - 13 participantes) e “comunicação” (45,4% - 10 participantes).
O repertório de competências atitudinais citadas pelos entrevistados condiz com as requeridas e valorizadas no mercado de trabalho atual, resultantes principalmente dos processos de globalização e do advento das novas tecnologias (Freitas; Odelius, 2018). Nenhuma competência mencionada seria uma característica peculiar de pessoas com diferença funcional, mas sim de profissionais contemporâneos, o que denota que estes respondentes se colocam em condições semelhantes aos demais profissionais em relação às necessidades de desenvolvimento de competências.
Considerações finais
Este estudo buscou contribuir para o aprofundamento dos conhecimentos sobre a diversidade funcional, trazendo a abordagem do Modelo da Diversidade Funcional ao investigar como os aspectos familiares e educacionais reverberam no desenvolvimento profissional de pessoas com diferença funcional, a partir da concepção de pessoas qualificadas profissionalmente e que ocupam cargos condizentes com a sua formação. O Modelo da Diversidade Funcional tem a dignidade humana intrínseca e extrínseca como tema central, enfatizando que os direitos e as condições de vida definem as interações com o entorno. Coaduna-se com a visão de que a desigualdade, a discriminação e a falta de acessibilidade ferem os princípios da bioética (Palacios et al., 2012) e que a inclusão é um processo, portanto, passível de ser desenvolvido ao longo da trajetória de vida.
Ao analisar os aspectos familiares que envolvem a facilitação do processo de desenvolvimento, fica claro que atitudes de encorajamento por parte das famílias foi fator propulsor no desencadeamento de autonomia para esses participantes. As análises revelaram ainda que estas famílias tinham na educação o valor fundante para a independência, autonomia e reconhecimento social, o que contribuiu para a estruturação de estratégias estimuladoras ao longo da vida para que as pessoas com diversidade funcional tivessem, mais do que acesso, pleno envolvimento com os processos educativos. Foi perceptível, também, que as pessoas entrevistadas não atribuem a responsabilidade das suas vidas ao outro, o que faz com que elas assumam sua ação prática e necessária no processo de desenvolvimento pessoal e profissional.
No tocante ao desenvolvimento profissional, os participantes identificaram como essenciais em sua trajetória principalmente competências como ”qualificação constante”, “relacionamento interpessoal” e “comunicação”, as quais são condizentes com competências de profissionais sem diferença funcional no mercado de trabalho atual. Salienta-se, ainda, que embora ocupando cargos não operacionais e apresentando competências semelhantes às de profissionais sem diferença funcional que ocupam cargos similares, os respondentes relatam sofrer preconceito e discriminação na sua rotina de trabalho, o que é indicativo de capacitismo estrutural, o qual assume que a condição corporal das pessoas com diferença funcional é algo que, naturalmente, as define como menos capazes. Ou seja, em detrimento de todo um processo de investimento educacional e profissional, o desempenho deles ainda é visto com surpresa por muitos colegas e chefias. O capacitismo estrutural, dessa forma, consiste em maior obstáculo à inclusão social, já que dificulta, oprime ou, mesmo, impossibilita o acesso ou o exercício de direitos fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Compreender a perspectiva das pessoas com diferença funcional sobre tópicos que são estruturais para suas vidas permite a identificação de informações importantes para aqueles que lidam/trabalham com estas pessoas nos diversos espaços sociais. A pesquisa auxiliou a identificar como o outro (a mãe, a escola, o trabalho) foi e é importante no desenvolvimento profissional, como um processo que se constrói e se desenrola por meio das interações estabelecidas. Compreende-se, então, que o desenvolvimento profissional deve ser pensado não só na perspectiva da trajetória de vida de trabalhadores com diferença funcional, mas também nas estratégias fomentadas pelas instituições que os acolhem. Por fim, indicam-se novos estudos que analisem como as escolas e as organizações podem auxiliar a promoção do desenvolvimento profissional de pessoas com diversidade funcional, sob a lente de políticas e programas formais e informais de amparo à inclusão.
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