A cultura do trabalho infantil como expressão atual do (neo)colonialismo[1]
The culture of child labor as a current expression of (neo)colonialism
La cultura del trabajo infantil como expresión actual del (neo)colonialismo
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
sorayafconde@gmail.com
Recebido em 12 de dezembro de 2022
Aprovado em 15 de dezembro de 2022
Publicado em 19 de novembro de 2024
RESUMO
Este artigo discute como a persistência do trabalho infantil, especialmente no Brasil e nos Estados Unidos da América, constitui uma face atual do neocolonialismo. Cultivado como atividade educativa e dignificante, o trabalho infantil explorado persiste e é naturalizado como atividade educativa. A escola, a legislação e a religião, fazendo com que a classe trabalhadora passasse a amar e naturalizar aquilo que em épocas pretéritas era entendido como tortura e castigo, atuaram como meios fundamentais de formação de uma nova forma cultural: o amor ao trabalho. Inicialmente, o artigo discute como é historicamente fundada a cultura do trabalho para, depois, argumentar de forma contrária às explicações idealistas e pós modernas que o naturalizam. Entende que a cultura tem uma base material e é ligada à produção e reprodução social da vida. Metodologicamente, realizamos revisão bibliográfica sobre a cultura, o trabalho e o trabalho infantil. Além disso, foram coletados depoimentos de crianças trabalhadoras e familiares no Brasil e nos EUA. Também analisamos dados do IBGE e da Human Rights Watch. A pesquisa conclui com a necessidade de refundar uma nova cultura para uma nova sociedade que, baseada em outras relações sociais e econômicas, permita que a classe trabalhadora se liberte do que a domina e explora.
Palavras-chave: Trabalho infantil; Cultura; Educação.
ABSTRACT
This article discusses how the persistence of child labor, especially in Brazil and the United States of America, constitutes a current facet of neocolonialism. Cultivated as an educational and dignifying activity, exploited child labor persists and is naturalized as an educational activity. School, legislation and religion, making the working class come to love and naturalize what in past times was understood as torture and punishment, acted as fundamental means of forming a new cultural form: the love of work. Initially, the article discusses how the culture of work is historically founded, and then argues against the idealist and postmodern explanations that naturalize it. It understands that culture has a material basis and is linked to the production and social reproduction of life. Methodologically, we carried out a bibliographic review on culture, work and child labor. In addition, testimonials were collected from child workers and their families in Brazil and the USA. We also analyzed data from IBGE and Human Rights Watch. The research concludes with the need to refound a new culture for a new society that, based on other social and economic relations, allows the working class to free itself from what dominates and exploits it.
Keywords: Child labor; Culture; Education.
RESUMEN
Este artículo analiza cómo la persistencia del trabajo infantil, especialmente en Brasil y Estados Unidos de América, constituye una cara actual del neocolonialismo. Cultivado como actividad educativa y dignificante, el trabajo infantil explotado persiste y se naturaliza como actividad educativa. La escuela, la legislación y la religión, al hacer que la clase trabajadora amara y naturalizara lo que en tiempos pasados se entendía como tortura y castigo, actuaron como medios fundamentales para formar una nueva forma cultural: el amor al trabajo. Inicialmente, el artículo analiza cómo se funda históricamente la cultura del trabajo y luego argumenta en contra de las explicaciones idealistas y posmodernas que la naturalizan. Entiende que la cultura tiene una base material y está vinculada a la producción y reproducción social de la vida. Metodológicamente se realizó una revisión bibliográfica sobre cultura, trabajo y trabajo infantil. Además, se recogieron testimonios de niños trabajadores y familiares en Brasil y Estados Unidos. También analizamos datos del IBGE y Human Rights Watch. La investigación concluye con la necesidad de refundar una nueva cultura para una nueva sociedad que, a partir de otras relaciones sociales y económicas, permita a la clase trabajadora liberarse de aquello que la domina y explota.
Palabras clave: Trabajo infantil; Cultura; Educación.
Apresentação
“O trabalho de criança é pouco, mas quem o desperdiça é louco”[2].
Figura 1 – Mãos de crianças que trabalham no fumo
Fonte: Arquivo - Human Rights Watch (Conde, 2020).
Começamos este artigo com o provérbio e a imagem (Figura 1), ambos oriundos das pesquisas que realizamos no Brasil e nos Estados Unidos da América sobre o trabalho infantil, que evidenciam dois aspectos importantes da problemática deste artigo: 1- a persistência e a imprescindibilidade do trabalho de crianças (entendido como ajuda educativa) para a reprodução social familiar e para o sistema capitalista e 2- os efeitos nefastos dessa atividade à saúde das crianças trabalhadoras, que sujam suas mãos e se contaminam com a nicotina durante a colheita das folhas de tabaco. Conforme nossas pesquisas constataram no Brasil (Conde, 2016; 2020; Vendramini, 2014; Conde, Hermida, 2021; Conde, Silva, 2020), o trabalho infantil na fumicultura é responsável por causar náuseas, vômitos, tonturas e intoxicação nas crianças trabalhadoras. Mesmo diante dessa constatação, a narrativa individualista e meritocrática liberal tem ignorado os efeitos na saúde e na escolarização das crianças pobres e imigrantes e defendido a cultura do trabalho como algo enobrecedor, educativo e forjador do caráter, capaz de ensinar crianças como se trabalha desde cedo, contribuindo para sua formação e educação no futuro.
