Formação em Educação: desafios ético políticos metodológicos

Education Training: Methodological Ethical-Political Challenges

Formación en Educación: Desafíos metodológicos éticos y políticos

 

Maria Elizabeth Barros de Barros

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

betebarros@uol.com.br

Denise Carla Goldner Coelho

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

denisecoelho.edu@gmail.com

 

Recebido em 01 de novembro de 2022

Aprovado em 05 de dezembro de 2022

Publicado em 04 de março de 2024

 

RESUMO

O artigo coloca em questão processos de formação de educadores e educadoras. Indaga uma direção conceitual-metodológica que produz práticas educacionais universalizantes e naturalizadoras, que formam-conformam profissionais, dissociando práticas pedagógicas de práticas políticas que as engendram. Dissocia a ideia de formação em educação como competência pedagógica, capacitação,  conscientização - que se associa a especialismos, a discursos normalizadores, a modelagem de formas de agir e produzir educação. Propõe outras direções de análise que consideram o saber-fazer e a complexidade de relações efetivadas na escola, que intensificam a dimensão processual de formação no âmbito educacional. Persegue processos que tomem a indissociabilidade técnico-política como direção. Busca, assim, subsídios para romper com práticas educacionais homogeneizadoras, controladoras e totalizadoras, propondo processos formulados a partir de um ethos que afirme autonomia e construção coletiva, que se abra à história, aos devires, ao imprevisível, que constituam, aliançados com os movimentos na escola, práticas pedagógicas ético-políticas de expansão e multiplicidade do viver.

Palavras-chave: Formação docente; Escola; Práticas pedagógicas.

 

ABSTRACT

The article puts into question the training processes of male and female educators. It asks for a conceptual-methodological direction that produces universalizing and naturalizing educational practices, which form-conform professionals, dissociating pedagogical practices from the political practices that engender them. It dissociates the idea of training in education as pedagogical competence, training, awareness - which is associated with specialisms, normalizing discourses, the modeling of ways of acting and producing education. It proposes other directions of analysis that consider the know-how and the complexity of relationships effected in the school, which intensify the procedural dimension of formation in the educational scope. It pursues processes that take the technical-political inseparability as direction. It seeks, therefore, subsidies to break with homogenizing, controlling and totalizing educational practices, proposing processes formulated from an ethos that affirms autonomy and collective construction, that is open to history, to becomings, to the unpredictable, which constitute, in alliance with the movements at school, ethical-political pedagogical practices of expansion and multiplicity of living.

Keywords: Teacher training; School; Pedagogical practices.

 

RESUMEN
Este artículo cuestiona los procesos de formación de educadores. Señala una dirección conceptual-metodológica que produce prácticas educativas universalizadoras y naturalizadoras de la formación de profesionales, disociando las prácticas pedagógicas de las prácticas políticas que las producen. Desvincula la idea de educación como competencia pedagógica, formación, concientización - que se asocia a los especialismos, a los discursos normalizadores, a las formas modeladoras de actuar y producir educación. Propone otras direcciones de análisis que tengan en cuenta el saber hacer y la complejidad de las relaciones que se dan en la escuela, que intensifican la dimensión procesual de la formación en el ámbito educativo. Persigue procesos que toman como dirección la inseparabilidad técnico-política. Así, busca subsidios para romper con prácticas educativas homogeneizadoras, controladoras y totalizadoras, proponiendo procesos formulados a partir de un ethos que afirma la autonomía y la construcción colectiva, abierta a la historia, al devenir, a lo imprevisible, que, en alianza con los movimientos en la escuela, constituyen prácticas pedagógicas ético-políticas de expansión y multiplicidad de la vida.

Palabras clave: Formación de profesores; Escuela; Prácticas pedagógicas.

 


 

Formação em educação: transbordando conceitos

            O trabalho acadêmico que temos desenvolvido está, básica e prioritariamente, comprometido com as práticas educacionais em suas múltiplas dimensões, sobretudo com os processos de formação de educadores e educadoras e as relações institucionais materializadas no cotidiano escolar.

            É, portanto, do lugar da escola e de suas práticas que parte este artigo. Nesse sentido, o enfoque teórico-político aqui assumido busca interrogar a universalização, as globalizações e naturalizações que engendram muitos desses processos formativos. Pretendemos pensar a formação de trabalhadoras e trabalhadores da educação como um processo maquínico[1], que busca escapar de modelizações apriorísticas que perseguem, nesses profissionais, modelos ideais/padrão.

            O que dizer, então, sobre a formação de educadores e educadoras?

