Da educação colonial ao ensino superior em África: o caso da Guiné-Bissau[i]
From colonial education to higher education in Africa: the case of Guinea-Bissau
De la educación colonial a la educación superior en África: el caso de Guinea-Bissau
Centro Universitário de Patos, Paraíba, Brasil
arnaldoarsu@gmail.com
Universidade Técnica de Moçambique, Maputo, Moçambique
labronicus@gmail.com
Recebido em 26 de outubro de 2022
Aprovado em 15 de janeiro de 2024
Publicado em 12 de junho de 2024
RESUMO
Este artigo verte sobre o surgimento do ensino superior no continente africano, tendo como caso de estudo a Guiné-Bissau. Partindo de uma introdução histórico-teórica, o texto analisa o projeto de educação colonial e o processo de construção da educação superior na Guiné-Bissau desde os primeiros anos de independência. Porém, o projeto nacionalista que acompanhava a concepção da educação, inclusive de tipo superior, desenvolvido ao longo da luta de libertação não se concretizou na fase socialista da Guiné-Bissau; assim, a sua implementação, entre incertezas e atrasos, foi feita em época neoliberal, o que favoreceu o escasso compromisso do Estado para com o desenvolvimento das universidades públicas, deixando que o privado tomasse conta, em larga medida, deste importante segmento da formação nacional. Em termos metodológicos, a pesquisa foi qualitativa, em que a coleta de dados foi feita mediante análise documental, bibliográfica e entrevistas semiestruturadas. A pesquisa demonstrou que o processo de formação do ensino superior na Guiné-Bissau foi decisivo para determinar a situação atual, em que o acesso à universidade continua sendo baseado, em larga medida, nas capacidades financeiras e não no mérito dos estudantes, com evidentes desequilíbrios territoriais entre Bissau e o resto do país.
Palavras-chave: Educação colonial; Ensino Público; Neoliberalismo.
ABSTRACT
This study is focused on the birth of higher education in Africa, having as its case-study Guinea-Bissau. Starting from a historical and theoretical base, the article analyses the project of colonial education as well as the process of higher education building in Guinea-Bissau, since the first moments of its independence. Nevertheless, the nationalist project which accompanied the conception of education, including higher education, was developed during the struggle for liberation and it was not possible to materialize it in the Socialist period of Guinea-Bissau; thus, its implementation, between uncertainties and delays, was carried out in the neoliberal period. This fact favoured the modest commitment of the State towards the development of public universities, leaving that the private sector prevailed in this important part of the national education. In methodological terms, the research was carried out through a qualitative approach; thus, data were collected through a documental and bibliographic analysis, complemented by semi-structured interviews. This study showed that the higher education building process in Guinea-Bissau was a decisive element to determine the current situation. As a matter of fact, the access to the university is still based, in a large extent, in the financial availability rather than in the effective merit of each student, with evident territorial imbalances between Bissau and the rest of the country.
Keywords: Colonial Education; Public School; Neoliberalism.
RESUMEN
Este artículo analiza la emergencia de la enseñanza superior en el continente africano, tomando Guinea-Bissau como caso de estudio. Partiendo de una introducción histórica y teórica, el texto analiza el proyecto educativo colonial y el proceso de construcción de la enseñanza superior en Guinea-Bissau desde los primeros años de independencia. Sin embargo, el proyecto nacionalista que acompañó la concepción de la educación, incluida la superior, desarrollada durante la lucha de liberación no se materializó durante la fase socialista de Guinea-Bissau; así, su implementación, entre incertidumbres y retrasos, tuvo lugar durante una era neoliberal, que favoreció la falta de compromiso del Estado con el desarrollo de las universidades públicas, dejando que el sector privado se hiciera cargo, en gran medida, de este importante segmento de la educación nacional. En términos metodológicos, la investigación fue cualitativa y los datos se recogieron mediante el análisis de documentos, bibliografía y entrevistas semiestructuradas. La investigación demostró que el proceso de configuración de la enseñanza superior en Guinea-Bissau fue decisivo para determinar la situación actual, en la que el acceso a la universidad sigue basándose en gran medida en las capacidades económicas de los estudiantes y no en sus méritos, con evidentes desequilibrios territoriales entre Bissau y el resto del país.
Palabras clave: Educación colonial; Educación pública; Neoliberalismo.
Introdução
A Guiné-Bissau é um dos países com grande riqueza cultural e econômica na África ocidental, no entanto, de acordo com o Relatório Nacional Voluntário aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2022) é também um dos países mais pobres do mundo. O estudo revela um desinvestimento persistente nas áreas sociais, com a pobreza a afetar 66,6% da população.
A colonização portuguesa na Guiné-Bissau estava centrada nos interesses econômicos e de exploração da mão-de-obra barata para agregar ganhos econômicos, tendo como base o trabalho obrigatório no interior do Estado Novo (Teixeira e Tavares, 2013). Com efeito, os Bissau-guineenses eram utilizados para construção de infraestruturas, agricultura e demais trabalhos pesados (Lopes, 1999), ao passo que os caboverdianos eram chamados em Bissau para desempenhar papéis de apoio ao colono. Em 1925, por exemplo, os caboverdianos constituíam 27% dos administradores locais na Guiné-Bissau. O sistema educacional também reproduzia a mesma lógica. Sucuma (2013) e Gomes (2010) concordam que este sistema colonial retrógrado negava aos guineenses o direito à cidadania e ao acesso à educação.
