Educação em valores e as áreas de ciências da natureza e suas tecnologias na base nacional comum curricular - BNCC - etapa do ensino médio: uma reflexão  

 

Values education and the areas of natural sciences and their technologies in the common national curriculum base - bncc - high school: a reflection

 

La educación en valores y las áreas de las ciencias naturales y sus tecnologías en la base nacional común curricular - BNCC - etapa de la ensenanza média: una reflexión

 

 

Valeria Trigueiro Santos Adinolfi

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, São José dos Campos, SP, Brasil.

vtrigueiro@ifsp.edu.br

 

Recebido em 16 de setembro de 2022

Aprovado em 25 de outubro de 2023

Publicado em 02 de março de 2024

 

 

RESUMO

Este artigo apresenta uma discussão da proposta da Base Nacional Comum Curricular – Etapa do Ensino Médio - com foco na educação em valores, especialmente na área de Ciências da Natureza e Suas Tecnologias. Debate-se se também o conceito de educação em valores, suas possibilidades e seu lugar na construção da autonomia dos sujeitos e como isto aparece na BNCC-Etapa do Ensino Médio, que propõe uma formação integral permeada pelo desenvolvimento da ética como competência a permear todas as áreas do conhecimento. Por fim, discute-se o fazer científico tecnológico como paradigma da sociedade contemporânea e a educação científico-tecnológica como pressuposto para a cidadania, e o lugar da ética e dos valores sociais neste campo de conhecimento. A metodologia utilizada para análise foi de análise de conteúdo, que possibilitou o destaque quantitativo de aspectos da proposta da BNCC-Etapa do Ensino Médio em relação à temática.

Palavras-chave: educação em valores, ensino de ciências, ensino médio, base nacional comum curricular

 

ABSTRACT

This article presents a discussion of the proposal of the National Common Curricular Base - High School - with a focus on education in values, especially in Natural Sciences and Its Technologies area. It also debates values education concepts and possibilities and its place in the subjects autonomy building and how this appears in the BNCC- High School, which proposes an integral formation permeated by the development of ethics as a competence to permeate all the areas of knowledge. Finally, the scientific-technological practice is discussed as a paradigm of contemporary society and scientific-technological education as a presupposition for citizenship, and the place of ethics and social values in this field of knowledge. The methodology used for analysis was content analysis, which enabled the quantitative highlighting of aspects of the proposal of the BNCC-high School in relation to the theme.

Keywords: values education, science education, ethics, high school, national common base curriculum

 

RESUMEN

En este artículo se presenta una discusión de la propuesta de la Base Nacional Común Curricular - BNCC - etapa de la ensenanza média- con enfoque en la educación en valores, especialmente en el área de las Ciencias  de la Naturaleza y sus Tecnologías. También se debate el concepto de educación en valores, sus posibilidades y su lugar en la construcción de la autonomía de los sujetos y cómo éste aparece en el BNCC- etapa de la ensenanza média, que propone una formación integral permeada por el desarrollo de la ética como competencia a impregnar todas las áreas del conocimiento. Finnalmente, se discute la práctica científico-tecnológica como paradigma de la sociedad contemporánea y la educación científico-tecnológica como requisito previo de la ciudadanía, y el lugar de la ética y los valores sociales en este campo del conocimiento. La metodología utilizada para el análisis fue el análisis de contenido, que permitió detacar de manera cuantitativa aspectos de la propuesta del BNCC- etapa de la ensenanza média en relación al tema.

Palabras clave: educación en valores, enseñanza de las ciencias, educación secundaria, base nacional común curricular

 

Introdução

            A educação em valores pode ser discutida a partir de várias abordagens, e neste trabalho o sentido enfatizado é o de construção de processos formativos e situações que favoreçam a reflexão e o senso de autonomia e justiça diante dos processos decisórios históricos aos quais é apresentado– uma formação ética (cfe. Araújo, 2007; Freire, 1996, 2005; Kohlberg e Hersh, 1977). Dessa forma, a educação em valores aqui apresentada não equivale ao ensino de ética nem à educação moral de forma prescritiva que consiste em mera repetição de padrões comportamentais e transmissão de regras -  doutrinação moral, prescrição -  que pode ser inclusive inefetiva - está mais próxima a um aprendizado de máquina que da formação humana.

A educação enquanto construção do humano se faz permeada de valores – e por isso a sua presença em propostas curriculares, da quais a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) é um exemplo. A BNCC apregoa uma formação integral permeada pelo desenvolvimento da ética como competência a permear todas as áreas do conhecimento e parte indissolúvel de sua proposta de educação por competências – colocação que é analisada a partir das evidências do próprio documento. Essa formação é fundamental para a construção de sujeitos autônomos e cidadãos, historicamente conscientes e capazes de analisar e decidir acerca de questões do cotidiano – desde as menos complexas como aderência a tratamentos quanto as mais complexas como o uso de energia, alimentação, modelos de desenvolvimento social, exclusão e diversidade. Muitas dessas decisões passam por análises que requerem alfabetização científica para uma decisão mais informada assim como consciência dos valores envolvidos – sociais, culturais, econômicos.

