Gramsci, cultura, folclore e educação
Gramsci, culture, folklore and education
Gramsci, cultura, folklore y educación
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil
marcosfranciscomartins@gmail.com
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil
deborabergamini.cultura@gmail.com
Recebido em 31 de agosto de 2022
Aprovado em 02 de setembro de 2022
Publicado em 02 de julho de 2024
RESUMO
Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa cujo problema foi saber se o destaque que Gramsci conferiu à cultura o afastou do materialismo histórico-dialético. Metodologicamente, empregou-se a pesquisa bibliográfica, pela qual foram analisados textos de Gramsci da juventude e da maturidade carcerária, e de comentaristas. Na primeira parte, diz-se que Gramsci formulou o conceito de cultura a partir da síntese entre dois paradigmas rivais a ele contemporâneos: o francês e o alemão, construindo o conceito de cultura nacional-popular. Na segunda, demonstra-se que a dimensão cultural da vida social é dialeticamente articulada à educação, à política e à estrutura econômica. Na última parte, é afirmado que Gramsci superou a clássica distinção entre cultura erudita e popular, e deu nova interpretação ao folclore. Na conclusão está que Gramsci colaborou para atualizar o marxismo ao século XX, pois sustentou as formulações que produziu na categoria de totalidade e interpretou a cultura como uma das dimensões da disputa pela hegemonia, politizando-a e articulando-a à educação.
Palavras-chave: Cultura; Educação; Gramsci.
ABSTRACT
This article presents the results of a research whose problem was to know if the prominence that Gramsci gave to culture distanced him from historical-dialectical materialism. Methodologically, bibliographical research was used, through which texts by Gramsci, youth and prison maturity, and commentators were analyzed. In the first part, it is said that Gramsci formulated the concept of culture from the synthesis between two rival paradigms contemporaneous with him: the French and the German, building the concept of popular national culture. In the second, it is demonstrated that the cultural dimension of social life is dialectically articulated with education, politics and the economic structure. In the last part, it is stated that Gramsci overcame the classic distinction between high and popular culture, and gave a new interpretation to folklore. In conclusion, Gramsci collaborated to update Marxism to the 20th century, as he supported the formulations he produced in the category of totality and interpreted culture as one of the dimensions of the dispute for hegemony, politicizing it and articulating it to education.
Keywords: Culture; Education; Gramsci.
RESUMEN
Este artículo presenta los resultados de una investigación cuyo problema fue saber si el énfasis que Gramsci dio a la cultura lo alejaba del materialismo histórico-dialéctico. Metodológicamente se utilizó la investigación bibliográfica, a través de la cual se analizaron textos de Gramsci de su juventud y madurez carcelaria, y de comentaristas. En la primera parte, se dice que Gramsci formuló el concepto de cultura a partir de la síntesis entre dos paradigmas rivales que le eran contemporáneos: el francés y el alemán, construyendo el concepto de cultura nacional-popular. En el segundo, se demuestra que la dimensión cultural de la vida social está dialécticamente ligada a la educación, la política y la estructura económica. En la última parte se afirma que Gramsci superó la distinción clásica entre cultura alta y popular, y dio una nueva interpretación al folclore. En conclusión, Gramsci contribuyó a actualizar el marxismo al siglo XX, pues apoyó las formulaciones que produjo en la categoría de totalidad e interpretó la cultura como una de las dimensiones de la disputa por la hegemonía, politizándola y vinculándola a la educación.
Palavras clave: Cultura; Educación; Gramsci.
Introdução
A partir de pesquisa bibliográfica, este artigo apresenta uma interpretação da contribuição de Gramsci à cultura e ao folclore, ressaltando como tais conceitos se articulam, no legado do autor, aos processos educacionais, políticos e econômicos.
O problema que orientou a investigação foi saber se, mesmo conferindo à dimensão cultural da vida social importância destacada no processo de superação do capitalismo, Gramsci deixou-se enveredar por searas não marxistas. A tese defendida é a de que, diferentemente do que é por alguns(mas) afirmado, o que Gramsci formulou sobre cultura e folclore o coloca como um marxista que atualizou o materialismo histórico-dialético para orientar a revolução nas sociedades ocidentais, centrando a questão da disputa pelo poder nessas formações econômico-sociais no conceito de hegemonia, originário de Lenin.
Com conteúdo que discute as questões mais basilares quando se trata do debate sobre a cultura, como o dilema entre alta cultura x cultura popular, e mesmo sobre o folclore, o texto demonstra como essa discussão no legado gramsciano está dialeticamente articulado à educação, à política e à economia. Desse modo concebido, pode interessar ao público diverso: desde não marxistas interessados(as) pelo debate cultural, até os(as) que discutem os limites e possibilidades de Gramsci como autor que colaborou com a atualização do marxismo.
A cultura em Gramsci: para além dos paradigmas francês e alemão
A teoria social formulada por Marx e Engels, no século XIX, tinha no historicismo um dos pilares centrais. Dela decorre que, analisar a realidade concreta como produção histórica, é premissa fundamental. Gramsci é um dos mais renomados herdeiros do marxismo originário e isso, entre outras causas, porque o atualizou para a realidade do século XX, sem abandonar o método marxiano e as categorias de classe e de práxis, tão basilares à análise materialista histórico-dialética da realidade.
