Da noite para o dia: escolas exclusivas de Educação de Jovens e Adultos entre o direito e a oferta
It happened overnight: exclusive schools for Youth and Adult Education between the right and the supply
De la noche al día: escuelas exclusivas de educación de jóvenes y adultos entre la ley y la oferta
Fernanda
Aparecida Oliveira Rodrigues Silva
Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil
fernandasilva@ufop.edu.br
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
leonciogsoares@gmail.com
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
mcpierro@usp.br
Recebido em 18 de setembro de 2022
Aprovado em 27 de outubro de 2022
Publicado em 03 de julho de 2025
RESUMO
Este estudo examina o provimento do direito no que diz respeito à escolarização básica da população com 15 anos ou mais de idade, expresso nas formas de atendimento que os governos subnacionais adotam. A literatura aponta que a educação escolar para todos/as, mesmo inscrita entre os direitos sociais e legalmente protegida no Brasil, não atende adequadamente a demanda dessa população na Educação de Jovens e Adultos. A interpretação dos dados permite concluir que há no território duas tendências pedagógicas aplicadas pelos governos subnacionais denominadas escolas com EJA e escolas de ou exclusivas de EJA quando examinada a oferta nas capitais. O enfoque principal foi nas escolas exclusivas comparadas a partir das variáveis dependência administrativa e matrículas absorvidas e permite inferir que as instituições estaduais se diferenciam quantitativa e qualitativamente das municipais. Constatou-se que o sistema estadual tende a matricular elevado número de estudantes, o qual é possível ser atendido por meio de um modelo flexível, tendendo aos estudos autodidatas em centros especializados de fluxo contínuo. As escolas municipais recepcionam uma quantia modesta de estudantes e tendem a promover matrizes com maior autonomia nas escolhas dos tempos e dos espaços educativos. Conclui-se que a diminuição das desigualdades educacionais no país continua um desafio do tempo presente, que as escolas exclusivas municipais têm o potencial de adequar às especificidades de públicos amplos e, portanto, essa tendência de atendimento poderia ser mais encorajada.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Escola de EJA; Especificidade; Desigualdades Educacionais; Modelos de Atendimento.
ABSTRACT
This study examines the provision of the right towards basic schooling for the population of 15 years old and over, expressed in the types of service adopted by subnational governments. The literature points out that the schooling for all, even being regarded among social rights and legally protected in Brazil, fails to absorb the demand of the population in Youth and Adult Education (YAE). The interpretation of the data evinces that, in the territory, there are two pedagogical inclinations applied by subnational governments called schools with YAE and schools exclusively for YAE when examining the offer in the capitals. The main focus was on the exclusive schools, which were compared based on the variables "administrative dependence" and "enrollments absorbed", and it allowed the assumption that state institutions differ quantitatively and qualitatively from municipal institutions. It was found that the state system tends to admit a high number of students, which could be served through a flexible model, tending to autodidact studies at specialized centers of continuous flow. Municipal schools receive a modest number of students and tend to promote matrices with greater autonomy in the choice of shifts and educational spaces. It is concluded that, at the present time, the reduction of educational inequalities in the country remains a challenge, that exclusive municipal schools have the potential to adapt into the specificities of wide-ranging audiences and, therefore, this service tendency could be more encouraged.
Keywords: Youth and Adult Education; School for YAE; Specificity; Educational Inequalities; Service Models.
RESUMEN
Este estudio examina la prestación del derecho a la escolaridad básica para la población de 15 años y más, expresada en las formas de asistencia adoptadas por los gobiernos subnacionales. La literatura muestra que la educación escolar para todos, a pesar de estar incluida entre los derechos sociales y legalmente protegida en Brasil, no atiende adecuadamente la demanda de esa población en la Educación de Jóvenes y Adultos. La interpretación de los datos permite concluir que existen dos tendencias pedagógicas en el territorio aplicadas por los gobiernos subnacionales, denominadas escuelas con EPJA y escuelas con EPJA o exclusivas de EPJA al examinar la oferta en las capitales. El foco principal fueron las escuelas exclusivas, que se compararon utilizando las variables dependencia administrativa y matrícula absorbida, y permite inferir que las instituciones estatales difieren cuantitativa y cualitativamente de las municipales. Se constató que el sistema estatal tiende a matricular un gran número de alumnos, que pueden ser atendidos mediante un modelo flexible, tendiente al autoaprendizaje en centros especializados de flujo contínuo. Las escuelas municipales reciben un número modesto de alumnos y tienden a promover matrices con mayor autonomía en la elección de tiempos y espacios educativos. La conclusión es que la reducción de las desigualdades educativas en el país sigue siendo un desafío del momento, y que las escuelas municipales exclusivas tienen potencial para adaptarse a las especificidades de públicos amplios y, por lo tanto, se podría seguir fomentando esta tendencia de asistencia.
Palabras clave: Educación de Jóvenes y Adultos; Escuela EJA; Especificidad; Desigualdades Educativas; Modelos de Asistencia.
