A racionalidade pedagógica empreendedora no direcionamento das formas de governo de si

Entrepreneurial pedagogical rationality in guiding forms of self-government

La racionalidad pedagógica emprededora en la dirección de las formas de autogobierno

 

Ademir Henrique Manfré https://lh7-us.googleusercontent.com/h9Ojv87ptVEgwx8PXehJNWB6RbeDlpXgP9wEPNuQgEiN1MWZqOYypeCQ59qJzbAdKq2NWcCoCxu9ig7Uxj9DQGeZQd62p5GHyOeol1sBa83pp3fhKd6TWJ4p1GJxaptf9Bd5r7OgGMw4FOSfvYdyTA

Universidade do Oeste Paulista, Presidente Prudente, SP, Brasil

ademirmanfre@yahoo.com.br

 

Recebido em 14 de novembro de 2022

Aprovado em 02 de janeiro de 2023

Publicado em 18 de março de 2024

 

RESUMO

Este texto reflete sobre o tema Projeto de Vida, gestão de si e cultura do empreendedorismo. Objetivou analisar como o Projeto de vida – enquanto componente curricular transversal na educação escolar – alinha-se à cultura do empreendedorismo, direcionando as formas de governo de si. O Projeto de Vida, de acordo com essa cultura, promete desenvolver múltiplas dimensões, motivando os indivíduos a resolver problemas e a tomar decisões para alcançar propósitos e atingir a realização profissional. Quando associada ao Projeto de vida, essa cultura transfere os dispositivos empresariais – tais como competividade, lucratividade, desempenho e produtividade – ao âmbito educacional, subordinando os processos formativos a uma nova governamentalidade. Partiu-se do seguinte questionamento: o que temos feito de nós mesmos sob as formas de governo da vida? A partir do exposto, defende-se que o debate acadêmico sobre Projeto de Vida ancora-se em princípios provenientes do mercado neoliberal, priorizando a formação de indivíduos economicamente produtivos, porém, politicamente submissos e dóceis. Desse modo, pretende-se colocar em discussão o papel desempenhado pela racionalidade pedagógica empreendedora no direcionamento das formas de governo de si. Como forma de direcionamento analítico, a crítica foucautiana surgiu como referencial teórico capaz de apresentar criticamente os limites dos dispositivos neoliberais que inserem a Educação nas diretrizes da produtividade e da governamentalidade.

Palavras-chave: Governamentalidade; Empreendedorismo; Desempenho.

 

 

ABSTRACT

This paper submitted to the Journal deals with the Project of Life, self-management and the culture of entrepreneurship. Our general objective is to analyze how the Project of Life – as a transversal curricular component – is associated with the culture of entrepreneurship. According to this culture, the Project of Life promises to develop the individuals in multiple dimensions, motivating them to solve problems and make decisions to achieve goals and accomplish professional fulfillment. When associated to the Project of Life, such culture imposes business devices – like competitiveness, performance and productivity – to the educational scope, submitting the training processes to a new govern mentality. From that, we raise the following question: What have we made of ourselves under the control forms of life? We believe that the academic debate on the Project of Life is grounded in principles from the neoliberal market, prioritizing the formation of economically productive individuals, whose are, however, politically submissive and docile. Thus, we intend to discuss the role played by entrepreneurial pedagogical rationality in directing the forms of self-government. To develop our criticism, we adopt an analytical standpoint from Foucault's thoughts, which emerges as a theoretical framework capable of presenting the limits of neoliberal devices that place Education in the guidelines of productivity and effectiveness.
Keywords: Governmentality; Entrepreneurship; Performance.

 

RESUMEN

El presente texto reflexiona sobre la temática del Proyecto de Vida, la autogestión y la cultura del emprendimiento. Tuvo como objetivo analizar cómo el Proyecto de Vida – como componente curricular transversal en la educación escolar – se alinea con la cultura del emprendimiento, orientando formas de autogobierno. El Proyecto de Vida, según esta cultura, promete desarrollar múltiples dimensiones, motivando a los individuos a resolver problemas y tomar decisiones para alcanzar propósitos y alcanzar la realización profesional.Al asociarse al Proyecto de Vida, esta cultura traslada dispositivos empresariales –como la competitividad, la rentabilidad, el desempeño y la productividad– al ámbito educativo, subordinando los procesos de formación a una nueva gubernamentalidad. El punto de partida fue la siguiente pregunta: ¿qué hemos hecho de nosotros mismos bajo las formas de gobierno de la vida? Con base en lo anterior, se sostiene que el debate académico sobre el Proyecto de Vida está anclado en principios provenientes del mercado neoliberal, priorizando la formación de individuos económicamente productivos, pero políticamente sumisos y dóciles. De esta manera, pretendemos discutir el papel que juega la racionalidad pedagógica empresarial en la dirección de las formas de autogobierno. Como forma de orientación analítica, la crítica de Foucault surgió como un marco teórico capaz de presentar críticamente los límites de los dispositivos neoliberales que insertan la Educación en los lineamientos de la productividad y la gubernamentalidad.

Palabras clave: Gubernamentalidad; Emprendedorismo; Actuación.

 

Introdução

O objetivo deste artigo é discutir o tema Projeto de Vida, gestão de si e cultura do empreendedorismo. A temática do Projeto de Vida ganhou destaque nos últimos anos no campo educacional, principalmente a partir da aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Desde a infância, deparamo-nos com as seguintes questões: O que você pretende ser quando crescer? Qual profissão seguir? Qual o seu Projeto de Vida? Nota-se que são questionamentos advindos de diferentes instâncias sociais, hoje, entendidos como cruciais na delimitação de um futuro promissor.