Desde os tempos em Turim até a maturidade no cárcere fascista, Gramsci se preocupou com a elevação do nível cultural das classes subalternas, entendida por ele como indispensável à revolução. A propósito, o periódico cujo primeiro número foi publicado em 1º de maio de 1919, sob o título de L’Ordine Nuovo, e que tinha Gramsci como secretário de redação, era identificado como “[...] resenha semanal de cultura socialista; um semanário [...] de propaganda ideológica e de formação/educação do proletariado italiano para o conflito revolucionário” (Staccone, 1995, p. 26). De fato,
A cultura se apresentava como uma questão importante no interior do PSI e era a seção juvenil, à qual Gramsci pertencia, que havia iniciado a incorporação destes temas nos congressos do partido. No interior deste debate, e fazendo parte da chamada “fração da esquerda revolucionária”, Gramsci se preocupava desde cedo com o que mais tarde denominaria de “organização da cultura”, ou seja, com os organismos construídos, no interior de uma sociedade, com a função ideológica de difundir uma determinada cultura. (Bezerra, 2016, p. 2)
Isso o fez um pensador marxista em certa medida diferenciado e culminou na concepção de Estado integral (ampliado) e de luta pela hegemonia, que ocorre na articulação dialética entre as dimensões objetiva e subjetiva da vida social.
Para Gramsci, não basta às classes subalternas preocuparem-se apenas em “tomar” os meios de produção para superar o capitalismo de um só golpe, já que é necessário também empreender a complexa luta no campo das concepções de mundo, pois esses processos guardam relações recíprocas na construção da revolução social, particularmente, nas “sociedades ocidentais”. Em outras palavras, para se conquistar “uma nova civilização”, a luta de classes deve ser travada tanto no campo material (estrutural) quanto no imaterial (superestrutural) da vida social, ou seja, ela também deve ocorrer na cultura e na educação Nesse sentido,
[...] entende-se porque, juntamente com o desenvolvimento de uma concepção crítica e histórica da realidade, ele (Gramsci) insistisse tanto nos elementos que favorecem a formação de uma personalidade própria dos trabalhadores, na liberdade e na capacidade de iniciativa, na função da cultura e no processo de subjetivação das camadas subalternas. (Semeraro, 1999, p. 68)
A obra de Gramsci, sobretudo, a da maturidade produzida nos onze anos de cárcere, compõe um conjunto de reflexões “não sistematizadas” devido às dificuldades que a prisão lhe impôs. Contudo, é possível tomá-la como concepção unitária, uma “totalidade articulada” (Martins, 2013, p. 37) compreensível a partir de conceitos-chave, como o de classe e o de práxis. Assim entendida, identifica-se a cultura como um dos conceitos centrais nas formulações que Gramsci produziu.
Podemos verificar [...] acompanhando o desenvolvimento do conceito de cultura nos Quaderni, nas inúmeras notas que discutem a questão, a preocupação de Gramsci em afirmar o conceito em duas direções: de um lado, a cultura significa o modo de viver, de pensar e de sentir a realidade por parte de uma civilização e, em segundo lugar, é concebida como projeto de formação do indivíduo, como ideal educativo a ser transmitido para as novas gerações. Os dois significados do termo em Gramsci não constituem inovações [...] pois, já entre os gregos e os latinos, as palavras paidéia e humanitas assumiam essas significações [...] o que podemos destacar inicialmente, no uso gramsciano do termo, é a compreensão unitária dos dois significados, ou seja, cultura significa um modo de viver que se produz e se reproduz por meio de um projeto de formação. (Vieira, 1999, p. 61)
Embora a obra de Gramsci tenha ficado conhecida por categorias e conceitos como o de hegemonia, reforma moral e intelectual, intelectual orgânico, bloco histórico, entre outros, uma das principais características das formulações do autor é seu caráter unitário, ou seja, existe uma articulação interna dialética entre conceitos e categorias, que formam uma teoria sintetizada na filosofia da práxis. Portanto, não é correto tratar do legado teórico gramsciano isolando conceitos, mesmo sabendo que o que o autor escreveu não tenha sido sistematizado por um método de exposição. De fato, o conjunto de sua obra expressa uma concepção unitária sobre o devir da realidade concreta, formulada a partir da ortodoxia em relação ao método marxiano, ou seja, uma análise historicamente estabelecida, que considera a materialidade e a dialeticidade da realidade concreta
O caráter unitário das formulações de Gramsci o possibilitou sintetizar paradigmas culturais do início do século XX, o que conferiu importância à sua obra nas análises culturais na segunda metade daquele século e no século corrente.
Para Cardoso (1997), os conceitos de cultura no final do século XIX e início do XX compunham-se de vertentes, que se baseavam em dois paradigmas rivais: o francês e o alemão. O primeiro defensor da cultura como processo evolutivo da civilização e o segundo relacionado à cultura como desenvolvimento humano.
Estudando as concepções de cultura de Gramsci, da juventude ao cárcere, é possível afirmar que, ao elaborar o próprio conceito de cultura, ele estabeleceu uma síntese entre os dois referidos paradigmas. O comunista sardo defendeu a cultura letrada e erudita, característica do paradigma francês e, ao mesmo tempo, entendeu a cultura como formação humana, bildung[1], para empregar o termo alemão.