Introdução
As considerações desenvolvidas neste texto advêm de resultados da investigação intitulada “Instituições escolares públicas exclusivas da Educação de Jovens e Adultos e suas especificidades: entre regulação e emancipação”[i], que examinou sob diferentes aspectos quatro escolas públicas dedicadas somente ao trabalho com jovens, adultos e idosos. O ângulo de análise deste artigo centra-se em duas tendências de atendimento educacional. Se o direito à educação escolar dessa população está assegurado na legislação brasileira, devendo ser usufruído na modalidade educação de jovens e adultos (EJA) na escola pública, por que investigar configurações de oferta?
Enquanto direito garantido, a EJA impele os governos subnacionais a assumi-la entre suas competências desde 1996[ii]. A literatura disponível sobre atendimento da EJA nas esferas públicas (Beisiegel, 2004; Di Pierro, 1996; Haddad, 2007 e demais) coincide com a afirmativa de que o poder local, mesmo em colaboração com seu governo estadual, agrega de forma reduzida a EJA ao seu sistema de ensino, haja visto o número potencial da população a ser coberto. Esperava-se que os municípios, a partir da prerrogativa de constituírem sistemas próprios de ensino outorgada pela Constituição Federal (1988) e pela LDB 9.394/1996, pudessem ampliar sua capacidade de oferta resguardando as características da educação de jovens e adultos reafirmadas no Parecer 11/2000 (BRASIL, 2000). Contraditoriamente, o atendimento tem sido instável, predominando o declínio das matrículas em todo o território (Haddad; Di Pierro, 2015; Catelli; Serrão, 2014; Ventura; Oliveira, 2021) acompanhado do fechamento de unidades pela via da nucleação escolar (Silva; Soares, 2021).
Resulta daí o interesse pelas tendências pedagógicas sustentadoras do direito à educação escolar dos públicos da EJA que, por sua vez, podem propiciar a redução das desigualdades educacionais no país. Tendo em conta que a questão é multifatorial, parte-se da premissa de que o modo como os governos subnacionais recepcionam a EJA nos sistemas públicos de ensino revela determinada compreensão sobre a garantia do direito escolar dos estudantes. Estudantes esses incomuns, com trajetórias de vida e interesses pela escolarização diferenciados que, portanto, os tempos, lugares e os modos de estudos que lhes são propostos podem efetivar - ou não - seu direito à escolarização (Freire, 2003; Arroyo, 2006; Oliveira, 1999). Claro está, então, que o trabalho na EJA se afirma nas características do próprio público (Ribeiro, 1999; Freire, 2005; Schmelkes, 2008; Soares; Soares, 2014; (Silva; Soares, 2021).
O que se percebe é que as matrizes se concentram em praticamente dois modelos, sendo um aquele em que o estudante da EJA é um entre os demais grupos atendidos pela escola e o outro, em que ele é o grupo principal. Tais desenhos podem ser resumidos em escolas com EJA e escolas de EJA, respectivamente. Para o exame quantitativo das duas tipologias de escolas selecionaram-se as capitais brasileiras comparando as variáveis número de matrículas e dependência administrativa e, no qualitativo elegeu-se as escolas de EJA, ou exclusivas de EJA, para aprofundamento. O corte justifica-se por lançar luz a um setor do atendimento pouco explorado, compreender que distinções estão presentes entre municípios e estados e, por identificar na literatura que as escolas de EJA flexibilizam-se com vistas a alcançar as especificidades[iii] de seus estudantes (Di Pierro, 2017; Kuhn, 2018).
No desenvolvimento deste artigo, o exame da oferta de EJA em escolas exclusivas se entrecruza com as características dos sujeitos como uma maneira de interrogar o direito à educação escolar. Com isso, cabe perguntar qual a possível relação entre o direito constitucional, o tipo de oportunidades educacionais e a dependência administrativa.
Direito constitucional à EJA e provimento de oportunidades educacionais
A educação conclamada ao final do século passado em normativas e regulamentos estabelece-se entre os direitos humanos fundamentais sob amplo regime jurídico de proteção, portanto, suficiente para não ser tratada como privilégio, caridade ou generosidade estatal. Sabe-se de Norberto Bobbio (2004, p. 9) que os direitos “não nascem todos de uma vez”, de Hannah Arendt que estão em permanente construção e reconstrução (2000) e de Herrera Flores (2009) que devem ser compreendidos como processos de luta.
Então, para proteger o direito à educação é necessário antes reconhecê-lo entre os maiores desafios do século XXI que se iniciou com 1 bilhão de analfabetos adultos no mundo, dos quais ⅔ são mulheres (Piovesan, 2009). No território brasileiro, a não universalização da educação entre pessoas com 25 anos ou mais, relativos à Educação de Jovens e Adultos, se expressa no patamar de 33,1 % da população sem o Ensino Fundamental completo (IBGE, 2023).
Consoante à constitucionalidade dos direitos, Katarina Tomasevski afere que “uma consequência da simetria da lei é que não poderia haver direito à educação sem as correspondentes obrigações governamentais”[iv] (Tomasevski, 2001, p. 13). A educação não só é comumente compreendida como sinônimo de escolarização, de padronização, apesar de se expressar em “formas múltiplas” (McCowan, 2015, p. 27). A EJA constitui-se de uma variedade de ações formais e não formais. No campo formal, cabem aos governos estaduais e municipais prover cursos e exames gratuitos ao público da EJA. Isso significa mobilizar potenciais estudantes, garantir atendimento, permanência, professores habilitados, políticas de assistência estudantil (alimentação, transporte, material didático), currículos e metodologias apropriados com padrões mínimos de qualidade dentro do sistema público de ensino.