As ciências da natureza e as tecnologias, paradigmas da sociedade contemporânea, requerem dos indivíduos essa compreensão para que sejam efetivamente sujeitos que exercem a sua cidadania (cfe. Adinolfi, 2020; Sasseron, 2011; Chassot, 2003; Krasilchik, 1992). Ou seja, é necessário haver tanto educação científico-tecnológica quanto formação para o exercício da cidadania. Com isto em vista este artigo se propõe analisar e refletir acerca da educação em valores tal como aparece na BNCC - especialmente relacionada à área de Ciências da Natureza e Suas Tecnologias. Utilizou-se como metodologia a análise de conteúdo, que possibilitou o destaque quantitativo de aspectos da proposta da BNCC - Etapa do Ensino Médio em relação à temática. Os resultados sinalizam uma abordagem deficiente da educação em valores e também da educação em ciências da natureza e suas tecnologias e colocam questões a serem pensadas e discutidas acerca das consequências para as presentes e futuras gerações cujo exercício da cidadania pode ser prejudicado.       Este artigo se inicia abordando a educação em valores como ferramenta para a construção da autonomia a partir da discussão da própria definição de ética na perspectiva da construção da autonomia. Em seguida discute-se a própria possibilidade do ensino de valores e ética e a relação entre desenvolvimento e formação moral. A partir de uma afirmação da impossibilidade de uma formação humana não atrelada a valores parte-se para a relação entre educação escolarizada, valores e currículo e como o Brasil incorpora esta perspectiva à BNCC -  etapa do ensino médio. Com isto trabalha-se a forma como a BNCC apresenta a educação em valores considerando-se o objetivo declarado de formar integralmente para o exercício da cidadania por meio da proposta de indissociabilidade entre valores, competências e habilidades.

A seguir vem a análise sobre a diferença entre a proposta de educação generalista e integral da BNCC e o formato em que este documento se desdobra, especialmente o (não) lugar da discussão acerca de valores nas orientações do campo das Ciências da Natureza e suas Tecnologias na etapa do ensino médio por conta da concentração dos conteúdos e propostas de discussão na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Por fim, apresentam-se considerações com respeito aos efeitos desse descompasso entre a proposta generalista e a (não) abordagem da ética e valores   na área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias e os impactos para a formação integral e cidadã nesta que é a última etapa da educação básica  

Educação em valores como ferramenta de construção de autonomia

Adela Cortina (2001) localizam a origem do termo Ética em duas palavras gregas de transliteração semelhante em português: ethos, com sentido ligado à ocupação de um espaço pelos seres vivos animados em geral (zoon, ζῷον), como é configurado de forma a refletir seus habitantes e à multiplicidade de expressões que essa habitação pode assumir, como pode ser marcado de forma a identificar seus ocupantes. É uma forma de estar no mundo, de existência que ocorre no tempo e no espaço e deixa impressões construindo a história que será contada para as gerações futuras a partir de seus indícios. Assim, o ethos diz espeito a uma forma de existência concreta no mundo pela habitação – daí a relação com o termo latino habitus – marcando-o: se relaciona a índole e às múltiplas formas de ser-e-estar-no mundo, modos de existir do caráter (cfe. Cortina, Martinez, 2001).  O termo ethos é traduzido no latim por mores, costumes, originando o termo “moral”. Costumes que são adquiridos ao longo da vida, hábitos (novamente a relação com habitus), que vêm da forma como padrões são repetidos como forças modeladoras na formação dos valores e da índole. Assim, ética pode ser entendida a partir dos dois sentidos, relativos às forças que produzem o hábito e também a índole humana – que é o sentido corrente: 

E é nessa intersecção entre o estudo dos costumes e do caráter que a Ética vai se constituir ao longo do tempo enquanto Filosofia Prática. Por um lado, estuda os caminhos da moralidade, da formação de costumes, de hábitos. Por outro, indaga sobre a índole humana, a sua natureza. (ADINOLFI, 2014, p. 43)

A Ética se constitui um campo de reflexão acerca dos fundamentos das atitudes, dos hábitos e costumes já incorporados ao repertório de ações socialmente esperadas numa comunidade historicamente dada e as formas como a natureza humana se desenvolve e constrói caminhos decidindo e escolhendo por um caminho ou outro a partir da atribuição de valores às opções apresentadas.  É uma Filosofia Moral, cujo objeto de conhecimento são os valores atribuídos a uma ou outra opção no desenrolar de um processo decisório, considerando a complexidade da realidade histórica e multifacetada dos sujeitos que...

[...] constroem seus sistemas de valores dentro do espectro de possibilidades que a natureza, a cultura e a sociedade lhes oferecem, mas de forma não previsível. Família, escola, religião, amigos, mídia, cultura, tudo parece influenciar esse processo. No entanto, são processos caóticos não passíveis de ser determinados com antecipação. Podemos falar, no máximo, de probabilidade. (ARAÚJO, PUIG, ARANTES, 2007, p. 29)

 

Isto posto, o processo de construção de valores deve ser analisado a partir de uma perspectiva que leve em consideração a sua multiplicidade e complexidade – termo aqui tomado na perspectiva que é colocada por Edgar Morin: “ o que é tecido junto”, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo” (MORIN, 2011, p.89). Essa complexidade de valores construídos nas mais diferentes esferas da vida humana se faz presente em todo o processo decisório, conscientemente ou não, apontando para a necessidade de reflexão acerca de quais são eles, como são construídos, o que significam para nossas decisões diárias – enfim, entender a sua relação com o processo formativo humano, ou seja, com a educação.

                Cortina e Martinez (2001) distinguem entre Ética do Ser (Ética das Virtudes) da era da Ética da Consciência (deontologias). Já Larry Alexander e Michael Moore (2012) destacam o contraste direto entre a deontologia e a Ética das Virtudes (que diz respeito ao caráter) e ao consequencialismo (do qual o utilitarismo é um exemplo, e que diz respeito aos efeitos de uma ação).