Em um de seus primeiros escritos sobre o tema, “Socialismo e cultura”, publicado em Il Grido del Popolo, em 1916, Gramsci fez críticas à cultura como privilégio das elites e também condenou o conhecimento estabelecido como um saber enciclopédico, puramente erudito, que se abstém de se referenciar à realidade concreta, às contradições da vida social. Afirma ele que
É preciso perder o hábito e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico, no qual o homem é visto apenas sob a forma de um recipiente a encher e entupir de dados empíricos, de fatos brutos e desconexos, que ele depois deverá classificar em seu cérebro como nas colunas de um dicionário, para poder em seguida, em cada ocasião concreta, responder aos vários estímulos do mundo exterior. Essa forma de cultura é realmente prejudicial, sobretudo para o proletariado. Serve apenas para criar marginais, pessoas que acreditam ser superiores ao resto da humanidade porque acumularam na memória certo número de dados e de datas que vomitam em certa ocasião, criando assim quase que uma barreira entre elas e as demais pessoas. (Gramsci, 2004b, p. 57)
Criticando claramente o paradigma francês de cultura, modelo aceito e difundido por grande parte dos intelectuais que lhe são contemporâneos, Gramsci, na juventude, defendia a cultura como um elemento importante para a luta proletária, sustentando que o conhecimento não poderia estar restrito a uma pequena parcela privilegiada da sociedade. A esse respeito, no mesmo texto, ele afirma que
A cultura é algo bem diverso. É organização, disciplina do próprio eu interior, apropriação da própria personalidade, conquista de consciência superior: e é graças a isso que alguém consegue compreender seu próprio valor histórico, sua própria função na vida, seus próprios direitos e seus próprios deveres. Mas nada disso pode ocorrer por evolução espontânea, por ações e reações independentes da própria vontade, como ocorre na natureza vegetal e animal, onde cada ser singular seleciona e especifica seus próprios órgãos inconscientemente, pela lei fatal das coisas. O homem é sobretudo espírito, ou seja, criação histórica, e não natureza. Se não fosse assim, seria impossível explicar por que, tendo sempre existido explorados e exploradores, criadores de riqueza e consumidores egoístas da mesma, o socialismo ainda não se realizou. (Gramsci, 2004, p. 58)
Ao definir cultura como conquista de uma consciência superior, ou seja, como aquilo que pode tornar todos os humanos dirigentes por meio de um processo social e histórico, logo, não natural, Gramsci extrapola o paradigma alemão, que, fundamentado no conceito alemão de bildung, tende a expressar, abstratamente, elementos relacionados às experiências empíricas e concepções de mundo, sem enfrentar os dilemas concretos da vida social expressos nessa experiência e concepções.
A nova civilização proposta por Gramsci, que se manifestava nos textos que publicou e mesmo na ação militante que empreendeu, só poderia ser alcançada com a consolidação da nova cultura, alcançada pela reforma moral e intelectual. Assim, a cultura proposta por Gramsci não se limita aos aspectos da prática política francesa e nem, tão pouco, poderia estar relacionada apenas aos elementos relativos às concepções de mundo, à formação humana imediatamente “desinteressada” porque baseada em valores universalistas, representada na bildung alemã[2]. Para ele, a cultura deveria possuir um sentido unitário, ou seja, só poderia se efetivar com a união dos dois aspectos: o prático-político e o das concepções de mundo. E a filosofia da práxis era por ele vista como caminho promissor para tal efetivação.
Gramsci produz a síntese dos paradigmas da época ao considerar o saber erudito como produção da humanidade, valorizado, portanto, como não pertencendo a uma classe, a burguesia, mas ao conjunto da sociedade. Isso projeta o advento de uma nova cultura, articulada à emergência de uma nova sociedade, não capitalista. Apropriado privadamente, o saber se transforma em instrumento de dominação, por isso precisa ser socializado, o que ocorre por processos educativos, que ganham sentido e significado de tarefa revolucionária e adquirem, assim, conotações políticas. Nesse sentido de organização de uma nova cultura, articulam-se elementos diversos, como os da filosofia e da economia, que propiciam a unidade dialética entre cultura popular e alta cultura ou cultura erudita (Barata, 2017, p. 173), resultando na superação pelo que Gramsci denomina cultura nacional-popular.
A propósito, é das formulações carcerárias, que comparam a cultura italiana e francesa, que Gramsci formulou a noção de cultura nacional-popular, inspirado nos aspectos cosmopolitas e desenvolvedores das energias nacionais da cultura francesa, que soube criar uma sólida base nacional. De modo que, a “[...] maneira nova, originalíssima, de pensar a revolução” (Barata, 2017, p. 173) a partir da reforma moral e intelectual indica, claramente, que a edificação de uma nova civilização nas modernas sociedades ocidentais demanda a criação de uma nova cultura.
O nacional-popular em Gramsci supera a cisão entre a perspectiva que, orientada pela divisão de classes, delega às massas a cultura popular e o folclore, na forma de saberes desagregados, enquanto o saber científico, artístico e filosófico é atribuído à burguesia. Para ele, a formação de uma unidade nacional-popular fará surgir a vontade coletiva capaz de formar o bloco histórico que estabelecerá a nova hegemonia, orientada pelos interesses-necessidades das classes subalternas.