Por isso é que a institucionalização do ensino superior na Guiné-Bissau constitui um marco importante na história recente do país e do seu desenvolvimento, mas ao mesmo tempo um grande desafio do ponto de vista de sua manutenção em infraestruturas, condições de trabalho e de pesquisa para docentes e investigadores. A forma e o período em que o ensino superior foi instalado representam também elementos relevantes: uma fase histórica – entre final dos anos 1980 e início da década seguinte - caracterizada por uma adesão cega às políticas neoliberais ditadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e demais parceiros ocidentais. Nesta época, a incapacidade associada à falta de vontade política, por parte do governo, em criar uma instituição académica pública sólida resultou evidente; associado a uma instabilidade institucional permanente, tal postura fez com que na Guiné-Bissau o surgimento do ensino superior fosse incerto e ao mesmo tempo orientado para o setor privado, com consequências que se fazem sentir até hoje.
Partindo dessas premissas, o estudo aqui apresentado visa repercorrer as etapas legislativas, políticas e históricas que contribuíram à criação do ensino superior na Guiné-Bissau, assim como pretende destacar as limitações que – a partir desta génese – as universidades Bissau-guineenses continuam a encontrar ainda hoje.
O estudo foi levado a cabo mediante uma metodologia qualitativa, privilegiando uma abordagem histórico-política. A releitura da história recente do país, mediante o acesso a documentos produzidos por parte das instituições locais, complementada com entrevistas no terreno junto a testemunhas-chave permitiu termos uma ideia bastante clara do processo de formação do ensino superior na Guiné-Bissau. Em termos teóricos, um dilema apresentou-se no devir da pesquisa: a aposta na educação, inclusivamente de nível superior, representa um dos marcos de maior distinção entre o colonialismo português e o estado pós-colonial na Guiné-Bissau, inicialmente de matriz socialista. Entretanto, teorias relativas à formação do estado africano pós-colonial foram uma referência incontornável para uma melhor compreensão do nosso objeto de pesquisa, mas ao mesmo tempo elas colocavam-nos a questão do “modelo importado” da educação superior em África.
As universidades em África surgiram em tempos remotos, como demonstram, entre os vários exemplos, a Academia de Alexandria, entre o IV e o VII século d.C., a universidade de Al-Quarawiyyin em Fez (Marrocos) no ano de 859, ou de Al-Azhar no Cairo em 970 (Lulat, 2005). Entretanto, principalmente na África subsaariana, o marco colonial das primeiras universidades instaladas em época moderna acabou prevalecendo com relação às tradições mais antigas (Bussotti, 2022). Com o advento do colonialismo houve uma descontinuidade e uma desconexão entre o saber transmitido quer formal quer informalmente em África por parte de instituições e intelectuais africanos e as sociedades locais. Juntamente com uma administração colonial que substituiu-se às autoridades locais, marginalizadas ou cooptadas no novo sistema administrativo, o corte na transmissão do saber também foi radical. O eurocentrismo e o colonialismo tomaram conta do ensino a todos os níveis, incluindo os poucos exemplos de instituições académicas coloniais (Woldegiorgis e Doevenspeck, 2013).
No caso das colónias britânicas, o processo de instauração do ensino superior iniciou muito antes se comparado com os territórios sob domínio português; a governação colonial britânica (indirect rule) permitiu que territórios coloniais abrissem suas universidades, diferentemente daquilo que aconteceu em larga parte das colónias geridas mediante o direct rule, ou seja as francesas, belgas e portuguesas. Entretanto, mesmo no caso britânico o ensino superior serviu para acelerar o processo de adaptação dos africanos ao colonialismo, e pouco para compreender e propor soluções para questões sociais internas (Abrokwaa, 2017). No caso francês, o ensino superior devia promover a típica política assimilacionista; para fazer isto, os franceses preferiram enviar os poucos jovens africanos das suas colónias a estudar em universidades na França, e só no fim da sua experiência colonizadora é que iniciaram a construir instituições de ensino superior nos territórios africanos que dominavam. A Universidade de Dakar, por exemplo, foi fundada em 1957, mas ela era considerada como sendo a 18ª universidade francesa, com programas, docentes e objetivos análogos a qualquer outra universidade daquele país europeu (Lulat, 1963). Este modelo foi também seguido por Lisboa, como se verá mais a frente, e com ainda maiores limitações em comparação com a França (Woldegiorgis e Doevenspeck, 2013).
O marco colonial e colonizador não afetou apenas as estruturas sociais e econômicas africanas; ele incidiu também na formação das primeiras instituições académicas, independentemente do fato de estas terem sido constituídas na última fase do colonialismo ou nos primeiros anos das independências. Por isso é que o distanciamento entre universidades e sociedades africanas continua até hoje, com uma boa dose de eurocentrismo e neocolonialismo interno (Nguyen, Elliot, Terlouw e Pilot, 2009).
