Os princípios de aprendizagem dos bons videogames, de James Paul Gee, e suas aproximações com a teoria sociológica do jogo, de Roger Caillois

The learning principles of good video games by James Paul Gee and their approaches to Roger Caillois sociological game theory

Los principios de aprendizaje de los buenos videojuegos, de James Paul Gee, y sus aproximaciones a la teoría sociológica de los juegos, de Roger Caillois

 

Elane Cristina Pinheiro Monteiro

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.   

elanepinheiro17@hotmail.com   

Renan Santos Furtado

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.   

renan.furtado@yahoo.com.br   

Marcio Antonio Raiol dos Santos

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.   

mars@ufpa.br

 

Recebido em 14 de setembro de 2022

Aprovado em 16 de janeiro de 2023

Publicado em 01 de março de 2024

 

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo discutir as aproximações entre os princípios da aprendizagem presentes nos bons videogames, abordados por Gee, e a teoria sociológica do jogo elaborada por Caillois, projetando as contribuições desse debate para pensarmos sobre o processo de ensino e aprendizagem das práticas corporais na Educação Física escolar. A partir do horizonte de um ensaio teórico com intenções reflexivas, verificamos que a perspectiva de Gee corrobora a de Caillois, na medida em que reconhece as amplas possibilidades de fruição que o jogo apresenta. Cabe destacar que os princípios dos bons videogames elencados por Gee não somente incorporam a ideia de que, no jogo, podemos buscar competir, testar a nossa sorte, representar algo ou obter a sensação da vertigem, mas também pensam essas características do jogo em conexão com processos de desenvolvimento de potencialidades humanas, que, na educação, ocorre por via de aprendizagens. A nosso ver, essas amplas contribuições teóricas oriundas de estudos empíricos podem também ajudar a avançar o ensino das práticas corporais na Educação Física escolar contemporânea.

Palavras-chave: Videogames; Educação Física Escolar, James Gee; Roger Caillois.

 

ABSTRACT

This work aims to discuss the approximations between the learning principles present in good videogames approached by Gee and the sociological theory of the game elaborated by Caillois, projecting the contributions of this debate to think about the teaching and learning process of corporal practices in Physical Education school. From the horizon of a theoretical essay with reflective intentions, it was verified that Gee's perspective corroborates that of Caillois, insofar as it recognizes the wide possibilities of fruition that the game presents. It should be noted that the principles of good video games listed by Gee not only incorporate the idea that in the game we can seek to compete, test our luck, represent something or get the feeling of vertigo, but also think about these characteristics of the game in connection with development processes of human potential, which, in education, occurs through learning. In our view, these broad theoretical contributions arising from empirical studies can also help to advance the teaching of bodily practices in contemporary school Physical Education.

Keywords: Videogames; School Physical Education; James Gee; Roger Caillois.

 

RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo discutir las aproximaciones entre los principios de aprendizaje presentes en los buenos videojuegos, abordados por Gee, y la teoría sociológica del juego elaborada por Caillois, proyectando los aportes de este debate para pensar el proceso de enseñanza y aprendizaje de prácticas corporales. en Educación Física Escolar. Desde la perspectiva de un ensayo teórico con intenciones reflexivas, vemos que la perspectiva de Gee corrobora la de Caillois, en la medida en que reconoce las amplias posibilidades de disfrute que presenta el juego. Vale la pena señalar que los principios del buen videojuego enumerados por Gee no sólo incorporan la idea de que, en el juego, podemos buscar competir, probar suerte, representar algo u obtener la sensación de vértigo, sino que también piensan en estos. Características del juego en relación con los procesos de desarrollo del potencial humano que, en educación, se da a través del aprendizaje. En nuestra opinión, estas amplias contribuciones teóricas que surgen de los estudios empíricos también pueden ayudar a avanzar en la enseñanza de las prácticas corporales en la Educación Física escolar contemporánea.

Palabras Clave: Juegos de vídeo; Educación Física Escolar, James Gee; Roger Caillois.

 

Introdução

O presente estudo adentrará na discussão sobre o fenômeno do jogo imbricado com o debate a respeito dos princípios dos bons videogames e suas potencialidades para o campo educacional. Cabe destacar que o termo “bons videogames”, abordado por Gee, refere-se aos videogames nos quais podemos identificar em seus designs de games, ou seja, na parte criativa e teórica do jogo (enredo, personagens, jogabilidade, objetivos, fases e experiência do usuário), os princípios da aprendizagem identificados por Gee (2009). Tais princípios foram reconhecidos em games comerciais para fins de entretenimento, que possuem melhor design gráfico, uma boa experiência imersiva e principalmente requerem diversas estratégias para superar as situações-problemas durante a jogabilidade. Em nosso estudo, optamos por utilizar os termos “videogame” e “games”, pois são os termos também utilizados na obra de Gee, no entanto, fazem alusão aos bons videogames.

 Desse modo, por meio da contribuição teórico-conceitual de reconhecidos autores dessa área de pesquisa, buscaremos apontar algumas reflexões para a Educação Física escolar, que se interessa pelo jogo na qualidade de objeto de conhecimento nas diferentes etapas e modalidades de ensino da educação básica.

Tradicionalmente, existe uma associação do jogo com as áreas da Educação e Educação Física. Na Educação, em geral, o jogo é concebido como uma ferramenta, ou melhor, como um meio para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, motoras, afetivas e sociais (KISHIMOTO, 2011). Não tão distante dessa discussão, o jogo, na área da Educação Física, tem sido debatido tanto como uma atividade que compõe o universo da cultura lúdica das crianças (FREIRE, 1989) como um conteúdo do componente curricular Educação Física, que deve ser tematizado nas diferentes etapas de ensino da educação básica (BREGOLATO, 2007; NEIRA, 2008; DARIDO, 2011; FURTADO; BORGES, 2019).