            Em muitas situações, os seus pilares têm sido ‘capacitação’ e ‘competência técnico-pedagógica’, ‘conscientização’ e ‘compromisso político’. Os primeiros, impregnados da ideia de que há uma habilidade a ser adquirida. Os segundos, pela ideia de que a consciência crítica possibilitaria aos educadores e educadoras a interferir nos processos sociais, podendo desarranjar a ordem vigente. Competência técnico-pedagógica, logo, discurso competente dos especialismos. Conscientização, compromisso político, logo, certa racionalidade sendo convocada a ordenar a realidade indesejada, considerada desorganizada e caótica.

            Estas propostas podem acabar se assemelhando àquelas dos tecnocratas, dos especialistas do planejamento que pretendem tudo organizar, ignorando ou taxando como transtorno tudo o que escapa da rede de tais determinações totalizantes e globalizadoras.

            Por outro lado, pensar que educadores e educadoras são pessoas ‘alienadas’, sem ‘consciência política’ e incapazes de mudar os rumos da história, também é não apostar nos movimentos criadores de mundos e de sujeitos que humanos fazem.

            O termo ‘formação’ traz, portanto, em seu bojo, muitas ambiguidades: formação, capacitação técnico-metodológica? Modelagem? “Fôrmas-de-ação”?[2], Competência técnica? Cientificismo? Conscientização política? Compromisso político? Domínio técnico e prático dos ditos ‘princípios que regem a educação escolar’? Quais princípios? Qual educação escolar? Existem princípios e educação escolar em um sentido genérico e universal? O que significa afirmar que o professor e a professora devem estar preparados para ‘desempenhar bem suas funções’ na escola?

            A perplexidade desencadeada frente a tais perguntas leva-nos a examinar os diversos sentidos que a palavra formação adquire em suas variadas circunstâncias de uso, e nos efeitos das práticas atualizadas nas redes educacionais.

            Ouvimos, com bastante frequência, que muitas professoras e professores têm consciência política mas não têm competência pedagógica, ou que é necessário haver cientificidade naquilo que o professor faz, que os dominados precisam ter acesso aos conteúdos que lhe darão condições de competir com os dominantes, ou que a consciência crítica, o compromisso político é que nos fará sair de uma postura de seres submissos, indefesos, tornando-nos pessoas com consciência histórica, responsáveis pela escolha e construção de nossos próprios caminhos. Instaura-se, assim, uma polêmica que nos parece equivocada.

            Perspectivas que se apoiam em um princípio dicotomizante e determinante podem acabar por aprisionar a formação de professores e professoras no quadro competência–incompetência, consciência crítica–alienação, levando ao esquadrinhamento e à normatização desses atores sociais, controlando suas práticas e buscando homogeneizá-las. Quadros de análise dicotômicos podem nos conduzir à fixação de normas com valores universais e moralizantes, reduzindo a possibilidade da construção de formas outras de educar que escapem à binarização.

            Pensando com Heckert (1992), as abordagens binárias "conectadas com os dispositivos de culpabilização vão fixando os indivíduos em determinados polos segregadores" (HECKERT, 1992, p. 124). Assim, podemos ser levados a crer que o/a professor/a não ensinou ou não soube ensinar ao estudante por, supostamente, não ter os conhecimentos e a ‘competência técnica’ necessários para o empreendimento de ensinar, ou porque não teria ‘compromisso político’ com os interesses dos dominados. Essas fixações, aliadas às verdades sobre a valorização da competência técnica e da consciência crítica, naturalizam a questão do desempenho de professores e professoras e dos/as estudantes.

            Consideramos, ao contrário, que ‘educação’, ‘técnica’, ‘competência’, ‘pedagogia’, ‘aluno’ não existem como coisas ou objetos naturais/abstratos; são correlatos das práticas históricas que as objetivaram. Em cada época, um conjunto de práticas engendra um rosto histórico singular que acreditamos reconhecer, e que chamamos de educação, religião, ciência... (VEYNE, 2014; FOUCAULT, 2021).

            A educação como prática histórica é material, constrói mundos e se conecta a práticas não educacionais. É preciso pensar o âmbito da vida social no seu curso como processo educativo, pois este é, também, extraescolar.

            Enfatizar os métodos e técnicas é algo que decorre de uma suposta necessidade do conhecimento objetivo, o que acaba descartando as análises das relações entre educação e poder, tornando as questões metodológicas e técnicas universalizantes e abstratas em questões fundamentais a serem feitas, quando temos como foco as práticas pedagógicas. A qualificação da força de trabalho demandada pelo capital não é, no nosso entendimento, um processo meramente técnico. Aqui está posta a indissociabilidade técnico-política. Como nos lembra Coelho, "o político constitui o próprio ser do ato educativo, enquanto ato humano e, como tal, inserido na luta concreta dos homens" (COELHO, 2008, p. 38).