Os territórios lusófonos africanos viveram uma fase colonial prolongada, obtendo suas independências nos meados dos anos 1970, quando em Portugal terminou o regime autoritário liderado por longo tempo por Salazar e depois por Marcello Caetano. O modelo adotado por parte de Portugal a respeito da educação superior foi muito parecido com o francês: evitar a edificação de universidades nos territórios africanos dominados, e enviar os melhores estudantes para Lisboa. Esta opção devia permitir, em princípio, um controlo maior, assim como um grau mais elevado de assimilação da “portugalidade”, sustentada por teorias como o Lusotropicalismo (Costa Pinto, 2009). Apenas em dois territórios ultramarinos portugueses é que, na década de 1960, foram criadas instituições de ensino superior: no caso moçambicano foi fundada, em 1962, a atual Universidade Eduardo Mondlane, com a denominação de Estudos Gerais Universitários de Moçambique, e que em 1968 se transformou em Universidade de Lourenço Marques. Em Angola, no mesmo ano, foi instituído o Centro de Estudos Universitários em Luanda. Se é verdade que tais universidades eram uma mera reprodução do modelo colonial, quer quanto à sua organização, quer no que diz respeito aos seus conteúdos eurocêntricos (Meneses, 2016), é preciso, entretanto sublinhar a diferença com aquilo que ocorreu em todas as outras colónias africanas controladas por Lisboa: Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Em particular, na Guiné-Bissau o governo português nunca teve a ideia de implementar cursos de ensino superior. Mesmo dentro dos territórios coloniais, portanto, assinalavam-se diferenciações consideráveis a respeito da organização da educação, especialmente a de nível superior. Segundo a função da colónia, Lisboa determinava se e quanto devia-se investir na formação. Uma vez que a Guiné-Bissau (assim como São Tomé e Príncipe) eram colónias de mera produção e sobretudo de exploração de mão-de-obra barata, resultou desnecessário gastar fundos no ensino superior.
Com as independências, segundo defendem alguns autores africanos, a adoção do paradigma externo nas academias do continente (Ezeanya-Esiobu, 2019) foi quase que inevitável. Daqui resultou o dilema fundamental do surgimento do ensino superior em países como a Guiné-Bissau: um dilema que consiste na necessidade de este país ter autonomia na formação dos seus quadros superiores, tendo universidades nacionais e quebrando a dependência com as antigas colónias, mas ao mesmo tempo moldando-as consoante aquele paradigma “desenvolvimentista” exógeno e eurocêntrico que se pretendia combater. A configuração material desta contradição é exemplificada, na Guiné-Bissau, pelo ensino de direito, onde os cursos das várias universidades do país foram desenhados (e até assessorados) por instituições portuguesas (nomeadamente a Faculdade de Direito de Lisboa), reproduzindo, em larga medida, as grelhas curriculares da antiga colónia (Pereira, Prado e Santos, 2019).
O estudo aqui apresentado pretende, portanto, compulsar o surgimento do ensino superior na Guiné-Bissau tendo como seu elemento norteador principal o dilema acima referenciado, que consiste em três elementos históricos fundamentais: educação colonial, de tipo funcional ao projeto colonizador, educação pós-colonial e nacionalista do primeiro PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, fundado em 1956) e educação do segundo período pós-colonial, aderente ao paradigma eurocêntrico e desenvolvimentista dominante, segundo a perspectiva neoliberal.
O funcionalismo colonial diante da formação na Guiné-Bissau
Apesar de o descobrimento europeu do atual território da Guiné-Bissau ter acontecido no século XV (Bussotti, 2008), a colonização portuguesa ganhou corpo no final do século XIX, através da conferência de Berlim realizada pelas grandes potências imperialistas em 1884-85. Para Gomes (2010, p. 21), “a primeira fase, após a conferência de Berlim de 1884-85, aproximadamente entre 1897-1899, foi a de instalação das companhias concessionárias no território africano, [...] como advento do modo de produção colonial”.
Nos primeiros 50 anos de colonização efetiva, Portugal procurou demonstrar que o trabalho indígena que estava decorrendo nas suas colónias não era comparável com o de tipo escravagista, andando ao encontro às pressões internacionais ocidentais, da Grã-Bretanha em primeiro lugar. A ideia, portanto, era manter em situação de semiescravidão a população local, procurando demonstrar o contrário às outras potências ocidentais. Situação muito parecida se deu com São Tomé e Príncipe e as práticas do “desterro” de Moçambique e Angola até nos anos 1950 ou 1960, com modalidades que recordavam muito de perto o trabalho escravagista (Bussotti e Martins, 2019; Nascimento, 2002).
A presença colonial na Guiné portuguesa (assim chamava-se a Guiné-Bissau) limitava-se, até a terceira década do século XX, à ocupação das partes litorâneas, não sendo considerada como colónia de fixação (Teixeira e Tavares, 2013). Foi com o Estado Novo de Salazar, portanto a partir da década de 1930 que a Guiné-Bissau voltou a entrar no quadro geral da edificação da nação portuguesa, segundo quanto traçado pelo Ato Colonial de 1930 numa primeira fase, e depois pela nova Constituição Portuguesa de 1951, em que as colónias assumiram a nomenclatura de províncias ultramarinas. A ideia de uma nação única, culturalmente e economicamente integrada justificou a aprovação, em 1954, do Estatuto do Indigenato, em que o trabalho obrigatório se tornou elemento central para subjugar a mão-de-obra local aos interesses do Estado Novo, impondo aos autóctones trabalhos em todos os setores das obras públicas, principalmente no caso em que os guineenses não conseguissem pagar os impostos (Teixeira e Tavares, 2013). Tal regime perdurou até 1961, quando o ministro Moreira aboliu o Estatuto do Indígena.
