Letra imprensa maiúscula em cadernos de alunos: do aparecimento ao predomínio na alfabetização
Capital press letters in student’s notebooks: from emergence to predominance in literacy
La letra mayúscula en los cuadernos de los estudiantes: de la apariencia al predominio en la alfabetización
Secretaria Municipal de Cultura, Rio Grande, RS, Brasil
ale82amaral@yahoo.com.br
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil
eteperes@gmail.com
Recebido em 01 de novembro de 2022
Aprovado em 13 de dezembro de 2023
Publicado em 07 de março de 2024
RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar as análises relacionadas a presença da letra imprensa maiúscula e as discussões que fizeram com que ela ganhasse estabilidade no espaço escolar. Para a realização desse estudo foram consultados 161 cadernos de alunos que estavam no processo de alfabetização, do período de 1990 a 2015, salvaguardados em um Centro de Memória na Região Sul/RS (Hisales). A metodologia desenvolvida foi a operação historiográfica como uma produção do pesquisador que associa um lugar (social) com diferentes procedimentos de análises (práticas) e a construção de uma escrita. A organização dos dados que emergiram dos cadernos dos alunos possibilitou a elaboração de dois grandes conjuntos, o primeiro das concomitâncias das letras e o segundo da exclusividade de um tipo de letra em todas as páginas dos cadernos. Sendo assim, a partir da análise percebeu-se que a letra imprensa maiúscula apareceu pela primeira vez nos cadernos dos alunos presentes no acervo nos anos de 1990, no entanto somente de forma concomitante com outras tipologias e que a partir de 2005 passa a ser exclusiva. Para compreender a presença da letra imprensa maiúscula foi imprescindível analisar os livros Psicogênese da língua escrita (FERREIRO & TEBEROSKY, 2007), a Trilogia da Alfabetização (GROSSI, 1990) e documentos oriundos de políticas curriculares e programas de formação docente e alfabetização, entre eles: Pró-Letramento – Mobilização pela Qualidade da Educação (2008) e Pacto Nacional da Alfabetização na Idade Certa (2012). Em suma, todas as referências citadas contribuíram para compreender o fenômeno da letra imprensa maiúscula nos cadernos dos alunos que foi gradativamente dominando o período inicial da alfabetização.
Palavras-chave: Letra imprensa maiúscula; Caderno de alunos; Alfabetização.
ABSTRACT
This article aims to present the analyzes related to the teaching of capital letters and the discussions that made it gain stability in the school space. In order to carry out this study, 161 notebooks of students from the period from 1990 to 2015 were consulted, safeguarded in a Memory Center in the South Region/RS (Hisales). The methodology developed was the historiographical operation as a researcher's production that associates a (social) place with different analysis procedures (practices) and the construction of a writing. The organization of the data that emerged from the students' notebooks made it possible to organize two large sets, the first of the concomitance of the letters and the second of the exclusivity of a typeface on all pages of the notebooks. Thus, from the analysis it was possible to perceive that the capital letter appeared for the first time in the notebooks of the students present in the center in the 1990s, however only concomitantly with other typologies and that from 2005 exclusively. In order to understand the presence of capital letters, it was essential to analyze the books Psychogenesis of written language (FERREIRO & TEBEROSKY, 2007), the Literacy Trilogy (GROSSI, 1990) and documents from curricular policies and teacher training and literacy programs, among them, Pró-Letramento – Mobilization for the Quality of Education (2008) and National Pact for Literacy in the Right Age (2012). In short, all the cited references contributed to understanding the phenomenon of capital letters in students' notebooks.
Keywords: Capital print letter; Student notebooks; Literacy.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo presentar los análisis relacionados con la presencia de la letra mayúscula y las discusiones que la hicieron ganar estabilidad en el espacio escolar. Para la realización de este estudio, fueron consultados 161 cuadernos de alumnos de 1990 a 2015, resguardados en un Centro de Memoria de la Región Sur/RS (Hisales). La metodología desarrollada fue la operación historiográfica como producción de un investigador que asocia un lugar (social) con diferentes procedimientos de análisis (prácticas) y la construcción de un escrito. La organización de los datos que surgieron de los cuadernos de los alumnos permitió organizar dos grandes conjuntos, el primero de la concomitancia de las letras y el segundo de la exclusividad de una tipografía en todas las páginas de los cuadernos. Así, a partir del análisis, se percibió que la letra mayúscula apareció por primera vez en los cuadernos de los estudiantes presentes en la colección en la década de 1990, pero solo concomitantemente con otras tipologías y que a partir de 2005 exclusivamente. Para comprender la presencia de las mayúsculas, fue fundamental analizar los libros Psicogénesis del lenguaje escrito (FERREIRO & TEBEROSKY, 2007), la Trilogía de la Alfabetización (GROSSI, 1990) y documentos de políticas curriculares y programas de formación y alfabetización docente, entre ellos, Pró-Letramento – Movilización por la Calidad de la Educación (2008) y Pacto Nacional por la Alfabetización en la Edad Correcta (2012). En suma, todas las referencias citadas contribuyeron a comprender el fenómeno de las mayúsculas en los cuadernos de los alumnos, que paulatinamente dominó el período inicial de alfabetización.
Palabras clave: Letra mayúscula; Cuadernos de alunos; Alfabetización.
Introdução
Qual tipo de letra ensinar as crianças que ingressam no processo de escolarização formal? Essa não é uma questão simples e é um debate recorrente que perpassa diferentes tempos e espaço. Sendo assim, os tipos de letras mais comum: a cursiva, a imprensa maiúscula e a imprensa minúscula, a serem utilizados pelos sujeitos é um debate histórico, com diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, que acaba aparecendo com frequência na comunidade escolar, nos primeiros anos de escolarização, o que ocorre independente de seu tempo histórico. Portanto, mapear os tipos de letras utilizadas no processo de escolarização pode demonstrar determinados projetos de sociedade na produção de indivíduos que sejam capazes de suprir as necessidades de cada época.