Na recente pesquisa realizada por Furtado e Borges (2020), oriunda da reflexão sobre as práticas de ensino do jogo em aulas de Educação Física no Ensino Médio, em uma escola pública da cidade de Belém do Pará, os autores sinalizam que, em virtude da complexidade da temática da ação lúdica na forma de jogos e brincadeiras, não seria possível dizer que o jogo é exclusivamente um objeto de estudo da Educação Física na escola. Sendo assim, existe ampla possibilidade do trabalho interdisciplinar com esse tema. Porém, a área da Educação Física possui interesse significativo no jogo em relação as suas práticas formativas, na medida em que muitos deles se manifestam na forma de práticas corporais.

Reiteradamente, o que pouco se discute nas áreas supracitadas é que o debate originário do jogo se encontra em campos como: Artes, Literatura, Psicologia, Filosofia, Sociologia, História cultural e Antropologia. Nesse sentido, a seguir, apresentaremos as ideias do filósofo Gee (2003, 2009) e do sociólogo Caillois (2017) sobre o jogo.

Vale destacar, e isso ficará evidente no decorrer deste escrito, que Gee apresenta uma concepção de jogo mais próxima das questões relativas à aprendizagem, aspecto que, de certo modo, explica a sua busca em vários estudos pelas potencialidades dos videogames para os processos formativos que ocorrem na escola. Já Caillois pode ser tratado com um dos mais ilustres teóricos do jogo da história do pensamento moderno, tendo em vista que buscou construir uma teoria sociológica de forte orientação filosófica a respeito da relação do ser humano com o jogo em distintos momentos históricos e contextos socioculturais. Considerar essas diferenças é importante para este estudo, pois buscaremos, mais adiante, realizar aproximações teóricas entre os autores.

 Em termos de objetivo, pretendemos discutir as aproximações entre os princípios da aprendizagem presentes nos bons videogames, abordados por Gee, e a teoria sociológica do jogo elaborada por Caillois, projetando as contribuições desse debate para pensarmos sobre o processo de ensino e aprendizagem das práticas corporais na Educação Física Escolar.

Cabe destacarmos que, na contemporaneidade, as novas tecnologias alteram de forma significativa o acesso às informações, as relações interpessoais, a rotina das instituições e, principalmente, a dinâmica com o mundo do trabalho, que requer trabalhadores capazes de operar com diferentes sistemas de conhecimento e propor soluções inovadoras e criativas. Nesse contexto, possíveis contribuições teóricas baseadas em estratégias de aprendizagens por meio do jogo podem vislumbrar ações pedagógicas com grande valor formativo e motivacional, diante de um corpo discente com vasta disponibilidade de informações, mas que, por vezes, não encontra sentido prático no ambiente escolar, interferindo, assim, no desenvolvimento de todo o seu potencial.

Em termos metodológicos, este estudo apresenta as características de um ensaio teórico, que buscará, a partir da seleção de um determinado material, refletir sobre a questão colocada e apresentar a posição dos seus autores a respeito (SEVERINO, 2016). Assim, os trabalhos de Gee (2003, 2009) e Caillois (2017) se apresentam, ao mesmo tempo, como fonte de análise e suporte para nossa reflexão sobre as aproximações entre as teorias e suas contribuições para a área da Educação Física escolar. Esse aspecto é importante porque a amplitude da reflexão sobre o fenômeno jogo poderia desembocar em apontamentos para diferentes dimensões da vida humana. No entanto, nosso foco central será nos processos de escolarização com práticas corporais lúdicas na escola.

É válido informar que as fontes foram elencadas em um estudo preliminar e da própria biografia dos autores principais da presente pesquisa, fazendo uma seleção de materiais com base na contribuição para o debate proposto, vislumbrando a possibilidade de expressarmos nossas concepções de mundo, de Educação e de Educação Física. A seleção em si considerou a colaboração dos textos como aportes teóricos para apoiar as ideias e reflexões que pretendemos sustentar a respeito da complexidade do fenômeno do jogo, dos jogos eletrônicos e da Educação Física escolar.

Em termos estruturais, este estudo contará com mais quatro tópicos além desta introdução. No segundo, apresentaremos as contribuições sobre os bons videogames, de James Paul Gee. Em seguida, discutiremos a teoria do jogo, de Roger Caillois. No quarto tópico, buscaremos apontar as aproximações entre as teorias e suas potencialidades para a Educação Física escolar. Por último, faremos nossas considerações finais.

A trajetória de James Paul Gee e seus estudos com os jogos

Nascido em 15 de abril de 1948, na cidade de San Jose, na Califórnia, James Paul Gee se formou em filosofia pela Universidade da Califórnia, realizando mestrado e doutorado em linguística pela Universidade de Stanford. Gee se torna professor em linguística teórica na Universidade de Stanford e, posteriormente, na Escola de Linguagem e Comunicação do Hampshire College em Massachusetts.

Durante esse período, Gee dedicou seus estudos em análise do discurso, sociolinguística e aplicações da linguística à alfabetização e à educação. Passou a integrar o corpo docente da Escola de Educação da Universidade de Boston, onde foi presidente do Departamento de Estudos e Aconselhamento do Desenvolvimento.

Na Universidade de Boston, o professor criou programas de pós-graduação focados em uma abordagem integrada de linguagem e alfabetização. Gee foi transferido para a Universidade Estadual do Arizona, onde foi Professor Presidencial de Estudos de Alfabetização, no Departamento de Currículo e Instrução.

No começo dos anos 2000, identificamos um importante estudo empreendido por Gee (2003), que se concentrou nos princípios de aprendizado identificados nos bons jogos de videogame e como esses princípios podem ser aplicados à sala de aula. É importante dizer que seu interesse pelos games surgiu ao tentar jogar e ensinar o seu neto de seis anos de idade. Em suas observações, ele percebeu a quantidade de informação e raciocínios que estavam sendo mobilizados para se conseguir jogar. Gee identificou, em seus estudos com os games, princípios de aprendizagem que estão presentes nos bons videogames.

Como maior contribuição de sua investigação, o filósofo apontou que esses mesmos princípios, se bem mediados em processos de ensino e aprendizagem, podem ser aplicados em sala de aula (GEE, 2009). Assim, podemos dizer que o seu estudo, na verdade, é uma analogia constante entre jogos de videogames e escola, no sentido de dizer quais características e elementos os bons videogames possuem e como podem ser incorporadas no processo de ensino e aprendizagem de conhecimentos de diferentes ciências. 