A Ética das Virtudes, de Aristóteles, aborda a questão do caráter e não da ação – caráter virtuoso conduz a ações virtuosas e vice-versa. Discute-se, assim, se o bom caráter pode ser desenvolvido e como fazê-lo – o que o relaciona diretamente à educação, tema da próxima seção.  Já as abordagens da ética centradas no exercício do julgamento racional se dividem entre a ética deontológica de Kant e o utilitarismo. Kant - principal teórico da deontologia moderna (cfe. Alexander, Moore, 2012; Cortina, Martinez, 2001) -  traz a noção do dever de agir corretamente e de forma autônoma independentemente do cenário. É uma ética normativa baseada no vínculo entre dever, respeito, dignidade e autonomia -  não importam quão bons os efeitos de uma ação possam ser se as escolhas forem moralmente proibidas. Essa abordagem se situa no domínio das teorias morais que guiam e avaliam as escolhas acerca do que deve ser feito. Para a deontologia Kantiana o dano não é aceitável sequer na intenção de propiciar um benefício a uma maioria, pois todos são dotados de dignidade e autonomia.   A norma correta é aquela que se baseia no respeito por esta dignidade intrínseca a todos os sujeitos humanos (cfe. Alexander e Moore, 2012).  A deontologia kantiana não é, portanto, prescritiva no sentido de fornecer uma moralidade externa como guia das ações humanas, mas baseia-se no exercício da autonomia. Como observa Rawls, “Kant não tem a intenção de nos ensinar o que é certo e errado (ele o consideraria presunçoso), mas de fazer-nos cientes de que o direito moral tem sua raiz em nossa razão livre” (RAWLS, 2005, p. 171). Educação em valores nesta perspectiva é precisamente desenvolver a autonomia, cultivar a razão livre, desenvolver a capacidade de pensar e decidir por si.

            O utilitarismo é classificado por Julia Driver (2009) como uma forma de consequencialismo e visa os efeitos de uma ação - classificados entre bons ou maus - e sua extensão com o objetivo de produzir a melhor ação possível para o maior número possível de sujeitos – nesse caso a educação em valores se volta para o fornecimento de ferramentas para o exercício do julgamento moral acerca das consequências dos atos humanos. 

Há ainda as abordagens mais contemporâneas que contemplam a ética da empatia de Judith Stein (2013); a ética da alteridade de Emmanuel Lévinas (2008); a ética do discurso de Jürgen Habermas (1989) – que enfatiza o uso dialógico e não instrumental da razão; a ética do cuidado de Carol Gilligan (1982); a ética Ubuntu que enfatiza o convívio social e a solidariedade disseminada por Desmond Tutu (cfe. Illiers, 2015) e as abordagens da psicologia moral que se desenvolvem a partir de Piaget e que referenciam este trabalho.

Lawrence Kohlberg propõe que o raciocínio ético complexo seja desenvolvido a partir do desenvolvimento da autonomia moral e da justiça com três estágios. É uma abordagem deontológica e centrada no desenvolvimento da racionalidade.   Já autores como Blasi, Colby e Damon trazem a questão do self e da autorregulação e agência do sujeito, o lugar das relações interpessoais para o desenvolvimento moral (cfe. Blasi, 2013; Colby, Damon, 1993). Nesta proposta o sujeito é considerado com seus contextos, interesses, motivações e nuances como um todo que a partir desses elementos desenvolve sua identidade moral que é mais complexa.  A educação em valores, portanto, se faz desenvolvendo a razão livre, mas também considerando os contextos e valores culturais, sociais e outros que atravessam e influenciam as decisões.

Ética e valores: é possível ensinar? Desenvolvimento e formação moral

            A discussão acerca da possiblidade de a ética ser ensinada ou não é longa e remonta à antiguidade grega. John Rawls (2005) localiza a discussão sobre o caráter - se inerente ou adquirido pelos indivíduos através da aprendizagem – como uma das três grandes questões da filosofia moral.  Na Grécia antiga se discutia qual seria a virtude (areté, do grego ἀρετή, excelência) própria do ser humano – inclusive moral - e se ela poderia ser ensinada ou não, posto que ligada a um modo próprio de ser no mundo, de se ajustar ao espaço de convívio partilhado por outros: “Esta virtude (em grego, areté, palavra cuja raiz ar- traz a ideia de “ajustar” e “adaptar”: arthmós “união”, árthron “articulação” etc.) é entendida como excelência moral e política”. (SEABRA FILHO, 1998, p. 60).  Mas seriam esses ajustes e adaptações possíveis ou o modo de habitar o mundo seria reflexo de uma natureza? Os sofistas se propuseram a ensinar a areté. A questão discutida no diálogo socrático Protágoras, do século IV a.C. é exatamente essa: a areté pode ser ensinada?  Protágoras – ele mesmo um mestre sofista que se incumbia de ensinar a virtude - antagoniza com Sócrates, defendendo ao final a impossibilidade da empreitada por conta da inadequação do método então utilizado (cfe. Seabra Filho, 1998). Sócrates, entretanto, defende que a areté pode ser desenvolvida nos indivíduos, mas em termos diferentes dos praticados pelos sofistas. Assim, a discussão se desloca da possibilidade ao formato desse ensino.

Como observa José Seabra Filho (1998) Protágoras aponta os limites do método sofístico, baseado em transmissão e repetição de padrões comportamentais em um processo voltado ao favorecimento dos indivíduos com acesso a essa formação, de forma que pudessem manipular e se beneficiar do conhecimento dessas normas.  O ensino da areté se daria, assim, pela repetição exaustiva, um processo de condicionamento aos costumes e leis da pólis objetivando a formação de hábitos que refletem essa sociedade. Não se trataria nesse caso de um desenvolvimento e sim de um adestramento – daí a sua incompatibilidade com qualquer processo educativo que vise a construção da autonomia dos sujeitos. Já Sócrates defende no diálogo que a areté pode ser desenvolvida: ela seria “[...] um conhecimento, uma ciência de si, de suas razões, de sua sociedade, do seu mundo. A mera transmissão de saberes, o treinamento, o condicionamento, não são capazes de gerar esse conhecimento, e sim uma jornada pessoal. ” (ADINOLFI, 2014, p. 45).  Essa discussão foi fundamental na Antiguidade grega pois colocou as bases da relação entre educação, sociedade e ética. Guimarães (2010) aponta a relação de unidade entre indivíduo e sociedade na obra de Heráclito, para quem a universalidade do logoV (logos, razão) deve se refletir tanto na fusiV (physis, natureza) quanto da poliV (polis, cidade-estado grega). Essa relação entre ser humano-polis marca o pensamento grego antigo. De acordo com Guimarães “o ideal de homem passa a orientar o pensamento grego construído na e pela polis. Ao voltar-se para o homem, a filosofia pergunta pela essência humana. ” (GUIMARÃES, 2010, p. 34). Para os gregos da Antiguidade, a areté era entendida tanto no âmbito individual quanto social, tanto moral quanto política, pois não se concebia a existência de uma poliV (polis, cidade-estado grega) justa dissociada de indivíduos justos. (Cfe. Seabra Filho, 1998; Jaeger, 1995; Guimarães, 2010). Entendia-se que a discussão das possibilidades da construção de um ideal de ser humano cujo caráter refletisse e fosse refletido na pólis era questão fundamental, pois a “[...] a mais alta obra de arte que o seu anelo se propôs foi a criação do Homem vivo. Os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente”. (JAEGER, 1995, p. 13), e nisso a questão do processo de desenvolvimento da areté foi fundamental (no sentido de colocar os fundamentos) para a educação.