Nesse sentido, é possível dizer que na escola o debate está vinculado, principalmente, a temática da alfabetização, acaba (re)surgindo e coloca em evidência qual tipo de letra é considerada a mais ideal a ser utilizada com os educandos que ingressam em instituições de ensino.
Diante do exposto, cabe informar que os dados apresentados neste texto faz parte de um estudo maior[1] que teve como objetivo geral fazer um mapeamento das letras usadas nas classes de alfabetização de diferentes escolas gaúchas ao longo de 78 anos (1937 a 2015), periodização possível, considerando a documentação (cadernos de alunos) disponível em um Centro de Memória denominado História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares (Hisales[2]), localizado na cidade de Pelotas/RS. No entanto, este artigo tem como objetivo apresentar as análises relacionadas a presença da letra imprensa maiúscula e as discussões que fizeram com que ela ganhasse espaço e estabilidade no espaço escolar, especialmente a partir dos anos 2000. Essa constatação só foi possível devido ao referido acervo e a quantidade expressiva de cadernos de alunos. Ao consulta-los foi notável o marco inicial de estabilidade dessa tipologia e como ela foi ganhando, cada vez mais, espaços entre as páginas dos cadernos.
A metodologia desenvolvida na pesquisa pressupõe uma operação historiográfica (CERTEAU, 1982), inserida na relação de dois campos de conhecimentos: o da história da alfabetização e o da pesquisa sobre/com cadernos. Para Certeau (1982) a operação historiográfica é definida como uma produção do pesquisador que associa um lugar (social) com diferentes metodologias/procedimentos de análises (práticas) e a construção de uma escrita. Tendo como conceito a cultura gráfica com base nos autores Petrucci (1986), Hébrard (2000) e Chartier R. (2002). Diante disso, os cadernos de alunos que compõe o corpus principal desta pesquisa foram consultados e analisados individualmente, página por página, para se ter conhecimento do fenômeno dos tipos de letras e se havia variação ou mudança no decorrer da proposta pedagógica.
Tendo em vista que estudar os cadernos escolares tem sido recorrente, principalmente a partir do século XX, com ênfase para autores como Gvirtz (1996), Gvirtz e Larronda (2008), Chartier, A.M. (2007) e Viñao (2008) que consideram o caderno escolar um dispositivo pedagógico, uma vez que materializam, na maioria das vezes, o que é proposto na sala de aula. Nesse sentido, Mignot (2008), complementa que estudar os cadernos possibilita compreender o vivido na sala de aula a partir de sujeitos comuns. Sendo assim, o caderno escolar como fonte documental tem se tornado significativo para pensar e compreender a História da Educação. Diante disso, Viñao (2008) afirma que os cadernos escolares:
[...] não são apenas um produto de atividades realizadas na sala de aula (afinal o livro texto é um produto exterior que se introduz em sala de aula) e da cultura escolar, mas também uma fonte que fornece informação – por meio, sobretudo, de redações e composições escritas – da realidade material da escola e do que se faz nela (VIÑAO, 2008, p. 16).
O autor salienta, ainda, que os cadernos escolares “constituem uma fonte valiosa na hora de conhecer e analisar de um modo bastante confiável tanto os processos de implantação e difusão mencionados como os de hibridação, adaptação, rechaço ou de aceitação que costumam acompanhá-los” (VIÑAO, 2008, p. 17). Sendo assim, há neles indícios que ajudam a entender a produção, a modificação ou a permanência de determinadas práticas didáticas, de políticas ou de pedagogias vigentes em diferentes épocas e instituições. Nessa mesma direção Chartier, A. M. (2007) e Gvirtz (1996), anunciam que o caderno é uma fonte e/ou objeto que permite confrontar o ensino idealizado pelas concepções pedagógicas e políticas com o aprendizado colocado em funcionamento nas escolas. Dessa forma, os autores referidos deixam claro a potencialidade dos cadernos escolares em demonstrar os registros considerados significativo e que necessitam estar fixados as páginas dos cadernos.
Corroborando com esse entendimento as autoras Gvirtz e Larronda (2008) contribuem para pensar os cadernos escolares enquanto fonte e/ou objeto privilegiada em dois sentidos: primeiro, por ser caracterizado como um suporte de uso diário; segundo, por ser um espaço de interações de diferentes sujeitos, alunos, professores, responsáveis, familiares, direção etc. As autoras ressaltam que é preciso entender o caderno escolar “como produto e produtor da cultura escolar, como gerador de discursos específicos e de efeitos específicos” (GVIRTZ & LARRONDA, 2008, p. 45), porque eles colocam em funcionamento diferentes saberes que estão vinculados ao lugar da sua produção.
Assim, essas explanações buscaram apresentar os documentos e estudos que possivelmente contribuíram para compreender o fenômeno da letra imprensa maiúscula e também a relevância dos cadernos dos alunos como fontes documentais. No caso dos cadernos que compõe esta pesquisa, eles são os testemunhos escritos de um espaço bastante específico, as escolas de diferentes localidades do estado gaúcho, com uma finalidade específica, qual seja, ensinar as crianças a ler e a escrever.
Neles, há registros principalmente dos alunos, mas também de forma bem expressiva a escrita das professoras, que ora escrevem para exemplificar o que precisa ser reproduzido, ora para que a criança apenas complete as atividades, ou ainda, para elogiar ou chamar a atenção sobre a organização do caderno, da letra ou para dar um aviso aos responsáveis dos alunos. Logo, entende-se que o caderno escolar tem muitas atribuições e pode servir para diferentes fins como: controlar, demonstrar, treinar, entre outro, porém neste estudo o caderno dos alunos contribuiu para pensar como foi sendo utilizadas as letras no processo inicial de escolarização, mais especificamente, a letra imprensa maiúscula.
Desse modo, estudar os cadernos escolares é, também, reconhecer que a história se faz a partir dos vestígios considerados mais banais produzidos na e pela escola. Hébrard (2000) discorre que o caderno é um espaço gráfico, destinado para o registro de diferentes escrituras, dessa maneira é considerado um dos principais lugares da escrita à mão, do mesmo modo são testemunhos da escrita que são valorizados no espaço de escolarização.