Via divisão de competências federativas, estimulada pela CF 1988 e pela LDB 9.394/96, governos subnacionais, entes autônomos, passam a ter responsabilidade compartilhada pela oferta de ensino fundamental (Di Pierro, 2015). Ações contraditórias do poder legislativo de 1997 a 2006 desestimulam investimentos dos estados e municípios na modalidade, como por exemplo, a tendência de municipalização do Ensino Fundamental e a Emenda Constitucional nº 14 de 1996 (FUNDEF). Esta última suprimiu as matrículas de EJA do cálculo[v] do fundo. Que o financiamento era a peça basilar para a consolidação da educação de jovens e adultos na educação básica do país, não havia dúvidas. Portanto, tornou-se desfavorável a muitos municípios absorverem a alfabetização e a pós-alfabetização de jovens e adultos dentre seus serviços educacionais.
O período marcado pela descentralização e redistribuição de responsabilidades veria a inevitável desigualdade federativa na organização do sistema educacional em função das assimetrias econômicas dos entes federados (Oliveira; Souza, 2010). A União seria o contrapeso na redução das disparidades, exercendo os papéis supletivo e redistributivo[vi]. A partir da Fundação Educar, extinta no governo Collor de Mello em 1990, o poder central assume as funções de indução, colaboração técnica e financeira. Políticas indutoras, com transferências por adesão, criadas e controladas pela União chegaram na EJA com a criação do Programa Recomeço[vii] visando minorar o impacto da perda do Fundef. Mesmo sendo uma medida compensatória de transferência de recursos a estados e municípios, preferencialmente do Norte e do Nordeste, o Recomeço viabilizou a oferta de EJA presencial (Di Pierro, 2008).
A mudança de FUNDEF para FUNDEB[viii] altera discretamente, quantitativa e qualitativamente, o compromisso dos governos subnacionais para com o atendimento à educação de jovens e adultos. A questão pode estar ligada ao fato de o fator de ponderação da EJA ser o menor da educação básica; a atenção compulsória na educação de crianças e adolescentes com oscilação na agenda própria de prioridade dos gastos pelos estados e municípios; a imposição de um limite de gastos com o setor; a baixa efetividade de colaboração entre União, estado e municípios[ix]. Logo, se de um lado o governo municipal sozinho ou em colaboração com o estado e a União, não tem conseguido cobrir a demanda de EJA (Haddad, 2007), de outro, é no poder local que residem relativa independência organizativa do sistema para desenhos próprios e margem de flexibilidade na organização dos serviços educacionais.
O provimento da EJA no sistema público de ensino tem acontecido, comumente, em escolas de ensino comum, no horário noturno, com aproveitamento dos recursos didáticos, físicos e professores de crianças e adolescentes. São fatores a serem considerados quando se observa o declínio da procura pela EJA nas escolas constatado com a perda de 1,5% das matrículas que equivale a 3,5 milhões em 2017, de acordo com o Censo Escolar (2018) e a demanda potencial para a educação básica represada na população, conforme quadro a seguir.
Quadro 1: Nível de instrução das pessoas de 14 anos ou mais de idade (2019)
|
País/Cidade |
População* |
% |
Pessoas 14 anos ou mais de idade** |
% |
|||
|
Total |
14 anos ou mais |
Sem instrução e Fund. incompleto ou Equivalente |
Fund. completo e E. Médio incompleto ou equivalente |
Total Sem instrução e Edu. Básica incompleta |
|||
|
Brasil |
210.147.125 |
171.088.000 |
81 |
60.208.000 |
28.981.000 |
89.189.000 |
52 |
|
Porto Velho (RO) |
529.544 |
421.000 |
79 |
120.000 |
76.000 |
196.000 |
46 |
|
Rio Branco (AC) |
407.319 |
318.000 |
78 |
96.000 |
59.000 |
155.000 |
48 |
|
Manaus (AM) |
2.182.763 |
1.723.000 |
78 |
364.000 |
272.000 |
636.000 |
36 |
|
Boa Vista (RR) |
399.213 |
283.000 |
70 |
60.000 |
48.000 |
108.000 |
16 |
|
Belém (PA) |
1.492.745 |
1.243.000 |
83 |
305.000 |
217.000 |
522.000 |
41 |
|
Macapá (AP) |
503.327 |
378.000 |
75 |
97.000 |
65.000 |
162.000 |
42 |
|
Palmas (TO) |
299.127 |
238.000 |
79 |
52.000 |
37.000 |
89.000 |
37 |
|
São Luís (MA) |
1.101.884 |
889.000 |
80 |
172.000 |
140.000 |
312.000 |
35 |
|
Teresina (PI) |
864.845 |
723.000 |
83 |
225.000 |
115.000 |
340.000 |
47 |
|
Fortaleza (CE) |
2.669.342 |
2.215.000 |
82 |
576.000 |
369.000 |
945.000 |
42 |
|
Natal (RN) |
884.122 |
730.000 |
82 |
222.000 |
112.000 |
334.000 |
45 |
|
João Pessoa (PB) |
809.015 |
666.000 |
82 |
172.000 |
94.000 |