            Indagar as técnicas educacionais implica uma análise do seu surgimento datado, uma análise que leve em conta suas relações com os interesses de certos grupos sociais numa determinada época histórica. Portanto, processos técnicos outros em educação, que persigam a transformação de modos padronizados de subjetivação engendrados no concreto das experiências educacionais, só se constituirão quando formulados a partir de um outro ethos: que afirme autonomia e construção coletiva do processo de trabalho no âmbito educacional.

            Desta forma, ao tomar a competência técnica como caminho para a capacitação profissional de professores e professoras, é necessário especificar de que capacitação profissional estamos falando. Trata-se de qualquer capacitação? De capacitação em geral? Todo saber-fazer implica uma determinada forma de ver, sentir e produzir mundos e, portanto, é um ato político, no qual não há previsibilidade ou antecipação possível. Considerar a competência técnica como mediação de um determinado compromisso político é não considerar a prática educacional na sua articulação com as múltiplas práticas em luta.

            Em nome de uma especificidade do trabalho pedagógico, esvazia-se a participação das escolas na mobilização das lutas sociais na direção da construção de mundos outros. Enfatizar e superdimensionar os conteúdos a serem transmitidos no processo educacional, entendendo-os como dissociados de práticas políticas que se engendram, é afirmar a neutralidade do conhecimento e das instituições sociais. As técnicas, sob seus múltiplos aspectos e diferentes usos, são vetores importantes para transformação nas formas como lidamos e criamos mundos, na produção de conhecimentos e na sua transmissão.

 

Das tecnologias de (trans)formação

            Uma dada configuração técnica está articulada a projetos sociais mais amplos que a movem e lhe dão sentido ético-político. Lévy, em seu trabalho "As tecnologias da Inteligência" (2010), questiona o caráter racional e utilitário das técnicas. Ataca frontalmente o mito da técnica neutra, boa ou má. Considera que o que importa é o uso que fazemos dela, que é um uso, necessariamente, singular. A forma como é utilizada uma determinada técnica já é uma interpretação que dela fazemos. Afirma:

 

O uso do "usuário final", ou seja, do sujeito que consideramos em determinado instante, não faz nada além de continuar uma cadeia de usos que pré-restringe o dele, condiciona-o sem, contudo, determiná-lo completamente. Não há, portanto, a técnica de um lado e o uso de outro, mas um único hipertexto, uma imensa rede flutuante e complicada de usos, e a técnica consiste exatamente nisso (LÉVY, 2010, p. 59).

 

            Segundo o autor, a técnica, ou melhor, as técnicas, sob suas diversas formas e usos, constituem-se em importantes agentes de transformação. Ao longo de toda a rede sócio-técnica, seguindo as inúmeras conexões possíveis, jamais acharemos um objeto em estado bruto, um fato inicial ou final que já não seja uma interpretação. Toda tentativa de separar fins e meios das técnicas não resistiria a uma análise sociotécnica. Um meio qualquer nunca possui um fim estável por muito tempo. A questão do bom ou mau é coextensiva ao processo técnico.

            A relação da técnica com o restante das dimensões do campo social se dá em diferentes sentidos: determinando contextos e sendo produzida pelas variadas circunstâncias que vão sendo tecidas pelos sujeitos e entre eles. Portanto, a tecnologia, como parte do conjunto do jogo coletivo, constitui-se num terreno político fundamental, espaço de conflitos e tensionamentos. Não é possível excluir a tecnologia da esfera política, não há aplicação automática de uma técnica, afinal de contas, as diferentes tecnologias são tecidas na polis[3], onde os humanos se encontram e criam mundos. Uma criação tecnológica cria sentidos, que estão conectados a questões econômicas, sociais, políticas e culturais. A técnica está intimamente misturada às formas de organização social e às variadas expressões da vida. Como nos lembra Lévy, "nenhuma solução pode vir da técnica, mas somente algumas saídas favoráveis ou desfavoráveis das negociações e conflitos entre agricultores, insetos, empresas, atmosfera, jornalistas, sindicatos, universidades [...] classes sociais, Estado" (LÉVY, 2010, p. 195).

            Ao tentar separar a competência técnica do terreno político fundamental da qual faz parte indissociável estaríamos analisando a competência técnica de professores e professoras como algo em geral, considerando-a boa ou má ou necessária para os objetivos que previamente se definiu.

            A tecnologia utilizada pelos educadores e pelas educadoras nas suas práticas cotidianas não é asséptica. Não se realiza na medida do descarte dos afetos, dos desejos, das paixões, da história. A tarefa de educadores/as é o encontro com a alteridade, com o outro em sua diferença, com a história de vida dos sujeitos, como movimentos do desejo, é estar na processualidade. Educadores/as possuem face, nome, histórias. Cada aluno/a é portador de um nome e de histórias. É necessário escapar das binarizações (competência técnica/incompetência técnica), libertando-se dos especialismos enclausuradores, que enunciam discursos instituídos e totalizadores. É necessário desmanchar os territórios de saber-poder que insistem nas hierarquizações.