Para este texto serão apresentados os dados de 161 cadernos de alunos, do período de 1990-2015 que possibilitaram a organização de dois conjuntos, com ênfase para a letra imprensa maiúscula[3]. O primeiro conjunto, composto por 92 cadernos de alunos denominado como concomitância das letras, pois no mesmo caderno de aluno havia a presença de mais de um tipo de letra, nesse a letra imprensa maiúscula dividiu o espaço do caderno com a cursiva, com a imprensa minúscula e também com ambas no mesmo caderno. Isso demonstra o dinamismo do uso dos tipos de letras no período inicial de escolarização e o destaque para letra imprensa maiúscula que foi tratada por estudos relacionados a revolução conceitual da alfabetização com base nos livros Psicogênese da língua escrita (FERREIRO & TEBEROSKY, 2007), a Trilogia da Alfabetização (GROSSI, 1990) e documentos oriundos de políticas curriculares e programas de formação docente e alfabetização, entre eles, Pró-Letramento – Mobilização pela Qualidade da Educação (2008) e Pacto Nacional da Alfabetização na Idade Certa (2012).
O segundo conjunto, composto por 69 cadernos de alunos que em todas as páginas foram utilizadas exclusivamente o tipo de letra imprensa maiúscula, esse fenômeno ocorreu somente a partir do ano 2005. Essa evidência que demonstra o fortalecimento desse tipo de letra, com ênfase aos documentos oriundos de políticas curriculares e programas de formação docente e alfabetização citados anteriormente.
O texto a seguir estará organizado em duas seções. Na primeira serão tratados o conjunto de cadernos de alunos denominado da concomitância das letras, em que serão apresentados três subconjuntos definidos como: 1) concomitância dos três tipos de letras - cursiva, imprensa minúscula e imprensa maiúscula; 2) concomitância da letra imprensa maiúscula e a cursiva e 3) concomitância da letra imprensa maiúscula e imprensa minúscula. E na segunda seção denominada exclusividade do uso da letra, ou seja, conjunto em que a letra imprensa maiúscula é a única utilizada pelo aluno. Paralelamente, em cada uma das seções serão apresentadas discussões que estiveram presentes no contexto pedagógico e que de certa maneira influenciaram o aparecimento, o predomínio e a estabilidade da letra imprensa maiúscula nos cadernos dos alunos.
Letra imprensa maiúscula: concomitância nos cadernos dos alunos
A escrita povoa a escola e a sala de aula. Ela está nos murais, na identificação dos espaços, no quadro-negro que o professor usa para o registro escrito de textos e exercícios, nos cadernos, livros e folhas utilizados durante a aula, nas agendas escolares, nos grafites que marcam as cadeiras escolares e até a documentação da secretaria. (ROCHA, 2013, p. 103).
Nesta seção serão apresentados os dados referentes a 92 cadernos de alunos utilizados nos anos de 1990 a 2015. Esses cadernos foram organizados configurando 03 subconjuntos em que a letra imprensa maiúscula foi utilizada pelos estudantes. O primeiro que será tratado é o que a letra imprensa maiúscula é utilizada simultaneamente com as letras do tipo cursiva e imprensa minúscula. No segundo subconjunto, referente a letra imprensa maiúscula e a cursiva. E no terceiro, ao uso dos tipos de letras imprensa maiúscula e imprensa minúscula. Assim, ao analisar os subconjuntos fica perceptível que quanto mais próximo dos anos 2015 a permanência da letra imprensa maiúscula é mais expressiva e predominante.
Para compreender o aparecimento da letra imprensa maiúscula nos cadernos dos alunos foi necessário entender o que estava acontecendo no cenário educacional, por isso verificou-se as produções bibliográficas tanto no âmbito nacional quanto no regional. Como mencionado anteriormente, corroboraram na compreensão da pesquisa os livros Psicogênese da língua escrita (FERREIRO & TEBEROSKY, 2007) e a Trilogia da Alfabetização (GROSSI, 1990). De certa maneira, o primeiro foi um marco na alfabetização brasileira, pois fomentou discussões que até a década 1980 ainda não estavam sendo realizadas como, por exemplo, o construtivismo (PIAGET, 1973). O segundo, fundamentado nos estudos da psicogênese da língua escrita teve um papel importante na educação gaúcha, oferecendo materiais didáticos e cursos de formação para professores de diferentes municípios que atuavam nas classes iniciais de escolarização. Portanto, os estudos dessas autoras contribuíram para uma chamada revolução conceitual na alfabetização das crianças, que foi se instaurando no pais de forma gradual.
Cabe ainda destacar que essas referências bibliográficas serviram de embasamento teórico para políticas curriculares e programas de formação docente e alfabetização que foram emergindo no final do século XX e tendo continuidade no século XXI. Assim, para interpretar os dados também buscou-se documentos oriundos das políticas públicas nacionais referentes ao final dos anos de 1990 até meados dos anos de 2010. Logo, foram consultados os seguintes documentos: Pró-Letramento – Mobilização pela Qualidade da Educação (2008) e Pacto Nacional da Alfabetização na Idade Certa (2012). Em suma, todas as referências citadas acima contribuíram para compreender o fenômeno da letra imprensa maiúscula nos cadernos dos alunos.
Após a análise dos cadernos foi possível perceber que somente a partir dos anos de 1990 que se começa a localizar o uso da letra imprensa maiúscula pela escrita dos estudantes. Sendo assim, pode se dizer que o uso desse tipo de letra é um fenômeno recente para o processo inicial de escolarização de estudante que ingressão em instituições de ensino.
Provavelmente, os leitores deste texto que passaram pelo processo inicial de escolarização na década de 1980 ou antes disso utilizaram outro tipo de letra, certamente a letra cursiva. No entanto, no estudo aqui apresentado percebe-se que tais mudanças não estão apenas nas decisões profissionais dos docentes ou das escolas, mas está relacionada a discussões que circulam no âmbito social, pedagógico e político.