[...] em Gramsci tem lugar uma íntima articulação entre hegemonia e o que ele chama de “vontade coletiva nacional-popular”. A hegemonia gramsciana se materializa precisamente na criação dessa vontade coletiva, motor de um “bloco histórico” que articula numa totalidade diferentes grupos sociais, todos eles capazes de operar, em maior ou menor medida, o movimento “catártico”[3] de superação de seus interesses meramente “econômico-corporativo”, no sentido da criação de uma consciência “ético-política”, universalizadora. (Coutinho, 1999, p. 250-251)
Isso só será possível à medida que uma nova cultura se forme, articulando o popular e o erudito, superando-os por incorporação (síntese dialética). Dito de outra forma: não existirá sociedade sem classes enquanto os níveis mais elevados de consciência forem privilégio de poucos. E sobre isso cabe mencionar que,
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas ‘originais’; significa, também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, e ‘socializá-las’ por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato ´filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por parte de um ‘gênio’ filosófico, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais. (Gramsci, 2001, p. 96)
Para Gramsci, a nova cultura elaborada pelas classes subalternas e seus intelectuais orgânicos deve superar os elementos folclóricos[4] das concepções de mundo dos homens-massa, apropriando o saber produzido na história pela humanidade. Dessa forma, será possível, pela educação, elevar a consciência do senso comum, transformando-a em uma nova concepção de mundo, crítica e coerente, isto é, em consciência filosófica. Sobre isso, Gramsci afirma que
Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica e a consciência daquilo que é realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise. (Gramsci, 1999, p. 94)
Logo, não é possível apresentar uma definição de cultura em Gramsci sem delinear como ele aprimora os postulados na construção de relações dialéticas entre cultura e filosofia, política, economia e educação, visando a edificar a nova civilização, forjada pela hegemonia das classes subalternas. De fato, “[...] no percurso intelectual gramsciano, a centralidade que assume a questão da cultura e da sua organização no interior da luta pelo socialismo” (Vieira, 1999, p. 58) é muito significativa.
Filosofia, senso comum e hegemonia: cultura e política articuladas à economia
Entre as mais importantes contribuições de Gramsci para a “atualização” do marxismo no século XX está a categoria de hegemonia, que se reflete no conceito de “Estado integral” por ele desenvolvido. A esse respeito, diz Martins (2013) que
Seguindo a indicação de Engels, Gramsci perscrutou a realidade e sua práxis o levou a atualizar a forma de luta do proletariado, de acordo com as novas condições sócio-históricas das sociedades capitalistas avançadas. Desenvolvendo o ´[...] que Ilitch [Lênin] não teve tempo de aprofundar’ (GRAMSCI, 2000b, p. 262), Gramsci observou que o estado havia alterado sua configuração, ampliando-se e abarcando, além dos aparelhos de força da ´sociedade política’, os aparelhos privados de hegemonia’ (sociedade civil), que são necessários para manter a prevalência dos interesses burgueses na dinâmica de funcionamento das relações sociais (GRAMSCI, 2005, p. 84). Assim, o Estado, no século XX, segundo Gramsci, não deixou de ser um instrumento de classe a serviço da burguesia, mas mudou sua estratégia de ação e sua configuração (GRAMSCI, 2000b, p. 262): foi além da utilização da força e da coerção, agindo para cimentar concepções de mundo que pudessem orientar a vida individual e coletiva dos integrantes da totalidade social, de acordo com os interesses e as necessidades da burguesia como classe dominante, com vistas a mantê-la como classe hegemônica. (Martins, 2013, p. 16)
Para Gramsci, portanto, o capitalismo do século XX revela formas complexas de manutenção, suplantando o uso exclusivo da força e estabelecendo a hegemonia burguesa pela produção de consensos sociais, por meio da formação cultural, da educação das classes subalternas. E, assim, Gramsci formula um novo conceito de filosofia, não mais fundamentado na tese de que o pensamento filosófico pertence a uma elite intelectual, mas sobre o pressuposto de que filosofia é “concepção de mundo” (Gramsci, 1999, p. 96), conceito que conduz o autor à afirmativa de que
[...] todos os homens são “filósofos”, isto é, que entre os filósofos profissionais ou “técnicos” e os demais homens não existe diferença “qualitativa”, mas apenas “quantitativa” (e, neste caso, “quantidade” tem um significado bastante particular, que não pode ser confundido com soma aritmética, porque indica maior ou menor “homogeneidade”, “coerência”, “logicidade”, etc., isto é, quantidade de elementos qualitativos)” (Gramsci, 1999, p. 410)
Segundo Gramsci, as concepções de mundo podem ser tanto de “senso comum” como “críticas” ou filosóficas, sendo a primeira uma maneira desagregada e a-histórica de conceber o mundo, e a segunda representada por uma visão de totalidade da realidade social. De ambas decorrem uma ética e uma “vontade”, que orienta e se manifesta na ação. A esse respeito, Martins (2013) afirma que
Essa noção da interação entre ser e pensar, com implicações ontológicas, antropológicas, epistemológicas e axiológicas, possibilitou a Gramsci entender que as concepções de mundo se apresentam como determinadas e determinantes da vida concreta, e que nesse jogo de interatuação entre objetivo e subjetivo na realidade sócio-histórica emergem diferentes filosofias, desde as mais elaboradas, coerentes e sintéticas, até as que se caracterizam por serem visões superficiais e sincréticas de mundo, mas todas elas com uma mesma origem, pois são produto de ´[...] um devir histórico [que faz com que] Na realidade, [...] exist[am] diversas [...] concepções de mundo.’ (GRAMSCI, 1999, p. 96). (Martins, 2013, p. 18)
Dessa forma, a história se torna parte basilar da concepção de cultura em Gramsci, pois ao afirmar que “Não se pode separar a filosofia da história da filosofia, nem a cultura da história da cultura” (Gramsci, 2001, p. 95), o autor defende que a concepção histórica da realidade é capaz de estimular nos sujeitos a capacidade de avaliarem e se posicionarem frente às contradições sociais. Para Gramsci, o ato de conhecer a história e estabelecer uma concepção crítica do presente, a partir de um olhar crítico para o passado, levará coletivos humanos a projetar (no futuro) a luta pela edificação de outro futuro, mais humanizado, caracterizado pelo autogoverno das classes subalternas, com potencial de superar a alienação e a exploração inerentes ao modo de produção capitalista, o que depende de ações individuais e coletivas.