Durante nossas pesquisas[3] sobre a temática no Brasil, em Portugal e nos EUA realizadas desde 2007 (Conde, 2016; 2020; Conde; Vendramini, 2014; Conde, Hermida, 2021; Silva, 2020), observamos muitos imigrantes, familiares e personalidades políticas afirmando que a cultura do trabalho é parte dos costumes culturais de famílias que residem na área rural: “isso é parte da cultura familiar”; “trabalhar é melhor do que roubar e ser preguiçoso”; “é necessário aprender como se trabalha desde cedo para ser um bom trabalhador no futuro”. Entretanto, desde os estudos de Vigotski (2002), da filosofia da práxis (Marx, 1989) e do Posicionamento Ativista Transformador (Stetsenko, 2017), entendemos que a mais importante tarefa da ciência não é apenas entender a vida humana, mas transformá-la. Compreender o trabalho, suas contradições e efeitos reais à saúde e a forma como se constitui a cultura do trabalho é parte essencial de um projeto de transformação social e mudança. Conforme Paul Lafargue (2003), a classe trabalhadora cometeu um erro histórico ao incorporar a lógica burguesa e reivindicar o direito a mais trabalho. Na verdade, trata-se de lutar pelo direito de não trabalhar e de ter tempo livre, mesa farta, arte, ciência, literatura, preguiça.
Nessa direção, o artigo discute como a persistência do trabalho infantil, especialmente no Brasil e nos Estados Unidos da América, constitui uma face atual do neocolonialismo. Para N’Krumah (1967), o neocolonialismo configura o último estágio do imperialismo e opera combinando capital financeiro concentrado com métodos disfarçados que atuam nas esferas política, religiosa, ideológica e cultural, tal qual demonstramos com a apologia da cultura do trabalho como algo que enobrece e edifica (para o capital). Muitos países colonizados, que lutaram pela independência da metrópole europeia, acabaram encurralados ao controle financeiro do capital norte americano, tendo seus Estados endividados pela “ajuda” concedida em favor da “independência” colonial.
Para o autor, os Estados Unidos consolidaram-se como país neocolonialista após a Segunda Guerra Mundial. Com o forte lema aparente da liberdade sustentado pela potência bélica, o neocolonialismo ianque expandiu seus tentáculos sufocantes sobre a América Latina e a África submetidas aos invisíveis “lobos” de Wall Street. O avanço da indústria cultural, com forte ideologia materializada em valores e estéticas que favorecem versões, padrões e heróis norte-americanos, juntamente com o avanço de seitas religiosas evangélicas, tornaram-se recursos poderosos para abafar as possibilidades de crítica e de protesto nos países colonizados.
A escola, a legislação e a religião, fazendo com que a classe trabalhadora passasse a amar e a naturalizar aquilo que em épocas pretéritas era entendido como tortura e castigo, atuaram como meios fundamentais de formação de uma nova forma cultural: o amor ao trabalho. O texto reúne dados decorrentes de: a) nossas pesquisas sobre o trabalho infantil e a escolarização de crianças trabalhadoras em Santa Catarina, Brasil (realizada no Núcleo de Estudos sobre as Transformações no Mundo do Trabalho); b) dados da pesquisa desenvolvida durante o pós doutoramento na City University of New York em 2020; c) análise dos arquivos e dos relatórios da Human Rights Watch sobre o trabalho de crianças nos EUA e no Brasil; d) revisão da literatura sobre trabalho, natureza, aprendizagem, cultura e desenvolvimento humano.
Se no Brasil (particularmente nos estados do Sul do país) há predomínio do trabalho infantil agrícola familiar (em que ajuda educativa infantil e exploração do trabalho se confundem), nos Estados Unidos da América predomina o trabalho de crianças imigrantes latino-americanas, a maior parte filha de trabalhadores latinos indocumentados e, por isso, disponíveis aos mais baixos salários e às piores condições de trabalho. Enquanto no Brasil o trabalho infantil no campo é proibido antes dos 18 anos de idade, nos Estados Unidos as crianças podem trabalhar no campo acompanhando suas famílias, desde que isso seja acordado entre empregadores e o responsável legal pela criança, inexistindo qualquer legislação trabalhista que proteja crianças e trabalhadores na área rural. Em ambos países percebemos como o problema persiste entre crianças pobres e latinas, cujas famílias, residindo ou não em países centrais, são originárias de nações localizadas no Sul Global.
Para Oliveira (2003), o trabalho de crianças latinas não é sinal do atraso, mas é parte de um processo acelerado de desenvolvimento, uma forma atroz de modernização:
De fato o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado “moderno” cresce e se alimenta da existência do “atrasado” [...]. Tal postulação esquece que o subdesenvolvimento é precisamente uma produção da expansão do capitalismo [...]. A ênfase no aspecto da dependência do subdesenvolvimento com relação ao desenvolvido, deixa de abordar aspectos internos da estrutura de dominação. O problema se torna como que uma oposição entre nações, esquecendo que o problema do desenvolvimento se relaciona à oposição entre classes sociais internas [...]. A atenção é desviada da luta de classes (Oliveira, 2003, p. 32-34).
A ênfase na oposição entre nações e culturas mais e/ou menos desenvolvidas é fundamental para o ocultamento da luta de classes entre trabalhadores e burguesia. Assim, diferenças econômicas são explicadas por comportamentos culturais atrasados que, se educados, poderão se tornar mais desenvolvidos.
O artigo está organizado em quatro diferentes e conectadas partes. Primeiro, apresentamos a concepção de cultura e de educação desde o materialismo histórico dialético para, em seguida, abordamos historicamente como a legislação, a escola e a religião operam fomentando uma cultura do trabalho como enobrecedor para que a classe trabalhadora aprenda a trabalhar e tenha aversão à preguiça e à vagabundagem. Em seguida, relatamos os dados decorrentes de nossas pesquisas sobre o trabalho infantil no Brasil e nos Estados Unidos. Por último, defendemos a persistência do trabalho infantil como expressão do neocolonialismo e a urgência de um radical e ousado Posicionamento Ativista Transformador (Stetsenko, 2016, 2017, 2019) na educação e na cultura com vistas à emancipação social humana.