Para compreender as referidas mudanças foi importante recorrer ao conceito de cultura gráfica do italiano Petrucci (1986, 1995, 1999, 2003, 2011), pois a partir dele fica evidente todo o jogo de disputa e embates que circulam entorno de determinada tipologia das letras, seja para seu fortalecimento ou desaparecimento. Imbuída desse conceito ao analisar os cadernos dos alunos nota-se que o uso da letra imprensa maiúscula passou por um processo de aceitação lento em que começa sendo utilizada de forma inexpressiva até dominar as páginas dos cadernos dos alunos. Dito isso, na continuidade serão apresentadas as três concomitâncias em que a letra imprensa maiúscula foi registrada nos cadernos dos alunos.
Inicialmente, a letra imprensa maiúscula foi localizada nos cadernos de alunos em que havia o uso das letras cursiva e imprensa minúscula. Esse subconjunto ficou definido como a concomitância dos três tipos de letras e corresponde a dois períodos da pesquisa: primeiro nos anos de 1990 (mais especificamente nos anos de 1990, 1992 e 1996), em que está presente de forma esporádica e inexpressiva e segundo nos anos 2000 (que corresponde aos anos 2000, 2006, 2009, 2010, 2011 e 2015), em que ela vai se tornando cada vez mais recorrente. Ao longo desses anos foram contabilizados 20 cadernos de alunos e ao verificar os períodos é possível constatar que não há uma continuidade do uso recorrente dos três tipos de letras.
O uso dos três tipos de letras nos cadernos dos anos 1990 demonstra que já começava haver a preocupação em tornar as crianças familiarizadas com os diferentes traçados, desde sua chegada à escola. Nos cadernos do acervo, nos anos 2000 essa preocupação parece mais perceptível, pois conforme os dados apresentados surgem mais cadernos que utilizaram os três tipos de letras, muito embora haja mais exemplares para esse período. Sendo assim, pode-se supor que as orientações sobre o uso dos diferentes tipos de letras presentes tanto no momento da chamada revolução conceitual, como nos documentos das políticas públicas de alfabetização do final dos anos de 1990 e começo dos anos 2000, vão se efetivando ao longo do tempo.
Nessa perspectiva, é possível afirmar que as autoras Ferreiro, Teberosky (2007) e Grossi (1990) defendem que na alfabetização deva-se oportunizar as crianças o contato com a diversidade de caracteres, entre eles, a letra do tipo imprensa maiúscula, porém, deixando que a criança escolha o tipo de letra que mais lhe agrada e que sinta mais domínio em traça-la. Conforme Petrucci (1999) e Chartier R. (2002), para compreender a cultura gráfica de uma época é importante tentar conhecer o que sujeitos considerados influentes propunham e pensavam sobre a presença e a permanência de determinado tipo de letra, pois a partir de seus ditos e escritos é possível entender porque ela ganha espaço ou desaparece.
No caso da pesquisa em questão, as considerações acerca do contexto da época demonstram que a partir deste momento histórico houve a defesa, por parte dos estudiosos da alfabetização, da inclusão da diversidade dos tipos de letras, mas levando em consideração a escolha do educando no ato de escrever. Evidente que essas ideias não adentraram rapidamente nos espaços escolares, mas que foram paulatinamente sendo aceitas por grande parte dos responsáveis pela alfabetização, tanto no espaço da escola quanto pelos especialistas no assunto.
Na sequência é apresentada a Figura 1 para que seja possível visualizar a presença dos três tipos de letras no mesmo caderno do aluno. Cabe mencionar que comumente elas não são utilizadas na mesma atividade como, no caso a seguir.
Figura 1 – Apresenta o caderno C8 1990[4] com a presença dos três tipos de letras – cursiva, imprensa minúscula e imprensa maiúscula.
Fonte: Disponíveis no Acervo caderno de alunos do Centro de Memória Hisales.
As imagens acima são o registro de diferentes páginas do mesmo caderno de aluno utilizado em uma turma de 1ª série do Ensino Fundamental, no município Três Passos/RS[5]. A esquerda nota-se a presença da letra imprensa maiúscula para a escrita de nomes próprios e de algumas palavras, mais abaixo, a escrita em cursiva de uma frase. Na imagem à direita, o destaque é para a escrita em letra imprensa minúscula da cópia do título “Historinhas da vovó Marieta”. Todas as páginas apresentadas são do mesmo caderno e ajudam a ilustrar a presença dos três tipos de letras utilizadas pelo aluno no decorrer da sua rotina escolar, porém, com mais ênfase para as letras do tipo cursiva e imprensa minúscula, demonstrando a intenção de tornar o aluno familiarizado com os diversos traçados.
No estudo foi organizado outro subconjunto que corresponde a concomitância da letra imprensa maiúscula e a cursiva. Essa combinação aparece também na década de 1990, nos respectivos anos 1994-1996 e 1998, nesse momento nota-se nos cadernos dos alunos o predomínio da letra cursiva. A partir dos anos 2000 o uso recorrente desses dois tipos de letra está presente em todos os anos até 2015 e que de forma gradual a letra do tipo cursiva vai perdendo a força nos cadernos dos alunos, sendo em muito deles o predomínio da letra imprensa maiúscula. Assim, ao longo desses dois períodos foram totalizados 67 cadernos de aluno e progressivamente a letra cursiva vai deixando de ser a predominante.
Nesse segundo subconjunto a letra imprensa maiúscula era utilizada em atividades específicas nos cadernos dos alunos, pois o predomínio nos anos de 1990 era o do traçado em letra cursiva. No entanto, no decorrer dos anos 2000 a quantidade de cadernos de alunos com a concomitância desses dois tipos de letra aumentou significativamente e a presença da letra imprensa maiúscula também, essa que passa a ser usada diariamente nos registros localizados nos cadernos. Sendo assim, pode-se dizer que a partir da análise desse subconjunto, após os anos 2000, tem-se uma virada no tipo de letra utilizada pelos estudantes, se nos anos de 1990 o basilar era a letra cursiva e a imprensa em atividades específicas, a partir dos anos 2000 a predominância é a imprensa maiúscula e a letra cursiva utilizada de forma esporádica.