E o ambiente escolar, enquanto espaço educativo privilegiado na formação dos estudantes, é convocado a desenvolver um conjunto de competências (racionais e socioemocionais) e habilidades específicas cujo objetivo é preparar os indivíduos para a nova cultura requerida pelo século 21: a do desempenho (NOSELLA, 2010). Assim, desempenho, empreendedorismo, competitividade e protagonismo são as palavras-chave que passam a gerir as propostas formativas atuais.

Para ilustrar o debate proposto, citamos o documento “Competências para a vida[i]” publicado pelo Instituto Ayrton Senna. Nesse, justifica-se a ideia de que os desafios do nosso tempo impõem a abertura a novas experiências e uma atuação para atingir determinados fins – aqueles impostos pelo mercado competitivo - alinhada entre organizações (principalmente, as privadas), escolas, educadores e estudantes.

Diante do exposto, muitos estudos são desenvolvidos no sentido de ampliar o entendimento sobre o que constitui uma educação de qualidade na sociedade contemporânea, que apresenta vários desafios que oferecem cenários de mudanças que exigem muito mais do que o domínio de conteúdos específicos das disciplinas curriculares.

Por assim dizer, definem-se os objetivos dos processos formativos na atualidade – tanto em relação aos aspectos interpessoais, quanto produtivos – buscando delimitar quais oportunidades podem ser oferecidas para os escolares para que possam realizar escolhas com autonomia e conquistar realizações ao longo da vida. Essa tarefa conjunta, de acordo com o documento apresentado, envolve implementar iniciativas que efetivamente garantam aos indivíduos o desenvolvimento pleno, a exemplo do Projeto de Vida.

Nesse debate, também predomina a concepção de que a escola é responsável pela preparação do indivíduo para o mercado de trabalho (LDBEN n° 9394/96), desenvolvendo sujeitos autônomos, competitivos, conscientes e protagonistas. Aos estudantes, é imposto o seguinte imperativo: seja protagonista de sua própria história, disseminando-se uma “forma de mercado empresarial como narrativa-mestra que define e confina toda variedade de relações dentro do Estado e entre o Estado, a sociedade civil e a economia” (BALL, 2010, p. 50).

De acordo com Cury (2014), para que o indivíduo desenvolva habilidades como comunicatividade, produtividade, empatia, colaboração e abertura ao novo, é necessário que a escola se prontifique a prepará-lo a aprender a empreender constantemente – processo esse, muitas vezes, desvinculado do aprender a refletir -, a ter autonomia e a resolver situações-problema no contexto que resolveu atuar (BRASIL, 2017b).

Chavões como “Pense fora da caixinha”, “Enfrente desafios”, “Vença seus medos”, “Invista em si mesmo” são apresentados como fomentadores de comportamentos empreendedores. Há o imperativo de que o empreendedorismo – como proposta formativa escolar – deve ser seguido por todos.

É nesse contexto que inserimos o debate sobre Projeto de Vida. Na atualidade, o Projeto de Vida é reconhecido e exaltado como um dos pilares da Educação do século 21, representado pela performance do sujeito empreendedor de si (DOLABELA, 1998, 2003, 2015; BRASIL, 2010; VILLELA, 2005; CARVALHO, 2004), do empresário de si como elemento essencial para se alcançar o almejado sucesso profissional.

Vários autores do pensamento educacional empresarial (DOLABELA, 1998, 2003, 2015; VILLELA, 2005) e de fundações (LEMANN, 2014; I.A.S., 2015) são chamados a implantarem um “modelo” de educação baseado no Projeto de Vida.

Com o intuito de analisar como o Projeto de vida – enquanto componente curricular transversal na educação escolar – alinha-se à cultura do empreendedorismo, direcionando as formas de governo de si, este artigo organiza-se da seguinte maneira: inicialmente, discorre-se sobre os fundamentos do Projeto de vida, os pressupostos teóricos e objetivos na Educação escolar. Posteriormente, no segundo momento da reflexão proposta, apontam-se críticas aos princípios do Projeto de Vida, defendendo-se a ideia de que esses estão alinhados à cultura do empreendedorismo, ao empresário de si. Por fim, a partir da crítica foucaultiana, lança-se a possibilidade de se pensar a educação enquanto possibilidade de romper com as formas de governo de si.

 

O que você vai ser quando crescer? O Projeto de Vida como imperativo formativo na contemporaneidade

A pesquisa “Projeto de Vida”, desenvolvida pela Fundação Lemann, com o apoio do Movimento “Todos pela Educação” apontou que há uma grande desconexão entre o que o século 21 exige dos indivíduos, em termos de formação, e aquilo que é ensinado nas escolas brasileiras (LEMANN, 2014).

O objetivo da pesquisa foi refletir sobre qual é o papel da escola na concretização do Projeto de Vida dos estudantes. Participaram jovens egressos de escolas públicas, líderes da sociedade civil, docentes universitários e colaboradores das 5 regiões político-administrativas brasileiras, totalizando 126 entrevistados.

De acordo com Haroldo Torres, responsável pelos trabalhos, os jovens brasileiros estão saindo despreparados das escolas, não sabendo qual caminho seguir após a finalização do Ensino Médio, entendido enquanto etapa decisiva para os estudantes ingressarem no competitivo mercado de trabalho.

Foram muitas as “queixas” encontradas, afirmam os organizadores. Para citar algumas: “a escola é conservadora, atrasada, não prepara, não identifica ou proporciona ao aluno descobrir suas aptidões” (LEMANN, 2014, p. 47).

Para Denis Mizne, diretor executivo da Fundação Lemann, o estudo objetivou contribuir na tentativa de uma revisão geral dos currículos da educação básica brasileira, pontuando que a escola “deve ser produtiva, plena, mesmo após o término dos estudos do ensino médio” (LEMANN, 2014, p. 76).

A pesquisa também destacou que o currículo escolar é conteudista e, por esse motivo, não desperta o interesse nos estudantes. Os conteúdos ministrados são fragmentados, pouco se relacionando às diversas áreas do conhecimento, afirmam os organizadores.