Contemporaneamente a questão do modelo de educação e sua relação com o desenvolvimento de valores continua posta. Theodor Adorno descreve como um modelo prescritivo, severo e baseado no adestramento, obediência cega e conformação ao coletivo na Alemanha nazista, ainda que sob o manto de desenvolver uma areté germânica. Um modelo que resultou em reificação e barbárie: “pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isso combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa. ” (ADORNO, 1995, p. 05). Um ato que não pode ser caracterizado como educação para a autonomia, pois “ensinar não é transferir conhecimento, é criar as possibilidades para a sua produção ou construção” (FREIRE, 1996, p. 22).  A prescrição de uma consciência a outra além de ineficaz pode ser considerada até mesmo uma não-educação (cfe. Freire, 2005, p. 36).

 Kohlberg e Hersh (1977) também desconsideram o valor formativo de um ensino de valores prescritivo, propondo que a eticidade resulta de um processo que parte do exercício dos sensos de autonomia e justiça para o desenvolvimento do raciocínio ético. Educar em valores seria esse processo em que o educando desenvolve sua autonomia e capacidade de decisões, e que pode ser entendida a partir do trabalho de Kohlberg e Hersh, que propõem três níveis e seis estágios:

 

Tabela 1 - níveis de desenvolvimento moral de Kohlberg e Hersh - descrição e estágios.

NÍVEL

DESCRIÇÃO E ESTÁGIOS

Pré-convencional:

Interpretação e avaliação de algo como bom e mau a partir das normas culturais   e das consequências em segui-las ou não.

 

Um

Orientação à punição e obediência:

 A observação de regras e normas ocorre apenas como forma de evitar a punição e prestar deferência a quem detém o poder, e não como respeito.

 

Dois

Orientação instrumental-relativista:

Ação voltada à satisfação das necessidades do sujeito, eventualmente satisfazendo também os demais participantes.

 

 

 

Convencional:

 

 

Valorização da manutenção, suporte e justificativa da ordem social per se.

 

Três

Concordância interpessoal:

O sujeito busca a aprovação social do meio em que está inserido, tendo por ação correta e boa a que suscita aprovação e louvor em seu meio social

 

Quatro

Orientação do tipo “lei e ordem”:

O sujeito age pelo dever, buscando a manter a ordem e respeitar à autoridade.

 

 

Pós-convencional -  autonomia

Esforço para a definição de princípios e valores de validade universal e independentes das pressões de autoridades individuais ou coletivas

 

Cinco

Contrato social, orientação legalista:

 

Valores pessoais e opiniões respaldados por considerações racionais sobre a utilidade social definem a ação correta, sendo o âmbito legal sujeito a mudanças

 

Seis

Orientação ao princípio universal ético:

A consciência do sujeito define a ação correta a partir de princípios éticos abstratos que atentem aos critérios de compreensão lógica, universalidade e consistência

 

Fonte: a autora

Entretanto, como apontam Blasi, Colby e Damon (1993) é preciso considerar o sujeito em suas relações interpessoais e como isto leva ao seu desenvolvimento moral. Nesta mesma linha Puig também aponta as limitações de uma abordagem centrada no sujeito como se este fosse isolado de seu contexto e a necessidade de considera-lo como um ser imerso em seu contexto (cfe. Puig, 2004). Sujeitos humanos são pessoas historicamente situadas, compostas por relações complexas com suas próprias emoções e projeções de si e as e dinâmicas econômicas, sociais, culturais, relacionais ligadas às diferentes posições empiricamente ocupadas. Os valores são tecidos de forma diferente a partir dessa complexidade que manifesta a subjetividade e a objetividade articuladas sob a mesma pele (cfe. Puig, 2004, p. 194).  Compreender e refletir sobre o papel dessas dinâmicas para a construção dos processos decisórios é fundamental para ir além da mera prescrição moral e mecanização das decisões, para construir uma autonomia que não é completamente neutra, imparcial e objetiva e tem consciência disso. Assim, permite incorporar as questões sobre empatia, alteridade, diálogo com o diferente, cuidado e solidariedade a partir das contribuições de Stein (2013), Lévinas (2008), Habermas (1989) Gilligan (1982) e a perspectiva africana de Ubuntu.

Assim, a educação em valores pode ser compreendida como processo de desenvolvimento da capacidade de refletir sobre essas formas de habitar o mundo que é partilhado com o outro e refletir sobre os próprios hábitos, costumes e padrões que marcam a própria construção da identidade e sua relação como mundo a partir das escolhas enquanto sujeitos que são indivíduos com sua própria subjetividade complexa e sua relação com as comunidades em que habita em cada tempo e lugar, colaborando com a construção do mundo para as gerações futuras a partir da aceitação/negação/modificação presente dos valores anteriormente estabelecidos e reconhecidos.  