Foi nesta fase final da colonização portuguesa que Salazar quis acentuar os laços mesmo de tipo comercial e econômico com as colónias, inclusive com a Guiné-Bissau. A Companhia União Favril concentrava o monopólio do comércio entre Portugal e Guiné-Bissau, com cerca de 90% dos tráficos em suas mãos, entre o final dos anos 1950 e o início de 1960 (Rudebeck, 1974). A Guiné-Bissau era um país, no fim da época colonial, quase que exclusivamente agrícola e extravertido, pois Portugal tinha imposto uma quase-monocultura de castanhas de caju destinada à exportação, em detrimento do cultivo de produtos essenciais para as populações locais (Rudebeck, 1974). Entretanto, as importações continuaram a aumentar ao longo dos anos 1960, diferentemente das exportações, tornando a balança dos pagamentos deficitária.
Tal era a estrutura econômica, juntamente com o monopólio político do governador enviado de Lisboa até 1963, quando foram introduzidos conselhos legislativos com a presença de alguns representantes locais, diferentemente de Angola e Moçambique, em que estes órgãos iniciaram a funcionar em 1953.
Uma vez que o único, verdadeiro interesse era explorar uma mão-de-obra barata e na prática sem direitos, que não precisava de nenhuma habilidade, nem de tipo técnico, Portugal limitou-se a fazer o mínimo indispensável, em termos de políticas educacionais: construiu uma escola de ensino básico em cada uma das províncias do país, inclusive no setor autônomo de Bissau; e apenas um liceu (escola do ensino médio) em Bissau, que se chamava Liceu Honório Barreto, que depois da independência foi rebatizado de Liceu Kwame Nkrumah; só havia uma única instituição de formação profissional que se chamava de Escola Técnica.
O currículo escolar que foi implementado nas colônias portuguesas em África tinha como objetivo facilitar o controlo cultural, político e econômico dos territórios colonizados, enfatizando disciplinas ligadas à governação colonial, tais como Geografia Colonial, Colonização, Etnologia e Etnografia Colonial, Administração Colonial, Agricultura Tropical, entre outras.
Para o entrevistado número 01(E – 01), que é uma especialista em educação:
Os colonos portugueses não fizeram investimentos que ajudaram a melhorar a vida do povo da Guiné-Bissau. As pequenas ações realizadas em termos de infraestrutura e no campo da educação eram para manter a funcionalidade da colonização. Criaram políticas que facilitaram a divisão étnica, como também a desvalorização das culturas locais (Entrevista realizada em Bissau, no dia 11 de julho de 2016).
A colonização portuguesa procurou utilizar diversos meios, tais como a Igreja católica, o uso da força bélica para impor os valores culturais e civilizatórios ocidentais à população da Guiné-Bissau, desvalorizando as modalidades informais e orais de transmissão do saber (Cá, 2000). Este processo foi implementado através de uma política de assimilação; entretanto, a colonização portuguesa não conseguiu efetivar a política de destribalização do país, pois as estruturas tribais continuaram a existir graças à resistência da população nativa.
Portanto, ao longo do processo de implementação da política de assimilação, o nível de educação que existia era básico, ou até inexistente. Na fala do E – 02, que é um dirigente político:
Acesso à educação de qualidade para a população da Guiné-Bissau nunca fez parte dos planos da colonização portuguesa. Havia mais a vontade de explorar economicamente o território guineense, associada a uma política de repressão hostil contra o povo da Guiné-Bissau, fato que contribuiu para o retrocesso econômico e político observado na antiga Guiné-Portuguesa comparado com outros territórios colonizados por Portugal em África (Entrevista realizada em Bissau, no dia 28 de julho de 2016).
Só no fim do período colonial alguns altos funcionários portugueses é que se aperceberam da necessidade da educação. Com efeito, para o então Governador da Província General António Sebastião Spínola, em seu discurso de 1970, a educação representava o elemento fundamental para o progresso da colónia:
Na fase conturbada de restauração que a África atravessa em busca da felicidade, em que necessariamente se integram os legítimos anseios de progresso do povo guineense, a educação da juventude constitui, sem dúvidas, o mais rentável investimento que um governo consciente pode realizar com a projeção ao futuro (BOLETIM CULTURAL DA GUINÉ PORTUGUESA, 1970, p. 147 – 148 apud SILVA, 2012).
No entanto, estas promessas, ou manifestações de boas intenções nunca se concretizaram. Foi necessária a fundação de um movimento local de libertação, o PAIGC, em 1956, para que o assunto da educação dos povos ainda sob o domínio português se tornasse conhecido publicamente, mesmo fora dos confins da lusofonia. Graças principalmente à figura de Amílcar Cabral, o PAIGC teve uma excelente projeção internacional. Por exemplo, nos anos de 1960 e 1970, o PAIGC realizou campanhas políticas pelo mundo, junto às Organizações das Nações Unidas/ONU, alguns países europeus (inclusive o Vaticano) e outros para pôr fim à colonização portuguesa. Por este fato, as pressões internacionais se intensificaram contra o governo colonial português, que tentou, mais uma vez, dar a ideia de um compromisso mais sério com relação a áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento humano daqueles territórios, a partir da educação. Foi graças ao ativismo do PAIGC que a Guiné-Bissau iniciou a conhecer uma primeira difusão da educação no seu território, embora ainda não se falasse de forma explícita de educação superior.
O PAIGC conseguiu realizar investimentos significativos na formação inicial de crianças com mais de 10 anos de idade e de adultos nas áreas libertadas do sul e norte da Guiné-Bissau. Entre 1963 e 1973, o PAIGC formou 497 profissionais entre o curso técnico e superior. Esses formandos eram militantes e futuros gestores políticos. Conforme cita Freire (1978, p. 22-23),
Em 10 anos o PAIGC formou muito mais quadros que o colonialismo em 5 séculos ‘Em 10 anos, de 1963 a 1973, foram formados os seguintes quadros do PAIGC: 36 com o curso superior, 46 com o curso técnico médio, 241 com cursos profissionais e de especialização e 174 quadros políticos e sindicais. Em contrapartida, desde 1471 até 1961, apenas se formaram 14 guineenses com curso superior e 11 ao nível do ensino técnico’.