 

“Mais oportunidade profissional, com oportunidade de estágio em empresas públicas e privadas para saber como se preparar para o futuro”. “Com 18 anos você não está preparado para o mercado de trabalho. Você vivia no colégio, com pessoas de 50, 60 anos” (adolescentes participantes da pesquisa) (LEMANN, 2014, p. 83).

 

Na visão dos estudantes mencionados acima, os docentes desenvolvem o processo de ensino e de aprendizagem de forma desinteressada, não despertam interesses dos discentes. Predomina a concepção de que os professores estão desalinhados em relação aos imperativos postos pelo século 21, tais como: inovação, comportamento empreendedor, invenção e criatividade. Assim, “parte dessas questões gera antipatia pelo professor e, automaticamente, desinteresse pela matéria” (LEMAN, 2014, p. 50).

Na visão dos professores participantes, sobressai que a “falta de protagonismo dos estudantes” prejudica a construção de um profissional promissor (LEMAN, 2014, p. 53).

Os limites da escola desconectada da realidade – na visão da pesquisa apresentada – não param por aqui. Para os professores entrevistados, “pouca autonomia e ausência de liderança são traços frequentemente destacados” nos alunos da educação básica brasileira. Além disso, “individualismo e dificuldade de trabalhar em grupo são também mencionados” (LEMAN, 2014, p. 177).

Diante dos limites educacionais pontuados na pesquisa realizada pela Fundação Leman, os pesquisadores concluem que a escola necessita apostar na geração de competências (racionais e socioemocionais) e habilidades, investindo massivamente no Projeto de Vida como mola propulsora de mudanças sociais.

Nesse debate, nota-se a insistente defesa de que o investimento permanente em si pode promover mais competências e habilidades, gerando a empregabilidade no futuro bem próximo e promissor. Tudo depende do investimento que se faz hoje! Assim, o investimento em competências é incentivado por técnicas de marketing pessoal, isto é, pela gestão da vida diante do modelo empresarial - como única proposta formativa - pautado por critérios do empreendedorismo. Logo, essa lógica deve ser seguida por todos/as, uma vez que se investe na ideia de que quanto maior o investimento na aquisição de competências e de habilidades, maior será o potencial competitivo dos estudantes. De acordo com esse discurso, o melhor então é que a escola se espelhe na empresa!

 

As sugestões priorizam a reflexão dos estudantes sobre o aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a conviver e o aprender a ser. Embora os Quatro Pilares da Educação orientem toda a dinâmica a ser construída com os alunos, em determinados momentos, alguns serão mais evidenciados. Neste momento, espera-se que eles reflitam sobre quais são seus desejos, sonhos e expectativas e exercitem o autoconhecimento, o que os auxiliará nas escolhas existenciais e sociais que farão por toda a vida, apoiados pelas habilidades e competências construídas nas diferentes áreas do conhecimento (SÃO PAULO, 2013, p. 7).

 

Foi nesse contexto que a Fundação Leman incentivou a construção de propostas educativas com o intuito de atender às expectativas dos estudantes brasileiros na preparação e ampliação de possíveis oportunidades de empregabilidade: o Projeto de Vida.

 

Projeto de Vida: pressupostos teóricos

De acordo com Danza (2019), o conceito de Projeto de Vida está baseado nas obras do psiquiatra austríaco Victor Frankl. Este, se interessou pela questão do sentido da vida. Damon, Menon e Bronk subsidiaram o conceito de Projeto de Vida pelo viés dos objetivos de vida. Ou ainda, Ryff e Singer, para os quais todo Projeto de Vida deve partir de um propósito, atribuindo sentido à vida no presente e no futuro (DANZA, 2019).

Diante dessas primeiras investigações – e na contemporaneidade com a atuação intensa das instituições privadas – Fundação Leman, Instituto Ayrton Senna, Fundação Itaú Cultural, por exemplo – o Projeto de Vida tornou-se um dos eixos da formação escolar. Nesse debate, o Projeto de Vida é pensado com o intuito de contribuir para a formação integral dos estudantes, evidenciando que o governamento da vida é essencial para que os indivíduos atinjam o sucesso almejado.

Não é por acaso que o Projeto de Vida está embasado em competências (cognitivas e socioemocionais) e habilidades, além de se alicerçar nos quatro pilares da educação para o século 21 (DELORS, 2010) e em Perrenoud (2000).

Diante da amplitude que caracteriza a temática, a escola é convocada a preparar os estudantes diante dos desafios do mundo contemporâneo, repleto de imprevisibilidades.

 

O Projeto de Vida não é apenas uma escolha profissional, tampouco está dissociado do mundo produtivo, pois contribui para o autoconhecimento, para a capacidade de situar-se no mundo e reconhecer as possibilidades e para o desenvolvimento de valores e habilidades que contribuam para que o estudante faça boas escolhas ao longo de sua trajetória (PEREIRA; TRANJAN, 2020, p. 32).

 

Pesquisadores como Fraiman (2009), Gonçalo (2016) e Damon (2009) defendem a relação entre Projeto de Vida e preparação para o mercado de trabalho competitivo. Afirmam que a escola precisa estar atenta a isso. De que maneira? Responderemos a partir do que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresenta sobre Projeto de Vida.

A BNCC é um conjunto de orientações pedagógicas, um documento que deverá nortear a construção dos currículos das escolas públicas e privadas do Brasil. Orientada por um conjunto de competências e aprendizagens tidas como essenciais, a Base torna-se referência obrigatória para as escolas da educação básica.

 

A BNCC pretende promover a elevação da qualidade do ensino no país por meio de uma referência comum obrigatória para todas as escolas de educação básica, respeitando a autonomia assegurada pela constituição, aos entes federados e às escolas (BRASIL, 2017a, p. 1).