266.000 |
39 |
|
Recife (PE) |
1.645.727 |
1.401.000 |
85 |
344.000 |
204.000 |
548.000 |
39 |
|
Maceió (AL) |
1.018.948 |
851.000 |
83 |
304.000 |
137.000 |
441.000 |
51 |
|
Aracaju (SE) |
657.013 |
536.000 |
81 |
141.000 |
77.000 |
218.000 |
40 |
|
Salvador (BA) |
2.872.347 |
2.468.000 |
85 |
592.000 |
322.000 |
914.000 |
37 |
|
Belo Horizonte (MG) |
2.512.070 |
2.140.000 |
85 |
472.000 |
352.000 |
824.000 |
38 |
|
Vitória (ES) |
362.097 |
313.000 |
86 |
46.000 |
44.000 |
90.000 |
28 |
|
Rio de Janeiro(RJ) |
6.718.903 |
5.807.000 |
86 |
1.021.000 |
905.000 |
1.926.000 |
33 |
|
São Paulo (SP) |
12.252.023 |
10.312.000 |
84 |
2.140.000 |
1.608.000 |
3.748.000 |
36 |
|
Curitiba (PR) |
1.993.105 |
1.628.000 |
81 |
306.000 |
217.000 |
523.000 |
32 |
|
Florianópolis (SC) |
500.973 |
430.000 |
85 |
63.000 |
59.000 |
122.000 |
28 |
|
Porto Alegre (RS) |
1.483.771 |
1.265.000 |
85 |
228.000 |
199.000 |
427.000 |
33 |
|
Campo Grande (MS) |
895.982 |
722.000 |
80 |
191.000 |
129.000 |
328.000 |
45 |
|
Cuiabá (MT) |
612.547 |
488.000 |
79 |
116.000 |
79.000 |
195.000 |
39 |
|
Goiânia (GO) |
1.516.113 |
1.255.000 |
82 |
299.000 |
198.000 |
497.000 |
39 |
|
Brasília (DF) |
3.015.268 |
2.504.000 |
83 |
539.000 |
355.000 |
894.000 |
35 |
Fontes: * https://ftp.ibge.gov.br.
** https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7267#resultados.
Diante do panorama acima esboçado, é inegável o expressivo número de candidatos para a educação de jovens e adultos. Cabem aos governos nacional e subnacional prover ao público da EJA cursos e exames formais gratuitos com certificação no processo. De acordo com O Relatório De Monitoramento Global De Educação Para Todos (UNESCO, 2009), a prática de governar é chave na superação das desigualdades sociais. A EJA impõe aos governos a tomada de decisões, alocação de recursos e a responsabilidade expressa em políticas públicas concernentes à natureza desse contingente diverso e marcado pelas próprias necessidades (Arroyo, 2006; Paiva, 2005; Oliveira, 1999). Face às demandas desse público, o modelo educacional de EJA requer que o estudante seja entendido como o princípio pedagógico (Ribeiro, 1999).
Atualmente, duas tendências de oferta estão em disputa no território. O desafio é apreender como se distribuem entre as dependências administrativas e examiná-las à luz dos mecanismos protetores das especificidades dos sujeitos que cada uma abarca.
Escolas com e escolas de Educação de Jovens e Adultos: para além da semântica
O provimento da EJA no sistema público de ensino desde sua implantação na educação básica vem acontecendo nas escolas de ensino comum ou regular, como são denominadas. Governos municipal e estadual incorporam a nova modalidade dentre seus serviços educacionais valendo-se do aparato disponível com alguma ou nenhuma adaptação. Por vezes, os recursos didáticos, físicos e profissionais do trabalho com crianças e adolescentes são também absorvidos no atendimento a jovens, adultos e idosos. A esse modo de a política pública incorporar a EJA entende-se que se estabelecem as escolas com EJA. De um modo geral, as escolas com EJA reservam o turno da noite para atender aos jovens, adultos e idosos, isto é, abrem-se depois de cumprir suas obrigações com a escolarização das crianças e dos adolescentes, foco principal do trabalho escolar. A EJA no noturno nem sempre possui as dependências da biblioteca ou da quadra de esportes liberadas para uso.
Em oposição, há uma fração das escolas públicas organizadas somente na admissão da modalidade. São escolas exclusivas, balizadas no atendimento ao público da educação de jovens e adultos, as quais chama-se de escolas de EJA. Essas escolas de EJA dão entrada aos estudantes com 15 anos ou mais nos três turnos e, geralmente, aceitam matrículas durante o ano todo. Significa que são singulares por ter a EJA como atenção primordial do trabalho e são tratadas com a denominação de escolas exclusivas. Nesse caso, o termo exclusiva defende a ideia de escolas próprias de EJA e pode ser entendido como especialidade, distinção, características, particularidade, singularidade, peculiaridade, especificidade ou originalidade. Não devendo ser confundido, portanto, com a segregação ou a exclusão que a palavra também possa comunicar. No trabalho serão usadas as nomenclaturas escolas de EJA para o universo exclusivo em oposição às escolas com EJA, com vistas a ampliar a compreensão da escola própria do estudante jovem, adulto e idoso.