A cultura desde o materialismo histórico dialético
O debate acadêmico envolvendo a questão da cultura é sempre localizado entre polêmicas materialistas e idealistas que buscam explicá-la a partir da correlação entre natureza humana e sociedade, um clássico problema para a filosofia, a psicologia e as ciências humanas, entre as quais se incluem os estudos na área da Educação. Enquanto para os idealistas (por vezes elitistas e membros da classe dominante) a cultura é uma característica natural presente desde o nascimento e a realidade é reflexo do pensamento, os estruturalistas reduzem a cultura a um simples reflexo da vida material, na qual as pessoas trabalham e vivem. Ambas abordagens são insuficientes para a dialética materialista (Marx, 1989), que entende a cultura e a subjetividade desde a práxis e da atividade humana prática no mundo, sendo impossível a separação entre objetividade e subjetividade, material e imaterial, mente e corpo, cultura e necessidades humanas/classe social.
Se a cultura se caracteriza por costumes, modos, tradições humanas e um conjunto de características sociais como a linguagem, a dança, a alimentação, a vestimenta e os rituais, entendemos que não há ser humano sem cultura. Como afirma Williams (1958, 1980), a cultura é de todos e compõe a natureza social humana (Vigotski, 2002). Nesse sentido, a relação entre natureza humana e cultura aparece na história como algo imbricado, coadunado e dialético. Sendo a cultura aquilo que não herdamos genética e naturalmente, a educação entre diferentes gerações é a grande responsável pela mediação da apropriação da cultura, das tradições, dos valores e dos costumes pelas gerações mais novas.
A partir dessa mesma compreensão geral, teorias críticas à perspectiva colonial e elitista de cultura defendem que cada grupo precisa ser considerado em sua própria circunstância/contexto. Nesse sentido, Thompson (1981) entende que a cultura popular é sempre rebelde e resistente à lógica expansiva, imperialista e colonial do sistema capitalista.
O sistema colonialista, base da acumulação primitiva do capital, explorou e expropriou indígenas e negros nas colônias além-mar. Dentre as justificativas utilizadas para a violência colonial estavam a preguiça, a moral, a falta de educação, de disciplina e de cultura dos povos das colônias que resistiam e expressavam em ritos, costumes, trajes e religiões formas de ser, viver, trabalhar contrárias ao trabalho escravo e/ou explorado necessários à expansão da burguesia nascente. Da resistência ao trabalho forçado, criou-se a justificativa da violência, do genocídio, da guerra, da escravidão e da aniquilação do período colonial. A cultura era entendida como algo restrito aos hábitos e costumes refinados e adquiridos por meio de uma educação que apenas a burguesia e as elites tinham acesso.
Já Marx e Engels (1989) entenderam a cultura, o pensamento, a subjetividade e a história no centro da concepção da atividade humana de trabalho. Nessa mesma direção, os estudos de Vigotski (2002) mostram a emergência humana com o aparecimento da linguagem e das ferramentas produzidas e produtoras de mudanças na psiquê humana. Cultura, filogênese e ontogênese formam um complexo único, incessante e não fragmentado. Quando os seres humanos modificam o mundo através das suas atividades, eles estão modificando a si por meio do contato com artefatos históricos, ferramentas e práticas originárias das gerações anteriores. Embora camponeses e comunidades tradicionais apareçam nas abordagens elitistas como seres sem cultura, eles são, de fato, seres humanos sem acesso à escolarização, mas que possuem costumes, tradições, hábitos, valores, rituais, linguagens, artes e formas de educação diferentes da emergente com a sociedade burguesa.
A ideia racista e conservadora de cultura é a mais famosa explicação para a existência da pobreza entre imigrantes, negros, camponeses, trabalhadores. Com essa elitista ideia, justifica-se o discurso apologeta do trabalho como edificador de virtudes, disciplina, caráter e riqueza. De acordo com Gutierrez e Rogoff (2003), essa limitada visão, que estereotipa e rotula processos sociais, desconectando-os das estruturas econômicas, forma a base de ideologias racistas e coloniais que pretendem justificar e preservar desigualdades sociais, educacionais e econômicas entre populações ricas e pobres, entre países do Norte e do Sul global.
Educação para a cultura do trabalho: legislação, escola e religião
[...] dominar a ferocidade das paixões insubmissas das crianças, reprimir a excessiva rudeza de seus costumes, castigar a desagradável e desmoralizadora obscenidade da sua linguagem; controlar a persistente rebeldia de seus desejos; torná-los honestos, obedientes, cordiais, diligentes, submissos e metódicos (Thompson, 2002b, p. 291)[4].
Ele inicia seu curso matutino
Jamais se cansa, nem se detém para repousar [...]
Assim como o Sol, deveria eu cumprir meus deveres deste dia
Iniciar meu trabalho bem cedo, e serenamente
Prosseguir no meu sagrado percurso (Thompson, 2002b, p. 291)[5].
A cultura do trabalho e do discurso apologeta que o qualifica como atividade enobrecedora e edificante ao ser humano confunde-se com a própria história do capitalismo quando foi necessário converter tanto camponeses europeus quanto indígenas e africanos das terras além mar em produtivos trabalhadores.
Essa conversão não foi rápida nem simples. Demorou séculos para que a atividade que representava tortura e castigo fosse transformada em algo dignificante e enobrecedor da natureza humana. Na origem etimológica da palavra trabalho, encontramos o instrumento de tortura tripalium que era usado pelos romanos para castigar réus e condenados. Nele, o torturado era amarrado e chicoteado. Com o passar do tempo, o termo acaba associando-se a um instrumento da agricultura, à fadiga e ao sofrimento ligado às atividades penosas e manuais que escravos eram obrigados a realizar (Veschi, 2022)[6].