            Chauí (2017) nos adverte que o "discurso competente é aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (estes termos agora se equivalem) porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem" (CHAUÍ, 2017, p. 7). Discurso competente é discurso instituído, conhecimento tido como verdade neutra, objetiva e transcendente. Neste sentido, não se trata de um saber instituinte, constituído na imanência, mas apresenta-se com o papel de dissimular, sob a capa de cientificidade, a existência de práticas de submissão e dominação. A apologia da competência cria uma situação em que não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer lugar. Aquele que profere o discurso competente é o previamente reconhecido para tal, e a forma e o conteúdo já foram autorizados pelas instâncias credenciadas para tanto.

            Nas sociedades modernas, o discurso converteu-se em discurso anônimo fundado na racionalidade dos especialismos. Tornou-se discurso neutro da cientificidade ou do conhecimento.

            A competência técnica veicularia, portanto, a ideia de que competência existe em si e funciona sob a direção de uma racionalidade que lhe é própria e independente da intervenção humana e das condições que a produziram. Ao se identificarem competência técnica e conhecimento teórico-prático, estamos considerando que é competente o discurso do especialista autorizado, proferido de um determinado lugar de hierarquia da organização escolar.

            Lembrando Chauí, mais uma vez, "a condição para o prestígio e para a eficácia do discurso da competência como discurso do conhecimento depende da afirmação tácita e da aceitação tácita da incompetência dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos" (CHAUÍ, 2017, p. 11).

            A quase obsessão pela competência técnica acaba por fazer surgirem artifícios promotores de conhecimento e forma que as pessoas acabam se submetendo ao discurso do especialista, como detentores dos segredos da realidade vivida. Aos não especialistas fica a ilusão de participar do saber. O discurso da competência, como discurso normalizador, exige a interiorização dos seus princípios, pois não os interiorizar é ser considerado "incompetente, associal, anormal, detrito e lixo" (CHAUÍ, 2017, p. 11). A competência instituída e institucional passa a ser arma importante no projeto de intimidação social-política. Conhecer e poder-dominação encontraram uma forma particular de articulação.

            Num outro movimento, quando o ponto-de-partida não é o do controle, considera-se que o saber-fazer concretiza uma determinada linha de opção política. Todo saber-fazer contém, assim, certa concepção de mundo sendo ato político que se concretiza em certas intenções sociais. Desde 1983, Nosella lançou-se a este debate, afirmando que a "[...] competência técnica não é um momento prévio para o engajamento político, ela é um determinado engajamento político" (NOSELLA, 1983, p. 93). Nos últimos anos, Nosella retoma a discussão e, para além de reafirmar o enganjamento político, explicita a dimensão ético-política das práticas pedagógicas (NOSELLA, 2005; 2018).

            Os processos de formação se fazem numa rede de relações permeadas por assimetrias de saber e de poder e por lógicas de fragmentação entre saberes-práticas. Tais relações requerem atenção inclusiva para a multiplicidade de condicionantes que não cabem na redução do binômio aprender-ensinar. Envolver-se com processos formativos nos lança irremediavelmente no campo da complexidade das relações entre alunos/as, entre alunos/as e professores/as, entre direção e professores/as, entre apoio técnico-administrativo e alunos/as e professores/as, entre trabalhadores/as da limpeza e das cozinhas e professores/as, todos/as entre si e com os demais profissionais da escola, de forma que a opção excludente por um dos polos não se sustenta para a efetiva alteração dos modelos de formação de professores e professoras, de educação e de escola. Deste modo, construir um processo de formação para trabalhadores da educação implica estarmos atentos a esta complexidade e fazermos escolhas teórico-metodológicas que expressem um campo de interlocução, entre os saberes, não reduzidas a um método, a uma tecnologia. Destarte, urge atentar para um modo de fazer formação docente, para uma política educacional e fazer escolhas, que são sempre escolhas ético-políticas. Paul Veyne (2014, p. 280) nos ajuda nessa direção quando afirma que  se trata de “explicar essas práticas não a partir de uma causa única, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais se ancoram''. Esse método pictórico produz quadros estranhos, onde as relações substituem os objetos”.

            Formar um profissional implica, então, um diálogo de saberes e práticas sociais que institui sujeitos de ação e objetos de trabalho, num aprendizado permanente. Não é modelagem. É destruição de uma determinada concepção de mundo que se objetiva em práticas domesticadoras que limitam os processos de singularização[4], dificultando a produção de diferença. Implica, portanto, a possibilidade de dissidência e ruptura com os modos de pensar e agir dominantes nas sociedades capitalísticas[5].