O interesse pelas escolas exclusivas de EJA avolumam-se no país e com temáticas variadas, tanto que em 2019 foram mapeados 54 estudos. Nesses estudos, sobretudo Di Pierro (2017), Kuhn (2018) e Faria (2014), indicam que escolas dedicadas a atender somente à EJA “demonstram capacidade de se adequar” de acordo com o público usando as palavras de Kuhn (2018, p. 20). Significa dizer, adaptar-se às trajetórias dos sujeitos, flexibilizar tempo e espaço, contextualizar o currículo, produzir materiais didáticos e formar em serviço seus profissionais. Ao conjunto de ações que levam a agir de modo próprio na EJA que Soares; Soares (2014) chamam de especificidades da educação de jovens e adultos.
Partindo do pressuposto de que as escolas direcionadas somente aos públicos jovens, adultos e idosos têm melhores chances de se aproximar das necessidades desses sujeitos, faz sentido conhecê-las. O corpus da amostra são as escolas públicas que atendem a EJA nas capitais[x] e o recorte se justifica dada a impossibilidade de cobertura do universo das escolas de educação de jovens e adultos no território brasileiro.
O foco principal é descobrir a fração de escolas nas capitais que se dedica integralmente ao trabalho com o público da EJA. Interessa, nesta aproximação, identificar que quantitativo é esse e como se distribui nas dependências administrativas para, em seguida, sugerir os modelos pedagógicos adjacentes às duas tendências. Espera-se, a partir da exposição, fornecer um panorama das escolas municipais nas capitais do país dedicadas à admissão de um grupo peculiar.
Mapeamento de escolas municipais de EJA nas capitais brasileiras
A primeira peça do mapeamento diz respeito ao quantitativo das escolas de EJA. Para tanto, aplicou-se na base QEdu Censo Escolar (2017) os filtros: capital, escolas públicas urbanas e rurais, educação de jovens e adultos e, depois, escola por escola na busca daquelas somente de EJA. O último recorte demandou cuidado porque o dado está disponível nas informações de cada escola.
Como resultado, tem-se um montante de 185 escolas de EJA frente ao universo de 30.427 escolas brasileiras nas capitais que oferecem a modalidade (QEdu, 2020). Em números totais, a distribuição, em ordem decrescente por grupos, apresenta-se da seguinte forma: a cidade do Rio de Janeiro congrega a maior cifra de escolas de EJA (48), seguida pelos municípios de São Paulo (27), de Teresina (19) e de Porto Alegre (11) que registram distância significativa em relação ao Rio de Janeiro. O maior grupo mantém a quantia menor que uma dezena de escolas de EJA. Neste conjunto estão Fortaleza (9); Macapá e Curitiba (7); Belo Horizonte e Manaus (6); João Pessoa, Recife, Brasília e Florianópolis (5); enquanto, Porto Velho e Salvador, estão no grupo de 4 escolas. Os demais municípios estão abaixo: Cuiabá, Natal e São Luís (3); Rio Branco, Belém, Maceió, Goiânia, Campo Grande e Vitória (2) e, por fim, Boa Vista e Aracaju mantém 1 escola de EJA. Na capital do Tocantins, Palmas, não foi encontrada uma escola de EJA, conforme descrito abaixo.
Quadro 2: Atendimento escolar público - Capitais e Distrito Federal (2020)
|
Região |
Capital |
Escolas públicas |
Escolas com EJA |
% |
Escolas de EJA |
% |
|
|
Brasil |
138.487 |
26.118 |
18 |
- |
- |
|
Norte |
Rio Branco (AC) |
316 |
51 |
16 |
2 |
3 |
|
Manaus (AM) |
792 |
129 |
16 |
6 |
4 |
|
|
Palmas (TO) |
116 |
21 |
18 |
0 |
0 |
|
|
Porto Velho (RO) |
315 |
42 |
13 |
4 |
9 |
|
|
Boa Vista (RR) |
217 |
34 |
15 |
1 |
2 |
|
|
Macapá (AP) |
274 |
70 |
25 |
7 |
10 |
|
|
Belém (PA) |
606 |
133 |
21 |
2 |
1 |
|
|
Nordeste |
Maceió (AL) |
251 |
96 |
38 |
2 |
2 |
|
Salvador (BA) |
739 |
301 |
40 |
4 |
1 |
|
|
Fortaleza (CE) |
762 |
161 |
21 |
9 |
5 |
|
|
São Luís (MA) |
349 |
111 |
31 |
3 |
2 |
|
|
João Pessoa (PB) |
327 |
119 |
36 |
5 |
4 |
|
|
Recife (PE) |
554 |
196 |
35 |
5 |
2 |
|
|
Teresina (PI) |
555 |
108 |
19 |
19 |
17 |
|
|
Natal (RN) |
339 |
60 |
17 |
3 |
5 |
|
|
Aracaju (SE) |
183 |
43 |
23 |
1 |
2 |
|
|
Centro-Oeste |
Brasília (DF) |
715 |
118 |
16 |
5 |
4 |
|
Goiânia (GO) |
455 |
103 |
22 |
2 |
2 |
|
|
Cuiabá (MT) |
518 |
36 |
6 |
3 |
8 |
|
|
Campo Grande (MS) |
309 |
38 |
12 |
2 |
5 |
|
|
Sudeste |
Belo Horizonte (MG) |
606 |
207 |
34 |
6 |
10 |
|
Vitória (ES) |
133 |
27 |
20 |
2 |
3 |
|
|
Rio de Janeiro (RJ) |
2.098 |
307 |
14 |
48 |
15 |
|
|
São Paulo (SP) |
2.932 |
434 |
14 |
27** |
6 |
|
|
Sul |
Curitiba (PR) |
752 |
91 |
12 |
7 |
7 |
|
Florianópolis (SC) |
195 |
5* |
2 |
5** |
100 |
|
|
Porto Alegre (RS) |
373 |
83 |
22 |
11 |
13 |
|
|
Total |
16.090 |
3.157 |
19 |
185 |
5 |
|
Fonte: Dados QEdu (2020). Elaboração dos autores.