Cabe destacar que na perspectiva dos games, temos a possibilidade de utilização de jogos da classe de entretenimento comerciais não educacionais dos mais diferentes gêneros (sobrevivência, estratégia e precisão, rítmicos, lutas RPG de ação[1], MMORPG[2], entre outros) em uma proposta de aprendizagem, como ressalta Gee (2009), ao abordar os princípios de aprendizagem identificados no que o autor chamou de bons videogames.

Para Gee (2003), os bons videogames são complexos e desafiadores, promovendo em crianças e adolescentes, durante o ato de jogar, um processo de constante aprendizagem. Em Gee (2003, 2009), encontramos 15 princípios de aprendizagem nos games, os quais estão destacados abaixo:

• Identidade: os bons videogames cativam por meio da identidade. Os jogadores se comprometem profundamente com o jogo, aprendendo e agindo por meio da identidade. Gee (2009) destaca que uma aprendizagem profunda em novas áreas requer uma nova identidade de compromisso de longo prazo. Na educação, é preciso criar vínculos de compromisso para o ato de aprender, bem como ocorre nos bons videogames.

• Interação: à medida que o jogador interage com os games, o jogo oferece um feedback e novos desafios aos sujeitos. Gee (2009) relaciona esse princípio com a aprendizagem mediante a relação de interação que deve existir entre os materiais pedagógicos (textos, livros etc.), estudantes e a realidade global.

• Produção: muitos games possibilitam aos jogadores redesenhar, por meio de suas atitudes, o final do jogo, criando diferentes profissões e novos roteiros (GEE, 2009). A relação proposta por Gee (2009) entre o princípio da produção e a escola parte da concepção de que os estudantes poderiam ser mais bem engajados a um contexto mais participativo no ambiente escolar, além de protagonistas nas tomadas de decisões e na construção do currículo que estudam.

• Riscos: De acordo com Gee (2009), os bons videogames estimulam os jogadores a arriscar, explorar o jogo e tentar novas possibilidades. As falhas são positivas e geram um feedback até o jogador encontrar estratégias para seu progresso. O autor relaciona esse princípio com o espaço escolar, pois, nesse ambiente, pouco se oferece possibilidades aos estudantes para explorar, arriscar e aprender com os erros. É preciso, então, construir uma pedagogia do “erro” formativo.

• Customização: o princípio da customização permite ao jogador ter liberdade para ajustar o jogo ao seu estilo, desde características, habilidades e reações do seu personagem até o grau de dificuldade que necessita para aprender a jogar. A relação estabelecida por Gee (2009) entre o princípio da customização e a escola refere-se aos currículos escolares customizados, os quais deveriam possibilitar adaptações não apenas de um ritmo próprio dos estudantes, mas de intervenções verdadeiras entre o currículo e os interesses, desejos e estilos dos estudantes.

• Agência: os bons videogames permitem que o jogador se sinta com propriedade, controle e agenciamento de suas tarefas. Gee (2009) destaca que é raro perceber tais sentimentos nos estudantes no ambiente escolar. Dessa forma, estudantes que possuem relação passiva com a produção de conhecimento dificilmente desenvolvem seus aspectos críticos e autônomos.

• Boa ordenação dos problemas: Gee (2009) aponta que, nos bons videogames, as dificuldades encontradas durante o jogo se apresentam em diferentes níveis, de modo que os problemas iniciais ajudam os jogadores a formularem hipóteses para resolução de problemas em graus maiores. A relação desse princípio com o espaço escolar, estabelecida por Gee (2009), destaca que é preciso refletir sobre como ordenar problemas em um rico espaço imersivo, por exemplo, uma sala de aula de Ciências.

• Desafio e consolidação: segundo Gee (2009), os bons videogames permitem que o jogador vivencie problemas desafiadores repetidas vezes até que as soluções se tornem rotineiras e consolidadas pela constância. Posteriormente, esse sujeito resolverá problemas mais desafiadores que lhe possibilitem integrar novos conhecimentos aos anteriores. No contexto escolar, os estudantes necessitam de um tempo para consolidar seus aprendizados e desafios, os quais garantam o domínio de habilidades escolares (GEE, 2009).

• “Na hora certa” e a “pedido”: conforme Gee (2009), os games disponibilizam informações verbais na “hora certa”, ou seja, na hora que os jogadores precisam usá-la, ou a “pedido”, quando o jogador solicita tais informações. Gee (2009) parte do princípio de que o conhecimento no contexto escolar não deve ser apresentado aos estudantes de forma desconexa e desorganizada, devendo ser disponibilizado a partir do referido princípio.

• Sentidos contextualizados: tal princípio elucida que os games conseguem ligar os significados das palavras aos tipos de ações, imagens, diálogos e experiências que a elas se referem e como tais sentidos podem variar. O autor ressalta que a escola deveria se apropriar desse princípio para produzir sentidos contextualizados com o processo de apreensão de novas informações (GEE, 2009).

• Frustração prazerosa: os bons videogames são desafiadores, porém, os desafios respeitam os limites dos jogadores por meio dos níveis que os jogos oferecem, promovendo no jogador um estado altamente motivador. Para Gee (2009), a escola deve respeitar os limites dos estudantes e buscar estratégias desafiadoras para a construção do conhecimento. 

• Pensamento sistemático: o referido princípio estimula o pensamento relacional. O jogador precisa pensar quais situações futuras suas ações presentes podem desencadear. Gee (2009) ressalta que o pensamento relacional é crucial não apenas na escola, mas na sociedade complexa e global que vivemos.

• Explorar, pensar lateralmente, repensar os objetivos: Gee (2009) destaca que os games estimulam os jogadores ao ato de explorar o jogo em detalhes antes de mergulharem nele, bem como a pensarem lateralmente, e não de forma linear. Esse princípio é fundamental para uma educação contemporânea, na medida em que os estudantes podem ter contato com os conhecimentos sob múltiplas perspectivas.