Sobre a importância da consciência histórica a Gramsci, Semeraro diz que,
Diferente de seus contemporâneos, o pensador italiano estava convencido de que somente por meio do desenvolvimento de uma consciência histórica da realidade e de uma ação política voltada a elevar a condição ‘intelectual e moral’ das massas, se poderia chegar a uma sociedade realmente ‘civil’, capaz de humanizar-se plenamente e de autogovernar-se. (Semeraro, 1999, p. 67)
Um dos pontos inovadores da teoria gramsciana é a ideia de que, ao historicizar as concepções de mundo por um processo de organização da cultura, torna-se possível a transformação do senso comum em consciência filosófica, desenvolvendo o que existe de mais positivo no senso comum: o bom senso. Quanto a isso, ele afirma que “[...] o núcleo sadio do senso comum, que poderia precisamente ser chamado de bom senso [...] merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente” (Gramsci, 2015, p. 98).
Para Gramsci, quaisquer sujeitos, inclusive os que possuem uma perspectiva ingênua de si e das relações sociais, ou seja, uma concepção de mundo de senso comum, podem passar por processos catárticos e constituir consciência crítica pela elevação do bom senso a um nível de consciência mais elaborado, no qual sua filosofia oriente-se por conhecimentos capazes de revelar seu lugar de subalternidade e, ao mesmo tempo, estimulá-lo à luta para superá-la.
Assim, se filosofia é concepção de mundo e se toda concepção de mundo gera, inevitavelmente, um direcionamento à ação, para Gramsci, existe uma relação indissociável entre filosofia e política, pois “[...] a ação é sempre uma ação política” (Gramsci, 2015, p. 97). A incorporação ou crítica de concepções de mundo expressam-se na ação, podendo, as massas emanciparem-se ou, por meio da submissão intelectual derivada da hegemonia burguesa, apropriarem-se de concepções e ações de grupos sociais que as exploram e alienam, produzindo, inclusive, a indiferença, que “[...] é abulia, é parasitismo, [...] é o peso morto da história” (Gramsci, 2004a, p. 84).
Para Gramsci, a cultura representa um dos pilares centrais na disputa hegemônica. “É por isso, portanto, que não se pode separar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, também elas, fatos políticos” (Gramsci, 2015, p. 97). Tanto assim que
[...] toda revolução foi precedida por um intenso e continuado trabalho de crítica, de penetração cultural, de impregnação de ideias em agregados de homens que eram inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por si mesmos, dia a dia, hora a hora, seus próprios problemas econômicos e políticos, sem vínculos de solidariedade com os que se encontravam na mesma situação. (Gramsci, 2004b, p. 58-59)
Dessa forma, cultura, política e filosofia relacionam-se dialeticamente, não excluindo as relações econômicas dessa dialeticidade. O conceito de cultura em Gramsci não se descola das relações sociais e econômicas, seja no âmbito da sociedade regida pelo capital, seja na luta para superá-la. Para o Sardo, “A cultura de uma época é o resultado do embate e da interação das concepções de mundo, das experiências e das práticas sociais” (Vieira, 1999, p. 62)
Durante a atuação junto aos conselhos de fábricas, experiência que fracassou como tentativa revolucionária, inclusive, pelo que Gramsci considerava ser falta de preparo intelectual das classes subalternas, ele destacou a relação dialética entre economia e cultura. Gramsci percebeu que tomar os meios de produção não resultou imediatamente na emancipação dos(as) trabalhadores(as) da condição de subalternidade cultural e política, até porque a burguesia voltou a tomar as fábricas e restabeleceu o status quo. Daí Gramsci ter advogado, como central à revolução em sociedades ocidentais do século XX, a reforma moral e intelectual, que “[...] não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral.” (Gramsci, 2000b, p. 19).
Vê-se claramente que, em Gramsci, a cultura articula-se à economia e à política, e tem função hegemônica. Logo, Gramsci politiza o conceito de cultura.
De fato, a contribuição de Gramsci à discussão sobre a cultura reside, entre outras, no destaque à dimensão política, identificando-a como imanente ao processo de construção da hegemonia. Sintetizando concepções da época e sustentando o conceito nacional-popular de cultura, Gramsci visou a colaborar na construção das condições necessárias à superação da civilização burguesa, para o que é indispensável articular um “bloco histórico” (Portelli, 1990) dos subalternos com vistas a construir a nova civilização. O conceito de bloco histórico em Gramsci é concebido como articulação de forças sociais originárias da estrutura e da superestrutura necessárias à disputa pela hegemonia e implica desmontar argumentos que destituem o humano da condição de ser capaz de transformar a totalidade do real e produzir a nova civilização.