**Não excetuando escolas em penitenciárias e centros de detenção em São Paulo (7) e Florianópolis (2).
Na medida em que há, pelo menos, uma escola que atenda a EJA em todas as capitais, pode-se afirmar que o direito de jovens, adultos e idosos de continuar ou iniciar a escolarização na rede pública está garantido e em consonância com a legislação. Entretanto, a efetivação desse direito não se reduz ao acesso. A disponibilidade da escola é um dos 4 pilares adotados por Tomasevski (2001) como critérios à consagração do direito, seguida de acessibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade. Para a autora, a educação é um direito humano e como tal, deve ser provido pelo governo ou pela iniciativa privada. A autora advoga pela supressão das barreiras que restringem o acesso às escolas: a inclusão de formas variadas de acesso, o respeito às convicções religiosas, às formas linguísticas, às deficiências do estudante e a adaptação da escola a ele e não o contrário.
Por outro lado, a demanda da população potencial para a educação de jovens e adultos é alta (Quadro 1). Se há nas capitais brasileiras pelo menos uma escola de EJA, qual sua dependência administrativa e quantas matrículas tem efetuado? São questões que ampliam a análise da participação das duas esferas de governo, grosso modo, na redução das desigualdades educacionais e expõem, também, as diferenças intergovernamentais quanto ao atendimento. vale ressaltar que o atendimento é entendido aqui de forma diferente da capacidade de oferta porque os indicadores de atendimento podem ser captados pela matrícula enquanto a capacidade de oferta implica entrar na área do financiamento, o que a impede de ser tratada neste recorte. O quadro abaixo informa a participação dos governos no atendimento à EJA.
Quadro 3: Oferta de EJA por dependência administrativa (2020)
|
N. |
Capital e Distrito Federal |
Escolas de EJA |
Dependência |
|||||
|
Municipal |
Estadual |
|||||||
|
Escolas |
% |
Matrículas |
Escolas |
% |
Matrículas |
|||
|
1 |
Rio de Janeiro |
48 |
03 |
6,3 |
1.247 |
45 |
93,7 |
22.638 |
|
2 |
Teresina |
19 |
0 |
- |
0 |
19 |
100 |
6.240 |
|
3 |
São Paulo |
18* |
16 |
89 |
12.116 |
02 |
11 |
8.554 |
|
4 |
Porto Alegre |
10 |
2 |
20 |
1.226 |
08 |
80 |
1.004 |
|
5 |
Fortaleza |
09 |
0 |
- |
0 |
09 |
100 |
20.992 |
|
6 |
Curitiba |
07 |
0 |
- |
0 |
07 |
100 |
7.488 |
|
7 |
Macapá |
07 |
2 |
28,5 |
911 |
05 |
71,4 |
1.689 |
|
8 |
Manaus |
06 |
1 |
16,6 |
1.360 |
05 |
83,3 |
2.068 |
|
9 |
Belo Horizonte |
06 |
1 |
16,6 |
671 |
05 |
83,3 |
4.022 |
|
10 |
Recife |
05 |
0 |
- |
0 |
05 |
100 |
2.254 |
|
11 |
Brasília |
05 |
0 |
- |
0 |
05 |
100 |
7.598 |
|
12 |
João Pessoa |
05 |
0 |
- |
0 |
05 |
100 |
1.568 |
|
13 |
Salvador |
04 |
2 |
50 |
90 |
02 |
50 |
900 |
|
14 |
Porto Velho |
04 |
0 |
- |
0 |
04 |
100 |
1.464 |
|
15 |
São Luís |
03 |
1 |
33,3 |
54 |
02 |
66,6 |
1.021 |
|
16 |
Cuiabá |
03 |
0 |
- |
0 |
03 |
100 |
3.689 |
|
17 |
Belém |
03 |
1 |
33,3 |
56 |
02 |
66,6 |
1.134 |
|
18 |
Natal |
03 |
0 |
- |
0 |
03 |
100 |
3.140 |
|
19 |
Rio Branco |
02 |
0 |
- |
0 |
02 |
100 |
1.202 |
|
20 |
Florianópolis |
02* |
1 |
50 |
1.343 |
01 |
50 |
1.771 |
|
21 |
Vitória |
02 |
1 |
50 |
391 |
01 |
50 |
678 |
|
22 |
Goiânia |
02 |
0 |
- |
0 |
02 |
100 |
1.149 |
|
23 |
Campo Grande |
02 |
0 |
- |
0 |
02 |
100 |
1.322 |
|
24 |
Maceió |
01 |
0 |
- |
0 |
01 |
100 |
702 |
|
25 |
Aracaju |
01 |
0 |
- |
0 |
01 |
100 |
1.041 |
|
26 |
Boa Vista |
01 |
0 |
- |
0 |
01 |
100 |
178 |
|
27 |
Palmas |
00 |
0 |
- |
0 |
00 |
- |
0 |
|
- |
TOTAL |
178 |
31 |
17,4 |
19.409 |
147 |
82,6 |
105.506 |
Fonte: Dados Qedu (2017). Elaboração dos autores.