• Ferramentas inteligentes e conhecimento distribuído: para Gee (2009), os games possuem as chamadas ferramentas inteligentes, que são os personagens virtuais com inúmeras habilidades que compartilham com o jogador, o qual deve aprender quando melhor usar tais ferramentas durante o jogo. Desse modo, podemos entender que há um compartilhamento de conhecimentos e habilidades para se avançar no jogo. Trabalhar em equipe e compartilhar conhecimentos e habilidades devem ser tarefas-chave no contexto escolar.

• Equipes transfuncionais: é um princípio percebido nos jogos com diversos jogadores, em que eles integram as suas diferentes habilidades para avançar no jogo, porque todos compreendem o suficiente das habilidades dos outros, tornando-se capazes de manter uma compreensão transfuncional (GEE, 2009). Na educação, significa distribuir, do melhor modo possível, a função dos sujeitos nos grupos de trabalho e exploração de problemas, dando a todos as reais possibilidades de contribuírem para a resolução dos problemas apresentados.

• Performance anterior à competência: em Gee (2009), os games possibilitam que os jogadores demonstrem seus desempenhos antes mesmo de serem devidamente competentes, pois tal desempenho se ampara nas orientações de outros jogadores mais avançados na estética do jogo e nas chamadas ferramentas inteligentes, anteriormente discutidas. Esse princípio, por vezes, é invertido na escola, que prioriza bem mais as competências, sem dar espaço às possibilidades para os estudantes demonstrarem seus desempenhos (GEE, 2009). Em outros termos, a educação tende a ser funcionalista e metrificada, excluindo as experiências que podem fazer com que os estudantes se tornem, de fato, competentes em alguma atividade.

 Ao observarmos os princípios destacados por Gee (2009), percebemos que há possibilidades de elencá-los e trabalhá-los no contexto escolar, sem necessariamente envolver os jogos eletrônicos enquanto prática, mas utilizando-os para estruturar variadas atividades com os estudantes. Sendo assim, a maior contribuição do estudo de Gee foi pensar sobre a relação entre games e educação, bem como seu esforço fundamental de sistematização de um conjunto de características presentes no fenômeno do jogo, especialmente nos games, e como eles podem ajudar a organizar um trabalho escolar realmente conectado com o espírito das crianças e jovens que frequentam a escola, os quais necessitam, cada vez mais, de uma educação contextualizada e reflexiva, que, sem negar as amplas possibilidades de acesso aos conhecimentos culturais, demanda que os sujeitos consigam pensar e resolver problemas presentes em suas vidas. No fundo, trata-se de uma aprendizagem em ação e movimento, pois, segundo Gee (2009), tais características estruturam toda a lógica dos bons videogames.

Prosseguiremos, a seguir, ampliando a discussão sobre jogos ao nos aproximarmos e analisarmos a obra de Roger Caillois sobre o tema.

A trajetória de Roger Caillois e sua teoria dos jogos

Roger Caillois (1913-1978) nasceu em Reims, na França, trabalhou como sociólogo, antropólogo, poeta e crítico literário, sendo diplomado em gramática. Inspirado pela sociologia e antropologia, na década de 1930, Caillois começou a desenvolver estudos originais a partir de questões relacionadas ao sagrado. Na França, Caillois fundou, em 1938, junto a Georges Bataille, a Faculdade de Sociologia. Em 1939, foi para a Argentina, estando envolvido em atividades políticas e intelectuais, colocando-se veementemente contra as diversas expressões do nazismo.

No final dos anos 1940, Caillois retorna à França. Tornou-se funcionário da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1948. No ano de 1952, Caillois fundou a Diogène, uma revista internacional e multidisciplinar financiada pela UNESCO. Podemos dizer que sua obra deve muito à exploração dos mundos poéticos do imaginário e do fantástico, constituindo um contributo essencial e perfeitamente original para a crítica literária e para as ciências. É dentro dessa perspectiva que podemos compreender sua aproximação com o universo dos jogos como um tema da cultura e da imaginação humana. Já com sua obra consolidada, Caillois foi eleito para a Academia Francesa, em 14 de janeiro de 1971, ocupando a cadeira 3.

 Muito embora as teses centrais sejam distintas, Caillois contribuiu de forma significativa para os estudos dos jogos e seu papel para a construção da civilização, bem como se propôs o historiador holandês Johan Huizinga, em 1938, com a publicação do célebre estudo denominado “Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura”. Para Caillois (2017), o jogo não seria anterior à cultura, mas caminharia simultaneamente com ela, gerando numerosas relações de interdependência singulares a cada cultura e época. O jogo possui o seu desenvolvimento independente da vida diária, ocorrendo paralelamente e com suas características peculiares. Pois, ao mesmo tempo que as condutas lúdicas ajudam a formar instituições e vínculos entre os seres humanos, é somente a partir da compreensão da forma como as diferentes sociedades se organizam, do ponto de vista dos seus hábitos, costumes, relações sociais e instituições, que podemos entender, de fato, os diversos tipos de jogos e seus usos sociais em cada contexto e realidade da vida humana.

Sendo assim, Caillois (2017) exemplifica sua compreensão formal de jogo, categorizando-o como uma atividade livre, improdutiva (no sentido de não criar riqueza), separada da rotina diária, com certo grau de incerteza, que ocorre geralmente com a presença de regras e dentro de uma dinâmica fictícia. Para o autor, dentro dessa esfera de liberdade momentânea e busca pelo prazer, o jogo pode ser compreendido como um conjunto de dinâmicas carregadas de imprevisibilidade, convenções, risco, imersão, invenções e utilização de habilidades físicas, psicológicas e relacionais. 

De acordo com Caillois (2017), a principal lacuna da clássica pesquisa de Huizinga (1980), refere-se ao fato de o autor holandês tratar todos os jogos de igual modo, como se pudessem ser concebidos dentro de uma estrutura similar de características e com um mesmo papel para a formação das diferentes sociedades, já que Huizinga não se propôs a construir uma classificação dos jogos.