Educação em valores e currículo: a BNCC e a proposta de formação integral

Considerando-se as concepções de currículo como pista, caminho ou mapa (cfe. Sacristán,2013; Pinar, 2011) sobressai-se a intencionalidade da construção, do projeto elaborado a partir de pressupostos, de bases que orientem a sua elaboração e efetivação como os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) e as DCNs (Diretrizes Curriculares Nacionais), utilizadas nas últimas décadas, e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) homologada em dezembro de 2018[1], objeto da reflexão presente. Em sua introdução, a BNCC se propõe como base, ponto de partida para PCNs e DCNs e articula discursivamente o reconhecimento de valores relacionados a uma “formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral e simbólica. ” (BRASIL, 2018, p. 16), sintetizada na figura a seguir:

Figura 1 -  dimensões da formação e o desenvolvimento humano global na BNCC.

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: a autora

Há todo um conjunto de dimensões ligadas ao desenvolvimento de valores que são proclamados aqui: ética, moral, afetividade, sociabilidade. O discurso articulado acerca da formação humana, na BNCC, é o do desenvolvimento humano, holístico, trabalhando valores por meio do desenvolvimento de competências generalistas. Diz o texto:

É imprescindível destacar que as competências gerais da Educação Básica, apresentadas a seguir, inter-relacionam-se e desdobram-se no tratamento didático proposto para as três etapas da Educação Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio), articulando-se na construção de conhecimentos, no desenvolvimento de habilidades e na formação de atitudes e valores, nos termos da LDB. ” BRASIL, 2018, p. 08 [2]

A própria definição de competência para a BNCC traz imbuída a ideia de valores:

Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. ” (BNCC, p. 08)

Ou seja, uma interconexão que incorpora aos conteúdos, práticas os valores e atitudes: 

Figura 2 - Figura 6 - competência na BNCC   - interconexões.

 

 

 

 

Fonte: a autora

No discurso articulado da BNCC, competências não são, portanto, elementos separados e utilizados de forma estanque na formação humana, mas um conjunto que engloba essas dimensões que, por sua vez, devem ser entendidas como interligada e indissociáveis.

Valores, competências e habilidades:

O termo “competências” que a BNCC utiliza em sua definição de modelo curricular ocorre com frequência nas reformas educacionais que marcam as duas últimas décadas do século XX até o início do século XXI (cfe. Priestley, 2013).  Aqui, a BNCC estabelece que: 

... competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. ” (2018, p. 08) .

Nesta definição valores são entendidos como um dos elementos a serem mobilizados para o desenvolvimento de uma competência.

De forma geral, as competências a serem desenvolvidas ao longo do Ensino Médio podem ser vistas na tabela a seguir: 

Tabela 2 – total de competências específicas a serem desenvolvidas no Ensino Médio conforme a BNCC.

Área

Competências específicas

Linguagem e suas tecnologias

7

Matemática e suas Tecnologias

5

Ciências da Natureza e suas Tecnologias

3

Ciências Humanas e Sociais Aplicada

6

Total de competências a serem desenvolvidas no Ensino Médio

21

Fonte: a autora

No entanto, na descrição de cada uma das 21 competências apenas as habilidades aparecem especificadas para cada competência, ocorrendo um esvaziamento dos demais âmbitos – conhecimentos, atitudes e valores. A descrição das competências específicas de cada área traz (alguns) conhecimentos e procedimentos sob a chancela de competência específica e eventuais menções a atitudes e valores. Neste caso, termos associados aos valores são distribuídos entre competências específicas e habilidades.

 

Figura 3 - gráfico - Distribuição da categoria "valores" na BNCC.

Fonte: a autora

 

É possível verificar um esvaziamento de sentidos de competência, com possíveis e prováveis perdas na formação conceitual e – de forma mais acentuada – atitudinal e de valores. Há o risco de uma formação focada em repetir procedimentos, mecanizada, tecnicista e (in)competente que deixa a desejar, sem preparo adequado para a formação de sujeitos históricos, autônomos, atores sociais aptos a compreenderem e interferirem em seus contextos utilizando os conhecimentos, as atitudes e os valores necessários a isso.

Educação em valores na BNCC: da proposta generalista à concentração em uma área

Como se dá essa intersecção na distribuição das competências em meio às várias áreas?  A BNCC traz em seu escopo algumas competências gerais a serem trabalhadas pelo Ensino Médio como um todo e competências específicas de áreas. O levantamento a seguir foi realizado a partir da identificação da categoria “valores” e sua distribuição ao longo do documento. Assim, é possível verificar que a embora a BNCC se proponha a oferecer uma base generalista de educação em valores esta categoria aparece mais ligada a competências específicas de áreas, relegando a elas o papel de formação ética:

Os dados mostram que o discurso articulado que aparece na BNCC de educação global pautada em valores como ética, afetividade e sociabilidade, por exemplo (cfe. Brasil, 2018, p. 16) não se revela efetivo no próprio texto, à medida em que se desdobra na descrição de como essa dimensão formativa seria efetivada de forma holística. No decorrer da proposta da BNCC é possível verificar que essa formação se concentra na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, seguida de Linguagens e suas tecnologias.

Embora inegável que o campo das ciências humanas seja território da reflexão sobre valores, com a Ética como um campo filosófico por excelência, é também preocupante relegar apenas a essa área a formação humanística. Afinal, as Ciências da Natureza e a Matemática e suas Tecnologias se constituem, sim, campos que necessitam refletir acerca dos valores imbuídos em sua formação, concepção e aplicação sob o risco de uma formação cientificista tecnicista que não reflete sobre a ciência consumida e produzida e que leva à apropriação e repetição de procedimentos. Uma formação incompleta que sequer contribui para a compreensão da natureza da ciência e da tecnologia.