Nesse sentido, Petrucci (2003, 1999) mostra em suas pesquisas que a permanência ou desaparecimento de um tipo de letra tem muito a dizer ao pesquisador, especialmente, pelo fato de estar vinculada a diferentes relações de poder, que podem ser de ordem política, religiosa, monárquica etc. No caso das tipologias das letras na escola, principalmente, a cursiva e a imprensa maiúscula parece que são antagônicas, pois para uma ganhar destaque a outra precisa perder a evidência. Isso pode se relacionar diretamente com as discussões que ganharam força no país relacionadas à revolução conceitual na alfabetização (FERREIRO & TEBEROSKY, 2007; GROSSI, 1990) e as políticas públicas para alfabetização de crianças escolarizadas.
Para encerrar o conjunto das concomitâncias, no período final da pesquisa foram localizados 05 cadernos de alunos com o uso concomitante das letras imprensa maiúscula e imprensa minúscula. Esses cadernos de alunos correspondem especificamente aos anos 2007, 2011 e 2013. Importante destacar que nesse terceiro subconjunto de cadernos o predomínio é da letra imprensa maiúscula. Sendo assim, cabe reafirmar que a partir dos anos 2005 que a letra imprensa maiúscula começou a ganhar efetivamente força nos cadernos de alunos do primeiro ano de escolarização.
Nesta seção, objetivou-se apresentar o aparecimento da letra imprensa maiúscula nos cadernos dos alunos que compuseram o estudo. Na pesquisa, isso ocorreu somente a partir dos anos 90 do século XX e em concomitância com as outras tipologias, o que de certa maneira demonstrou que a inserção e o ensino da letra imprensa maiúscula no processo de escrita dos educandos aconteceu de maneira gradual e relacionada ao contexto teórico da época. Portanto, a receptividade desse tipo de letra nos cadernos de alunos presentes no acervo consultado evidência o momento em que a letra imprensa maiúscula aparece pela primeira vez, mas ainda no período inicial não de maneira predominante, pois ainda nesse momento dividiu espaço com a cursiva que de certa forma era a escrita mais recorrente nos anos 1990 e começo dos anos 2000.
Letra imprensa maiúscula: exclusividade nos cadernos dos alunos
Difundiu-se, ultimamente, a prática de se alfabetizar, utilizando, primeiramente, apenas o alfabeto de letras de forma maiúsculas. No entanto, esse procedimento não é apenas uma moda: é uma forma mais fácil, concordam todos de se chegar ao aprendizado da leitura e da escrita (MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 49).
As discussões que serão apresentadas nesta parte do texto, correspondem ao conjunto de cadernos de alunos utilizados a partir do século XXI, especialmente, de 2005 a 2015. Isso quer dizer que é o momento em que a letra imprensa maiúscula começa a ganhar força nos cadernos consultados, sendo utilizada pelo estudante de forma exclusiva em todas páginas. De forma comparativa no referido período pesquisado havia no acervo 167 cadernos de alunos desses 69 foram classificados com o uso exclusivo da letra imprensa minúscula. Esse dado é relevante, pois demonstra que nesse período o uso exclusivo da letra cursiva vai perdendo força no conjunto de cadernos presente no acervo. Isso fica mais acentuado nos últimos anos da pesquisa - 2010 a 2015, que de um total de 98 cadernos apenas em 10 cadernos foram usados exclusivamente a letra cursiva em comparação aos 52 com o uso exclusivo da letra imprensa maiúscula, o que em nenhum outro momento pesquisado havia ocorrido.
Diante disso, é possível afirmar que começa a haver o domínio da letra do tipo imprensa maiúscula no processo de alfabetização, sendo assim, os estudantes ingressam na escola por esse tipo de escrita. Para se chegar nesta estabilidade houve inúmeras discussões e teorias que corroboraram para a manutenção desse tipo de letra, como será reforçado no decorrer desta seção.
Em relação a letra imprensa maiúscula as autoras Ferreiro e Teberosky (2007) ao realizar os testes de escrita espontânea nos seus estudos, registram que há uma primazia na escolha por esse tipo de letra, isto é, elas percebem que as crianças, que estão ingressando no processo de alfabetização, optam em escrever com a letra imprensa maiúscula ao invés da cursiva. Na conclusão de seus estudos, justificam essa escolha pela estabilidade que apresenta o traçado e pela clareza que se instaura ao utilizar esse tipo de letra. Logo, as crianças que estão aprendendo a escrita identificam melhor o traçado final e inicial de cada letra, o que não ocorre com a escrita do tipo cursiva, em que o registro de letra acontece de maneira contínua, sendo assim torna-se mais complexo visualizar o momento que inicia e termina o traçado da letra.
Grossi (1990) também estudiosa do campo da alfabetização, quando trata das letras argumenta sobre a importância de promover o contato das crianças com os diferentes tipos e explica que “as letras maiúsculas de imprensa e a cursiva são usadas na proposta do Geempa, por serem as mais familiares às crianças das favelas nas quais trabalhamos” (GROSSI, 1990, p. 68). Nesse momento, importante mencionar que o grupo inicia os estudos e pesquisa no campo da alfabetização em 1980, especialmente, junto as classes populares da cidade de Porto Alegre/RS. Sendo assim, evidencia-se que a proposta do referido grupo visava também valorizar as vivências trazidas pelas crianças quanto aos tipos de letras. Contudo, nas atividades propostas no decorrer dos seus livros[6] fica registrado que a ênfase para a escrita se dá com o tipo de letra imprensa maiúscula, especialmente, no primeiro nível de alfabetização, o pré-silábico[7].