Assim, Caillois (2017) propõe uma classificação baseada em quatro categorias, as quais considera fundamentais por apresentarem aspectos socializantes e necessários à vida coletiva e serem instintos/pulsões humanas que provocam o ato de jogar. Conforme o autor, cada uma das categorias do jogo, dada a sua amplitude e estabilidade, passaram a ter forte presença na vida coletiva (CAILLOIS, 2017). Assim, destacamos, no quadro abaixo, as quatro categorias elencadas pelo autor, bem como suas principais características.

 

Quadro 1 - Classificação do jogo de Caillois (2017).

Classificação

Características

 

 

 

AGÔN

(Jogos de competição)

- Rivalidade entre jogadores;

- Aprimoramento de habilidades físicas e psicológicas;

- Competições desportivas em geral;

- Requer perseverança, disciplina e mérito;

- Presença de muitas regras e convenções para garantir a igualdade nas disputas.

 

 

 

ALEA

(Jogos de Sorte)

- Resultado a cargo do destino;

- Não depende de perseverança e disciplina dos jogadores;

- Pouco controle do jogador no resultado do jogo e sem mobilização de muitas habilidades;

- Possui riscos e possíveis lucros;

- Refere-se a todos os jogos de roleta, de loteria e sorte.

 

 

MIMICRY

(Jogo de imitação ou Simulacro)

- Jogos de representação, imitação e disfarce;

- Prazer de ser outro personagem;

- Desenvolvimento constante da imaginação e contexto fictício;

- Jogos teatrais, baile de máscaras, carnavais, imitações e ações infantis.

 

 

ILINX

(Jogos de vertigem)

- Jogos que buscam a perda do ponto de equilíbrio do jogador; 

- Sensação irregular dos movimentos, desordem corporal e emocional; 

- Desfrute a aproveitamento dos momentos de vertigem e perda de estabilidade.

Fonte: Elaboração dos autores com base em Caillois (2017).

          No limite, Caillois (2017) explica que podemos jogar para comparar, junto a outros sujeitos ou grupos, nossas habilidades e aptidões dentro de atividades competitivas; para testar nossa sorte em dinâmicas dominadas pelo acaso; para ludibriar os outros e criar uma realidade fictícia; ou para buscar a vertigem e sensações as quais não podemos controlar. Além disso, esses não são impulsos presentes somente nos jogos, mas em diversas sociedades e formas de organização da vida coletiva, que podem ser baseadas na competição e no mérito, no acaso ou mesmo na festividade e possível “desordem” causada pela simulação e a vertigem.

          As diferentes categorias dos jogos e suas possíveis relações se materializam como elementos que interferem diretamente nos costumes da sociedade em que estão inseridas. Podem agregar um equilíbrio entre a razão e emoção ou serem corrompidas com a quebra tênue da barreira que separa o jogo da realidade, deturpando a natureza do próprio jogo. Como ressalta Caillois (2017), é importante compreender o limiar que separa o jogo como uma experiência intensa e significativa do instinto que extravasa e o contamina com a vida real, sem reconhecer os seus limites de tempo e espaço.

          A contaminação do jogo pode ocasionar consequências psicológicas desastrosas para os jogadores. A corrupção do agôn pode levar à ganância obsessiva e frenética; da alea, aos excessos de crendices supersticiosas, expressando medos e inseguranças na vida diária; da mimicry, à perda de identidade, alienação e convicção de ser o personagem que imita; e da ilinx, à busca permanente pela vertigem, embriaguez e entorpecimento. Como destaca Caillois (2017, p. 37):

É de salientar que nem para o agôn, nem para alea, nem para o mimicry a intensidade do jogo é causa de desvio prejudicial, que é sempre o resultado de uma contaminação com a vida corrente. Revela-se quando o instinto que comanda o jogo extravasa os limites rigorosos de tempo e de lugar, sem prévias e imperiosas convenções. É lícito jogar-se tão a sério quanto se queira dar o máximo e arriscar toda a fortuna e, até a vida, mas é necessário poder parar no limite anteriormente fixado e saber regressar à sua condição habitual, exatamente aquela em que as regras do jogo, libertadoras mas restritivas, já não vigoram.

 

          É importante compreender que as pulsões elementares que regem os jogos (competição, acaso, vertigem e simulacro) são características psicológicas dos indivíduos que estão atreladas à sua natureza sensível e encontram o seu ponto de equilíbrio com a natureza formal por meio do jogo, que, pela via da imaginação, descobre um caminho possível para experiências existenciais, produção de conhecimento e enriquecimento das diversas culturas.

          O espírito do jogo é essencial à cultura. Sendo assim, concordamos com o pensamento de Caillois (2017) quando o sociólogo pontua que as diferentes culturas praticam uma diversidade de jogos que se entrelaçam com hábitos diários da sociedade, porém, definir unicamente a cultura por seus jogos, como tentou Huizinga (1980), seria arriscado e, talvez, insuficiente. No entanto, é possível compreender, em certas sociedades, valores e traços culturais de diferentes grupos sociais pela preferência dada a uns ou outros jogos.

          Os jogos aparecem margeando a sociedade e ajudam na coexistência e riqueza das diferentes culturas. Essa multiplicidade de jogos encontrada em diversos grupos sociais cria um conjunto de possibilidades e realizações que podem ser compartilhadas entre os sujeitos, de forma a reconhecer e respeitar a pluralidade cultural existente em uma sociedade. Acreditamos que as características psicológicas dos jogos são universais e inerentes ao ser humano, o que difere são os valores que cada grupo social atribui a esse fenômeno.

          Desse modo, com base nas exposições realizadas sobre nossos interlocutores e alguns dos seus principais apontamentos sobre o universo dos jogos e sua contribuição para o desenvolvimento humano, no próximo tópico, buscaremos aprofundar a relação teórica entre Gee e Caillois, no sentido de apontarmos algumas colaborações para a Educação Física escolar.