Ciências da natureza e suas tecnologias na BNCC:  o (não) lugar da ética e dos valores

A área de Ciências da Natureza e suas tecnologias compreende um campo fundamental para a compreensão do mundo e intervenção no mesmo.  O olhar científico para a natureza tem potencial emancipador, com implicações sobre a construção das narrativas sobre a existência e o lugar do humano na biosfera e no universo. A abordagem científica da natureza também possibilita a compreensão de seu funcionamento, permitindo a realização intencional de intervenções que modificam e reconfiguram a própria natureza. Assim, ao longo da história há toda uma antroposfera construída a partir dessa abordagem do mundo natural, alterando significativamente o ambiente natural com o recurso a tecnologias associadas ao saber científico. A união ostensiva da ciência e da tecnologia marcam a história humana contemporânea, com impactos que podem ser sentidos além da esfera da natureza, atingindo a sociedade, cultura e economia. Os impactos do desenvolvimento científico-tecnológico na vida cotidiana se fazem presentes desde a gestação e nascimento até à morte, e se dão inclusive sobre a concepção de vida e morte, tornando imprescindível uma formação sólida na área para a compreensão da vida, sociedade e natureza na era contemporânea. A educação científica passa a ser condição de exercício de cidadania, relação que é explorada por Adinolfi (2020), Sasseron (2011), Chassot (2003), Krasilchik (1992) quando abordam o papel da alfabetização científica para a formação humana ampla e cidadã.  “[...] a educação científica que confere poder de decisão é aquela que fornece as ferramentas básicas para a compreensão da linguagem e dos conceitos básicos de ciência, de forma que o sujeito se torna cidadão e pode decidir acerca do fazer científico de modo realmente informado”. (ADINOLFI, 2020, p. 441). Esta é a formação que possibilita aos sujeitos a capacidade de compreender o discurso científico e seus impactos m suas vidas cotidianas e tomar decisões. Sem isto restam a alienação do processo científico-tecnológico e a posição de meros consumidores inconscientes do peso do campo na história e em suas histórias pessoais e dinâmicas subjetivas e objetivas.

NA BNCC, o lugar da formação em Ciências da Natureza e Suas Tecnologias no percurso da formação do Ensino Médio pode ser visualizado no gráfico a seguir:

 

Figura 4 - gráfico - competências de Ciências da Natureza e Suas Tecnologias na proposta da BNCC.

 

 

 

 

 

 

Fonte: a autora

Uma deficiência no oferecimento da educação científico-tecnológica afeta diretamente a formação para a cidadania, pois prejudica a aquisição efetiva e compreensão da linguagem científica, empobrecendo sua visão de mundo, favorecendo a heteronomia em detrimento da autonomia nos processos decisórios de seu cotidiano e reforçando a tecnocracia. Sem a compreensão da linguagem científica o indivíduo é alienado de processo de decisão que o afetam e ao seu contexto socioambiental e econômico pois não tem sequer condições de compreender do que se tratam. Escolhas dizem respeito a valores, mas necessitam ser informadas e embasadas -  o que não ocorre adequadamente se houver uma educação científico-tecnológica deficiente.

A alfabetização científica é essencial para a construção da cidadania, assim como a reflexão sobre valores sociais é essencial para a construção de um saber e um fazer científico-tecnológico pertinente contextualizado historicamente (cfe. Adinolfi, 2020; Sasseron, 2011; Chassot, 2003; Krasilchik, 1992). É preciso refletir sobre os valores articulados em um caminho formativo apresentado aos cidadãos a partir do lugar dedicado à educação em ciências da natureza que se propõe a desenvolver três competências da área de Ciências da Natureza e Suas Tecnologias em meio a 21 outras competências.

Esse funcionamento aparentemente autônomo do discurso científico como regulador da vida cotidiana se apoia na afirmação de neutralidade e objetividade. Assim, a ciência e a tecnologia se apoiariam no uso de valores unicamente cognitivos – cuja objetividade pode ser mensurada a partir de critérios analíticos e/ou empíricos. Hugh Lacey observa que:

Existe uma distinção entre valores cognitivos e sociais.  Colocando de maneira direta: os valores cognitivos são características que as teorias e hipóteses científicas devem ter para o fim de expressar bem o entendimento – [...] – enquanto os valores sociais designam as características julgadas constitutivas de uma “boa” sociedade. ” (LACEY, 2003, p. 121)

A partir dessa perspectiva, e reafirmando os valores cognitivos como constituintes da ciência e da tecnologia, é preciso atentar também aos valores sociais que envolvem desde a concepção e adoção de modelos científicos até seus usos e impactos. Aumento da expectativa de vida, uso de armas atômicas, diminuição das distâncias pelo uso de tecnologias de informação, sedentarismo e outros efeitos que são exemplos de como a junção entre ciência e tecnologia impactam a forma de viver contemporânea de uma forma não neutra e com graus de intencionalidade. Tudo isso evidencia a pertinência a e necessidade da compreensão das concepções, modelos de intervenção, formas de produção, usos, impactos e papel da ciência e da tecnologia na construção da história contemporânea. Essa discussão necessária, entretanto, diz respeito também a valores sociais que envolvem o campo das Ciências da Natureza e Suas Tecnologias, especialmente em relação à educação e formação nessa área. O ensino de Ciências da Natureza e Suas Tecnologias não pode ignorar as implicações sociais, ambientais, culturais, econômicas, éticas e políticas não apenas da aplicação, mas também na produção de modelos científicos. Lacey (2003, 2008) chama a atenção para o contexto de produção, desenvolvimento e aplicação de um modelo científico que não é livre dos valores sociais incorporados pelos sujeitos envolvidos, e envolve aspectos que vão além dos valores cognitivos (que correspondem ao que pode ser representado de forma lógica e matemática). Questões relativas a desenvolvimento sustentável, modelos de consumo, democracia, tecnologias da informação e responsabilidade diante das gerações futuras permeiam o fazer científico-tecnológico e não podem ser descritas a partir de uma linguagem meramente técnica e objetiva, unidirecional. É necessária uma abordagem mais ampla que contemple a diversidade de possibilidades de discussão desses temas no interior do campo das Ciências da Natureza e suas Tecnologias que esteja presente na educação básica, instância primária de formação - primeiro humana, e, por conseguinte científica. Como observa Machado,