 

Dentre o conjunto de competências apresentadas pela BNCC como essenciais à formação do indivíduo no século 21, apresenta-se a competência n° 6, que está diretamente ligada ao Projeto de vida:

 

Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas do exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade (BRASIL, 2017a, p. 3).

 

Pelo exposto, nota-se que o Projeto de Vida aparece como um componente formativo privilegiado na BNCC, propondo condições e orientações para que professores e estudantes reflitam sobre seus objetivos diante da sociedade competitiva e inovadora do século 21.

Para exemplificar o que estamos tratando, citamos a pesquisa “Nossa escola em (re) construção”. Realizada pela organização Porvir, responsável por uma plataforma de conteúdos e mobilização sobre inovações educacionais no Brasil, contou com a participação de 160 mil alunos da rede paulista de Educação Básica. Essa pesquisa concluiu que 87% dos estudantes almejavam receber orientações sobre escolhas de sucesso em suas vidas.

De acordo com a pesquisa, defendeu-se a ideia de que o Projeto de Vida, como componente curricular, é um espaço privilegiado para a geração de competências específicas para o estudante alcançar o almejado sucesso.

Além da BNCC, a Lei n° 13.415/17 (BRASIL, 2017b), que trata da reforma do “novo” Ensino Médio, também trouxe o Projeto de Vida enquanto componente central na formação dos estudantes.

Com a justificativa de que o Ensino Médio é desconectado da realidade do jovem brasileiro, a Lei surgiu com o propósito de tornar a escola mais “atrativa” e “flexível” (justificada pelos Itinerários formativos propostos pela lei), auxiliando o estudante nos primeiros passos da escolha profissional.

Inspirada nos modelos educacionais australiano e da Coreia do Sul, a Reforma incluiu, dentre outros, o aumento da carga horária prática, a inserção do profissional de notório saber no ambiente escolar e a implementação das disciplinas organizadas em itinerários formativos que, supostamente, devem focar nas áreas de conhecimento e na formação profissional e técnica. Dentre as áreas do conhecimento, Língua Portuguesa, Matemática e Inglês são as disciplinas obrigatórias em todo o Ensino Médio.

Segundo o Ministério da Educação (MEC), o novo Ensino Médio pretende aproximar os estudantes das transformações que ocorrem no mercado de trabalho, promovendo a formação empreendedora integrada ao momento atual. Assim: “art. 3°: Os currículos do ensino médio deverão considerar a formação integral do aluno de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu Projeto de Vida e para sua formação nos aspectos físico, cognitivos e socioemocionais” (BRASIL, 2017b, p. 1).

Pelo exposto acima, o Projeto de Vida surge com a promessa de fomentar o protagonismo e a autonomia dos estudantes no processo formativo escolar, defendem seus interlocutores.

Não é por acaso que a BNCC do Ensino Médio está articulada diretamente à Lei n° 13.415/17 (BRASIL, 2017b), propondo as seguintes competências e habilidades: “cooperação, compreensão, domínio de tecnologias, empreendedorismo e autoconhecimento, estimulando os indivíduos a refletirem sobre seus papéis na sociedade” (BRASIL, 2017b, p. 2).

Para que essas competências e habilidades sejam alcançadas, o Projeto de Vida é eleito como um planejamento essencial sobre o futuro, desde a mais tenra idade, desde que esteja alinhado às transformações do mercado competitivo, defendem seus proponentes.

Dito de outro modo, empreendedorismo, competências (cognitivas e socioemocionais), criatividade e habilidades técnicas são as novas competências vendidas como capazes de promover a inserção dos indivíduos no mercado profissional. Assim como uma empresa, a escola necessita preparar os indivíduos pensando no futuro promissor, com lucratividade e engajamento como valores fundamentais à formação escolar.

De forma otimista, os defensores do Projeto de Vida (Fundação Leman, a BNCC, Instituto Porvir, entre outros) justificam-no como meio pelo qual a escola precisa organizar e desenvolver suas práticas. Nada deve escapar dessa orientação!

 

Ter um Projeto de vida é refletir sobre o que se quer no futuro e planejar ações concretas para chegar lá. É o traçado entre o ser e o querer ser. Nesse processo, algumas aprendizagens são importantes para que o aluno perceba que seu caminho se conecta com um projeto coletivo: ele precisa sentir-se integrado e aceito pelos professores e colegas com segurança para encarar os desafios de cada etapa em direção ao futuro que vislumbra. O Projeto de Vida nunca termina, ele vai além da sala de aula e da escola e é pra toda a vida (SÃO PAULO, 2013, p. 7).

 

Vimos até o presente momento que as recomendações sobre como se tornar um indivíduo competitivo depende da aquisição de competências básicas consideradas essenciais com o intuito de se assegurar um futuro promissor. Conforme exposto, o Projeto de Vida promete o desenvolvimento dessas competências, na visão de seus interlocutores.

Capturados pelo discurso econômico, o sucesso ou o fracasso depende única e exclusivamente de metas que o estudante necessita alcançar, enfatizando que todos devem ter o Projeto de Vida como meta de vida, tornando-se empresários de si. Dito de outro modo, “a empregabilidade é a palavra em torno da qual o discurso e o pensamento sobre a escola são orientados hoje” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 88).

De acordo com Masschelein e Simons (2017), o “aprender a aprender” proposto pelas bases curriculares educacionais reduzem o processo de ensino e de aprendizagem a uma mera produção de resultados validados pelo mercado competitivo global. Nesse contexto, a questão da preparação, docente e discente, impõe-se como “selo de qualidade” para a educação requerida pelo século 21. O professor precisa estar em “forma[ii]”, bem treinado, e o estudante, um profissional capacitado e bem qualificado para as demandas postas pela contemporaneidade.