Embora ainda não formalmente, o PAIGC, liderado por Amílcar Cabral, já nesta época de luta pela independência sentiu a necessidade de formar técnicos superiores, indo além do simples nível básico de formação para os seus cidadãos. A instituição de ensino superior ainda não existia, mas a ideia de uma autonomia mesmo para este nível de ensino já estava presente nas preocupações do PAIGC. Como costumava fazer na altura da sua luta independentista, no caso da educação também este movimento deu a conhecer as condições lastimáveis em que o povo Bissau-guineense era deixado por parte do colonizador português: Amílcar Cabral, em Londres em 1971, denunciou que na Guiné-Bissau, até 1959 não existiam escolas secundárias, e o total de escolas no território não passava o número de 45. Tratava-se em larga prevalência de escolas católicas, onde estudavam cerca de 2000 estudantes; quanto aos médicos, eles eram 18, com uma taxa de mortalidade infantil, em algumas regiões, que chegava a 80% (Instituto Tricontinental, 2022).
Educação e criação do ensino superior na Guiné-Bissau independente
A aposta na educação, inclusive superior, foi considerada como sendo estratégica na Guiné-Bissau independente e assumiu de imediato uma matriz fortemente anticolonialista e nacionalista. Porém, ela acabou não se concretizando, e este elemento foi decisivo para determinar as características essenciais do ensino superior no país.
Na primeira fase política do país, que vai de 1973 a 1980, o primeiro Presidente da República foi Luís Cabral, meio-irmão do Amílcar Cabral, assassinado em Conakry em 1973, pouco antes da proclamação da independência. Durante a presidência de Luís Cabral, o governo da Guiné-Bissau iniciou um processo de progresso econômico, focado nas indústrias de base de pequeno porte.
O novo governo estava com muitas dúvidas, quanto à forma de implementação e expansão do sistema de ensino. Na verdade, havia dois sistemas paralelos, ambos formais: um, herdado do colonialismo português, que atingia um número muito baixo de pessoas e que estava desajustado à nova realidade, pois era funcional ao modelo econômico e social colonialista; e outro levado avante, como dito acima, pelo PAIGC nas zonas libertadas (Té, 2017).
O PAIGC propunha um projeto de sociedade finalizado à emancipação política e econômica do país. Neste projeto, a educação possuía a função de libertação, erradicação do analfabetismo, autonomia política e econômica. Este programa visava superar a visão instrumental da educação, negando assim o projeto educacional e de sociedade colonial. Entretanto, o programa do PAIGC, apesar das suas boas intenções, não se constituiu em um projeto estruturante, por conta da dependência econômica do país no plano bilateral e multilateral. Mas também pela ausência de políticas públicas eficientes voltadas para o setor da educação a fim de garantir materiais didáticos aos alunos e colmatar problemas de pagamento de salário de professores que já resultou em várias greves, e constitui ainda um desafio presente, bem como os relativos às infraestruturas nas escolas.
No geral, o governo deixou inalteradas as disciplinas das ciências exatas segundo o modelo português, aportando modificações significativas nas humanas, tais como geografia, história, língua portuguesa (Cá, 2005). Esta opção revela o dilema paradigmático inicialmente ilustrado neste artigo: apesar da boa vontade dos governantes, as populações locais ficaram distantes do modelo de ensino proporcionado, ainda muito próximo ao de tipo colonial, a partir do uso do português como língua exclusiva do sistema escolar. Foi assim que, em 1978, depois do terceiro congresso do PAIGC em 1977, foi chamado Paulo Freire para conseguir melhorar o sistema de ensino, aproximando-o aos anseios dos jovens guineenses e à sua realidade local. Paulo Freire foi um grande estimador do projeto de Amílcar Cabral e dos seus sequazes. A Guiné-Bissau tinha cerca de 90% da sua população analfabeta, na altura da independência, e Freire procurou desassociar o plano para uma educação local ao modo de produção colonialista, que devia ser radicalmente transformado. Descolonização, portanto, rimava com educação, num processo inverso com relação ao que o colonialismo português tinha feito (Pereira e Vittoria, 2012).
O resultado foi, logo depois da obtenção da independência, a criação da Escola Nacional de Enfermagem (ENE) em 1974. Em seguida, em 1978, o Ministério da Educação criou a Escola de Formação de Professores para o ensino primário e em 1979 a Escola Normal Superior “Tchico Té”, com vocação de formar professores de nível básico e secundário. Em 1979, o Ministério da Justiça criou a Escola Superior de Direito (ESD), no âmbito de uma parceria entre Guiné-Bissau e Portugal, que foi posteriormente transformada em Faculdade de Direito de Bissau (FDB) em 1990 e cuja primeira graduação de 11 estudantes aconteceu no ano letivo de 1993/94. Ainda neste período, o dilema sobre o tipo de formação (neste caso jurídica) dos quadros nacionais não tinha sido resolvido, propondo um ensino que reproduzia, em larga medida, o do antigo colono, Portugal. Outras escolas superiores de tipo técnico foram criadas, entre as quais a CEFAG (Formação Agrícola). Foi também construído um liceu em cada província e várias escolas do ensino. Estes acontecimentos foram sinalizados na fala do E – 01:
A educação básica e a formação profissional sempre foram prioridade do PAIGC e seus dirigentes políticos. Entendíamos que era preciso apostar nestas fases de ensino a fim de promover o desenvolvimento da Guiné-Bissau, Cabral sempre falou na aposta em educação, em benefício da sociedade (Entrevista realizada pelo autor, em Bissau, nos dias 11 de julho e 28 de julho de 2016).