O desenvolvimento científico não pode ser considerado de forma desvinculada do projeto a que serve, que ele se realiza em cenário de valores socialmente acordados. As ciências precisam servir às pessoas e a organização da escola deve visar, primordialmente, ao desenvolvimento das competências pessoais” (MACHADO, 2007, p. 139)

A educação científica-tecnológica precisa incluir o debate dos valores associados à produção, modelos, usos e impactos do campo, o que é colocado como discurso articulado na BNCC:

Na Educação Básica, a área de Ciências da Natureza deve contribuir com a construção de uma base de conhecimentos contextualizada, que prepare os estudantes para fazer julgamentos, tomar iniciativas, elaborar argumentos e apresentar proposições alternativas, bem como fazer uso criterioso de diversas tecnologias. O desenvolvimento dessas práticas e a interação com as demais áreas do conhecimento favorecem discussões sobre as implicações éticas, socioculturais, políticas e econômicas de temas relacionados às Ciências da Natureza. (BRASIL, 2018, p. 537)

 

 

O discurso introdutório do campo das Ciências da Natureza e Suas Tecnologias da BNCC está em conformidade com a proposta geral de formação presentes em sua introdução e que engloba as dimensões intelectuais, físicas, afetivas, sociais, éticas, morais e simbólicas (cfe. Brasil, 2018, p. 16). Neste sentido, está em consonância com a posição de autores aqui trabalhados como Sasseron (2011), Chassot (2003); Krasilchik, 1992) que enfatizam a relação intrínseca entre alfabetização científica e valores que não são apenas objetivos (cfe. Machado, 2007; Lacey, 2003, 2008) mas também sociais e permeados da subjetividade que engloba projeções de self, emoções, valores sociais, econômicos e culturais em relação dinâmica entre si (cfe. Blasi, Colby e Damon. 1993; Puig, 2004; Araújo, Puig, Arantes, 2007).

Os valores sociais aparecem também associados a uma das três competências que devem ser desenvolvidas pelos estudantes o decorrer do ensino básico, como pode ser observado no quadro a seguir:

Figura 5 - BNCC-ensino médio – área de ciências da natureza e suas tecnologias – competência específica 3.

BNCC-ENSINO MÉDIO – ÁREA DE CIÊNCIAS DA NATUREZA E SUAS TECNOLOGIAS – COMPETÊNCIA ESPECÍFICA 3

 

Construir e utilizar interpretações sobre a dinâmica da vida, da terra e do cosmos para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do universo, e fundamentar decisões éticas e responsáveis.

 

Fonte: a autora

Considerando a educação em valores como processo que desenvolve a reflexão acerca de hábitos, escolhas e valores, há que (re)pensar a forma como ela aparece relacionada ao fazer científico-tecnológico. Por um lado, há a necessidade de uma sólida formação científico-tecnológica, por outro é também preciso que esta incorpore as discussões acerca dos valores sociais, não segregando a educação em valores ao campo das ciências humanas e sociais.  Na BNCC-Ensino Médio, as competências científico-tecnológicas equivalem a um sétimo do total de competências – o que é preocupante pois esta formação é vital para o pleno exercício da cidadania e sua ausência leva a uma tecnocracia. Já a educação em valores – especificamente a ética – aparece distribuída com muito maior peso na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, conforme a tabela a seguir:

Tabela 3 - Categoria valores na BNCC - Distribuição por áreas.

Soma de Ciências da Natureza e suas tecnologias

Soma de Matemática e suas tecnologias

Soma de Ciências Humanas e sociais aplicadas

Soma de Linguagens e suas Tecnologias

4

1

11

4

Categoria valores na BNCC - Distribuição por áreas

Ciências da Natureza e suas tecnologias

Matemática e suas tecnologias

Ciências humanas e sociais aplicadas

Linguagens e suas tecnologias

4

1

11

4

Fonte: a autora

Observa-se uma tendência de concentrar a educação em valores em um campo, limitando-se à discussão e a formação geral e cidadã nas demais áreas e contribuindo para o entendimento de que as demais áreas não são campo de debate para o tema. Assim, a área de Ciências da Natureza e Suas Tecnologias têm tantas menções à ética quanto a área de Linguagens e Suas Tecnologias – quatro no total, e a área de Matemática com apenas uma referência ao tema. Machado (2007, p. 138) destaca que as disciplinas não são fins em si mesmas, mas meios para a formação de caráter. Logo, a educação em valores não poderia ficar restrita a um campo de conhecimentos mas deveria ser distribuída ao longo dos conteúdos das demais áreas

Considerações finais: a BNCC - etapa do ensino médio e o (não) caminho de formação integral em ciências da natureza e suas tecnologias

O currículo é/deve ser expressão de formação de cidadania através de uma educação em valores que produz reflexão acerca do espaço compartilhado com o outro, padrões de comportamento, escolhas, e impactos para indivíduos e comunidades. Assim, é fundamental que o currículo propicie a formação de sujeitos pensantes que constroem a própria autonomia. Em especial, em um mundo que se constitui sob a égide científico-tecnológica, é necessário pensar sobre o que isso significa e quais seus impactos a partir dessa perspectiva ética, além de fornecer uma sólida educação científica que ofereça as condições de compreensão, reflexão e ação acerca do campo. A BNCC, ao propor um caminho de educação como desenvolvimento humano integral, por meio do desenvolvimento de competências e habilidades. Nesse caso, a formação científica deveria ser aprofundada, fornecendo ferramentas de compreensão e intervenção no mundo real, e a ética deveria ser uma competência a permear igualmente todas as páreas do conhecimento. Entretanto, o espaço destinado à formação científico-tecnológica deixa a desejar, assim como a reflexão ética. O discurso articulado nos textos introdutórios da BNCC traz um desencontro com as descrições de competências e habilidades em seu bojo. Como proposta para mudar o quadro, uma base nacional comum curricular precisa oferecer a todos, como direito de aprendizagem, uma formação sólida também na área científico-tecnológica, fundamental na sociedade contemporânea, e com uma profunda educação em valores permeando todas as áreas de modo a formar de modo holístico cidadãos autônomos aptos a discutir e decidir acerca do mundo que os cerca. Entretanto, preocupa que a BNCC não preencha essa lacuna, indicando uma caminhada em que permanecem a formação científico-tecnológica exígua e sem reflexão acerca dos valores sociais que a acompanham, favorecendo a construção de uma sociedade tecnocrática.