Assim, substitui-se a “sabedoria da experiência do professor pela especialização ou competência” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 89). Dito de outro modo, o aprender e o ensinar passam pelo desenvolvimento e gerenciamento de performances pautadas pelo empreendedorismo, pelo Projeto de Vida: averiguar, verificar, inspecionar e motivar são as “novas” funções da escola.

O discurso empreendedor também é justificado dentro do debate das políticas educacionais. Dois documentos publicados pelo governo federal chamam a atenção: o parecer CNE/CEB n° 13/2010 (BRASIL, 2010), que tratou da inclusão do empreendedorismo como componente curricular desde a Educação Infantil, e o decreto n° 10.393, de 9 de junho de 2020 (BRASIL, 2020), que instituiu a nova estratégia nacional de Educação Financeira (ENEF) e o Fórum Brasileiro de Educação Financeira.

O texto do parecer CNE/CEB n° 13/2010 inseriu a necessidade da inserção do empreendedorismo na escola, potencializando os valores da competitividade e da lucratividade como eixos norteadores das políticas educacionais.

Quando o assunto é empreendedorismo na escola, Dolabela[iii] é o autor que mais se destaca na literatura educacional brasileira. O autor afirmou que os estudos atuais indicam que o empreendedorismo abre novas oportunidades para que os indivíduos se qualifiquem, oferecendo, automaticamente, graus de realização pessoal. Para tanto, precisam receber educação sobre empreendedorismo, precisam aprender como elaborar Projetos de Vida. Assim, não hesitarão em correr riscos, inovar, estabelecer vínculos e relações necessárias ao alcance dos objetivos, identificar oportunidades e buscar recursos onde estiverem, afirmou o autor. Pelo exposto, “os comportamentos empreendedores têm mais importância do que as estruturas colocadas em jogo, porque têm embutido no seu âmago os valores do desenvolvimento” (DOLABELA, 2015, p. 26).

Pelo exposto acima, fica nítido que a cultura empreendedora, estimulada desde a mais tenra idade, é oferecida como tábua de salvação para motivar e estimular os estudantes a adquirirem atitudes empreendedoras com o intuito de serem bem sucedidos na vida.

Nesse quadro que se apresenta, a educação é concebida como grande possibilidade para o desenvolvimento econômico do país. Aproveitando essa deixa, Dolabela (1998) afirmou que as escolas públicas não são suficientes em suas propostas educativas, sendo necessário investir em competências e habilidades, gerando criatividade e inovação. Exemplificando o debate sobre empreendedorismo na escola, destacamos o Programa de Educação Empreendedora voltado a crianças do Ensino Infantil e do Ensino Fundamental utilizado por muitas escolas privadas de São Paulo: Max, o empreendedog.

O objetivo do referido programa é fomentar o talento das crianças identificando características empreendedoras, valorizando comportamentos estratégicos, incentivando a elaboração de Projetos de Vida. Dito de outro modo, desde a primeira infância, há o incentivo e a valorização do investimento em capital humano, vendendo a ideia de que para ser um vencedor na vida é necessário empreender logo no início, sem medos (DOLABELA, 2015).

Desse ponto de vista, o processo de ensino e de aprendizagem de conteúdos escolares se torna restrito ao desenvolvimento de competências e de habilidades. O trabalho docente é reduzido à execução de um trabalho instrumental cujo foco é o desenvolvimento de competências específicas.

Diante da amplitude que caracteriza a temática, a educação escolar ancora-se em ferramentas específicas para o preparo do “novo” trabalhador, que deve ter destreza em áreas específicas, deve desenvolver as chamadas competências para conseguir posições no mercado de trabalho. Dessa forma, ao ingressar nos mais diversos cursos preparatórios desde muito cedo, o aprendiz estará conquistando a chance de empregabilidade no futuro, afirmam os defensores do desempenho escolar. Nessa perspectiva de educação escolar, aprende-se ainda a criar o próprio emprego, caso ele não apareça: é o conhecido empreendedorismo ensinado desde a educação infantil nas escolas mais abastadas. Caso não consiga, será responsabilizado por sua “falta de empenho, energia e vontade” (ASSIS; LIMA, 2019, p. 44).

Villela (2005, p. 37) pontuou que a escola comprometida com o sucesso do estudante necessita seguir princípios-chave no quesito aquisição de competências e habilidades: “eficiência, suficiência, consistência e parcerias”.

Tais concepções compreendem a escola como instituição cujo objetivo é fomentar o crescimento econômico. E essas concepções são fundamentadas por pedagogias e organizações multilaterais capazes de “promover uma pilotagem sobre o que deve ser ensinado nas escolas, e de que maneira isso deve ocorrer” (SANTOS, 2015, p. 94).

Ainda no debate sobre empresariamento de si, intelectuais como Perrenoud, são conceituados como “um dos principais autores que apresentam o ensino por competências como uma possível alternativa ao fracasso escolar” (RICARDO, 2010, p. 612).

O conceito de competências formulado por Perrenoud é utilizado como referência por outros autores, inclusive brasileiros como Dolabela (2015) e Villela (2005) tratados neste ensaio. É nessa perspectiva que Perrenoud (2000) propôs o desenvolvimento de competências como recursos indispensáveis à educação requerida pelo século 21. Segundo o autor francês, o acúmulo de conhecimentos não garante a preparação do indivíduo para os novos cenários. É necessário aplicá-los, garantindo a integração desses à cultura do desempenho.

Pela exposição acima, nota-se que ao indivíduo é depositada toda a responsabilidade em seu percurso formativo, desdobrado em práticas de autogoverno, de autoaprendizado.

De acordo com Dolabela (2003), o que se pretende com a Pedagogia Empreendedora é gerar comportamentos e ações empreendedoras nos estudantes, dotando-os de saberes técnicos e instrumentais necessários à educação do futuro.