Na consulta aos documentos oriundos das políticas públicas para alfabetização das crianças foram localizadas informações sobre as orientações referente ao uso da letra imprensa maiúscula nos documentos do Pró-letramento (2008) e no do Pacto Nacional pela Alfabetização da Idade Certa (PNAIC) (2012). No primeiro fica sugerido que:
Alguns estudos recomendam o uso exclusivo de letras de fôrma maiúsculas nos primeiros momentos da alfabetização, pelo menos até que o aluno passe a reconhecer todas as letras e tenha destreza na escrita das palavras. Essa orientação apóia-se em alguns pontos. No âmbito da leitura, um argumento é que, por serem unidades separadas (e não contínuas ou “emendadas” como as letras cursivas manuscritas), as maiúsculas de imprensa podem ser diferenciadas e contadas mais facilmente pelos alunos. Outro argumento é que é mais fácil reconhecer as letras que aparecem em seqüência nas diversas palavras quando essas letras se apresentam com tipos uniformes e regulares, ao invés de mostrarem traços variados (ora maiúsculas, ora minúsculas; ora letra de fôrma ou de imprensa, ora letra cursiva). No âmbito da escrita, o principal argumento é que as letras maiúsculas são mais fáceis de escrever, especialmente para as crianças pequenas (BRASIL, 2008, p. 30, grifos da autora).
Nessa primeira parte do texto do documento Pró-letramento nota-se o incentivo do uso da letra imprensa maiúscula, principalmente no começo da alfabetização, pois elas são consideradas de fácil identificação para leitura pelo fato de apresentar traçados uniformes e regulares, o que acaba sendo mais acessível também na realização da escrita por parte dos alunos.
Percebeu-se no documento que a letra imprensa maiúscula é denominada de letra de fôrma maiúscula e que são consideradas como sinônimos. Entretanto, observa-se que as discussões que foram apresentadas na citação acima estão de acordo com a defesa das autoras no que se refere a revolução conceitual da alfabetização emergente nos anos de 1980.
Nos anos de 2010 com a chegada da política pública denominada PNAIC a presença dos tipos de letras acabou sendo novamente problematizada. No caderno de estudo, na unidade 3 intitulada “A apropriação do sistema de escrita alfabética e a consolidação do processo de alfabetização” fica registrado que
No primeiro ano, quando os alunos ainda não construíram uma hipótese alfabética de escrita, recomenda-se o uso de letras de imprensa maiúsculas, que, por serem mais fáceis de reconhecer e de grafar, liberam o aprendiz para que ele se concentre nas questões conceituais (o que a escrita nota e de que maneira o faz) envolvidas na aprendizagem do SEA. No entanto, isso não significa dizer que não devem ser introduzidos outros tipos de letra nessa primeira etapa. Ao contrário, já no primeiro ano, as crianças devem ser expostas aos diferentes formatos que uma mesma letra pode assumir (por exemplo, A, a, a), embora, nas atividades de reflexão sobre o sistema, sejam usadas letras de imprensa maiúsculas (BRASIL, 2012b, p. 17, grifos da autora).
Faz-se importante destacar que essa política pública acabou sendo um pouco mais definitiva quando trata dos tipos de letras. Nota-se que o excerto acima já inicia recomendando que no primeiro ano seja usada a letra imprensa maiúscula, enfatizando o seu uso pelo fato de ser mais fácil de ser traçada. Porém, continua afirmando sobre a necessidade de apresentar outros tipos de letras para que as crianças sejam expostas a elas e que as reconheçam nos diferentes gêneros textuais.
Nesse sentido, fica descrito no caderno de estudos do PNAIC (2012) que o uso da letra cursiva só deve ser utilizado quando os alunos tivessem se apropriado do sistema de escrita alfabético (SEA), antes disso a ênfase deveria ser para a escrita com as letras imprensa maiúscula.
Dito tudo isso para demonstrar como nas últimas décadas houve um esforço de estudioso e de políticas públicas para alfabetização com a intenção de problematizar o ensino e o uso de diferentes tipos de letras com as crianças que ingressam no primeiro ano do Ensino Fundamental. Ao analisar o conjunto de cadernos de alunos com o uso exclusivo da letra imprensa maiúscula, pode-se observar que muitas das orientações expostas nos documentos apresentados se concretizaram. Nesse sentido, ao se estabelecer a letra imprensa maiúscula nos cadernos dos alunos quatro aspectos foram bastante recorrentes e chamaram a atenção.
A primeira especificidade destacada, referente a presença do alfabeto nos cadernos dos alunos. Cabe citar que Albuquerque, Morais e Ferreira (2008) ponderam que a identificação e o reconhecimento das letras do alfabeto está entre as atividades que devem ser consideradas as mais importantes no processo inicial de alfabetização. Diante disso, é possível entender o destaque de fixar o alfabeto (pela escrita ou pela folhinha) no caderno das crianças para que elas tenham acesso sempre que necessitarem seja em casa, ou na escola.
Nesse sentido, cabe mencionar que frequentemente o alfabeto foi localizado em lugares de visibilidade no caderno como, por exemplo, quando era disponibilizado na forma impressa em “folhinha” era colado na contracapa ou na primeira página do caderno. Outra maneira era em relação ao registro pela criança da rotina de atividades, que era realizada diariamente, essa que contempla a escrita da data, o dia da semana, o nome do aluno e também a escrita sistemática das letras alfabeto. Nesse último exemplo a ênfase estava em identificar, mas também em aprender a traçar o alfabeto em letras imprensa maiúscula. Portanto, a presença constante do alfabeto nos cadernos dos alunos demonstra a necessidade de disponibilizar e tornar acessível o contado delas com o traçado das letras imprensa maiúscula.