A segunda fase política vai entre 1980 e 1993, e pode ser subdividida, por seu turno, em dois subperíodos, tendo o ano de 1986 como o divisor de águas. Em 1980 Nino Vieira, com seu golpe de estado contra Luís Cabral, dá início a uma nova fase na política Bissau-guineense. A grande parte da elite teve uma participação ativa no processo de constante desestabilização do país, numa aliança com os militares. Com o golpe de Nino Vieira, as dificuldades gerais e no setor da educação se multiplicaram. Os dados confirmam esta estagnação no âmbito educacional: em meados dos anos 1980 o tempo médio para que um estudante terminasse o ensino secundário, era de 16,6 anos, e apenas 2% dos docentes do ensino básico era profissionalizado (Cá, 2005). Com o golpe de 7 de junho de 1998 a situação política precipitou, com consequências nefastas para o setor da educação também (Silva e Prado, 2019). Assim, a educação também fez parte do pacote de inspiração neoliberal ditado pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. O resultado da adoção desta filosofia de intervenção na educação – que pode ser resumida no programa da “Educação para todos” – levou a um incremento significativo no número de pessoas escolarizadas, mas ainda com uma baixa qualidade geral do ensino, desde as infraestruturas escolares e até a formação dos professores e aos próprios materiais didáticos (Mendes, 2019). Tal resultado foi a consequência natural de um recuo do estado do setor da educação, em prol da intervenção de sujeitos externos, numa primeira fase ONGs internacionais, depois entidades privadas. Esta situação deve ser enquadrada no seio de uma fraqueza estrutural do setor da educação na Guiné-Bissau; apesar disso, o estado, nos seus anos melhores, chegou a investir apenas 13% do seu orçamento na educação, ao passo que outros países africanos, tais como Mali, Uganda e Gana, com necessidades até menores do que a Guiné-Bissau, destinam mais de 30% a este setor estratégico para o desenvolvimento da sociedade (Barri, 2021).
Foi justamente neste período de transição que teve início a criação de algumas faculdades dispersas, sem, entretanto, fundar uma verdadeira universidade. Em 1984, foi criado o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) com a finalidade de promover estudos e pesquisas nas áreas de ciências sociais humanas e naturais. Em termos bibliográficos, o instituto conta com uma biblioteca pública (Guiné-Bissau, 2000, p. 04-07).
Em 1986, o Ministério da Saúde criou a Faculdade de Medicina (FM) no âmbito de uma cooperação entre a Guiné-Bissau e Cuba. O corpo docente era assegurado pelo governo de Cuba, e o governo da Holanda financiava o deslocamento e os subsídios dos professores. A OMS (Organização Mundial da Saúde) assumiu o fornecimento de equipamentos e bolsas de estudo para os estudantes.
Nos finais dos anos 80, a Escola Técnica criada pela administração portuguesa começou a ser desativada, em um processo que só terminou com o conflito político-militar de 07 de junho de 1998. Neste período, o país começou a enfrentar uma crise econômica, que inicialmente afetou o principal parceiro político e econômico daquela altura, a antiga União Soviética.
A terceira fase política do país abriu-se devido às pressões populares e das ONGs e à situação internacional mudada. Tais fatores obrigaram o Presidente João Bernardo Vieira e o PAIGC a fazerem mudanças no estatuto do partido e na Constituição. Isso permitiu o surgimento de novos partidos e, a partir de 1991, o país entrou no processo de multipartidarismo. O Ministério da Educação procurou inserir cada vez mais as suas estratégias dentro de um quadro internacional predefinido. A partir da Conferência Internacional de Educação para Todos, na Tailândia, o Ministério da Educação elaborou vários planos de ação, que culminaram, em 1999, com a Lei de Bases do Sistema Educativo Guineense. A melhor definição de políticas educacionais comuns entre os diferentes atores (Estado, ONGs, parceiros internacionais) levou a resultados satisfatórios: o número de alunos cresceu, com uma taxa de escolarização no ensino básico que passou de 42% em 1992-93 para 61% em 1997-98 (Té, 2017). O outro corte importante na história política e educativa do país foi o conflito civil de 1998-99. Em 11 meses cerca de 80% das infraestruturas econômicas e sociais foram destruídas, incluindo as de tipo educacional.
Foi neste contexto que o país avançou com as primeiras formas de ensino superior, caracterizadas por uma ação não sistemática do governo, assim como para a intervenção de sujeitos privados, principalmente estrangeiros.
A Institucionalização neoliberal das universidades e a sua trajetória na Guiné-Bissau
A institucionalização das universidades e sua trajetória na Guiné-Bissau deve ser enquadrada numa fase considerada importante na história do país, que se concretizou com a constituição embrionária do Terceiro Projeto de Sociedade na Guiné-Bissau.