Na mesma linha de raciocínio de Dolabela (2003), Carvalho (2004, p. 13) afirmou que é fundamental que a educação empreendedora se paute em três princípios básicos: “liderança, energia e percepções”.

No que se refere às práticas de ensino ancoradas pelo empreendedorismo, várias Secretarias de Educação brasileiras recomendam propostas educacionais amparadas na educação empreendedora, sempre justificadas pelo argumento de que a educação vai mal porque temos ainda um modelo tradicional de ensino. Com esse discurso, a pedagogia empreendedora atravessa os currículos escolares, deixando pouca margem à reflexão.

Para se ter uma ideia do que estamos aqui tratando, o projeto “Oficina do Empreendedor” de autoria de Dolabela (1998), e em parceria com a ONG Visão Mundial, já atendeu cerca de 90.000 estudantes da educação básica em Minas Gerais, e 224.000 estudantes no estado do Paraná.

Depois do teste piloto desenvolvido nas cidades de Belo Horizonte e Japonvar (MG), em 2002, vários outros estados compraram esse projeto na tentativa de inovar as escolas. Até um prêmio foi criado para homenagear prefeitos empreendedores – o prêmio Mário Covas. Assim, o empresário de si necessita desenvolver:

 

[...] habilidades e capacidades necessárias para criar uma empresa integrando os programas de ensino em todos os níveis: fundamental, médio e superior. Independentemente do nível de ensino, a ênfase deve ser concentrada no desenvolvimento da capacidade individual de procurar e identificar novas oportunidades (DOLABELA, 2003, p. 27).

 

Na esteira da Pedagogia do empresário de si, o Decreto n° 10.393/20 reproduziu as Diretrizes emanadas do Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre educação para o século 21 (DELORS, 2010).

Diante do exposto, é nítida a defesa de um discurso sedutor amparado no Projeto de Vida a qualquer custo, consubstanciando a adesão ao estilo empreendedor de vida, adaptável, ao governo de si. Essa “lógica ocupa lugar tático no governamento sob a noção de sujeito que empreende a si mesmo” (CALIXTO, 2013, p. 28).

Diante desse cenário, projeta-se a suposta “nova” arquitetura à formação escolar ancorada em critérios de eficiência e eficácia pautados nos interesses do mercado. Assim, produz-se o sujeito empresário de si: flexível, inventivo, competitivo e adaptável. Muito mais do que gerir a própria carreira, produz-se uma forma de gerir a vida. Não importa o refletir. Enfatiza-se o produzir e o aplicar, tomando como referência o Projeto de Vida. Nesse debate, nota-se a captura dócil pelas técnicas de modelagem, deixando pouca margem à reflexão.

A Pedagogia empreendedora encarrega-se de despertar possíveis vocações empresariais nos estudantes, acrescentando que a ação empreendedora necessita ser a mola propulsora do Projeto de Vida, dotando-os de saberes técnicos e instrumentais necessários à educação do futuro.

Pelo exposto até o presente, pode-se afirmar que, desde a mais tenra idade, nossas crianças são estimuladas a investirem em capital humano, sendo orientadas a elaborarem Planos de Vida, a desenvolverem comportamentos de liderança. Se assim não fizerem, estarão fadadas ao fracasso profissional. Exemplificando, há escolas privadas no país que preparam o estudante, desde a infância, “despertando” carreiras profissionais específicas requeridas pelo século 21.

Apenas competências técnicas são enfatizadas na proposta do Projeto de Vida. Como apontado anteriormente, e enfatizado pelas pesquisas que apostam no Projeto de Vida enquanto realização humana, resta à educação, no viés empreendedor, proporcionar uma formação sedutora, vendendo-a como alternativa inovadora.

Assim, partimos do pressuposto de que o Projeto de Vida, enquanto proposta formativa contemporânea, opera como dispositivo de controle pautado em bases econômicas, desprovendo o indivíduo de crítica e de reflexão.

Diferentes autores ligados à perspectiva crítica se opõem à abordagem empreendedora na escola, denunciando a visão técnica e utilitarista dessa proposta educativa.

Ball (2010) pontuou que, na cultura do empreendedorismo, a performatividade exigida por seus adeptos é um meio de controle social, não permitindo aos indivíduos a possibilidade de reflexão e de crítica.

De acordo com Torres (1996), trata-se de uma nova gestão da formação engendrada por organismos multilaterais alinhada a propostas de eficiência do sistema capitalista e à adequabilidade do indivíduo ao mercado de trabalho.

Em Nosella (2010), a cultura do desempenho caracterizada pelo “aprender a fazer” (DELORS, 2010) ativa a dimensão prática, técnica e mecânica ao ato de ensinar e de aprender, pois almeja metas, produtividade, resultados, a exemplo do Projeto de Vida.

Alinhado ao pensamento de Nosella (2010), Afonso (2009, p. 49) anotou que, no campo educacional, desde a década de 1990, as políticas educativas vêm adotando o “ethos competitivo com ênfase nos resultados ou produtos dos sistemas educativos”. Dito de outro modo, nessa lógica projetiva de vida, os indivíduos “passam a ser vistos apenas pelo prisma da produtividade” (SANTOS, 2009, p. 240).

 

A vinculação da formação de competências a programas de treinamento (coaching) ou às chamadas metodologias ativas comprova que não se trata de um processo de formação e desenvolvimento humano pleno, mas da produção de autômatos programados para reagir em conformidade com as expectativas sociais. As pessoas devem controlar as emoções como dirigir um automóvel sem precisar pensar no que estão fazendo para que possam funcionar adequadamente nas escolas, no trabalho ou na vida (SILVA, 2018, p. 151).