A transformação da compreensão de atividade penosa e fatigante em algo dignificante e educativo foi uma tarefa hercúlea e levada a cabo pela burguesia em ascensão durante o final da Idade Média e início da Idade Moderna. A dependência da exploração do trabalho e das matérias primas oriundas das colônias exige medidas mais sofisticadas de controle e educação para uma cultura do trabalho. Assim, o modo capitalista de produção nascente empreende uma verdadeira perseguição à vagabundagem e a toda forma de existência e cultura que resistisse à lógica do trabalho assalariado, explorado e produtivo. Tal empreendimento ocorre nas principais cidades europeias com camponeses desapropriados oriundos dos cercamentos rurais do final do período medieval, e também nas colônias além mar por meio da escravidão e do genocídio de povos indígenas e africanos. Repressão, violência, educação escolar, religião e legislação punitiva eram aplicadas aos vagabundos e avessos ao trabalho explorado ou escravizado por meio de castigos corporais severos que, por vezes, culminavam em mortes e na difamação moral daqueles que resistissem à lógica e à forma social emergente. Crianças eram tidas como incontroláveis e insubmissas; mulheres como bruxas, histéricas e loucas; indígenas e africanos como selvagens e sem cultura; a classe trabalhadora empobrecida como fanfarrona e indisciplinada.
Conforme Marx (2013), o ponto de partida da acumulação capitalista (a assim chamada acumulação primitiva) é comumente apresentado como decorrência da disciplina e do esforço individual de uma elite laboriosa que de tanto economizar e trabalhar foi acumulando riqueza. Aparece então a ideia de um pecado original econômico cometido pelos pobres e vagabundos. Nas palavras do autor:
Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano. Sua origem nos é explicada com uma anedota do passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuadamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar... Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência (Marx, 2013, p. 785-786).
Na passagem acima, Marx evidencia a falácia ideológica burguesa do trabalho como origem da riqueza. A burguesia não dormiu um dia pobre e no outro acordou rica e nem mesmo acordou muito cedo para trabalhar e poupar cada centavo por meio de uma vida econômica. A emergência da nova sociedade ocorre junto da violência ocidental/colonial/branca/masculina que constitui a “parteira da nova sociedade”, subjugando negros, índios, mulheres e camponeses à lógica tanto do trabalho explorado, nas metrópoles europeias, como do concomitante trabalho escravo, nas colônias além mar.
Em 1696, o liberal John Bellers afirmava que “se alguém dispusesse de 100 mil acres de terra e de igual número de libras em dinheiro e em gado, o que seria esse rico sem o trabalhador, se não ele mesmo um trabalhador? [...] O trabalho dos pobres é a mina dos ricos (apud Marx, 2013, p. 691)”. Também Mandeville (2022), em A fábula das abelhas, enfatizava:
Onde quer que a propriedade esteja suficientemente protegida, seria mais fácil viver sem dinheiro do que sem pobres, pois (do contrário) quem faria o trabalho? [...] Assim como não se deve cuidar para que trabalhadores não morram de fome, também não lhes deve dar nada que valha a pena ser poupado [...], não se pode negar que o plano mais sábio para cada pessoa privada, para cada família na sociedade, é ser frugal; mas é do interesse de todas as nações ricas que a maior parte dos pobres jamais esteja inativa e, no entanto, gaste continuamente o que ganha [...] Numa nação livre, em que escravos não sejam permitidos, a riqueza mais segura está numa multidão de pobres laboriosos. Além de constituírem uma inesgotável fonte de homens para a marinha e o exército, sem eles não haveria qualquer satisfação e nenhum produto de nenhum país seria valorizável. Para ser feliz a sociedade (que naturalmente é formada por trabalhadores) e satisfazer ao povo mesmo nas condições mais adversas, é necessário que a maioria permaneça tão ignorante quanto pobre. O conhecimento expande e multiplica nossos desejos, e quanto menos um homem deseja, tanto mais facilmente se podem satisfazer as suas necessidades (Mandeville, 2022, p. 235).
Somente em uma sociedade em que se confrontam, de um lado, proprietários de meios de produção, e de outro, trabalhadores livres e destituídos de toda e qualquer propriedade (obrigados, portanto, a trabalhar para sobreviver) é que o trabalho assalariado e explorado consegue se instituir como necessário, por isso, precisa ser naturalizado como uma prática cultural por meio da educação. A história da expropriação camponesa e escravidão colonial originária, embora assumisse matizes diversas em diferentes países, “[...] foi inscrita a sangue e fogo nos anais da humanidade’ (Marx, 2013, p. 837). Esses métodos, nada idílicos, combinaram o uso violento do chicote e da legislação, com a bíblia e a escola para disciplinar explorados e escravizados – povos sem cultura a serem ensinados.
Thompson (2002b) relata como as crianças foram educadas pela religião e pela escola à aceitação de sua condição de trabalhadoras assalariadas. O apelo à dimensão moralizadora e edificante do trabalho afeta a formação do ser humano, o qual cresce, além de atrofiado pelo movimento repetitivo e alienado do trabalho industrial, naturalizando a própria condição de explorado, incorporando uma cultura do trabalho. Nesse sentido, Mészaros (2006) afirma que nenhum sistema se reproduz sem suas próprias formas de interiorização e reprodução das condutas sociais. Assim, a educação (escolar, religiosa, familiar) aparece como mediadora da incorporação dos valores sociais, dos costumes, dos modos de ser, de fazer e de pensar necessários ao sistema.
Conseguir uma massa de trabalhadores para ser explorada é algo diferente de conseguir trabalhadores com as habilidades, a submissão, a disciplina e as qualificações necessárias para tal exploração. Thompson (2002b) adverte sobre a importância da coerção social, do poder transformador da cruz e da escola para combater a preguiça e a insubmissão da classe trabalhadora nos primórdios da Revolução Industrial. Para o autor, aquilo que chamamos hoje de cultura engloba o que, no passado, chamávamos de modos e costumes. Os modos e costumes da plebe precisaram ser adequados à intenção do capital, refundando uma nova natureza humana.