Este terceiro projeto teve como base o contexto sociopolítico e econômico vivenciado nos anos 80, e o projeto ganhou corpo efetivamente nas duas décadas seguintes. Tratava-se duma época em que FMI e BM investiram em muitos projetos de desenvolvimento na Guiné-Bissau, moldando o paradigma social, além de econômico, do país. Uma primeira reflexão sobre a instituição de uma Universidade na Guiné foi iniciada entre 1980 e 1990 por Carlos Lopes, ex-Diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP).
Nos anos 90, as autoridades políticas da Guiné-Bissau começaram a reconhecer a necessidade de valorizar as capacidades nacionais no âmbito da formação. Tal convicção passava pela criação de uma capacidade nacional de formação e investigação, inserção de assistência técnica e valorização dos recursos humanos. O próprio Ministério da Educação incluiu no seu Plano-Quadro Nacional “Educação para o Desenvolvimento Humano” no país o ensino superior, a pesquisa e o desenvolvimento, deixando de priorizar a formação no exterior como alternativa, sem, no entanto, oficializar a instituição de uma universidade. A estrutura deste projeto se insere na criação de uma federação das instituições universitárias e para-universitárias existentes no país. Daí nasceu a proposta da Universidade de Bissau (UNIBIS), quando em 1997 foi celebrado um protocolo de intenção entre o Ministério da Educação e a Cooperativa de Ensino Universidade Lusíada, prevendo a instalação da Lusíada em Bissau. Com a queda do governo de Manuel Saturnino Costa, o projeto foi paralisado (GUINÉ-BISSAU, 2000, p. 2, 7).
Segundo Semedo:
Em 1997 foi retomada a negociação do projeto que não deu certo devido o conflito político-militar de 07 de junho de 1998. Outro aspecto que contribuiu no fracasso deste projeto estava também nas preferências de vários membros que participavam no processo em que alguns queriam a criação da Universidade Lusíada para substituir a UNIBIS defendida por alguns e outros defendiam a Lusófona posteriormente em 1999 na época em que Galde Baldé era Ministro da Educação (entrevista realizada em 14 de junho de 2012, Bissau) (Semedo 2012 apud Sucuma, 2013).
Em 1999 por intermédio do Governo da Unidade Nacional (GUN) foi criada a Universidade Lusófona Amílcar Cabral (ULAC) em parceria com a Universidade Lusófona, que é uma universidade privada com sede principal em Lisboa, conforme consta no estudo de viabilidade (Guiné-Bissau, 2000).
Não obstante, apesar dos passos feitos, outros desafios representavam um entrave significativo à instituição da primeira universidade no país, tais como uma lei de ensino superior, o estatuto de carreira docente para as universidades etc. Ou seja, a UAC começou a funcionar sem aprovação destes instrumentos normativos fundamentais.
Duma forma bastante repentina e ainda não muito transparente, o acordo entre o Governo da Guiné-Bissau e o Grupo Lusófona chegou ao fim, e o próprio Grupo Lusófona negociou com o Governo para o aluguel da infraestrutura onde funcionava a UAC. Hoje, a ULG funciona nas instalações construídas pelo Grupo Lusófona na cidade de Bissau. Isto significou a cedência de todos os direitos institucionais daquela universidade em formação a um sujeito privado, levantando polémicas e suspeitas, a partir dos docentes chamados para lecionar. Os professores nacionais foram em larga medida dispensados, e docentes portugueses foram contratados, dando uma “excelente oportunidade para muitos profissionais ‘de lá’, sem oportunidades no próprio país” (Augel, 2009, p. 152). Esta cedência para o privado do único projeto académico de largo espetro no país deve ser enquadrada no clima político e econômico daquela fase histórica: adesão aos princípios neoliberais, que se traduzem com o desmantelamento do setor público no ensino superior e na preferência para o privado. Fato que determina a desvalorização de recursos intelectuais internos em prol da importação de mão-de-obra académica estrangeira. Alguém tem definido este esquema como de “autocolonialismo” (Augel, 2009, p. 153).
Foi a partir desta derrota que o ensino superior Bissau-Guineense foi moldado nos anos mais recentes. Acima de tudo, o ensino privado acabou prevalecendo no ensino público; em segundo lugar, boa parte dos docentes foram chamados de fora; e finalmente os currícula de várias universidades também reproduziram, em larga medida, os presentes nas academias ocidentais, principalmente portuguesas. Em suma, as bases da universidade Bissau-Guineense foram ao mesmo tempo neoliberais e neocoloniais, numa mistura que deixou poucas oportunidades para que houvesse uma efetiva integração entre academia e sociedade local. E o Estado afastou-se constantemente das suas responsabilidades para construir uma universidade pública digna deste nome. Por vezes, este afastamento foi justificado pelo fato de, na Guiné-Bissau, não ter um número suficiente de docentes com formação superior adequada para lecionar nas universidades, portanto com mestrado e doutorado. Entretanto, universidades privadas abriram, inclusivamente oferecendo cursos de pós-graduação em vários domínios.
Tais afirmações são corroboradas por dados oficiais. No ano letivo de 2007/2008 havia 11 estabelecimentos universitários. A taxa de acesso ao ensino superior era de 4,8%, o número de estudantes/100.000 habitantes de 351, a taxa de inscrição de estudantes de 33,3% (Ministério da Educação – DGEPASE, 2009). Números, como é evidente, extremamente baixos, que indicam a reprodução das elites urbanas no acesso ao mundo académico, perdendo de vista qualquer forma de reequilíbrio e de inclusão social.