 

Conforme exposto, trata-se da adequação da Educação aos interesses econômicos, reduzindo a formação escolar a fins pragmatistas e instrumentais, a exemplo do Projeto de Vida, que prioriza competências como eficiência, desempenho, treinamento, gestão de si. Nessa proposta formativa, nada é discutido sobre a produção da reflexão e do pensamento crítico.

Em nosso entendimento, a educação pautada por elementos instrumentais, traduz-se no que Foucault (2008) caracterizou como governamentalidade.

Desse modo, apresentamos o debate filosófico-educacional no sentido de pensar a educação por outras bases que não a da cultura do empreendedorismo, do governo de si, numa tentativa de resistência. A partir dos conceitos de governamentalidade e de crítica, fundamentamos elementos analíticos contrários à racionalidade instrumental e empresarial.

Ressalta-se que não somos contrários à modernização e à inovação escolar. O que se evidencia no debate aqui proposto é o atrelamento do Projeto de Vida ao empresariamento de si. 

 

Governamentalidade e crítica em educação

Para iniciar essa parte do ensaio, retomo o texto “Disciplina e controle na escola: do aluno dócil ao aluno flexível”, em que Moraes (2008) destacou a transformação que está ocorrendo na dinâmica das relações sociais contemporâneas marcadas pela flexibilização da formação escolar.

 

Os alunos e professores, nesse contexto, têm de desenvolver competências e habilidades de modo a serem pessoalmente flexíveis e aptos a agirem em contextos que não têm nenhum conjunto claro de fronteiras ou respostas simples. Professor e aluno devem desenvolver competências para a contínua resolução de problemas de forma flexível, num processo contínuo de adaptação a situações complexas (MORAES, 2008, p. 57).

 

Nessa simples passagem, fica nítido como os processos de ensino e de aprendizagem escolar atuais subordinam-se à lógica empresarial, abrindo espaços para empreendimentos da formação profissional (Projeto de Vida) dos indivíduos assujeitados aos imperativos neoliberais. É nesse contexto que inserimos o debate sobre o conceito de governamentalidade em Foucault (2008).

No texto “Segurança, território e população”, o filósofo compreendeu que os sujeitos transformaram-se em agentes econômicos com a capacidade de valorizar e ampliar constantemente habilidades profissionais a fim de tornarem-se competitivos no mercado neoliberal.

Não é por acaso que as políticas públicas atuais tomam o corpo dos estudantes como instrumentos para intervenções operacionalizadas dentro de novas configurações governamentais, a exemplo do Projeto de Vida, como proposta formativa.

De acordo com o pensamento de Foucault (2008), a governamentalidade constitui-se por um conjunto de mecanismos e ferramentas de dispositivos de governo, exercendo o gerenciamento da população. O conceito de governamentalidade é de fundamental importância para se pensar a educação e as práticas educacionais que nela se desenvolvem.

Diante do exposto, podemos afirmar que o termo governamentalidade surgiu em Foucault no texto “Segurança, território e população”, curso ministrado pelo filósofo no Cólege de France, como tentativa de caracterizar as diferentes formas pelas quais cada um governa a si mesmo e aos outros.

 

Por esta palavra governamentalidade entendo o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população (FOUCAULT, 2008, p. 143).

 

No debate sobre a cultura do empreendedorismo, a escola atua como um dispositivo desenvolvendo o imperativo do que pode ser feito e pensado. De acordo com esse debate, faz-se necessário incluir, na formação dos estudantes, pedagogias ajustadas aos padrões eleitos pelo imperativo mercadológico.

Assim, a escola desenvolve a pedagogia promotora do empresário de si. Para isso, o Projeto de Vida é utilizado como fim último dessa proposta. O imperativo aprender a empreender empreendendo-se no Projeto de Vida conduz à nova governamentalidade. A partir do exposto, a lógica empresarial presente no Projeto de Vida coaduna-se como protótipo do autogoverno formativo.

De acordo com Foucault (2008), trata-se do assujeitamento dos corpos às técnicas de governamentalidade. Nesse debate, fica cada vez mais nítida a administração de pessoas em que o poder de governo objetiva regular os indivíduos, torná-los corpos dóceis, formando indivíduos economicamente produtivos, porém politicamente submissos.

Retomando os resultados das pesquisas apresentadas no início deste ensaio, afirmou-se que a escola necessita preparar os indivíduos alinhados aos imperativos do século 21: competitivo, ativo, participativo, com a capacidade de aprender a empreender, processos, muitas vezes, desvinculados do aprender a refletir, a questionar e a pensar. Assim, protagonismo é sinônimo de desempenho, como propõe o Projeto de Vida nos textos e pesquisas citadas. De acordo com Pfeiffer e Grigoletto (2017, p. 18): “É o controle que se materializa nas reformas educacionais, na relação necessária com a BNCC, na evidência da igualdade e da justiça social, na evidência do todos podem e escolhem o que querem”.

Diante do exposto, refletir sobre a pedagogia atual abre uma variedade de opções para entender o modo como o indivíduo se subjetiva, bem como para compreender os dispositivos discursivos que versam sobre essa subjetivação.

 

Como resistir: a escola como espaço de contraconduta e de crítica

Pensar a educação sob a perspectiva foucaultiana implica adentrar no problema da condução, da governamentalidade, dos dispositivos que a constituem.

Em Foucault (1984, p. 14), problematizar o hoje é entendê-lo como acontecimento compreendido como imprevisibilidades que abrem possibilidades diante da realidade. Assim, problematizar o hoje é desenvolver a interrogação crítica do sujeito: “é esta a tarefa de uma história do pensamento por oposição à história dos comportamentos ou das representações”.

Refletir sobre o presente, problematizando-o, é a proposta que Foucault (1984) apresentou ao sujeito de pensar, agir e projetar a vida ausente de determinismos e padrões pré-concebidos, uma vez que o discurso do “sujeito que problematiza deve converter-se em prática de vida, em modo de agir que estilizem a vida” (OLIVEIRA, 2011, p. 137).