Segundo Figueira (2002), em qualquer época os indivíduos precisam saber que não podem existir de qualquer maneira, mas de um modo socialmente determinado. Dessa forma, a educação e a cultura não são apêndices mais ou menos úteis, mas sim aspectos viscerais para as relações sociais vigentes. Por isso, o processo de aprendizagem significa, fundamentalmente, aprender a viver e a sobreviver em uma determinada relação social.
Os homens livres, criados pelo processo intitulado por Marx de “Acumulação Primitiva”, não foram absorvidos pela manufatura com a mesma velocidade com que foram arrancados de suas terras. Primeiramente, converteram-se em massas de assaltantes, esmoleiros e vagabundos, gerando, entre o final do século XV e início do século XVIII, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Em 1530, Henrique VIII declamava:
Esmoleiros velhos e incapacitados para o trabalho recebem uma licença para mendigar. Em contraposição, açoitamento e encarceramento para vagabundos válidos. Eles devem ser amarrados atrás de um carro e açoitados até que o sangue corra de seu corpo, em seguida devem prestar juramento de retornarem à sua terra natal ou ao lugar onde moraram nos últimos 3 anos e “se porem ao trabalho” [...] Aquele que for apanhado pela segunda vez por vagabundagem deverá ser novamente açoitado e ter a metade da orelha cortada; na terceira reincidência, porém, o atingido, como criminoso grave e inimigo da comunidade, deverá ser executado (Marx, 2013, p. 265).
A citação ilustra a forma como camponeses, expulsos de suas terras pelo processo de cercamento para a criação de ovelhas (destinadas à produção de lã para a incipiente fabricação de tecidos ingleses), foram enquadrados por leis e disciplinas necessárias à generalização do sistema de trabalho assalariado. Esse processo foi fundamental para o desenvolvimento de uma classe de trabalhadores que por “[..] educação, tradição, costume reconhece as exigências do modo de produção nascente como naturais e evidentes” (Marx, 2013, p. 267).
A grande fábrica emergente enfrentava problemas com a falta de disciplina, de submissão, de metodismo, de atenção, de escrúpulos e de obediência dos empregados. A principal dificuldade do sistema fabril estava em “[...] capacitar os seres humanos a renunciarem seus hábitos indisciplinados no trabalho [...]”. Logo, foi necessário criar uma forma bem sucedida de disciplina nas fábricas, pois era “[...] praticamente impossível converter os trabalhadores oriundos das ocupações agrícolas em operários úteis após a puberdade” (Thompson, 2002b, p. 237). Na mesma direção do pensamento de Thompson (2002b), Manacorda (2006) reflete sobre o entrelaçamento entre o nascimento da escola para a classe trabalhadora e as transformações no modo de produção da existência:
Fábrica e escola nascem juntas: as leis que criam as escolas de Estado vêm juntas com as leis que suprimem a aprendizagem coorporativa (e também a ordem dos jesuítas). Os filósofos e os soberanos iluminados não tinham nenhuma novidade do próprio cérebro, são apenas os intérpretes e os executores dessa realidade que está mudando (Manacorda, 2006, p. 249).
É a partir da legislação fabril que as escolas se tornam uma necessidade para o ensino de generalidades às crianças da classe trabalhadora, além de atuarem favoravelmente à disciplina e aversão à preguiça. Como o foco das relações sociais capitalistas é a produção de capital e não a humanização do ser social, as vantagens do trabalho coletivo e dos avanços tecnológicos não são utilizadas para constituir uma cultura que valoriza as virtudes do estudo, da brincadeira, da arte, da música, da preguiça.
O problema do trabalho infantil no Brasil
Embora o trabalho infantil no Brasil seja proibido para menores de 16 anos (salvo na condição de aprendiz, entre 14 e 16 anos) e existam programas sociais destinados à erradicação do problema (PETI, Bolsa Família, Auxilio Brasil, Escola em Tempo Integral etc), cerca de 1,8 milhão (5% da população na faixa etária) de crianças e adolescentes trabalham no País (Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil no Brasil, 2016). Se, entre 2004 e 2014, houve redução de cerca de 81% no número de crianças e de adolescentes trabalhadores no Brasil, as estimativas atuais afirmam a retomada do crescimento do problema.
O avanço da crise econômica e política no país, bem como as reduções de investimentos e recursos destinados para as áreas social e educacional, combinadas ao aumento da pobreza, da desigualdade social e da ausência presencial da escola durante a Pandemia Covid-19, aumentou o número de crianças trabalhadoras. Segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho (UNICEF, 2022), o trabalho infantil no Brasil cresceu cerca de 26% entre 2020/21. Coadunado com esse problema, aparece o aumento de casos de evasão escolar, violência infantil e feminina, fome, desemprego e perda de poder aquisitivo. Assim, cenas de crianças trabalhando nas ruas e pedindo esmolas voltaram a ser comuns nas cidades brasileiras.
Conforme nossas pesquisas, o trabalho infantil no Brasil ocorre predominantemente na agricultura, na pecuária e na silvicultura, seguidas do comércio, dos serviços gerais, da construção civil e do trabalho doméstico, nos quais é mais evidente o trabalho das meninas. O número de crianças que trabalham também aumenta com o avanço da idade, sendo que, por volta dos nove anos de idade, eleva-se o tempo de dedicação ao trabalho e diminui o tempo de estudos, até que uma parcela deixa de estudar para só trabalhar (Conde, 2014, 2016). Entre 15 a 17 anos se encontra a maior “fatia” de trabalhadores/as precoces. Também se destaca o fato de 60% serem negros ou pardos e 80% frequentarem a escola, o que evidencia que a escola não dá conta de erradicar o trabalho infantil. A esmagadora maioria das crianças que trabalham pertence a famílias com renda de até dois salários mínimos, ou seja, o problema da exploração do trabalho infantil tem um recorte de classe, tanto na sua origem quanto na atualidade (Conde, Silva, 2020).