Aproximações entre as teorias e apontamentos para a Educação Física escolar  

          Para organizarmos nossa aproximação entre os autores centrais deste estudo e esboçarmos suas colaborações para a Educação Física escolar, necessitamos delimitar sob quais aspectos trataremos de suas contribuições teóricas. Assim, pontuamos que falaremos a partir de três eixos, a dizer: 1) concepção de jogo dos autores; 2) princípios dos bons videogames e classificação baseada nos impulsos humanos manifestados no ato de jogar; 3) apontamentos para a tematização do jogo na Educação Física escolar.

          Vale dizer que nem todas as aproximações que apresentaremos se manifestam como possibilidades diretas de aplicação no contexto escolar, mas sim como aspectos teóricos que podem orientar concepções de professores e sujeitos envolvidos com educação. Em nosso entendimento, esse é um ponto central para a compreensão das aproximações e contribuições desses autores, isto é, a consideração de que dificilmente possuiremos “receitas” e caminhos delimitados para a intervenção pedagógica na educação escolar, e sim um arcabouço reflexivo capaz de inspirar e embasar práticas pedagógicas críticas e inovadoras pelo e com o fenômeno jogo.

          Sobre a concepção de jogo dos autores, apesar do ponto de partida diferente, ou seja, linhas epistemológicas e interesses distintos no estudo do jogo, conforme pontuamos na introdução deste estudo, os autores acabam realizando apontamentos congruentes sobre a sua natureza e algumas de suas características. Gee (2009) sinaliza que o desafio, na medida correta, é um aspecto fundamental presente nos jogos. Ou seja, no jogo, os sujeitos devem sempre participar de dinâmicas carregadas de tensão, em que as dificuldades se colocam como promotoras de aprendizagens e desenvolvimento. Quer dizer, o bom jogo não pode nem ser tão difícil ao ponto de ser inexecutável, nem tão simples, correndo o risco de gerar tédio nos jogadores.

          Outra característica que Gee (2009) identifica nos jogos é a presença de regras que devem ser aprendidas pelos jogadores, em um processo interativo de descoberta e busca. Aliás, esse ponto se aproxima da teorização de Brougère (1998) sobre a cultura lúdica, que se trata de um conjunto de signos e condutas que devem ser aprendidas e que tornam o jogo possível. Segundo Gee (2009, p. 3), “você tem que descobrir quais são essas regras e como elas podem ser melhor usadas para atingir objetivos”.

          Em Caillois (2017), a ideia de que o jogo porta um desafio está presente em toda a sua obra, já que ele é naturalmente uma atividade de risco calculado e, por vezes, previsto, que deve ser capaz de prender a atenção e os esforços do jogador dentro de uma dinâmica de tensão e incerteza. Sendo assim, podemos dizer, com base em nossos interlocutores, que o jogo por si só questiona a rotina tradicional da escola, que tende a homogeneizar e metrificar as experiências de aprendizagem dos estudantes, sendo o risco, então, um elemento a ser eliminado das práticas de escolarização. Nesse ponto, os apontamentos de Gee (2009) sobre os bons videogames se colocam, ainda mais, como inovadores para a ambiência escolar, dado que todos os seus princípios de aprendizagem buscam constantemente questionar a ideia de que aprendemos sobre os fenômenos por meio de progressões lógicas e estáticas.

          Logo, tanto em Gee (2009) como em Caillois (2017), a ideia de que aprendemos com o erro e devemos ter sempre a oportunidade de tentar mais uma vez é benéfica, do ponto de vista do desenvolvimento de habilidades humanas. Porém, a escola é por natureza avessa ao erro, sendo esse um fator a ser minimizado e punido, seja nos processos avaliativos ou por via de atos administrativos.

          A respeito das regras, Caillois (2017) considera que o caráter flexível, porém, praticamente obrigatório delas reserva ao jogo a possibilidade da criação e recriação de dinâmicas de socialização. Em ambos os autores, as regras aparecem não como elementos que tornam o jogo inviável ou rígido, mas como um conjunto de convenções que tornam o jogo possível a partir de critérios e procedimentos atrativos para os diferentes públicos. Gee (2009) reforça que se os princípios dos bons videogames forem utilizados para os processos educacionais, devemos sempre pensar em tarefas com regras executáveis e compreensíveis, com desafio na medida certa, sendo esse último um aspecto naturalmente presente nos games e, por isso mesmo, aplicável no contexto educacional.  

          Do ponto de vista de uma sociologia dos jogos, Caillois (2017) se propõe a caracterizar esse fenômeno de modo bem mais sistemático e detalhado. A partir do enfoque educacional e com base em teorias da aprendizagem, podemos dizer que a concepção de Gee (2009), ainda que menos rebuscada, apresenta as ideias centrais do fenômeno jogo. Assim, ambos os pensadores confirmam o alto teor socializante presente nos jogos em sentido amplo (e podemos incluir os bons videogames tratados por Gee), sendo essa uma das principais justificativas para o seu uso em instituições educativas sob a mediação docente, com um olhar atento e crítico. Isso porque mesmo os games que apresentam tais princípios, elencados por Gee, são artefatos culturais que existem, em nosso tempo, ligados ao mercado global de entretenimento, dominados pelas grandes potências econômicas. Logo, eles podem moldar práticas discursivas e relações de poder entre os sujeitos e subjetivar modelos de corpos femininos e masculinos. Como destaca Moita (2004), os games se configuram como um universo com predominância masculina, podendo contribuir na reprodução de um modelo patriarcal de sociedade.

        Devemos compreender que os games, como objeto de estudo da escola, assumem funções educativas, assim, é papel dos sujeitos da escola questionarem as suas narrativas, as quais produzem modos de existência, contradições socias, formas de preconceito e de opressões culturais, econômicas, étnicas, de sexo, entre outras; que, dependendo do jogo, podem transmitir experiências não formativas aos educandos, com uma violência invisível que atinge principalmente os estudantes que não se encaixam nos padrões identificados nas narrativas propostas no jogo. Desse modo, cabe aos docentes, em seus planejamentos, manterem-se atentos e críticos, uma vez que tais jogos não são neutros, inocentes e desinteressados, e podem refletir interesses particulares de grupos sociais dominantes.