            É partindo desses pressupostos que reafirmamos nossa posição contrária à afirmação de que a função política da educação se cumpre na medida em que ela se realiza como prática especificamente pedagógica.

            Prática pedagógica e prática política não constituem polos distintos a serem articulados. São práticas que vão se ligando e se produzindo no campo social. Não há antecedente de uma ou outra. O discurso sobre a especificidade da dimensão pedagógica acaba por reafirmar o liberalismo e tecnicismo pedagógico. A prática de professore/as não é um resultado alheio a certa pedagogia competente que lhe foi ensinada, ao contrário, constitui as técnicas educacionais hegemônicas num determinado momento de nossa história. Como nos sugeriu Gramsci, não é a aquisição de capacidades diretivas nem a tendência a formar homens que dão a marca social de um tipo de escola. Na luta contra a escola que aí está, não se trata de criar esquemas programáticos, mas de sujeitos, não imediatamente de sujeitos-professores/as, mas um complexo social do qual estes sujeitos fazem parte, constituindo-o e se constituindo em meio a ele.

            O professor e a professora não ensinam somente a criança a falar uma língua materna, o aluno

 

aprende também, os códigos de circulação na rua, certo tipo de relações complexas com a máquina, e estes diferentes códigos devem integrar-se aos códigos sociais do poder. Esta homogeneização das competências semióticas é essencial ao sistema da economia capitalista (GUATTARI, 1981, p. 52).

 

            A formação de educadores e educadoras precisa ser pensada como um processo variado e heterogêneo, buscando linhas que extrapolem os muros da escola, constituindo-se em processos de singularização e favorecendo a formação do ‘ser da ética’[6].

            A literatura produzida no âmbito pedagógico não privilegia, em sua grande parte, o plano micropolítico[7] da formação de educadores e educadoras. Entender a formação apenas a partir das grandes oposições: competência/incompetência, currículos apropriados/inapropriados, formação prática/formação teórica, formação técnica/formação política, entre outras, acaba por nos aprisionar, não nos permitindo analisar a processualidade das práticas constituintes da formação pedagógica.

            Nossa proposta é construir estratégias críticas que não apenas contestem arranjos estruturais iníquos, mas que também examinem nossa cumplicidade nesses arranjos. Assumir como projeto a invenção de si e de mundos, o imaginar ativo e produtivo e não a descoberta. Como nos indicou Nietzsche, formular interrogações, problematizar, não aceitar a suposta verdade, portanto, é um meio de nos tornarmos mestre e senhor de algo.

            É necessário analisar as perspectivas de trabalho configuradas na proposta de formação, relacionando-a com a realidade sociopolítica da qual faz parte. Portanto, queremos chamar atenção para um plano que não tem sido priorizado quando o tema é a formação de educadores e educadoras: a micropolítica.

            Essa tarefa se coloca como um desafio, sob pena de não conseguirmos avançar no sentido da transformação do processo educacional na direção ético política que priorizamos, qual seja, a afirmação da normatividade dos viventes[8] e, portanto, da autonomia inerente ao vivo. A construção de práticas pedagógicas outras passa, necessariamente, pela formação de outros e outras educadores e educadoras, o que se articula com uma proposta de singularização do fazer pedagógico.

            Se desejarmos a emergência de educadores e educadoras que ousem se rebelar, criar outras formas de luta comprometidas com a transformação social, lutas comprometidas com a criação de mundos solidários, afirmando coletivos e considerando intoleráveis as diferentes formas de privatização da vida, não podemos partir do princípio da valorização da chamada competência técnica. Entendemos que não se trata, portanto, de capacitação profissional, mas de formação que não seja “fôrma de ação” (HECKERT, 1992).

            Assim, ao tomar a instituição formação para análise, precisamos segui-la em seus diferentes aspectos, desmontando as verdades instituídas e asseguradas que dominam alguns discursos sobre formação profissional e tornar problemática qualquer leitura definitiva do discurso oficial.

            Esse desafio, no nosso entender, se faz desmanchando os territórios do saber-poder que foram construídos na prática educacional, sobre a crença de um saber competente desistoricizado. Os especialistas têm produzido saberes-propriedade apoiados em estratégias homogeneizadoras que excluem a diferença e a multiplicidade.