O trabalho infantil na fumicultura brasileira
O Brasil é o maior produtor de fumo do mundo e o fumo brasileiro é reconhecido pela sua qualidade superior. Apenas 15% da produção destina-se ao consumo interno e os 85% restantes são exportados, principalmente, para a Europa. O trabalho na fumicultura ocorre, geralmente, em pequenas propriedades agrícolas familiares e é caracterizado por jornadas exaustivas no período de colheita, do controle técnico da qualidade e da quantidade da produção (pela empresa que compra o produto), do constante contato com agrotóxico e com a nicotina absorvida pela pele. O contato direto com a folha de fumo acarreta uma doença popularmente chamada de “mancha verde”.
A contratação da força de trabalho é a parte mais cara da produção, por isso, a gestão empresarial capitalista opta pela produção integrada. As famílias numerosas são os alvos preferidos da indústria. A negociação contratual é realizada entre adultos, mas o trabalho é desenvolvido no âmbito familiar e, assim, muitas regras da produção seguem o que é convencionado no âmbito privado, como, por exemplo, a submissão dos mais novos (geralmente crianças, adolescentes e jovens) aos mais velhos. No trabalho da colheita do pé de fumo, o trabalhador necessita colher as folhas, apará-las, pendurá-las nas estufas para secar, separar e enrolar a manilha. Na estufa, é preciso controlar rigorosamente a temperatura e a umidade das folhas para garantia de qualidade do produto. As famílias trabalham de manhã, de tarde e até durante a noite. Caso a empresa fumageira resolvesse contratar trabalhadores pagos por jornada de trabalho, seguindo as determinações legais trabalhistas, o custo da produção seria muito alto. O trabalhador (ou melhor, a sua família) tem que alcançar as cotas com a qualidade determinada pela empresa. Quando pressionadas em relação às constantes denúncias de exploração do trabalho infantil, as empresas fumageiras afirmam que o problema do trabalho infantil é cultural no campo e deve ser solucionado na particularidade de cada família.
Conforme Francisco de Oliveira (2003), a exploração do trabalho de crianças é reflexo da forma como o capitalismo se reproduz em sua periferia. Desde os primórdios da relação capital, as formas artesanais são combinadas com tecnologia de ponta. Para o autor, o trabalho na agricultura desempenha um papel fundamental na industrialização e na constituição do capitalismo nacional, onde persistem formas peculiares e primitivas de subsistência como parte do desenvolvimento moderno, com rebaixamento do custo da força de trabalho, base da acumulação. Essa situação é parte de um processo acelerado de desenvolvimento em que crianças trabalhando na colheita do fumo não são sinais de atraso e de subdesenvolvimento do campo, mas uma forma atroz de modernização.
Entre as 1080 crianças (entre 9 e 16 anos) que participaram de nossa pesquisa desenvolvida na fumicultura, percebemos que elas trabalham desenvolvendo diferentes tipos de atividades em distintas relações que compõem a forma como a mercadoria força de trabalho infantil é explorada no seio da família rural catarinense. Percebemos que um conjunto de 76% desenvolvem alguma forma de trabalho, a saber: 32% das crianças e dos adolescentes pesquisados desenvolvem atividades rurais de trabalho; 16% realizam atividades domésticas de trabalho; 12% auxiliam nas tarefas para a organização da vida familiar; 7,5% combinam o trabalho doméstico cotidiano com o trabalho rural; 5% desenvolvem trabalho em locais não familiares; 2% desenvolvem trabalho rural não familiar; 1,3% combinam trabalho familiar com trabalho não familiar; 0,6% realizam trabalho doméstico não familiar. Essa diversidade de formas compõe a totalidade da mercadoria força de trabalho infantil que é ilustrado pelo depoimento abaixo:
Eu sempre levanto lá pelas 6h da manhã, tiro meu pijama, vou ao banheiro. Ajudo minha mãe a tratar os bichos, galinhas, porcos, perus, coelhos. Tomo café e vou tratar as vacas. Depois vou ao fumo para capinar e fazer outras coisas que precisam. Quando chega 11h30, vou para casa almoçar, recolher as coisas da mesa e dormir um pouco. Às 14h voltamos para a roça. Depois das 16h volto para casa, cuido das ores, tomo banho e café e vou para a escola. [...] Nas férias... nem posso chamar isso de férias... pois trabalho o dia inteiro quebrando folha de fumo. Minhas férias são um saco! Às vezes, eu fico vomitando porque me dá porre de fumo. Para mim, as férias são durante as aulas escolares, pois trabalho menos do que na chamada “férias”.
Como podemos perceber, a criança de 10 anos acima trabalha na roça diariamente das 6h da manhã até as 16h, com pausa para almoçar entre 11h30 e 14h, totalizando 7h30m de jornada diária de trabalho. Após essa jornada exaustiva, que envolve desde o trato de animais até capinar fumo, ela segue para a casa, onde cuida das flores e vai à escola no período noturno gastar as poucas energias que lhe restam depois do dia de trabalho. Nas férias escolares, a jornada diária de trabalho é ainda mais intensa, uma vez que não há aulas e a fumicultura se encontra na época de colheita.
O problema do trabalho infantil nos EUA e a questão da migração
De acordo com um recente relatório publicado por McKinsey et al. (2022), os EUA é o segundo país mais rico do mundo, contando com uma sofisticada economia, tecnologia de ponta e grande investimento em pesquisas espaciais. Conforme Giroux (2016), o país tem dinheiro suficiente para providenciar educação de qualidade para todos os estudantes e o problema não é a falta de recursos, mas o destino dado aos recursos disponíveis: “Os Estados Unidos gastam cerca de 960 bilhões de dólares em guerra e projetos de defesa. De fato, o custo da Guerra em 10 anos é de pelo menos 3.7 trilhões de dólares podendo alcançar cerca de 4.4 trilhões de dólares”[7] (Giroux, 2016, p. 11).