A segunda estratégia destacada refere-se à ação de pintar os espaços entre as palavras presentes em frases ou texto. Essa atividade é utilizada com o intuito de auxiliar o aluno a separar e visualizar as palavras na escrita de frases e/ou texto, a fim de facilitar e identificar a segmentação da escrita em palavras. De acordo com Ferreiro e Teberosky (2007) essa estratégia além de auxiliar os alunos a separarem as palavras entre si, acaba sendo mais recorrente quando o uso da escrita ocorre em letra imprensa maiúscula, pois deixa em evidencia o início e o fim de cada palavra. Por fim, importante reafirmar que essa estratégia apareceu de forma mais expressiva nos cadernos que usaram a letra imprensa maiúscula, pois parece que com o tipo cursiva fica mais visual e mais fácil de perceber o início e o fim das palavras devido à escrita emendada das letras.
Em terceiro, pode-se dizer que mesmo que o tipo de letra usada pelo aluno no caderno seja a imprensa maiúscula, houve momentos em que estiveram presentes outras tipologias, porém elas não foram escritas pelos alunos, as professoras utilizam diferentes recursos para mostrar outros tipos de letras para as crianças e assim, seguir a orientação que permeia os documentos oriundos das políticas públicas para alfabetização. Porém sem a pretensão de serem reproduzidas pelos alunos, que mantem unicamente o registro da letra imprensa maiúscula.
Para exemplificar, duas maneiras em que essa estratégia apareceu. Primeiro, quando a professora realizou a escrita em caneta esferográfica de uma lista de palavras que foram reescritas em diferentes colunas nas letras imprensa minúscula, cursiva e imprensa maiúscula com o seguinte enunciado “Ligue as palavras iguais” cabe a criança somente realizar a conexão entre as palavras que são iguais, mas com traçado diferente. Outro exemplo, é a proposta de “Pinta da mesma cor a mesma palavra nos dois tipos de letras”. Essas atividades, normalmente, ocorreram de forma impressa em folhinha colada ao caderno. Diante disso, nos enunciados expostos acima percebe-se que não houve a preocupação de deixar registrado a denominação dos tipos de letras, mas nas atividades nota-se que a pretensão era de familiarizar os alunos com os diferentes traçados.
A quarta estratégia que emergiu no conjunto de caderno que usaram somente a letra imprensa maiúscula, foi a maneira expressiva da presença da escrita das professoras nos cadernos. No entanto, em alguns momentos, nota-se o cuidado por parte delas em manter o mesmo traçado usado e apresentado as crianças no seu processo de alfabetização, - em outros momentos isso acaba não ocorrendo. Nos cadernos dos alunos é possível localizar a escrita de bilhetes contendo tema, aviso, recados, solicitações entre outros, porém isso ocorre com diferentes tipologias das letras.
Há registro em que as professoras acabam rompendo com a letra usada pelos alunos, o que pode ser realizado com a intenção de colocar a criança em contato com os diferentes tipos de letras ou ainda, pelo fato de serem destinada a outros leitores (pais/responsáveis e direção escolar). Sendo assim, conforme Hébrard (2001) os registros diários nos cadernos acabam servindo como prova do trabalho escolar, ou seja, a presença da escrita docente tem a função de apresentar o que está acontecendo ou sendo realizado no espaço da sala.
Ao analisar os cadernos dos alunos, deste conjunto, nota-se que a mudança não ocorre somente em relação ao tipo de letra, mas também no que é registrado, principalmente, quando se tratava de outra tipologia. Sendo assim, percebe-se a ênfase para a escrita da rotina diária das atividades, com a data escrita por extenso, o dia da semana, uma descrição das principais atividades realizadas no dia.
Dessa maneira, nesses cadernos em que aparecem pela primeira vez o uso exclusivo da letra imprensa maiúscula quase não foram localizadas atividades consideradas de treino para aprender a traçar as letras como, por exemplo, encher linhas ou reproduzir a escrita a partir de uma modelo apresentado. Em suma, os registros localizados nos cadernos são de atividades que englobam a escrita da rotina diária, ler e desenhar, completar com a letra ou sílaba que falta entre outras.
Conforme Soares (2016), essas mudanças podem ser em decorrência do paradigma advindo das ideias construtivistas (FERREIRO & TEBEROSKY, 2007; GROSSI, 1990), que compreende a escrita na alfabetização para além do treino, da cópia, do encher linha etc., “[...] isto, é a escrita entendida como produção textual, que passa a desempenhar um papel importante na alfabetização” (SOARES, 2016, p. 26). No caso de alguns cadernos desse conjunto, percebe-se o uso da escrita como função social para registrar e demonstra, aos possíveis interessados, o que foi realizado no decorrer da aula, como pode ser percebido na figura a seguir.
Figura 2 – Apresenta o caderno C18 2014 com o uso exclusivo da letra imprensa maiúscula. Ênfase para escrita da rotina escolar.
Fonte: Disponíveis no Acervo caderno de alunos do Centro de Memória Hisales.
A página apresentada na figura 2 é de um caderno de aluno utilizado no 1º ano de uma escola da rede privada da cidade do Rio Grande/RS. Nela é possível perceber um exemplo do uso da escrita com significado, como é proposto por Soares (2016). Há também a escrita de dois dias de aula, no começo a data referente ao dia 20 de abril de 2014 e abaixo a numeração das atividades realizadas no decorrer da aula sendo elas: 1) oração, 2) educação física, 3) hora do conto, 4) montar a palavra e 5) livro de português. Logo após, o registro do dia 30 de abril de 2014 e as seguintes atividades: 1) oração, 2) inglês, 3) música, 4) folhinha de atividades e 5) livro de português. Sendo assim, percebe-se que paralelamente, a ênfase a letra imprensa maiúscula há também o uso do caderno para registrar o que está sendo realizado no decorrer das aulas, ou seja, com uma função social que pode ser considerada significativa, pois além de trabalhar a escrita do aluno também visa registrar e informar o que está sendo feito na sala de aula ou na escola.