*Excetuadas escolas de penitenciária e centros de detenção: São Paulo (9) e Florianópolis (2) e em hospital (1).
A distribuição das escolas de EJA nas capitais, quando analisada por dependência administrativa, evidencia que, majoritariamente, o estado concorre com mais unidades e acolhe maior número de matrículas, à exceção da capital paulistana, que registra expressiva matrícula municipal. Em contraposição, na esfera municipal das demais capitais, os números de escolas e matrículas são bem mais modestos, podendo ser inexistente quando se trata de escola exclusiva de EJA.
Tendências de oferta de Educação de Jovens e Adultos
Hugo Lovisolo expressou em meados dos anos de 1980 que a educação de adultos se situava entre dois modelos: o “modelo escolarizado ou sistematizador” e o “modelo popular ou conscientizador” (Lovisolo, 1988, p. 24). Alguns paralelos podem ser traçados entre a afirmação de Lovisolo e as tendências do atendimento da EJA. Pode-se inferir que as discrepâncias intergovernamentais quantitativas referentes à recepção da EJA estão expostas e, as diferenças qualitativas passam a ser examinadas. A admissão de altos números de matrículas por parte do estado, por vezes em uma única escola, revela certa compreensão de educação de jovens e adultos expressa na tendência do Ensino Supletivo (ES) regulamentado durante o governo militar.
O Ensino Supletivo (ES), presente no capítulo IV da Lei de Diretrizes e Bases 5.692/1971, tem suas principais características no Parecer 699/1972, relatadas por Valnir Chagas. O artigo 22 da Lei 5.692/1971 estabelece que cabe à função suplência[xi] “suprir a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluído na idade própria”. Sérgio Haddad (1987) estudou a implantação da referida lei na pesquisa “Diagnóstico do Ensino Supletivo no Brasil: período de 1971-85” e, em suas conclusões, lê-se que o ES que estava programado para ser emergencial, marcou a educação de jovens e adultos de lá para cá e se converteu em uma única e duradoura oferta semipresencial na maioria dos estados brasileiros a ser desenvolvida nos centros de estudos supletivos - CEs ou CESUs. Uma segunda conclusão do estudo diz do caráter contraditório que acompanha o ES. Isso porque, enquanto ação do governo militar, o ES significou certo avanço ao abranger um número maior da população e criar certa estrutura de atendimento aos adultos. Por fim, o estudo constata que os cursos de Suplência estavam/estão aquém das necessidades de seu público, ou seja, “a metodologia utilizada, em geral, não tem atendido às necessidades de seus alunos sendo mais um fator a contribuir para os altos índices de evasão e repetência” (Haddad, 1987, p. 178).
A atualidade dos estudos de Haddad (1987) é verificada em Di Pierro (2017). Ao analisar os centros de EJA no município de São Paulo, Di Pierro atesta que a vigência de um modelo pedagógico assemelhado ao Ensino Supletivo em escolas estaduais favorece grande recepção de estudantes possível com o ensino semipresencial e que esse modo de operar relativiza o custo e se torna um tipo de oferta atrativo aos estados.
Do ponto de vista pedagógico, os Centros de Ensino Supletivo enfatizam o estudo individual, a autoinstrução, os testes para aceleração de certificações e as práticas pedagógicas refletem o que Paulo Freire (2003) chamou de educação bancária. A promoção do ensino pelo autodidatismo pode atender a parcela da população demandante da EJA que detém autonomia na leitura, na interpretação, no cálculo e na escrita. Já outro grupo de estudantes pode não conseguir acompanhar esse modelo pedagógico, necessitando de outra forma de atendimento (Di Pierro, 2017).
Paralelamente ao ES, há uma tendência que se esboça nos marcos da educação e cultura popular. O curto período de ações locais e da sociedade civil do final dos anos de 1950 e início dos 60, até o golpe civil-militar em 1964, produziu o que ficou conhecido como um modo próprio de se pensar a educação das pessoas jovens e adultas (Haddad, 1987; Haddad; Di Pierro, 2000). É dentro de um quadro político maior que essa guinada pedagógica na educação de adultos cabe ser pensada. Significa considerar o governo local como promotor ou patrocinador dos programas como a “Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler”, da Secretaria Municipal de Natal ao final de 1960; a “Campanha de Educação Popular da Paraíba”, instituída pelo governo estadual da Paraíba em 1961; o “Movimento de Educação de Base”, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, estabelecido em 1961, com patrocínio do Governo Federal; o “Movimento de Cultura Popular do Recife”, a partir de 1961; os “Centros Populares de Cultura”, órgãos culturais da UNE, e, o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura, de 1964 sob a coordenação do Prof. Paulo Freire (Haddad, 1987). Na avaliação de Haddad, o fato de o setor público implicar-se com os acontecimentos na educação básica de adultos significava responsabilidade com a área e “disputa política por legitimação de ideais no campo da prática educacional” (Haddad, 1987, p. 13).