Apesar disso, a opinião de alguns dos nossos entrevistados não é negativa. Segundo o E - 02, que é um professor universitário:
A universidade é um fato muito recente na Guiné-Bissau, porém necessário e importante. Antes só tinham escolas de formação superior e técnica (Entrevista realizada pelo autor, em Bissau, no dia 01 de agosto de 2016).
Segundo Monteiro (2010, p. 365):
A formação de quadros ocupou sempre um lugar central nas preocupações do Estado da Guiné-Bissau, enquanto legado da luta de libertação nacional e do pensamento do seu líder, Amílcar Cabral.
Entretanto, apesar da evocação do pai da pátria, muito pouco ficou daqueles ideais aquando da fundação do sistema universitário Bissau-Guineense, fora de uma retórica nacionalista que não encontra sustentação na realidade dos fatos.
A universidade Bissau-Guineense hoje
Tentou-se acima demonstrar as dificuldades e os caminhos tortuosos para implementar um sistema académico público harmônico e coerente na Guiné-Bissau. Aparentemente, a lacuna principal foi no investimento, na realidade houve ausência de vontade política por parte quer da comunidade internacional, quer da elite no poder para implementar um sistema de ensino superior digno deste nome e acessível a todos os que gostariam entrar com base no mérito e não nas capacidades financeiras. Hoje, a Guiné-Bissau só conta com uma universidade pública, a Amílcar Cabral, cujo projeto, porém, está muito aquém do planejado. Com efeito, esta universidade devia federar várias faculdades dispersas que, com o tempo, tinham sido fundadas, desde a Faculdade de Direito até a Escola Nacional de Administração, de Medicina e outras. Entretanto, tal processo nunca se deu, e até hoje o posicionamento institucional e o relativo funcionamento da Universidade Amílcar Cabral e das suas (supostas) faculdades é incerto e questionável.
Além disso, se o projeto inicial relativo ao ensino superior estava centrado na sua difusão em todo o território nacional, aqui também houve constrangimentos ainda não ultrapassados: a oferta académica está quase que completamente concentrada em Bissau e, segundo um relatório recente, ela não responde aos anseios de desenvolvimento presentes no país. Com efeito, consoante o “Estudo Diagnóstico da Educação Superior e Investigação Científica: Oportunidades e Recomendações” da autoria da Fundação Fé e Cooperação e financiado pela União Europeia, publicado em 2022, 55% das instituições de ensino superior estão concentradas na capital e arredores, e a região de Tombali não tem nenhum estabelecimento universitário. Se este cenário provoca dificuldades enormes para quem vive fora de Bissau, os dados sobre os matriculados revelam, porém, a grande procura de ensino superior no país, com 17.025 inscritos, número que supera a previsão de que só em 2025 a população estudantil académica teria ultrapassado as 15.000 unidades (LUSA, 2022). A privatização do ensino superior trouxe, como sua consequência lógica, o excesso de ofertas de cursos “de papel e lápis”, ou seja, apenas teóricos. Somente 11% dos cursos académico no país são de tipo científico e tecnológico, o que representa um entrave enorme para a sociedade Bissau-Guineense, que deve recorrer a pessoal estrangeiro para colmatar as lacunas nestes setores profissionais fundamentais (LUSA, 2022).
Conclusões
O dilema inicial que a classe política Bissau-Guineense tinha na sua frente na altura de independência – a opção filo-colonialista versus a opção nacionalista – foi superada apenas do ponto de vista teórico. A situação política constantemente instável, o fraco investimento na educação superior, a escolha política que privilegiou a privatização académica trouxeram outro dilema, ainda não resolvido: o entre um pós-colonialismo à procura de autonomia e identidade nacional e outro subjugado aos programas de inspiração neoliberal e de privatização. Por enquanto, a classe política Bissau-Guineense optou por esta segunda escolha, independentemente da cor partidária dos governos que se sucederam no poder.
Assim, se a educação colonial não fez investimentos relevantes no país, devido às condições históricas explicadas no início, o PAIGC conseguiu, inicialmente, colmatar em parte esta lacuna, até chegar à institucionalização do ensino superior.
A presença de universidades na Guiné-Bissau representa uma fase importante na história do país, apesar de baixo investimento, condições precárias de trabalho para docentes e ausência de políticas de assistência estudantil. Entretanto, o contexto em que isso ocorreu e a forma de implementação deste ambicioso projeto colocaram em forte risco os objetivos iniciais, a saber: garantir a instrução académica a todos os cidadãos em pé de igualdade, o equilíbrio na distribuição territorial das várias universidades, a contribuição das universidades ao desenvolvimento do país. Pelo contrário, é possível dizer que hoje nenhum destes objetivos tem sido alcançado, devido às modalidades de implementação deste importante projeto.
Os esforços para fortalecer uma agenda realmente nacional deveriam enveredar por um caminho em que a educação superior, o desenvolvimento e o combate à pobreza estão no centro de debate entre os atores políticos e da sociedade civil. Infelizmente, os DENARPS I e II não conseguiram atingir seus objetivos, e a própria política académica resultou afetada por causa disso, continuando numa situação de limbo, entre grandes expectativas e enormes desafios.
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Notas
[i] Esta pesquisa foi levada a cabo inteiramente no território da Guiné-Bissau. Ela contemplou algumas entrevistas com informantes-chave, que foram previamente informados da natureza científica da entrevista e pediram que se mantivesse o anonimato. Os autores respeitaram o desejo expresso pelos entrevistados, codificando as suas identidades, segundo a normal praxe da ética em trabalhos científicos.