            A aposta seria outra: uma formação que se configure em múltiplas formas de ação como produção de saberes e de práticas sociais que instituem sujeitos de ação, aprendizados permanentes, contínuos, incessantes, processuais, e não práticas de modelagem, que se constroem sobre especialismos naturalizados. Uma política que guie uma formação de professores e professoras e esteja preocupada com produção de subjetividade, preocupada com os modos subjetivos que os processos formativos podem engendrar. Guattari e Rolnik (2011, p. 28) consideram os educadores, em seu trabalho pedagógico, como diretamente atuantes na produção de subjetividade - esta entendida como uma "[...] modelização que diz respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações sexuais [...]" como uma forma maquínica de produção e controle social, que definem formas de ver, falar e perceber o mundo. Acrescentam os referidos autores: os/as professores/as ocupam posição política fundamental, pois podem, entre outras coisas, trabalharem para o funcionamento deste jogo de reprodução de modelos ou criarem saídas para processos de singularização (GUATTARI; ROLNIK, 2011).

A partir deste traçado, destaca-se um fazer formação que não dissocie técnica e política, uma formação antenada com as políticas subjetivas em jogo nos cotidianos escolares e que anseiem escapar  da  manutenção  de um  conhecimento  desde  sempre aí, abrindo-se para o inusitado. Processos formativos atentos à singularidade das situações que se atualizam no cotidiano escolar e viabilize um fazer sempre de novo.

            Um trabalho de formação como processo, à espreita dos acontecimentos que emergem no concreto do trabalho educacional, questiona o sujeito fabricado modelarmente, pretende escapar da produção de profissionais como mercadorias amorfas, despotencializadas[9], silenciosas, serializadas. Como nos sugere Baptista (2000), a formação tem sido vista como uma engrenagem de fábrica, como lugar onde poucos apropriam-se do seu saber — do seu trabalho — e, ao mesmo tempo, como espaço onde as contradições podem gerar indagações e propostas que possibilitem questionamentos e a construção de práticas educacionais outras. É necessário aniquilar puras interpretações idealistas e atuar no concreto das experiências educacionais. Trata-se de "[...] revolucionar o mundo, de atacar e transformar praticamente o estado de coisas que encontrou" (MARX; ENGELS, 2007, p. 30). Esse é um legado fundamental das produções de Marx e Engels. Os humanos estão sempre se jogando na tarefa inconclusa de criar mundos. A atividade humana inventa e cria modos sempre inusitados de viver. As forças de controle e dominação, que podem estar em curso, sempre encontram uma força de (re)existência. E essa seria a pista: uma formação que investe na produção de professores e professoras que não temem a surpresa, mas a desejam.

            Podemos encontrar pistas e analisar qual delas (no sentido dos romances policiais de descobertas) levam adiante e fazem "[...] mudar o caminho, levando à revisão de estratégias anteriores para prosseguir" (BAPTISTA, 2000, p. 13). Como construir processos de formação de educadores e educadoras que não estejam aprisionados pela ótica da produção de especialistas, de profissionais com competência técnica e que insistem em discernir o que é especificamente pedagógico do que é especificamente político? Como constituir práticas de formação de trabalhadores/as da educação que estilhassem as "fôrmas-de-ação" (HECKERT, 1992)? Fôrmas-de-ação estas que, na maioria das vezes, funcionam como modeladoras de formas de ver, agir e produzir realidade.

            Uma proposta para os processos formativos pode estar aliançada a uma formação de educadores e educadoras que se disponibilizem a lutar pela transformação da realidade instituída e, assim, desnaturalizar os lugares assépticos do saber e dos especialismos. Diferentemente do conhecimento-verdade cristalizado, o conhecimento se processa por meio de formas variadas de apreender o real sempre em mudança, por sujeitos diferentes e que se diferenciam e, portanto, em constante movimento. O olhar-agir dos sujeitos não é neutro, é implicado[10].

            É necessário entender o que nós, que ocupamos posição de ensino, no âmbito das chamadas ciências sociais e humanas, colocamos em funcionamento. Entender a importância de inventar dispositivos para um trabalho no campo da produção de subjetividade, que se faça intercessor, ou seja, estando entre, pondo-se de passagem, numa conexão com variados fragmentos não antevistos, para que outros devires possam se expressar.

            O que temos observado, muitas vezes, na prática educacional é o aprisionamento dos saberes quando se tornam matéria de especialistas, mantidos em territórios fechados, já conhecidos e, portanto, sem riscos.

            Aqui ocorre-nos Foucault, quando diz que sonha com um intelectual que pretende destruir as evidências e as universalidades, desmontando as cristalizações e apontando, no presente, os pontos fracos e as linhas de força. Um intelectual que nega a fixidez, deslocando-se sem cessar e que está constantemente se colocando a questão da revolução: Qual revolução? Valerá a pena? Mas qual será a pena?