Considerando que, para Gramsci, “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica” (Gramsci, 1999, p. 399), cabe dizer que foi o caráter unitário de sua teoria e a urgência na produção de uma nova cultura das classes subalternas que levou Gramsci a tornar-se, também, um pensador com significativas contribuições para o campo da educação. Na verdade,
A educação como prática cultural desempenha, como força produtiva, papel estratégico na conformação aos padrões da sociabilidade dominante e na reprodução ampliada da riqueza nas sociedades urbano-industriais contemporâneas. Como força produtiva, a educação pode, também, contribuir para edificar os pilares de uma relação social livre da exploração e da dominação de poucos sobre a maioria. (Martins; Neves, 2014, p. 74-75)
De acordo com o apresentado por Gramsci para a construção de um padrão civilizatório humanizado e não objetificado na forma de capital, é preciso reafirmar que as estruturas de poder da classe dominante e dirigente não se estabelecem apenas no âmbito do domínio da vida material, mas também nos campos jurídico, político, social e ideológico. A hegemonia burguesa não se sustenta tão somente na lógica mecanicista resultante da visão de que os contornos da sociedade se definem pela contraditória relação econômica estabelecida entre uma classe, que é dona dos meios de produção, e outra, proprietária da força de trabalho. De acordo com o pensamento do autor, para além do controle dos meios de produção, a consolidação de uma relação de dominação e direção perpassa, conjuntamente, pelo universo da cultura e da educação. Assim sendo,
[...] o processo de dominação de uma classe se efetiva pelo poder, pela propriedade e pela cultura do vivido, ou seja, a classe dominante cria hábitos, normas, valores e símbolos, um modo de ser que precisa ser mantido. Por isso a cultura e a educação são aspectos importantes na luta. (Martins; Neves, 2014, p. 78)
Dessa forma, assim como não se pode separar a cultura das bases materiais da sociedade, também não se deve separar a cultura da educação, pois ambas são produtos e produtoras das relações de hegemonia. Nesse contexto,
[...] a cultura resulta da interação dos homens entre si e com o ambiente, no sentido de criar uma identidade de classe e alcançar uma compreensão abrangente da história como processo de criação continuada, de luta e consolidação de direitos e deveres, de convivência e companheirismo gerados no esforço de construção da vida coletiva. Conhecer é já agir, transformar-se modificando o mundo. A educação efetiva-se na relação entre teoria e prática por meio da qual se elabora uma nova cultura. (Schlesener, 2013, s/p)
Para Gramsci, pela educação pode-se elevar o nível cultural das classes subalternas e isso é por ele compreendido como primordial para a superação do capitalismo e consolidação da nova civilização, o socialismo.
Gramsci, cultura popular e folclore
Interpretar a obra de Gramsci a partir de seus conceitos e categorias centrais é um caminho interessante para compreender o modo pelo qual o seu legado pode ser útil aos movimentos sociais do século XXI. Esse é o caso das formulações que ele produziu sobre folclore e cultura popular.
No Brasil de hoje, por exemplo, ainda é possível identificar parte considerável dos trabalhos com as noções de folclore e cultura popular elaborados por meio de uma interpretação fortemente influenciada pela concepção francesa de cultura, ou seja, caracterizam-se como cultura popular e folclore apenas o que é produzido pelos que não se apropriaram da denominada “alta cultura”, considerada a “mais avançada”. Há, portanto, nessa separação, uma forte dicotomia classista, haja vista que cabe às massas a cultura popular e à classe dominante a cultura erudita.
Ao analisar a cultura brasileira à luz da cultura em Gramsci, Coutinho diz que
[...] como a própria formulação de Gramsci deixa claro, os problemas da democratização da cultura não se esgotam na definição de uma justa perspectiva para a batalha das ideias. Há todo um quadro social, econômico e político que tem que ser criado para que a cultura brasileira possa efetivamente se desenvolver de forma não elitista. (Coutinho, 2011, p. 71)
Segundo Coutinho, a formação de uma cultura nacional-popular no Brasil não se resume a uma luta no campo das “ideias”, pois deve ser travada na relação dialética estrutura/superestrutura, na relação economia/cultura-educação-política.
A formulação de uma cultura nacional-popular, no contexto da contribuição de Gramsci ao materialismo histórico-dialético, deve superar a indiferença política das massas e fundar-se na postura ativa, organizada e orientada pelo desenvolvimento da consciência histórica necessária à luta pela hegemonia, papel destacado à sociedade civil, não excluindo contribuições da sociedade política. Isso não significa, contudo, anular o que hoje se denomina coloquialmente de “expressões populares da cultura”, as manifestações culturais dos grupos populares, que revelam sua história e identidade. Para estudar Gramsci no contexto do século XXI é necessário historicizar o pensamento do autor, como ele próprio recomenda:
Como é possível pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado frequentemente bastante remoto e superado? Se isso ocorre, significa que somos “anacrônicos” em face da época em que vivemos, que somos fósseis e não seres que vivem de modo moderno. (Gramsci, 2011, p. 95)
Logo, o exercício da ortodoxia metodológica gramsciana[5] recomenda considerar o contexto em que Gramsci definiu conceitos como o de folclore e cultura popular, para não os confundir com o que hoje significam. Desse modo, cabe dizer que o autor valorizava a práxis, tanto que sua produção teórica objetivava orientar a ação dos(as) subalternos(as) no momento de ebulição da Revolução Russa e ascensão de regimes como o fascismo. Naquele momento, as lutas populares eram quase exclusivamente classistas e não “identitárias”. O identitarismo é uma articulação hoje muito expressiva, mas não se apresentava assim naquele contexto. Por isso, foi referenciando-se na classe que Gramsci disputou o campo da cultura, entendida também como espaço de manutenção da ordem burguesa.