No decorrer desta seção teve-se a intenção de apresentar a ênfase de que a letra imprensa maiúscula é considerada mais fácil de ser traçada, como esteve presente na literatura baseada na Psicogênese da Língua Escrita (2007) e nas políticas públicas para alfabetização (BRASIL, 2008; BRASIL, 2012b). No conjunto de cadernos que constituíram esta seção percebeu-se que de certa maneira a noção de que a letra do tipo imprensa maiúscula é mais simples de ser escrita e lida por crianças em fase inicial de escolarização foi se estabelecendo, notou-se que o uso da referida letra foi gradativamente aparecendo nos cadernos consultados e se mantendo até o final do período estabelecido para a pesquisa.
Considerações finais
A instituição escolar é por excelência o espaço da escrita à mão (HÉBRARD, 2000) as crianças que ingressam no processo de alfabetização, mesmo ainda não dominando as práticas, as regras e a ordem escolar, são imediatamente envolvidos por elas, principalmente pelas professoras que visam torná-los sujeitos escolarizados. Dessa maneira, as professoras que já possuem um conhecimento prévio das práticas escolares, principalmente de escrita, definem quais são as melhores formas de inserir o aluno na cultura gráfica escolar, propondo o que consideram ser mais importante, significativo e adequado para a aprendizagem dos alunos que passa pelas ações de como se comportar na sala de aula, como usar o caderno, como segurar o lápis, até a opção pelas atividades consideradas “mais fáceis” para iniciar o ato de escrever e de ler e a escolha do tipo de letra que deve ser traçada pelo aluno. Isso tudo vai demarcando quais práticas, historicamente, são mais valorizadas e aceitas no espaço escolar.
Nesse contexto repleto de normas e regras a letra imprensa maiúscula, foi aos poucos ganhando força no processo de escolarização e percebido no conjunto de cadernos pesquisados neste estudo. Inicialmente ela aparece e é usada com pouca expressividade, principalmente para chamar atenção ou para dar destaque a alguma informação na página do caderno. Nos anos 1990 emerge em concomitância com os outros tipos de letras (cursiva e imprensa minúscula), mas ainda em atividade bem específicas que servia mais como mola propulsora para o ensino dos outros tipos de letras. É finalmente, em meados dos anos 2000 que a letra imprensa maiúscula começa a ganhar força, sendo que em 2005 aparecem pela primeira vez em alguns cadernos que usam exclusivamente esse tipo de letra. Nos anos seguintes isso vai ocorrendo com mais frequência até chegar nos anos 2010 com a sua predominância no processo de alfabetização.
Com o advento do PNAIC (2012), seus documentos apresentam letra imprensa maiúscula como recomendada para a utilização no ciclo de alfabetização. Sendo assim, no conjunto de cadernos do Acervo de cadernos do Centro de Memória na Região Sul/RS vai se fortalecendo de maneira expressiva o uso da letra imprensa maiúscula. Diante disso, percebe-se que os dados referentes ao tipo de letra em questão demonstram estarem em conformidade com as documentações sobre alfabetização publicadas à época, pois conforme foi apresentado em alguns estudos e documentos consultados (FERREIRO & TEBEROSKY, 2007; GROSSI, 1990; PRÓ-LETRAMENTO, 2008; PNAIC, 2012) a orientação era usar a letra imprensa maiúscula com as crianças que ingressavam na escola e assim manter até o momento em que elas estivessem se apropriado do sistema de escrita alfabética. Essa orientação acabou sendo reforçada com a política pública do PNAIC que definiu o que deveria ser “introduzido, aprofundado e consolidado” em cada ano do ciclo de alfabetização, do mesmo modo expõe a importância das crianças reconheçam os diferentes tipos de letras desde o primeiro ano.
Referências
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Notas
[1] Tese denominada “Uma tipologia das letras usa/das na fase inicial da escolarização no rio grande do sul: a cultura gráfica escolar a partir de cadernos de alunos (1937-2015)”, defendida do Programa de Pós-graduação em Educação – Universidade Federal de Pelotas (UFPel) – sob a orientação da professora Dra Eliane Peres, 2019.
[2] Cadastrado como grupo de pesquisa, desde 2006, pela professora Eliane Peres. Localizado na cidade de Pelotas/RS. É um centro de memória e pesquisa, constituído como órgão complementar da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente sendo coordenado pelas professoras Dra. Eliane Peres, Dra. Vania Grim Thies e Dra. Chris de Azevedo Ramil.
[3] Cabe mencionar que para o período de 1990 a 2005 constavam no acervo um total de 314 cadernos de alunos utilizados no primeiro ano de escolarização, no entanto, desses 153 cadernos de alunos constituíram outros conjuntos como, por exemplo: 1. da exclusividade da letra cursiva e 2. concomitância da letras cursiva e imprensa minúscula. Sendo assim, esses dois conjuntos não correspondem a análise apresentada neste artigo, pois não tratam da letra imprensa maiúscula.
[4] Denominação utilizada pelo Centro de Memória na Região Sul/RS, Hisales, para identificar os cadernos de alunos presente no acervo físico e virtual.
[5] O acervo de cadernos de alunos vai se constituindo exclusivamente de doação. Em se tratando dos cadernos mais antigos algumas informações não são disponibilizadas, especialmente, por falta de conhecimento do doador. No caso do caderno que ilustra está página não foi possível definir a escola de origem.
[6] No ano de 1990 a professora Esther Grossi publica a trilogia dos níveis de alfabetização, sendo o primeiro denominado “Didática do Nível Pré-silábico”, o segundo “Didática do Nível Silábico” e o terceiro “Didática do Nível Alfabético”. Essa trilogia tem grande circulação no estado gaúcho, sendo que em 2009 teve sua 17ª edição.
[7] Este é o primeiro dos níveis psicogenéticos, e é constituído do pré-silábico 1 (P1) e pré-silábico 2 (P2). No primeiro ‘’[...] os sujeitos julgam que se escreve com desenhos”, já no segundo “[...] ao escrever com letras, números ou assemelhados, condiciona a quantidade deles, o seu tamanho, a sua posição... a características figurais do ente cuja palavra que lhe está associada é escrita”. (GROSSI, 1990, p. 41).