            Este sonho pode ser tomado como nosso e, então, aceitar o convite de percorrer caminhos provisórios que desmontam as crenças universalizantes e se deslocam incansavelmente de territórios. Considerar intolerável as configurações totalizadoras e grandiosas que aprisionam o movimento explosivo do viver e recusar nos tornar cúmplices de um plano globalizador e sistemático. Talvez, desligar, desorganizar essa rede discursiva moral na qual se encontram imersas as práticas de formação do educador/a. Acreditarmos que é relevante sermos processistas[11] nesse âmbito, o que passa pela exigência de um trabalho no campo da produção de subjetividades.

A produção de conhecimento é uma relação de luta, uma expressão da pluralidade das forças que não buscam nenhuma verdade a priori. Lembrando Nietzsche, desejar a verdade e a moral é desejar a morte e, portanto, negar a vida.

 

Considerações finais: Ramificações-desafios

            As análises dicotomizadoras, que separam ciência/senso comum, teoria/prática, técnica/política acabam por enfatizar um ou outro aspecto do trabalho de professores/as, como se tratasse de aspectos opostos da realidade, podendo nos levar ao que Foucault chamou os "[...] ascetas políticos, os morosos, os terroristas da teoria, aqueles que queriam preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade" (FOUCAULT, 1991, p. 82).

            A prática política precisa ser um intensificador do pensamento. A análise das práticas educacionais pode ser um multiplicador das formas de ação e intervenção política. Trata-se de priorizar o múltiplo e não a uniformidade, os agenciamentos móveis, o nomadismo e não as sedentarizações. As binarizações só servem para reforçar as unidades e as totalizações, impedindo a proliferação, a justaposição e a conexão das ações, dos pensamentos e dos desejos.

            É preciso apontar para esse processo de culpabilização e não fixar as análises no aspecto organizacional de estrutura e funcionamento da Universidade e/ou dos cursos de formação, para evitarmos capturas pela mesma lógica que constitui estas organizações. Urge que coloquemos em análise as relações de poder-saber que constituem tais instituições[12]. Trata-se de desnudar as relações que aí se materializam.

            A instituição formação dissociada da análise do trabalho que se processa em determinada formação social, não contribui para a produção de mundos outros. Culpar, ora o professor, ora a Universidade, ora o currículo pela formação deficiente é negar um quadro de referência que precisa ter presente a dinâmica social.

            A instituição formação precisa ser analisada em suas várias conexões: transmissão de informações, encontro de diferentes histórias, movimentos de desejo, mergulho num plano micropolítico onde os fluxos-formas se engendram por conexão, buscando incessantemente a construção de outros territórios. A questão da formação de professores e professoras precisa considerar a relação paradoxal entre aprender e desaprender, pensando esse processo como um plano onde as linhas de forças da vida estão em constante embate. Dessa forma, trazer para o debate a formação de professores e professoras nos lança num movimento de deslocamentos dos lugares estabelecidos e endurecidos e nos envia para um debate sobre as políticas que possibilitam experiências de tensionamento dos modelos rígidos e predeterminados de práticas educacionais, de maneira que indique a não existência de uma única forma de ensinar e um único modo de praticá-la. Assim, ficamos diante de uma política geradora de experiências e invenções, de forma a não reduzir os processos formativos em educação à sua dimensão prescritiva, o que não significa desprezar tal dimensão, que serve como orientação e não como algo a ser replicado. A processualidade, as maquinações podem escapar das binarizações imobilizantes e das oposições das formas dadas, destacando que o que importa são os modos como as transformações se operam. Desejando os riscos, as desnaturalizações.

            Uma análise da educação pode engendrar entre os educadores indagações importantes sobre sua formação e sua profissão, seu surgimento datado, seu lugar no campo social e suas implicações afetivas, políticas e ideológicas.

            A escola, como as demais instituições sociais da sociedade capitalista, em algumas situações, tende a negar a história dos indivíduos que a frequentam e trabalham, esquadrinhando-os, normatizando-os. Em outro sentido, os processos de formação precisam buscar a produção de profissionais que ousem singularizar-se, escapando das perspectivas binárias de certo e errado.

            O desafio está em desorganizar essa rede moral que nos aprisiona e pensar o educador e a educadora aventureiro/a que recusa as soluções teleológicas e aposta no acaso, na aventura, sem medo da destruição. O aventureiro que se gratifica em viver, não negando as coisas que não acredita, mas, ao contrário, procurando nelas sua positividade.

            Nietzsche, em "Assim falou Zaratustra", afirma: "É preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar a luz a uma estrela dançante" (NIETZSCHE, 2020, p. 32). A estrela dançante ameaça o estabelecido. Nietzsche nos convoca a pensar que só quem teme a sombra, o imprevisível, o acaso, pretende manter a totalidade sob controle. A direção pode ser outra: abandonar a preocupação e o anseio de chegar a um lugar pré-fixado.