A prática pedagógica em educação e cultura popular se constrói, sobretudo, centrada na alteridade dos sujeitos tendo como fundamento as diversas formas de ser e estar no mundo desafiado pelos diversos condicionantes sociais. Educação e cultura popular, como práxis, se desenvolvem com as contribuições do pensamento de Paulo Freire. Os municípios tendem a operacionalizar a EJA de maneira assemelhada ao ensino comum, com autonomia maior em seus programas quando são sistemas próprios de ensino. Nesses casos, conseguem promover mecanismos protetores das especificidades dos estudantes como currículo, tempos e espaços flexíveis, elaboração de materiais pedagógicos próprios, formação em serviço de seus profissionais, dentre outros.
As duas tendências, com marchas operacionais e pedagógicas distintas, perfilam o atendimento a jovens e adultos nas escolas públicas. Do mesmo modo em que o Ensino Supletivo continua sendo uma oferta robusta nos estados, a herança do pensar próprio, conquistada no curto período 1950-1964, é incorporada por muitos governos locais[xii] e, a depender do/a estudante, cada um expressa o direito e a qualidade de maneira distinta. Em outros termos, cada tendência de oferta motiva públicos diferentes, adere às especificidades da educação de jovens e adultos consoante à proposta pedagógica, o que permite considerar que há fronteiras bem delimitadas entre escolas de EJA, presenciais e semipresenciais. Assim como há escolas aderidas ao Ensino Supletivo, há aquelas ancoradas à educação popular (Di Pierro, 2017; Kuhn, 2018; Silva; Soares, 2022).
A modo de concluir
A demanda para a Educação de Jovens e Adultos no território nacional continua multitudinária. Os governos subnacionais absorvem entre seus serviços educacionais o compromisso com o direito de jovens, adultos e idosos ingressarem ou concluírem seus estudos nos sistemas públicos de ensino e o fazem de maneiras quantitativa e qualitativa distintas. Ainda assim, duas tendências de atendimento são mais proeminentes nas capitais que são denominadas aqui de escolas com e escolas de EJA.
Do ponto de vista do levantamento geral quantitativo, as escolas de EJA estão em número bem inferior ao de escolas com EJA. Destacamos as escolas de EJA para estudos e quando examinadas pelas variáveis dependência administrativa e número de matrículas, verificamos que a rede estadual recepciona um contingente de estudantes muito superior à rede municipal, a exceção de São Paulo e Porto Alegre. Inferimos que a diferença quantitativa se associa ao modelo de oferta. Com base nos dois modelos descritos por Lovisolo (1988) e endossados por Di Pierro (2017), os sistemas de ensino tendem a aproximar seu atendimento ou do modelo do Ensino Supletivo ou do modelo da Educação Popular evidenciados quando se analisa os mecanismos que cada um desenvolve para proteger a oferta de EJA.
A análise dos dados aponta que a rede estadual procura ampliar (ou manter) o contingente de pessoas atendidas optando por um modelo de baixo custo como o Ensino Supletivo e acaba por promover ofertas ainda mais seletivas e inequitativas. Com relação à rede municipal, pode-se inferir que ela tende a ofertas com potencial para ajustar o ambiente pedagógico à recepção de seus estudantes de forma que se aproximam do ideário da Educação Popular.
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Notas
[i] Pesquisa financiada pelo CNPq (2019-2021).
[ii] A escolarização para essa parcela da população está pautada nas legislações anteriores, variando sua oferta, enquanto direito, de acordo com o período histórico.
[iii] Cf Soares; Soares (2014).
[iv] A consequence of the symmetry of law is that there could be no right to education without corresponding obligations for governments (Tomasevski, 2001, p.13). Tradução livre.
[v] O Congresso incluiu a EJA nos cálculos redistributivos, porém, o presidente Fernando Henrique Cardoso vetou esse texto da lei (Di Pierro, 2015, Catelli Jr; Di Pierro, 2017).
[vi] Cf. Oliveira; Santana (2010); Abrúcio, 2005, 2010; Arretche, 2004.
[vii] Resolução FNDE/CD/12, de 26 de abril de 2001. Em 2003 foi renomeado Fazendo Escola.
[viii] A Lei nº 11.494/2007 regulamentou o Fundeb.
[ix] Sobre supressão de gastos das esferas de governo com a EJA ver Frigotto e Ciavatta, 2003; Haddad, 2007; Rummert, 2008.
[x] Foram excetuadas as escolas em penitenciária e centros de detenção (7 em São Paulo e 1 em Florianópolis) em função da duplicidade de informações que poderiam gerar.
[xi] Conferir Haddad (1987) para maiores informações sobre a estruturação e as funções do Ensino Supletivo.
[xii] Ver CEDI (1990) e Haddad (2007).