Entretanto, de acordo com Human Right Watch (2015), cerca de 300.000 a 400.000 crianças abaixo de 18 anos de idade estão trabalhando nos Estados Unidos e a maioria delas são imigrantes que residem no campo, onde é comum encontrarmos crianças trabalhando sem qualquer proteção, durante verões escaldantes, finais de semana ou após a escola.
Professores relatam diariamente o efeito do trabalho precoce sobre os corpos e as mentes dos estudantes trabalhadores: cortes nas mãos, cansaço, náuseas, insolação, queimadura solar, sonolência, fatiga. Na mesma direção que nossas pesquisas descobriram no Brasil (Conde, 2016), os pais (geralmente oriundos do México no caso dos imigrantes nos EUA) levam os filhos ao trabalho porque eles precisam da remuneração oriunda do trabalho infantil para comprar produtos básicos ao consumo familiar e não porque eles acreditam que trabalhar seja algo bom e educativo desde cedo, tal qual afirma a ideia de cultura do trabalho como algo que dignifica e enobrece. As famílias imigrantes (todas mexicanas) com as quais conversamos durante a pesquisa de campo realizada em Kinston (North Caroline) reconhecem que o trabalho rouba e compete com a infância e a adolescência dos filhos. Entretanto, as famílias precisam do dinheiro para sobreviver e, nos EUA, as leis permitem que as crianças trabalhem desde que os pais autorizem.
De acordo com o Departamento Estadual de Agricultura e Serviço de Pesquisa Econômica dos Estados Unidos (USDA, 2021), 73% dos trabalhadores da agricultura estadunidense nasceram fora dos Estados Unidos e, segundo os relatórios da Human Rights Watch (2010, 2012, 2014, 2015), a maioria deles é composta por latinos. Durante 2019, 258.000 trabalhadores imigrantes ganharam a permissão de trabalho temporário (H-2A Visa), ou seja, menos de 4% do total do número de imigrantes trabalhadores do país. Se os empregadores rurais perderem seus trabalhadores estrangeiros, a agricultura norte americana perderia cerca de 30 a 60 bilhões de dólares ao ano (USDA, 2021). Tais dados revelam como o trabalho barato (Marx, 2013) do imigrante ilegal tem se tornado cada vez mais essencial ao modo de acumulação capitalista.
Durante nossa pesquisa de campo em propriedades rurais norte americanas, confirmamos a informação de que enquanto muitas escolas, serviços públicos, restaurantes, bares, cafés, universidades e lojas estavam fechadas durante o forte lockdown da Pandemia causada pela Covid-19 em 2020, os imigrantes continuavam trabalhando no campo. Eles não tiveram direito à quarentena remunerada, porque a produção de alimentos na área rural é essencial para o abastecimento dos moradores das cidades.
Ativistas e imigrantes por nós entrevistados destacaram a vulnerabilidade das crianças imigrantes sem escolas durante a Pandemia quando os pais trabalhadores rurais não puderam parar de trabalhar. Os imigrantes trabalhadores do campo, compuseram um dos grupos com mais casos de mortes por Covid-19 nos EUA[8].
O trabalho da criança imigrante na fumicultura norte americana
Margareth Wurth, pesquisadora da Human Rights Watch que entrevistamos em agosto de 2020, afirma que a situação do trabalho infantil imigrante piorou durante a Pandemia, pois afetou muitos empregos e as escolas estiveram fechadas:
A questão das crianças que trabalham nas plantações de tabaco nos EUA é um grande problema porque elas trabalham de 10 a 12 horas por dia entrando em contato e absorvendo nicotina, o que as deixa doentes. Por isso, é necessário mudar a lei do tabaco e a cultura de exploração das crianças imigrantes nos EUA. No passado, havia crianças negras trabalhando com os pais nos campos. Agora há crianças imigrantes nessa posição [...]. O pior, na minha opinião, é a cultura do tabaco, porque as crianças estão em contato com a nicotina, considerada uma exposição tóxica. Além disso, as crianças e as famílias também estão expostas aos agrotóxicos e isso é um assunto seriamente complicado [...]. A Covid-19 e a política conservadora estão afetando anos de progresso contra o trabalho infantil nos EUA. Desde 2017, podemos ver o desmonte dessas regras. A diferença no Brasil é a regulamentação. O Brasil tem uma regulamentação forte para crianças. Embora, na realidade, algumas crianças possam ser encontradas trabalhando, é considerado totalmente ilegal. Além disso, os trabalhadores rurais nos EUA não têm sindicatos para discutir suas lutas e organizar movimentos por melhores condições de trabalho. Além disso, é tão difícil encontrar famílias e pessoas dispostas a pensar e falar sobre esses temas, porque tanto a situação ilegal quanto a violência contra os imigrantes latinos assustam os trabalhadores rurais. Este é um assunto tão delicado (Wurth, M. entrevistada em 25 de agosto de 2020 apud Conde, 2020) [9].
Para a pesquisadora, entre os problemas que envolvem o trabalho infantil rural encontra-se a ausência de legislação proibitiva que paute reivindicações de movimentos sociais e sindicais. Além disso, o risco de deportação, prisão e separação assusta e intimida os trabalhadores imigrantes. Diante da ausência de restrições e parâmetros legais, as condições de trabalho e de vida pioram muito. Nas cidades, há regulamentações para o trabalho, como, por exemplo, idade mínima. Já no campo, tais limitações inexistem e as crianças ficam, portanto, mais expostas aos riscos físicos, mentais e emocionais do trabalho precoce.
Figura 2 – criança imigrante trabalhando na colheita da batata
Fonte: arquivo da Human Rights Watch (Conde, 2020).
Como podemos ver, as leis do segundo país mais rico do mundo violam as convenções internacionais sobre os direitos da criança em relação ao trabalho precoce. O problema é pior nas plantações de tabaco, onde famílias e crianças têm contato direto com agrotóxicos e nicotina, e, comumente, as crianças queixam-se de náuseas, tonturas, vômitos e doenças de pele. Apesar das lavouras de fumo utilizarem máquinas na colheita, a parte mais importante do trabalho é manual. As fotos abaixo, (Figura 4), feitas durante nossa pesquisa de campo, mostram os trabalhadores sentados no primeiro andar do trator (que passa pelo meio das plantações), mas realizando a colheita manualmente.