Quando Gramsci se refere à cultura erudita e à cultura popular como dualidade a ser superada, o que sugere não é a supressão de elementos identitários presentes na cultura popular, mas a transformação por meio da ação concreta de uma filosofia (concepção de mundo) ingênua por outra crítica, para despertar-educar as massas à disputa pela hegemonia. Não é adequado, então, renegar a crítica de Gramsci à cultura popular a partir dos que hoje se entende e se identifica por esse conceito, como por exemplo: a capoeira, a culinária tradicional, o maracatu, o frevo etc.
Veja-se que, no Caderno 27, dedicado ao estudo do folclore, está uma declaração polêmica de Gramsci sobre o que hoje se entende como cultura popular. Ao analisar o conteúdo escolar na Itália do início do século XX, ele defende que
[...] conhecer o folclore significa, para o professor, conhecer quais são as outras concepções de mundo e da vida que atuam de fato na formação intelectual e moral das gerações mais jovens, a fim de extirpá-las e substituí-las por concepções consideradas superiores. (Gramsci, 2002, p. 136)
A leitura superficial do excerto pode conduzir à ideia de que Gramsci entende que as formas de expressão popular devam ser erradicadas, substituídas por outras. No entanto, do significado de folclore no início do século XX e do sentido que Gramsci atribui à palavra, decorre a compreensão divergente da impressão inicial.
A palavra folclore deriva do inglês folk-lore e pode ser traduzida como “saber do povo”. Surge na Inglaterra, influenciada pela perspectiva alemã de cultura (building), que, grosso modo, opunha-se ao paradigma francês de “altas culturas”. Nesse sentido, folcloristas ingleses definiam folclore como algo pitoresco, bizarro, que emanava das classes populares. A primeira definição de folclore o definia como
I - narrativas tradicionais (contos, baladas, canções, lendas); II - costumes tradicionais (jogos, festas e ritos consuetudinais); III - superstições e crenças (bruxarias, astrologia, práticas de feitiçarias); IV - linguagem popular (nomenclatura, provérbios, advinhas, refrões, ditos). (Frade, 1997, p. 11)
Para os folcloristas do final do século XIX e início do XX, o folclore caracterizava-se como elemento exclusivo da cultura popular e traduzia o sentido de algo perene, que guarda a mentalidade de uma estagnação da cultura, ou seja, sua naturalização se expressa na ideia do “sempre foi assim”. Em outras palavras, o folclore só poderia emanar do povo e, por sua necessidade de preservação, representava a visão de um elemento na cultura que se encontrava fora da história, imutável, naturalizado. Daí a necessidade de historicizar o folclore, para conhecê-lo e transformá-lo, mas não com o método dos folcloristas. Diz Gramsci:
Seria preciso estudar o folclore, ao contrário, como ‘concepção de mundo e de vida’, em grande medida implícita, de determinados estratos (determinados no tempo e nos espaços) da sociedade, em contraposição (também esta, na maioria dos casos, implícita, mecânica, objetiva) às concepções de mundo oficiais (ou, em sentido mais amplo, das partes cultas das sociedades historicamente determinadas) que se sucederam no desenvolvimento histórico. (Gramsci, 2002, p. 133)
Gramsci cria um novo conceito de folclore, que em dois aspectos diferenciava-se do inglês: 1) existe folclore para além do pitoresco/bizarro, como quando ele utiliza o exemplo do folclore da religião católica e o do campo do direito (Gramsci, 2002, p. 134); 2) amplia a ideia de folclore, expressa no que chamou de “filosofia do senso comum”. O que entende por folclore, portanto, extrapola a ideia de “produto da cultura do elemento popular”, construída pelos ingleses, e ganha o significado de concepção de mundo do senso comum. A partir desse pressuposto, propõe a superação do folclore como concepção de mundo ingênua e naturalizada.
Tal como faz com o conceito de cultura, Gramsci politiza o conceito de folclore. Ao sugerir que esse não seja mais estudado como uma birraria (Gramsci, 2002), mas como concepção de mundo do senso comum, o autor confere ao folclore papel importante na construção de uma nova hegemonia.
Importa reafirmar que não se deve transpor os conceitos de cultura popular e folclore em Gramsci ao contexto atual, não sem uma “tradução” (Martins, 2017), para empregar termo caro a Gramsci. Se o folclore, como o conceberam os ingleses, tornou-se sinônimo de manifestações da cultura popular, o “desvio” histórico que Gramsci deu ao termo produziu um significado bastante diferente.
Nas análises sobre o folclore, Gramsci expressou crítica a tudo que é exterior à existência, pois têm os seres humanos uma consciência que “[...] nunca se separa dos condicionamentos sociais e dos conflitos de classe” (Semeraro, 1999, p. 74).