          Referente aos princípios dos bons videogames e a classificação baseada nos impulsos humanos, manifestados no ato de jogar, podemos dizer que as densas aferições realizadas por Gee e Caillois sobre o jogo nos possibilitam uma série de reflexões e apontamentos para o processo de ensino e aprendizagem. Sem dúvida alguma, identidade, interação, produção, risco, customização, agência etc. são princípios de aprendizagem que podem ser encontrados nos bons videogames com dinâmicas de sorte, disputa, imitação e vertigem. Aliás, essa é uma questão interessante para a educação escolar, quer dizer, para a reflexão sobre como características peculiares de qualquer componente curricular podem ser integradas em processos de aprendizagem que valorizem a formação reflexiva dos estudantes, e não apenas o reconhecimento das estruturas que formam um determinado fenômeno da realidade.

          Nessa perspectiva, os games podem representar uma importante ferramenta pedagógica, que permite uma nova interação dos estudantes com o saber, considerando que a geração de crianças e adolescentes da década de 90, do século XX em diante, interage cada vez mais com eles. De um ponto de vista geral, é possível dizer que ao apresentar princípios sobre os bons videogames, Gee (2009) não buscou elaborar uma classificação dos jogos, como fez Caillois (2017). Aliás, talvez nem tenhamos elementos suficientes para dizer que os videogames, na contemporaneidade, manifestam-se como um novo impulso humano presente no ato de jogar. É mais correto falarmos que os games e os bons jogos podem apresentar, ao mesmo tempo, todas as quatro grandes sensações propostas por Caillois (2017).

          Na perspectiva dos bons videogames e seus princípios formativos, como deseja Gee (2009), dinâmicas de sorte, competição, imitação e vertigem podem estar presentes de modo simultâneo. Por exemplo, quando Gee (2009) indica que os bons videogames contêm elementos como risco, boa ordenação de problemas, desafio e frustração prazerosa, indiretamente o autor quer dizer que a competição e a busca pela melhora de certo desempenho podem se apresentar como um elemento profícuo para o desenvolvimento de habilidades humanas.

          De igual modo, diferentemente de Huizinga (1980), Caillois (2017) não condena os jogos competitivos a serem meros reprodutores de valores e práticas excludentes. Desse ponto de vista, podemos afirmar que Gee (2009) e Caillois (2017) acreditam em uma espécie de competição formativa, a qual, sendo bem dosada, ordenada e mediada, pode ajudar na aquisição de aprendizagens (GEE, 2009) e na socialização dos sujeitos (CAILLOIS, 2017).

          Pontuamos que, no universo dos games, inúmeros gêneros diferentes. Nesse contexto, exemplificamos alguns dos principais gêneros propostos por Novak (2010): simulações, representação de papéis (RPG), estratégia, ação, aventura, games on-line multijogador. Não podemos esquecer dos Exergames (EXG), ou Games Ativos, os quais apresentam como principal característica a interação do movimento humano com a dinâmica do game por meio do mapeamento real e da virtualização dos movimentos do jogador, sendo possível controlar o jogo. Baracho e Lima (2012) ressaltam que os Exergames proporcionam aos jogadores o desenvolvimento de habilidades cognitivas, sensoriais e motoras por meio da realidade virtual e de tecnologias de mapeamento dos movimentos corporais.

          De acordo com Caillois (2017), o universo dos jogos oscila entre dois polos antagonistas. De um lado, a partir da denominação de paidia, temos as condutas e jogos em que o divertimento, a desordem, a turbulência, a improvisação, a alegria e a total liberdade prevalecem. Esses seriam os aspectos mais primitivos e elementares do jogo. No outro polo, chamado de ludus, observamos práticas essencialmente disciplinadas, regradas, com mais convenções arbitrárias, presença de habilidades, destrezas e esforços de diferentes ordens. Esses dois polos, ora se aproximam, ora se distanciam das quatro categorias do jogo, sendo mais claramente o agôn e a alea baseados no ludus, e a mimicry e a ilinx, na paidia. Contudo, essas dinâmicas se alteram, podendo existir formas mais sistemáticas de mimicry e ilinx, como o teatro e atrações dos parques de diversão, bem como expressões mais livres de agôn e alea, como corridas não regradas e uma simples brincadeira de cara ou coroa.

          Na teorização de Gee (2009), ao que tudo indica, os bons videogames tendem a possuir maiores convenções, ainda que o espaço para a criação e o imprevisível seja preservado e até mesmo planejado, como indicam os princípios de “na hora certa” e “a pedido”, as ferramentas inteligentes e o conhecimento distribuído. Se fôssemos tentar aproximar os bons videogames de um dos polos antagonistas do jogo, diríamos que eles necessitam incorporar em essência as características do ludus, muito embora possam permitir, nas suas dinâmicas específicas, a manifestação da paidia, todavia, desde que isso não comprometa a busca pelo desenvolvimento de alguma aprendizagem.

          Acreditamos que o diálogo empreendido entre os autores, até o momento, já aponta, de algum modo, suas contribuições para a educação escolar e Educação Física. No esforço de uma compreensão ampliada do fenômeno do jogo, a teorização desses autores referenda a afirmação de Furtado e Borges (2020) de que o jogo transcende o universo das práticas corporais, ainda que possa se manifestar na forma de práticas lúdicas de movimento. Em nosso entendimento, conceber o jogo simultaneamente como meio de aprendizagem, como prática corporal e enquanto fenômeno humano presente nas diferentes sociedades corrobora a ampliação da reflexão e possibilidades práticas para a Educação Física escolar. 

          É comum, no campo da educação escolar, o jogo ser tratado como uma ferramenta metodológica, isto é, como um meio para o desenvolvimento de habilidades motoras, cognitivas e sociais. Essa é a conhecida tese defendida por Freire (1989) para o trabalho com o jogo com crianças na escola e nas aulas de Educação Física. Com base em Gee (2009), podemos superar a ideia do jogo como metodologia que possui por si próprio um caráter formativo e socializante, para falarmos que, se bem utilizados, os seus princípios, presentes nos bons videogames, podem direcionar a organização de planejamentos e currículos realmente atrativos e contextualizados com as demandas e anseios da comunidade estudantil.