Figura 4 – Colheita do tabaco na Carolina do Norte em setembro de 2020
Fonte: Conde, 2020.
O tabaco nos EUA é cultivado há séculos e sua comercialização tem sido uma parte central da economia desde 1600. O país é o quarto maior produtor mundial de fumo, atrás da China, do Brasil e da Índia. A produção é distribuída entre quatro estados americanos: Kentucky, Carolina do Norte, Tennessee e Virgínia (HRW, 2015).
Segundo o proprietário de uma propriedade rural com 250 trabalhadores mexicanos que visitamos durante nossa pesquisa de campo na Carolina do Norte (Conde, 2020), “[...] a contratação de trabalhadores imigrantes é uma solução ao problema da concorrência, porque eles aceitam trabalhar mais por menos. Os trabalhadores americanos querem ganhar mais e não possuem a mesma disposição”. Assim, o trabalho mais barato de imigrantes, e até de crianças, é fundamental para o rebaixamento do preço do produto tabaco e sua venda competitiva no mercado internacional (Conde, 2020).
Considerações finais
A trágica situação entre o alto número de crianças imigrantes trabalhando no Brasil e nos Estados Unidos evidencia a forma como o capitalismo se reproduz tanto em seu centro quanto em sua periferia. Independentemente de residirem no país de origem ou em solo estadunidense, crianças latinas e nascidas em países do Sul Global (e suas famílias) são exploradas, o que expressa uma forma atual de neocolonialismo (N’Krumah, 1967).
Nesse sentido, nossas pesquisas denunciam a persistência do trabalho infantil entre crianças e adolescentes imigrantes e nascidos na América Latina como expressão atual do cheap labour. Se o trabalho da criança no Brasil e nos EUA aparece em um contexto extremo de luta familiar pela sobrevivência, ao mesmo tempo, constitui uma solução para a economia capitalista, que precisa pagar menos aos trabalhadores para obter mais lucro. Por isso, se torna necessária toda a apologia ao trabalho precoce como algo que dignifica o caráter por meio da cultura socializada desde a escola, a família, a religião e a legislação.
Paul Lafargue (2003), ainda no século XIX, denunciava que a classe trabalhadora estava dominada por uma estranha loucura que passou a sacrossantificar aquilo que há séculos era uma verdadeira tortura: o trabalho. O autor defende intransigentemente a necessidade de libertar a classe trabalhadora do cultivo apologeta do trabalho. É preciso recordar que trabalho é tripalium e que o ser humano só se realiza física e intelectualmente quando finda essa atividade alienada e voltada à produção de mais valor para outrem. Assim, a reivindicação da classe trabalhadora deve ser pelo direito à preguiça, à riqueza, à boa cama, à mesa farta, à arte, à literatura, à política, à ciência, ao lazer, ao tempo livre. Isso porque,
Num regime de preguiça, para matar o tempo que nos mata segundo por segundo, haverá espetáculos e representações teatrais [...] Se a classe operária se erguesse com sua força, não para reclamar os direitos do homem, que não são se não o direito à exploração capitalista, não para reclamar o direito ao trabalho, que não é se não o direito à miséria, mas para forjar uma lei de bronze que proibisse todos os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, tremendo de alegria, sentiria surgir um novo universo (Lafargue, 2003, p. 75-77).
Para Thompson (1988), a preservação ou a alteração da cultura, entendia como sistema de valores e costumes partilhados, sempre ocorre em um campo de conflitos e contradições, em que a relação entre produção e reprodução é capaz de alterar as tradições, trazendo algo novo, sob as “asas” do velho. Nesse sentido, o capitalismo recriou costumes e reinventou a (des)natureza humana do trabalho. Outro sistema também recriará, com base em outra materialidade, outros modos e costumes, refundando uma nova e, quiçá, mais livre natureza humana.
Nesse sentido, as denúncias que constituem este texto só fazem sentido se acompanhadas de ações e engajamentos práticos voltados à libertação da cultura enlouquecida do trabalho. A mudança está em nossas mãos e a realidade (assim como uma nova e revolucionária cultura da preguiça) está aberta e em constante movimento e contradição (Marx, 1989). “Podemos viver tempos sombrios, mas a história está aberta e o espaço do possível é maior do que o que está em exibição” (Giroux, 2013, p. 22).
Referências
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Notas
[1] Pesquisa desenvolvida com apoio do CAPES/PRINT – UFSC, Subprojeto Repositório de Práticas Educativas.
[2] Provérbio brasileiro comumente encontrado em falas de agricultores familiares de Santa Catarina. Na pesquisa que desenvolvemos em Portugal sobre o trabalho infantil entre 2009 e 2010, encontramos a versão portuguesa: “trabalho de miúdo é pouco, mas quem abre mão é louco” (CONDE, 2016).
[3] Pesquisas aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC de acordo com o parecer número 3.166.575
[4] Thompson (2002b, p. 291) faz referência à educação da classe trabalhadora ofertada em escolas e igrejas na Inglaterra durante a Revolução Industrial.
[5] Idem nota 2.
[6] https://etimologia.com.br/trabalho/ Acesso em: 04 nov. 2022.
[7] Tradução nossa.
[8] De acordo com o Departamento de Saúde Mental e Higiene da cidade de Nova York (2020), entre março e novembro de 2020, pessoas Latinas formam o grupo com mais mortes por Covid-19 e a população negra compõe o segundo grupo nos EUA. Esses dados refletem a grande presença de pessoas não brancas em trabalhos de baixa remuneração, vivendo em precárias condições e sem direito à quarentena remunerada, conectando, assim, as relações entre classe social e raça.
[9] Tradução nossa.