Gramsci rompe com a ideia de que o espaço burocrático-administrativo é o lugar principal da disputa política e confere este status também à sociedade civil, e nela, às organizações culturais (Semeraro, 1999, p. 82). Sendo assim, superar o folclore como filosofia do senso comum representaria superar qualquer justificativa para a condição de subordinação que escapasse à história e à luta de classes, que tornasse natural a alienação e a exploração, e que impedisse surgir a vontade para construir um novo bloco histórico, que estabeleceria a nova hegemonia com vistas à construção da nova civilização, dirigida pelas classes subalternas.
Pela acepção gramsciana de folclore, é possível afirmar que uma expressão da cultura popular contemporânea pode ser tanto folclórica quanto crítica: a primeira quando naturaliza as opressões e encerra-se em si mesma, e a segunda quando permite a reflexão e a elevação da consciência pela análise histórica, entendendo-se como dialeticamente determinada pela totalidade da vida social. O mesmo vale para as expressões eruditas da cultura. Para Gramsci, o folclore a ser “extirpado” não é sinônimo de cultura das classes populares, mas uma representação de concepções de mundo a-históricas, que naturalizam a realidade concreta. Tal concepção, portanto, pode ser expressa tanto pelos populares quanto pelos eruditos.
Segundo a concepção marxista gramsciana, é possível definir cultura como todas as formas de consciência que se manifestam subjetiva e objetivamente e que, em uma relação dialética com a materialidade das relações de produção, tornam-se produtos e produtoras da realidade concreta. Nesta definição, a cultura supera sua concepção de mero resultado das ações humanas na história e passa a ser definida, também, como produtora da realidade ao longo dos tempos e, assim, dependente de e inerente aos processos educativos, com viés eminentemente político.
À guisa de conclusão
A concepção de cultura e de folclore em Gramsci deixa claro o porquê o revolucionário comunista sardo é reverenciado quando se trata de identificar marxistas que atualizaram o materialismo histórico-dialético, superando, de um lado, idealismos, como o de Croce, de outro, materialismos vulgares, como o de Bukharin, De fato, Gramsci formula conceitos marxistas de cultura e de folclore, que não se definem abstratamente, mas na relação dialética com a educação, a política e a economia.
Seja na síntese que produziu dos paradigmas alemão e francês de cultura, formulando a perspectiva nacional-popular, seja na nova dimensão que conferiu ao folclore e ao debate sobre cultura erudita x cultura popular, o que se percebe é que o comunista italiano não abriu mão do mais essencial do método do materialismo histórico-dialético: a análise concreta de situações concretas.
É por meio desse tipo de análise que a teoria gramsciana ganhou destacada relevância no campo da educação, uma vez que o reconhece como fundamental para as mudanças materiais (econômicas) e imateriais (ético-políticas, sociais e culturais) necessárias à instituição de uma nova civilização e do qual resultou contribuições fundamentais ao desenvolvimento de práxis voltadas ao que denominou de elevação do nível de consciência das massas. A propósito, de parte dessas contribuições marxistas de Gramsci à educação derivou a proposição de uma escola de nível básico, a escola unitária, que articulando “saber” e “fazer” no processo formativo, visa a “[...] habilitar sujeitos para lidarem com o mais avançado mundo do trabalho e formá-los desinteressadamente sob o ponto de vista ético-político, formá-los como intelectuais aptos a produzirem o exercício de uma nova hegemonia” (Martins, 2021, p. 14).
Assim atuando, Gramsci soube, como poucos, utilizar a dialética para atualizar o marxismo, sobretudo, destacando a importância correlata entre dimensão cultural-educativa-política da vida social e a realidade econômica, nos processos de luta para superar o capitalismo. Isso porque, segundo ele, a hegemonia das classes subalternas, que produzirá a construção da nova civilização, não depende apenas da ocupação e do auto-governo do chão da fábrica pelas classes subalternas, mas também da ação educativo-política com vistas a ocupar e auto-governar seus corações e mentes, suas subjetividades e intersubjetividades, em suma, sua cultura.
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[1] “O termo Bildung, derivado de Bild (imagem), corresponde ao latim formatio, forma sendo o equivalente a Bild. Seu uso no sentido do cultivo do espírito remonta à mística renana do século XIV, em que designava a imagem de Deus que penetra no âmago do indivíduo e, assim, dá forma a sua alma” (Alves, 2019, p. 3).
[2] No contexto da unificação alemã tardia, “O ideal de Bildung cumpre essas duas funções contraditórias. Por um lado, Bildung é um ideal universalista criado pelo neo-humanismo alemão e representa uma reação contra a fragmentação do conhecimento e da sociedade, propondo formas de integração pela educação e pela cultura. Por outro lado, expressa o desejo de distinção de parte da burguesia alemã e também funciona como marca distintiva da nação alemã em relação à França e à Inglaterra.” (Alves, 2019, p. 7)
[3] Cardoso; Martins, 2014.
[4] As discussões gramscianas sobre o folclore apresentadas na última parte deste artigo.
[5] A ortodoxia gramsciana refere-se à aderência à metodologia do materialismo histórico-dialético, sintetizada por Lênin como análise concreta de situação concreta, que é por Gramsci entendida como “[...] suficiente como método para dar conta dos desdobramentos do real em seu desenvolvimento histórico (conhecê-lo em seus detalhes constitutivos e orientar as intervenções nele tendo em vista determinar-lhe outros contornos)” (Martins, 2008, p. 7-8).