Referências

ADINOLFI, Valéria Trigueiro Santos. Educação em valores e bioética - formação de engenheiros. 2014. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. doi: 10.11606/T.48.2014.tde-30032015-141638.  Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-30032015-141638/pt-br.php Acesso em: 16 set. 2022

ADINOLFI, Valéria Trigueiro Santos. Alfabetização cientifica como ferramenta para o exercício da ética: um ensaio. Revista de Ensino de Ciências e Matemática, [S. l.], v. 11, n. 3, p. 436–449, 2020. DOI: 10.26843/rencima.v11i3.2689. Disponível em: https://revistapos.cruzeirodosul.edu.br/index.php/rencima/article/view/2689

ALEXANDER, Larry; MOORE, Michael. Deontological Ethics. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta (ed.). 2012. Disponível em http://plato.stanford.edu/archives/win2012/entries/ethics-deontological/

ARAÚJO, Ulisses Ferreira. PUIG; Josep Maria; ARANTES, Valéria  Amorim Arantes. (org.). Educação e valores: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus 1, 2007

BLASI, Augusto. The Self and the Management of the Moral life. Handbook of Moral Motivation. Leiden: Brill, 2013. https://brill.com/view/book/edcoll/9789462092754/BP000018.xml Web. 15 Jun. 2023

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular – Ensino Médio. Brasília: MEC, 2018

CHASSOT, Attico. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista Brasileira de Educação, Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22, p. 89-100

COLBY, A., DAMON, W. The uniting of self and morality in the development of extraordinary moral commitment. In G. G. Noam, T. E. Wren, G. Nunner-Winkler, & W. Edelstein (Eds.), The moral self (pp. 149–174). The MIT Press, 1993

CORTINA, A.; MARTINEZ, E. Ética. São Paulo: Edições Loyola, 2001

DRIVER, Julia. The History of Utilitarianism. In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta (ed.). 2009. Disponível em: http://plato.stanford.edu/archives/sum2009/entries/utilitarianism-history

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996, 31a ed.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005

GILLIGAN, Carol. In a Different Voice: Psychological Theory and Women's Development. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1982

GUIMARÃES, Gilma. Da democracia na polis à Paidéia democrática. Em: Vida de Ensino, v. 02, n. 05 p. 33-45, mar/set. 2010. Disponível em: http://rioverde.ifgoiano.edu.br/periodicos/index.php/vidadeensino/article/view/120/116

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo.  Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989

ILLIERS, Johan. Between separation and celebration: Perspectives on the ethical-political preaching of Desmond Tutu. Stellenbosch Theological Journal. Stellenbosch, v. 1, n. 1, p. 41-56, 2015.   2023.  http://dx.doi.org/10.17570/STJ.2015.v1n1.a2

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995

KRASILCHIK, Myriam. Caminhos do ensino de ciências no Brasil. Em Aberto, Brasília, 449, ano 11, nº 55, jul. /set. 1992

LACEY, Hugh. Existe uma distinção relevante entre valores cognitivos e sociais? Sci. stud., São Paulo, v. 1, n. 2, p. 121-149, June 2003.   Available from. Access on 02 July 2020.  https://doi.org/10.1590/S1678-31662003000200002.  Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662003000200002&lng=en&nrm=iso  Acesso em 16 set 2022

LACEY, Hugh.  Valores e atividade científica 1.São Paulo: Editora 34, 2008

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: Ensaios sobre a alteridade, Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 2005

MACHADO, Nilson José. Sobre a ideia de competências. Em: Perrenoud, Philippe. As competências para ensinar no século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Tradução: Claudia Schilling, Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2007

MACHADO, Nilson José. Ética e educação: pessoalidade, cidadania, didática, epistemologia. Coria: Ateliê Editorial, 2012

MORIN, Edgar, A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011

PINAR, William. The character of curriculum studies: bildung, currere, and the recurring question of the subject. New York: Palgrave Macmillan, 2011

PUIG, Josep Maria. Práticas morais: Uma abordagem sociocultural da educação moral. Tradução: Cristina Antunes. São Paulo: Moderna, 2004.

PRIESTLEY, Mark. BIESTA, Gert. Reinventing the curriculum: new trends in curriculum and practice. London/New York, Bloomsbury, 2013

RAWLS, John. História da filosofia moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005

SACRISTÁN, José Gimeno. O que significa currículo? SACRISTÁN, José Gimeno (org.) Saberes e incertezas sobre currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 16-35

SASSERON, Lúcia Helena. CARVALHO, Anna Maria Pessoa. Alfabetização Científica: Uma Revisão Bibliográfica. Investigações em Ensino de Ciências, V16(1), pp. 59-77, 2011

SEABRA FILHO, José Rodrigues. Protágoras e a virtude ensinável. In: Letras Clássicas, n. 2, p. 57-66, 1998

STEIN, Edith. On the Problem of Empathy. Springer Dordrecht, 2013.

 

Notas

 



[1] Portaria n° 1.570 (publicada no D.O.U. de 21/12/2018)

[2] Grifo nosso

 

 

CC.png 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)