          Nesse sentido, nossa tarefa, a partir das contribuições de Gee (2009), não seria de utilizar somente o “jogo pelo jogo”, mas sim de apresentar os seus princípios para a construção de atividades e processos formativos nas diferentes áreas de conhecimento. No que concerne à Educação Física escolar, temos a possibilidade de selecionar games que tanto ajudam a explicar a cultura virtual contemporânea como se manifestam na qualidade prática corporal, já que possuem movimento, uma organização interna própria (regras e modos específicos de funcionamento) e são produto cultural (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2010). Ou seja, por via dos games, o estudante poderá aprender mais sobre as múltiplas formas de manifestação do fenômeno jogo e, consequentemente, a respeito das práticas corporais.

          De igual modo, agôn, alea, mimicry e ilinx, para além de uma mera classificação, podem ser utilizados como eixos capazes de organizar várias experiências formativas propostas pelas escolas. No limite, é preciso olharmos para o jogo na sua relação com a sociedade, ao ponto de entendermos que todas as suas características expressam, no fundo, as próprias ações humanas, nas mais diferentes circunstâncias que podem ser tematizadas na escola por meio de projetos interdisciplinares que abordem o fenômeno jogo, perpassando pelas diferentes áreas de conhecimento. Sendo esses projetos interdisciplinares caracterizados por cooperação, coordenação e troca teórica entre diferentes campos de conhecimento (SANTOS, 2012).

          Para a Educação Física escolar, considerar a teorização de Caillois (2017) pode representar um rumo possível para o alargamento da aprendizagem sobre o jogo. Na forma de práticas corporais, temos muitos jogos baseados na competição, na sorte, na imitação e na vertigem, sendo um caminho interessante tanto para a ampliação das experiências corporais com esse conteúdo como para a produção de compreensão (FREIRE, 2016) acerca desse fenômeno. Vale dizer que o recente estudo de Andrade, Lima e Almeida (2020) corrobora os nossos apontamentos, ao indicar que a organização do trabalho pedagógico com os jogos, pautada na categorização agôn, alea, ilinx e mimicry, proporciona ricas contribuições para a Educação Física escolar, sendo possível, ainda, a aproximação dessa categorização com o universo dos games, pois muitos deles reproduzem, na dinâmica virtual, características, valores e movimentos das práticas corporais historicamente construídas.

          Se pensarmos sobre a Educação Física escolar e sua constante luta por legitimidade como componente curricular formativo para as crianças, jovens, adultos e idosos que frequentam a escola brasileira, o uso reflexivo de teorias como a de Gee (2009) e Caillois (2017) certamente nos ajuda na ampliação de nossas teorizações e possibilidades de intervenção no âmbito das práticas corporais. O trabalho crítico e emancipador em Educação Física, na contemporaneidade, necessita apresentar a abertura para o novo, para cruzamentos e atravessamentos teórico-práticos que nos coloquem cotidianamente na esfera do risco formativo. Em outros termos, a intervenção pedagógica com as práticas corporais pode ser pensada como um jogo carregado de incertezas e potencial de criação.

 

Considerações Finais

          O presente estudo buscou aproximar contribuições teóricas de autores de campos epistemológicos e tradições de pensamento distintas. Contudo, apontamos que ambos apresentam uma gama de proximidades em suas reflexões sobre o fenômeno do jogo e seu potencial socializante e formativo. Assim, por via de um ensaio teórico realizado com base em alguns estudos de James Gee e Roger Caillois, arriscamo-nos a discutir a respeito de como suas construções conceituais podem ajudar a pensar sobre a educação escolar e a Educação Física na contemporaneidade. Destacamos o caráter original e problematizador deste ensaio, na medida em que, sem desconsiderar as diferenças temporais e epistemológicas entre os autores, buscamos, por meio das suas elaborações teóricas, apontar perspectivas para a educação escolar como um todo e para a tematização do jogo, dos games e das práticas corporais na Educação Física escolar. 

          Nosso processo de estudo e análise dos textos selecionados nos levou a projetar os pontos de aproximação a partir de três eixos principais, a dizer: 1) concepção de jogo dos autores; 2) princípios dos bons videogames e classificação baseada nos impulsos humanos manifestados no ato de jogar; 3) apontamentos para a tematização do jogo na Educação Física escolar. A partir dessa discussão, sinalizamos que essas teorias podem ajudar a fortalecer o processo de ensino e aprendizagem na escola, bem como ampliar a reflexão e a experiência com o fenômeno jogo nas aulas de Educação Física.

          Além disso, como contribuição mais ampla deste estudo, sinalizamos que o trato com os bons videogames, expostos por Gee, nas aulas de Educação Física, pode proporcionar um rico trabalho educativo com os games, quer seja como recurso pedagógico para o ensino dos conteúdos/conhecimentos da Educação Física com experiências imersivas, ou como o próprio conteúdo/conhecimento específico da disciplina, possibilitando o surgimento de atividades inovadoras, que possuem potencial para ampliar as condições dos estudantes para aprenderem mais sobre o fenômeno jogo e seu processo de virtualização na contemporaneidade.

          Por fim, pontuamos que nosso estudo não procurou realizar grandes conclusões sobre a obra desses renomados autores. Ainda assim, no âmbito de uma contribuição bem específica, cremos que apresentamos elementos para seguirmos pensando e construindo novas investigações a respeito da potência da atividade lúdica para processos de socialização e desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas, pois buscamos realizar uma articulação teórica não tão comum na produção de conhecimento em Educação e Educação Física. Estamos, agora, abertos ao diálogo crítico, reflexivo e construtivo. Que sigamos o debate!

 

Referências

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SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 24. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2016.

Notas



[1] RPG de ação: gênero que mistura elementos dos jogos de ação e aventura. Sua principal característica se expressa nos combates em tempo real. Temos como exemplos: Dark Souls e Mass Effect 2.

[2] MMORPG: A maior característica desse gênero é a presença de diversos usuários no mesmo servidor. Usualmente, os jogadores compartilham objetivos similares. World of Warcraft, Final Fantasy e Tera são exemplos desse gênero.

 

 

 

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