Nesse debate, chama-se a atenção para a problematização do presente diante das relações permeadas por poderes e saberes oriundos de pedagogias que privilegiam a produção de corpos dóceis, de empresários de si.

Na Microfísica do poder, Foucault (2005, p. 305) pontuou que é filosofia o “deslocamento e a transformação dos parâmetros de pensamento, a modificação dos valores recebidos e todo o trabalho que se faz para pensar de outra maneira, para fazer outra coisa, para tornar-se diferente do que se é”.

Nesse momento da discussão, podemos acrescentar: qual a relação entre atitude crítica e modos de governamentalidade?

No artigo “Qu’est-ce la critique?” Foucault (1995) se propôs a desenvolver a arqueologia da atitude crítica. Em sua concepção, a crítica, como elemento contrário às artes de governar, desenvolveu-se por alguns caminhos.

Historicamente, a atitude crítica teve seu início na pastoral cristã como forma de contraposição aos ensinamentos religiosos. Em seguida, Foucault (1995) anotou que a atitude crítica adveio do direito natural. Ou seja, não querer ser governado desse modo implicava recusar leis consideradas injustas.

A atitude crítica consistia em se contrapor ao governo que tais leis exigiam. Por fim, Foucault (1995) considerou que a atitude crítica, ou seja, o “não querer ser governado” é a recusa das verdades, questionando-as daqueles que se dizem delas portadores, pois a atitude crítica é o “movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade, pois bem, a crítica será a arte da indocilidade refletida (FOUCAULT, 1995, p. 5)”. Assim, a atitude crítica implica o desassujeitamento na possibilidade de interrogar a verdade em seus discursos e práticas de domínio.

Diante do contexto de que sempre estamos frente a dispositivos de governamentalização da vida, é necessário “resistir ser governado por determinados agentes” (FOUCAULT, 1995, p. 6).

Para Foucault (1995), a atitude crítica, enquanto arte de resistência, diante das formas de governamento, necessita desenvolver-se não apenas como exercício de interpretação do momento atual, mas como prática que sugere a relação do indivíduo consigo próprio.

A atitude crítica, nos moldes postulados por Foucault (1995, p. 6), traduz-se como “arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade refletida”.

No debate proposto, demarcou-se como a obediência irrefletida é mascarada pela ausência de contestação, inserindo o Projeto de Vida como essencial à formação individual, ou melhor, à adaptação dos indivíduos aos imperativos neoliberais, ao governamento de si.

De acordo com Veiga-Neto (2011), Foucault (1995) evidenciou os limites da aceitação da condição humana em obedecer, assumindo uma posição dócil.

 O que se pontua nesse debate é que a atitude crítica, enquanto prática formativa, encontra possibilidades de realização enquanto resistência às formas de governo de si. A crítica “teria essencialmente por função o desassujeitamento no jogo de que se poderia chamar a política da verdade” (FOUCAULT, 1995, p. 18).

A perspectiva filosófica assumida neste trabalho para estudar o tema do Projeto de Vida, a crítica como atitude se traduz como proposta pela qual os indivíduos podem resistir às técnicas de controle de si que tentam governá-los.

Assim, relacionando a problematização do Projeto de Vida às contribuições teóricas foucaultianas, é possível resistir às técnicas de governamento recusando as formas de conduta de si e dos outros, principalmente nos dias atuais em que a Pedagogia do aprender a aprender, aliada ao capitalismo neoliberal, gerencia as subjetividades, negando a criticidade e a contraconduta.

 

Considerações finais

Fomentou-se, na presente discussão, a crítica sobre o presente e a relação que o sujeito estabelece com o empreendimento de si.

O conceito de governamentalidade serviu de suporte para refletir sobre o modo como as propostas formativas atuais, a exemplo do Projeto de Vida, endossam a produção de subjetividades assujeitadas.

Problematizar o presente criticamente em busca de reformulações contínuas das subjetividades é a possibilidade que Foucault (2008) oferece ao sujeito para resistir às formas de assujeitamento.

Em nosso entendimento, desenvolver a atitude crítica é ultrapassar o previamente designado por programas e propostas educativas alinhadas ao gerenciamento subjetivo.

Assim, resistir às formas de governamentalidade da vida é insistir na produção de outras subjetividades que não aquelas provenientes do Projeto de Vida.

Rejeitar esse sujeito empreendedor de si (adestrado, adaptado, controlado, produtivo e competitivo) – que foi transformado para ser governado – é apostar na vida para além das formas de governo atuais, possibilitando a crítica e a contraconduta.

Os sistemas educativos “se nos conformam a esta subjetividade podem também abrir outras formas de nos relacionarmos conosco, produzindo formas outras de vida” (GALLO, 2017, p. 92).


 

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Notas



[i]Conferir: https://institutoayrtonsenna.org.br/app/uploads/2022/11/compete%CC%82ncias-para-a-vida.pdf. Acesso em: 01 set. 2023.

[ii] Utilizamos a palavra “forma” no sentido da (s) possíveis performance (s) que os indivíduos necessitam desenvolver diante dos requisitos para o desempenho proposto pelo mercado global.

[iii]Fernando Dolabela é um dos autores mais citados na literatura brasileira quando o assunto é Pedagogia Empreendedora. O autor é consultor da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Algumas obras publicadas: Empreendedorismo, a viagem do sonho; Empreendedorismo, uma forma de ser; Pedagogia Empreendedora, além de vários artigos publicados em revistas científicas. O autor argumenta que o empreendedorismo é uma forma de ser e não simplesmente de fazer. Para ele, empreender é “engendrar formas de gerar e distribuir riquezas materiais e imateriais por meio de ideias, conhecimentos, teorias” (DOLABELA, 2015, p. 29).