 


 

Referências

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FOUCAULT, Michel. Anti-Édipo: uma introdução a vida não fascista. In: ESCOBAR, Carlos Henrique (Org.). Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991.

 

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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Edipro, 2020.

 

NOSELLA, Paolo.  O compromisso político como horizonte da competência técnica. Educação e Sociedade, São Paulo, n.14, p. 91-97, 1983.

 

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Notas



[1] Maquínico não se identifica com mecânico, que seria da ordem de um movimento previsível. Maquí-nico refere-se à produção criadora, à maquinação, à criação de novidade, não sendo, portanto, da ordem da previsibilidade.

[2] O termo fôrma-de-ação foi criado por Ana Lúcia Heckert (1992) em seu trabalho A produção dos Latifúndios do Saber: a Formação do Psicólogo em Questão.

[3] Segundo Arendt (2010), a polis, na Grécia antiga, se configura como uma comunidade política que se efetiva entre iguais, onde todos possuem a chance de participar, debater e agir em liberdade, de aparecer e de mostrar suas ideias para o mundo. Trata-se de um espaço agonístico, onde cada homem participa da construção do modo de existência grego. A educação, nessa direção, visa a vida na polis, pois, sua função principal, é a formação dos indivíduos a partir dos valores da comunidade. Consiste em possibilitar aos cidadãos o exercício da cidadania, que é atividade política, tanto as dos costumes da cidade como as transmitidas pelos ensinamentos, o que se viabiliza no pleno exercício na vida política. A educação e suas tecnologias, neste sentido, têm função primordial na formação do indivíduo pré-político, para o pleno exercício da cidadania, que ele mesmo possa libertar-se e ser construtor da vida social civilizada.

[4] Singularizar, aqui, é tomado, como nos sugerem Rolnik e Guattari (2011), como produção da dife-rença, ruptura com a homogeneidade, afirmação de uma multiplicidade de vias de existência.

[5] O termo capitalístico é forjado por Guattari (1981) porque acredita ser necessário criar um termo que possa designar não apenas as sociedades qualificadas capitalistas, mas que possa também se referir àquelas sociedades que, mesmo não sendo qualificadas como tal, não diferem muito do capitalismo quanto ao modo de produção de subjetividade. Não diferem de sua lógica de funcionamento.

[6] Essa ideia é uma inflexão da formulação de Deleuze – “homens da ética e homem da moral" -. Para esse filósofo, o homem da moral é aquele que nos habita e que conhece os códigos, os valores e regras de ação vigentes na sociedade em que vivemos, tomando sempre esses códigos como referência. O da ética, que também nos habita, escuta as reverberações das diferenças, levando-nos a tomar decisões que viabilizam um outro-novo modo de existência, não só fazendo novas composições como também desmanchando as vigentes. Seleciona o que favorece ou não à vida, tomando como critério a criação e a inventividade. Optamos por substituir a palavra ‘homem’ por ‘ser’, por uma questão de gênero. Não concordamos que um homem da moral e da ética nos habita, mas um ser da moral e da ética.

[7] Plano micropolítico: plano onde os fluxos-formas se engendram por conexão, buscando a construção de outros territórios. Plano onde se escapa das oposições e das formas-dadas, onde se criam incessantemente maquinações. Importa, aqui, a processualidade, os modos como as transformações se operam.

[8] Canguilhem (2012) considera que a normatividade é a marca dos viventes. Todo ser vivo cria normas ao viver. Produz meios para viver.

[9] Serializado: produto feito em série, aquilo que se reproduz como o modelo, e que é igual e/ou homogêneo.

[10] Estar implicado, significa, aqui, um questionamento sócio-histórico e político do lugar do pesquisador-analista no processo de seu trabalho, e, nesse sentido, não há neutralidade nem exterioridade na relação por ele estabelecida com o seu campo de pesquisa/análise.

[11] Suely Rolnik propõe o termo processista para se diferenciar da ideia de progressista. Enquanto esta última está marcada pela ilusão de um mundo estável e pelo temor do imprevisível e do acaso, o termo processista refere-se a uma atitude política preocupada em tomar decisões disparadoras de processualidade, que viabilizem possibilidades de abertura para a criação de outros modos de existência e outras formas de organização social. A atitude progressista não considera o plano invisível dos afetos, enfatizando a conscientização.

[12] Instituição, no sentido utilizado pelo movimento da Análise Institucional, não é um objeto já dado, natural, é algo que se constrói no bojo das práticas sociais e históricas. Ao contrário da organização, a instituição é produção, é engendramento de forças que se naturalizam em formas organizadas e provisórias.